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Psicologia Clínica
versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.25 no.2 Rio de Janeiro jun. 2013
SEÇÃO LIVRE
Percepções de psicólogos sobre a capacitação para intervenção com vítimas de violência sexual
Perceptions of psychologists about the training for the intervention with victims of sexual violence
Percepción de psicólogos sobre la capacitación para la intervención con víctimas de violencia sexual
Clarissa Pinto Pizarro de FreitasI; Luísa Fernanda HabigzangII
IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
RESUMO
O objetivo deste trabalho foi investigar as percepções dos profissionais de psicologia que participaram da Tecnologia Social de Capacitação Profissional sobre o modelo de grupoterapia cognitivo-comportamental para o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual em relação ao impacto e à transferência de aprendizagem. Utilizou-se o delineamento de casos múltiplos, em entrevistas semiestruturadas com três psicólogas que concluíram o curso e coordenaram grupos terapêuticos de acordo com o modelo aprendido. Os dados foram analisados por meio da análise de conteúdo. Os resultados indicaram que a capacitação produziu um impacto sobre a atuação profissional das participantes. Observou-se a presença de um impacto sobre as demandas de trabalho e crenças relacionadas à violência sexual. Houve situações de transferência de aprendizagem em curto prazo e em longo prazo. As participantes avaliaram a capacitação de forma positiva e a consideraram uma intervenção efetiva para instrumentalizar os profissionais em sua atuação com vítimas de violência sexual.
Palavras-chave: capacitação profissional; violência sexual; impacto; transferência de treinamento.
ABSTRACT
This article aimed to investigate the perceptions of psychology professionals who participated in a Social Technology of Professional Training in cognitive-behavioral group therapy for the treatment of children and adolescents victims of sexual violence about the impact of training and transfer of learning. It was used the multiple case design, in semi-structured interviews with three psychologists who completed the course and coordinated therapeutic groups according to the model learned. Data were analyzed using content analysis. The results indicated that the training produced a direct impact on the professional performance of the participants. It was observed the presence of an indirect impact on the work load and on the beliefs related to sexual violence. There were cases of transfer of learning in short and long terms. The training was positively evaluated, and the intervention effective in enabling professionals in their work field with victims of sexual violence.
Keywords: professional training; sexual violence; impact; transfer of learning.
RESUMEN
Se objetivo investigar las percepciones de profesionales de psicología que participaron de la Tecnología Social de Capacitación Profesional sobre el modelo de grupo-terapia cognitivo conductual para el atendimiento de niños y adolescentes víctimas de violencia sexual acerca del impacto y de la transferencia de aprendizaje. Se utilizó un delineamiento de casos múltiples, realizando entrevistas semi-estructuradas con tres grupos de psicólogas que terminaron el curso y coordinaron grupos terapéuticos de acuerdo con el modelo aprendido. Los datos fueron analizados por medio de un análisis de contenido. Los resultados indicaron que la capacitación produjo un impacto directo sobre la actuación profesional de las participantes. Se observó que la presencia de un impacto indirecto sobre las demandas de trabajo y las creencias relacionadas a la violencia sexual. Hubo situaciones de transferencia de aprendizaje a corto y largo plazo. Las participantes evaluaron la capacitación de forma positiva y consideraron esta, una intervención efectiva para instrumentalizar a los profesionales en su actuación con víctimas de abuso sexual.
Palabras clave: capacitación profesional; violencia sexual; impacto; transferencia del aprendizaje.
Em diferentes partes do mundo, estudos indicam que os registros de casos de violência sexual contra vítimas do sexo feminino oscilam entre 7 e 36%, e entre 3 e 29% em vítimas do sexo masculino (World Health Organization - WHO, 2003). O relatório do Disque Direitos Humanos expôs que no Brasil, no período de maio de 2003 a março de 2010, foram encaminhadas 156.664 denúncias, das quais 32% referiam-se às ações de violência sexual contra crianças e adolescentes. Dessas, 80% das vítimas eram do sexo feminino e 20% do sexo masculino (Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, 2010). A complexidade intrínseca às situações de violência sexual, às consequências psicossociais no desenvolvimento da vítima e ao atendimento das crianças e adolescentes vítimas torna necessária a adoção de intervenções baseadas em evidências (World Health Organization - WHO, 2006).
No Brasil existem serviços públicos especializados no atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, porém ainda não conseguem lidar de maneira satisfatória com a demanda existente (Luna, Ferreira, & Vieira, 2010; Pires & Miyazaki, 2005). As principais justificativas para as dificuldades de a demanda de serviço ser atendida adequadamente são a sobrecarga de trabalho, a ausência de qualificação profissional, a falta de comunicação entre as instituições e a complexidade relacionada a situações de violência sexual (Conselho Federal de Psicologia, 2009; Gomes, Junqueira, Silva, & Junger, 2002; Habigzang, Azevedo, Koller, & Machado, 2006; Luna et al., 2010).
Em relação aos profissionais de psicologia dos serviços de atendimento às vítimas de violência sexual, as dificuldades frequentemente identificadas são: a incapacidade desses profissionais de identificarem sintomas em crianças e adolescentes que indiquem a suspeita da ocorrência de violência sexual (WHO, 2006); a inabilidade técnica; e as dificuldades em realizar notificações, em razão das implicações legais e éticas (Saywitz, Mannarino, Berliner, & Cohen, 2000). Verifica-se também um desconhecimento sobre a dinâmica da violência sexual, assim como dificuldades em reconhecer os fatores de risco e de proteção presentes no ambiente em que a vítima está inserida (Habigzang, Koller, Azevedo, & Machado, 2005). Além disso, segundo a pesquisa realizada pelo Conselho Federal de Psicologia (2009), um terço dos profissionais de psicologia que atuam na área de violência sexual sente-se despreparado para intervir nessas situações devido a deficiências em sua formação acadêmica e profissional.
Frente à fragilidade da rede de atendimento, um grupo de pesquisa desenvolveu uma Tecnologia Social de Capacitação Profissional para intervenção psicológica com vítimas de violência sexual aos profissionais de psicologia (ver Método). As Tecnologias de Capacitação Profissional têm se constituído como uma ferramenta fundamental à mudança de comportamentos no contexto de trabalho, podendo sua efetividade ser avaliada segundo os índices de impacto e transferência de aprendizagem no trabalho do profissional (Grossman & Salas, 2011).
Em relação ao impacto no trabalho, está relacionado às repercussões originadas pela capacitação sobre o desempenho global, as atitudes e a motivação do participante. Dessa forma, o impacto é identificado como efeitos da capacitação no comportamento do participante, os quais podem não estar diretamente relacionados (Pilati & Abbad, 2005).
A transferência de aprendizagem, por sua vez, é definida como a aplicação efetiva do conhecimento, bem como as habilidades e técnicas adquiridas durante a capacitação no contexto do trabalho e sua manutenção por um determinado período de tempo (Cheng & Ho, 2001; Pilati & Abbad, 2005).
Pode-se classificar a transferência de aprendizagem como transferência direta, ou transferência em curto prazo, e transferência indireta, ou transferência em longo prazo. A transferência em curto prazo está relacionada à aplicação imediata dos conteúdos e técnicas abordadas, envolvendo o aprendizado de técnicas operacionais, aplicadas em situações similares àquelas em que a aprendizagem ocorreu (Garavaglia, 1995), enquanto que a transferência em longo prazo refere-se à aplicação dos conteúdos e habilidades desenvolvidas em longo prazo, geralmente em situações diferentes daquelas em que o aprendizado ocorreu (Garavaglia, 1995).
Evidências têm demonstrado que as reações dos participantes à capacitação podem influenciar os índices de impacto e transferência de aprendizagem (Abbad, Borges-Andrade, & Sallorenzo, 2004; Cheng & Ho, 2001; Grossman & Salas, 2011; Lim & Johnson, 2002; Rodríguez & Gregory, 2005). Dentre os elementos que constituem as reações dos participantes à capacitação destacam-se as percepções do participante sobre a relevância dos conteúdos e técnicas trabalhados e a possibilidade de utilizá-los em seu contexto laboral (Abbad et al., 2004; Rodríguez & Gregory, 2005). Em razão disso, o presente estudo teve como objetivo investigar as percepções dos participantes sobre o impacto da capacitação e a transferência de aprendizagem ao seu contexto de trabalho.
Método
A fim de se desenvolver um estudo qualitativo de caráter exploratório, foi utilizado o delineamento de estudo de casos múltiplos (Yin, 2001) com o objetivo de conhecer as percepções de três profissionais de psicologia sobre o impacto da Tecnologia Social de Capacitação Profissional para intervenção psicológica com vítimas de violência sexual aos profissionais de psicologia e a transferência de aprendizagem ao seu contexto de trabalho.
Participantes
Neste estudo, foram entrevistados três profissionais de psicologia que participaram de uma Tecnologia Social de Capacitação Profissional para intervenção psicológica com vítimas de violência sexual e desenvolveram atendimentos às vítimas segundo o modelo de grupoterapia cognitivo-comportamental proposto na capacitação. As participantes foram selecionadas por conveniência e convidadas a participar deste estudo no último encontro da capacitação.
As participantes eram do sexo feminino, casadas, com ao menos um curso de pós-graduação, com idades entre 25 e 47 anos. Elas trabalhavam no atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência em instituições governamentais, com carga horária de 30 a 40 horas e vínculo de trabalho celetista.
Procedimentos e Instrumentos
Este estudo é uma extensão da investigação que avaliou o impacto e o processo de uma Tecnologia de Capacitação Profissional para intervenção psicológica para vítimas de violência sexual, aprovado pela Comissão de Ética e Pesquisa em Saúde do Grupo Hospital Conceição (CEP-GHC), sob o número do protocolo 0015016400-10. A capacitação objetivou instrumentalizar os profissionais abordando os seguintes conteúdos: definição e dinâmica da violência sexual; consequências ao desenvolvimento da vítima; ações que devem ser desenvolvidas ao serem identificados casos de suspeita ou confirmação de violência sexual; modelo de avaliação psicológica às vítimas; e o modelo de grupoterapia cognitivo-comportamental para vítimas de violência sexual. A capacitação foi composta por seis módulos de frequência mensal referentes à parte instrucional e um módulo referente às cinco supervisões dos atendimentos clínicos realizados no modelo de grupoterapia. A carga horária total da capacitação foi de 50 horas.
Realizou-se uma entrevista semiestruturada que abordou os seguintes tópicos: formação profissional; percepções sobre a terapia cognitivo-comportamental (TCC); impacto da capacitação no trabalho; e transferência de aprendizagem. As entrevistas tiveram duração média de 30 minutos e foram gravadas e transcritas para fins de análise.
Resultados
As respostas das profissionais foram submetidas à análise de conteúdo (Bardin, 1979; Hsieh & Shannon, 2005). Os dados foram analisados em três etapas: 1) a pré-análise, na qual se realizou a leitura dos dados a fim de identificar os principais temas presentes na fala das participantes; 2) a exploração do material, na qual os dados foram codificados para constituírem as unidades de registro; e, 3) o tratamento dos resultados e interpretação, no qual as unidades de registro foram classificadas e agrupadas para comporem as categorias a posteriori, as quais foram discutidas e interpretadas (Hsieh & Shannon, 2005).
A fim de que a identidade das participantes seja preservada, os nomes citados neste estudo são fictícios. As categorias constituídas são: Impacto da Capacitação; Percepções sobre o Modelo de Grupoterapia Cognitivo-Comportamental; e Aplicação dos Conteúdos e Técnicas Aprendidas na Capacitação.
Descrição dos Casos
Caso 1
Giovana, 47 anos, casada, graduada em psicologia há 16 anos, realizou sua formação em uma universidade privada. Citou que o referencial teórico trabalhado durante a graduação foi predominantemente psicanalítico. Relatou que após graduar-se cursou três especializações e o mestrado, focando-se em temas da psicologia comunitária.
Trabalhava no atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência há 10 anos e sua carga horária de trabalho era de 30 horas. Citou que o referencial teórico que utilizava para atuar no atendimento clínico era psicanalítico, mas compreendia que sua prática clínica caracterizava-se por uma atuação humanista, e que após a capacitação também passou a utilizar os pressupostos da teoria cognitivo-comportamental.
Os relatos de Giovana sugerem que ela apresentava dificuldades em acessar publicações científicas, assim como compreender que estas poderiam constituir-se como instrumentos para melhoria de sua atuação profissional. Em relação ao conhecimento sobre a teoria cognitivo-comportamental, afirmou que durante a graduação não foram discutidos aspectos referentes a essa teoria. Por causa disso, ela percebia que a teoria cognitivo-comportamental era recente. Relatou que o seu primeiro contato com essa teoria foi em um artigo de uma revista de caráter não científico.
Referente à capacitação, percebeu que esta lhe possibilitou um conhecimento sobre os pressupostos da TCC. Além disso, afirmou que deseja aprofundar o seu conhecimento em TCC.
Caso 2
Ao realizar a entrevista, Letícia estava com 25 anos e era graduada em psicologia há três anos. Realizou sua formação em uma universidade privada, relatou que o referencial teórico aprendido durante a graduação foi predominantemente psicanalítico. Citou que cursou uma especialização após sua graduação.
Letícia trabalhava no atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência há um ano e três meses e sua carga horária de trabalho era de 30 horas. Ao ser questionada sobre qual referencial teórico utilizava, ela afirmou que, como havia se graduado há pouco tempo, percebia que a opção por um referencial teórico seria constituído por meio de sua prática profissional. Complementou que, após a capacitação, adotou o referencial cognitivo-comportamental em sua prática clínica.
Letícia citou que, durante sua graduação, os pressupostos da teoria cognitivo-comportamental foram discutidos. Ainda, relatou que naquele período ela havia se interessado por esse referencial, mas que não existiam oportunidades para desenvolver intervenções segundo a TCC em sua graduação. Letícia apontou ter dificuldades para buscar materiais científicos que a capacitassem a trabalhar com referenciais teóricos diferentes daqueles propostos durante a graduação.
Caso 3
Carla estava com 33 anos, graduada em psicologia há doze anos, e realizou sua formação em uma universidade privada. Relatou que o referencial teórico trabalhado durante a graduação foi predominantemente psicanalítico. Citou que cursou uma especialização após ter se graduado.
Trabalhava no atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência há um ano e sua carga horária de trabalho era de 40 horas. Durante a entrevista, disse que havia sido transferida de função e que não trabalharia mais no atendimento das vítimas de violência sexual.
Carla apresentou dificuldades para definir qual era o referencial teórico que utilizava. Segundo ela, após a capacitação, identificou que em sua prática profissional desenvolvia intervenções embasadas na teoria cognitivo-comportamental.
Relatou que antes da capacitação ela possuía um conhecimento superficial sobre essa teoria. Notou-se que Carla apresentava dificuldades em buscar materiais científicos que poderiam auxiliá-la no desenvolvimento de seu trabalho. Porém ela citou que após a capacitação iniciou uma especialização em TCC.
Impacto da capacitação
Observa-se que a capacitação produziu um impacto sobre a atuação profissional das participantes. Elas citaram que a forma na qual desenvolviam as intervenções com crianças e adolescentes vítimas de violência sexual modificou-se em razão dos conteúdos, técnicas e habilidades adquiridos durante a capacitação. Segundo elas, a capacitação as instrumentalizou para realizarem intervenções avaliadas por elas como efetivas com vítimas de violência sexual. Isso pode ser notado nos seguintes fragmentos: "Isso acabou tornando mais fácil de trabalhar com meus pacientes, mais fácil ajudar na resolução dos problemas deles" (Letícia); e "Ainda não tinha muita experiência clínica nem muito contato com a área então surgiu a oportunidade e eu quis, e eu acho que foi essencial, foi meu norte, a questão do como fazer" (Carla).
Observou-se que o conhecimento adquirido pelas participantes na capacitação foi ampliado a outros contextos de trabalho de forma a produzir um impacto sobre as demandas de trabalho não relacionadas à violência sexual, como expresso neste fragmento:
Não só para o próprio grupo, como várias questões aqui discutidas podem ser aproveitadas para outras situações que a gente está atendendo, então eu considero que as discussões que a gente faz aqui estão atendendo além da nossa demanda de grupo (Giovana).
Notou-se que a capacitação produziu um impacto na relação delas com questões subjetivas relacionadas às suas demandas de trabalho e crenças sobre a violência sexual. Elas relataram perceber que a experiência de participarem das supervisões as auxiliou a lidarem com as demandas subjetivas de seu trabalho em relação ao desenvolvimento do modelo de grupoterapia e às crenças relacionadas às crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. O seguinte fragmento expressa isso:
Eu acho assim, que para mim foi bastante significativo fazer este curso, acho que mudou minha visão sobre o abuso sexual e como tratar e o que nós podemos contribuir com essas crianças e a questão do TCC e da grupoterapia (Carla).
As supervisões realizadas durante a capacitação foram indicadas pelas participantes como elementos que produziram significativo impacto em sua atuação profissional, contribuindo especialmente no desenvolvimento dos atendimentos segundo o modelo de grupoterapia cognitivo-comportamental. Isso pode ser observado no seguinte fragmento: "Não, não, assim, a supervisão eu acho que é essencial, eu acho muito válido, o pessoal sempre nos norteou, sabe? Em relação as nossas dúvidas, acho necessário, não tem como fazer sem supervisionar" (Carla).
Aplicação dos conteúdos e técnicas aprendidas na capacitação
As situações de transferência de aprendizagem ao contexto de trabalho foram identificadas no relato das participantes que, após concluírem os módulos instrucionais da capacitação, realizaram atendimentos segundo o modelo de grupoterapia. Além disso, elas afirmaram que o modelo de grupoterapia cognitivo-comportamental constitui-se como uma intervenção efetiva para atender a demanda de trabalho relacionada ao atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Como expresso por Giovana: "E a cognitiva veio trazer isso que nós precisávamos uma abordagem rápida, pois se formos pensar nesta proposta de 16 encontros, é rápida".
Também se observou a transferência de aprendizagem em longo prazo, como demonstrado nas falas das participantes que citaram ter utilizado os conteúdos e técnicas aprendidas em situações de atendimento clínico que não utilizavam o modelo de grupoterapia e em intervenções na comunidade em que trabalham. Como notado nos seguintes fragmentos: "Tem algumas atividades sugeridas que eu tenho usado no atendimento individual e até mesmo fora de situações de violência" (Giovana); e
O interessante é que, a partir desses conhecimentos, pode, também, levar isso adiante para outros profissionais, tanto que comecei a fazer capacitações com os professores da rede municipal, para que eles também tenham conhecimento nessa área, identificando algum caso que possa ser de abuso e realizar a denúncia (Letícia).
Percepções sobre o modelo de grupoterapia cognitivo-comportamental
As participantes relataram que não haviam realizado atendimentos no formato de grupos antes da capacitação. Giovana citou que antes de conhecer o modelo de grupoterapia cognitivo-comportamental ela já havia percebido a necessidade de desenvolver intervenções no formato grupal, afirmando que essa modalidade de intervenção possibilitaria que ela atendesse a sua demanda de trabalho. Observa-se isso no seguinte fragmento: "Nesse sentido foi bem positiva, pois era algo que estávamos buscando, mas não sabíamos onde tinha nem onde podíamos encontrar".
Os atendimentos desenvolvidos segundo o modelo de grupoterapia cognitivo-comportamental foram avaliados pelas participantes como intervenções efetivas ao atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Como notado na seguinte fala: "Tanto que, para mim, hoje, que bom se nós pudéssemos formar sempre grupos, eu noto que é realmente mais positivo que o individual" (Giovana).
As participantes avaliaram os atendimentos segundo o modelo de grupoterapia cognitivo-comportamental como intervenções efetivas em comparação aos atendimentos realizados na modalidade individual. Segundo elas, os pacientes atendidos pelo modelo de grupoterapia apresentaram uma evolução significativa no processo psicoterápico e aderiram de forma positiva ao processo em comparação àqueles atendidos na modalidade individual. Como observado neste fragmento: "Eu percebi a diferença, como eu também atendia individualmente outras crianças, eu pude fazer o comparativo da diferença e evolução das meninas que estavam no grupo, para os que não participaram do grupo" (Letícia).
Além desses aspectos, elas citaram que a efetividade do modelo de grupoterapia cognitivo-comportamental no atendimento das crianças e adolescentes vítimas de violência sexual estava centrada na possibilidade de interação dos pares que o grupo promovia. Isto foi demonstrado na seguinte fala: "Tem esse efeito que a grupoterapia tem de que a história de um influencia a história de outro, o grupo se ajuda" (Giovana).
Discussão
A análise dos relatos das participantes demonstrou que, apesar de todas possuírem ao menos um curso de especialização profissional, elas apresentavam dificuldades em definir qual referencial teórico utilizavam em sua atuação profissional. Além disso, observou-se que possuíam dificuldades em buscar referenciais teóricos diferentes daqueles aprendidos durante a sua graduação. Elas sugeriram que não compreendiam que as publicações científicas poderiam constituir-se em ferramentas para melhorar sua atuação profissional.
Essas dificuldades podem estar associadas às limitações na formação acadêmica em psicologia, a qual, por vezes, não tem êxito em expor a diversidade teórica que a compõe, apresentando teorias fragmentadas e descontextualizadas da atuação do profissional (Dimenstein, 2003; Gomes, 2003). Além disso, diversas vezes, a atuação do profissional em contextos não acadêmicos é apresentada como uma prática distinta e desconectada daquelas desenvolvidas nos meios acadêmicos (Gomes, 2003). Pode-se compreender que tal distanciamento entre a pesquisa e a atuação profissional resulta de uma cultura de não valorização do conhecimento científico produzido no contexto nacional (Gomes, 2003; Souza, McCarthy, & Gauer, 2012).
Nessa perspectiva, Gomes (2003) discute que, devido à formação fragmentada e ao distanciamento entre a pesquisa e a atuação, os profissionais podem tornar-se acríticos aos modelos trabalhados na graduação. Em razão disso, eles não estariam capacitados a acompanharem criticamente o desenvolvimento do campo da psicologia e a utilizarem o conhecimento desenvolvido em sua atuação profissional (Gomes, 2003).
Com relação ao impacto da capacitação, as participantes relataram que os conhecimentos, as técnicas e as habilidades adquiridos constituíram-se ferramentas úteis ao desenvolvimento de suas atividades laborais, inclusive àquelas que não envolviam o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Da mesma forma, relataram que o referencial teórico que utilizavam em suas intervenções foi alterado para utilizarem a terapia cognitivo-comportamental, ou que foi influenciado por seus pressupostos. Esses relatos indicam o impacto da capacitação sobre o trabalho das participantes desse estudo, expondo que conteúdos e técnicas trabalhados foram aprendidos e generalizados ao contexto laboral (Abbad et al., 2004; Pilati & Abbad, 2005).
Foi observado, também, que a capacitação produziu um impacto sobre as percepções delas em relação às demandas de trabalho e crenças relacionadas à violência sexual. Compreende-se que esse impacto pode estar associado à instrumentalização teórica promovida pela capacitação.
Com base nos relatos das participantes sobre as situações de transferência de aprendizagem em curto e longo prazo, sugere-se que a capacitação obteve êxito em capacitá-las sobre temáticas relacionadas à violência sexual e a desenvolverem o modelo de grupoterapia cognitivo-comportamental. Esses resultados também indicam que as participantes generalizaram os conteúdos e as técnicas trabalhados na capacitação aos seus contextos de trabalho, de forma que sua atuação profissional se modificasse (Abbad et al., 2004; Cheng & Ho, 2001).
Referente às supervisões, as participantes citaram que se constituíram como elementos essenciais à ocorrência da transferência de aprendizagem e que produziram um impacto sobre a atuação profissional delas. As supervisões foram um fator de suporte à transferência de aprendizagem e ao impacto por possibilitarem que os profissionais recebam orientações e feedbacks sobre as atividades desenvolvidas. Isso se deve ao fato de as orientações e feedbacks estarem positivamente relacionados à retenção e manutenção dos conteúdos aprendidos, de forma que o profissional percebe oportunidades para aplicar as habilidades desenvolvidas, assim como adaptá-las às necessidades de seu contexto de trabalho (Clarke, 2002).
As percepções das participantes sobre o desenvolvimento dos atendimentos segundo o modelo de grupoterapia cognitivo-comportamental para crianças e adolescentes vítimas de violência sexual constituem-se como um aspecto relevante ao impacto da capacitação e à transferência de aprendizagem (Lim & Johnson, 2002; Rodríguez & Gregory, 2005). Elas afirmaram que o modelo de grupoterapia cognitivo-comportamental constitui-se como uma intervenção efetiva ao atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Tais resultados estão em consonância com o estudo de Habigzang et al. (2009) que expôs a efetividade do modelo de grupoterapia cognitivo-comportamental no tratamento de crianças vítimas de violência sexual.
As participantes citaram que a intervenção em grupoterapia cognitivo-comportamental promovia a interação dos pacientes, maior adesão ao tratamento e contribuía para uma melhora clínica mais rápida do que o formato individual de atendimento. Para uma das participantes, a interação dos pares no ambiente do grupo era o principal elemento de promoção de melhoras nos pacientes. Esse aspecto é indicado por Habigzang e Koller (2011) em relação às intervenções em formato de grupo. As autoras expõem que a modalidade de grupoterapia promove a interação dos pares, possibilitando às vítimas reestruturarem crenças distorcidas relativas à violência sexual e desenvolverem habilidades preventivas e protetivas em relação a outras situações abusivas (Habigzang & Koller, 2011).
A avaliação positiva das participantes sobre o desenvolvimento de atendimentos segundo o modelo de grupoterapia trabalhado na capacitação pode constituir-se um elemento motivador para que elas continuem utilizando-o no atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Essa avaliação também pode influenciar nas possibilidades de as profissionais utilizarem os conteúdos, as técnicas e as habilidades desenvolvidas em outros contextos de sua prática profissional. Esses achados sugerem que, em longo prazo, a capacitação pode produzir maior impacto na atuação profissional das participantes e promover a transferência de aprendizagem em curto e em longo prazo.
Considerações finais
Foi observado que a capacitação avaliada produziu um impacto sobre a atuação profissional das participantes, o qual foi identificado em seus relatos de que a forma que desenvolviam o seu trabalho foi modificada, aplicando os conteúdos e as técnicas aprendidos. Além disso, afirmaram que isso lhes possibilitou refletir sobre as demandas e crenças relacionadas às suas temáticas de trabalho tais como a sua formação profissional, aspectos relacionados ao atendimento de vítimas de violência sexual e à sua atuação profissional.
As participantes apresentaram dificuldades em definir o referencial teórico que utilizavam em sua atuação profissional e em acessar publicações científicas. Notou-se que elas desconheciam intervenções para o atendimento de vítimas de violência sexual baseadas em evidências científicas. Esses dados indicam que, ao desenvolverem os atendimentos a crianças e adolescentes, elas embasavam suas intervenções em crenças sobre a violência sexual e experiências profissionais diversas. Conforme as orientações da WHO (2006), essa prática, além de não ser efetiva, pode ser prejudicial ao desenvolvimento das vítimas.
O modelo de grupoterapia cognitivo-comportamental foi avaliado pelas participantes como uma intervenção efetiva ao tratamento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Esse modelo de grupoterapia é uma intervenção baseada em evidências e se demonstrou efetivo no tratamento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual (Habigzang et al., 2009). Então, observou-se que após a capacitação as participantes adquiriram ferramentas de trabalho efetivas para o atendimento das vítimas de violência sexual.
A avaliação positiva das participantes sobre o desenvolvimento dos atendimentos segundo o modelo de grupoterapia cognitivo-comportamental, associada à sua efetividade (Habigzang et al., 2009), demonstra a relevância de construírem-se intervenções baseadas em evidências, passíveis de replicação, que possam ser aplicadas a diferentes contextos e ensinadas a outros profissionais (WHO, 2006). Da mesma forma que indica a necessidade de serem desenvolvidas capacitações profissionais para que aqueles que atuam na rede de proteção das vítimas de vio-lência sexual tenham a oportunidade de aprender a utilizá-las e as desenvolverem em seus contextos de trabalho.
Os achados deste estudo demonstram que as participantes identificaram que a capacitação produziu um impacto sobre sua atuação profissional. Apesar desses resultados não poderem ser generalizados pelo delineamento qualitativo do estudo, eles indicam que os conteúdos e as técnicas trabalhadas na Tecnologia Social de Capacitação Profissional para intervenção psicológica com vítimas de violência sexual atenderam às demandas dos profissionais nessa temática.
A ausência de um estudo follow-up para explorar as percepções das participantes sobre o impacto da capacitação e as experiências de transferência de aprendizagem relativas à atuação profissional delas em um período de tempo mais extenso é uma limitação deste estudo. Em razão de seu caráter exploratório, nota-se que a realização de estudos com delineamento quantitativo com um número significativo de participantes que concluíram a capacitação pode fornecer outras perspectivas sobre o impacto da capacitação e a ocorrência de transferência de aprendizagem.
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Recebido em 02 de março de 2012
Aceito para publicação em 10 de novembro de 2012