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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.26 no.1 Rio de Janeiro jun. 2014

 

SESSÃO TEMÁTICA

 

Resistências e produção de subjetividade-risco no Projeto Brincarte de Vitória (ES)

 

Resistances and risk-subjectivity production at Brincarte Project in Vitória - ES

 

Resistencias y producción de subjetividad de riesgo en el Proyecto Brincarte de Vitória/ES

 

 

Jaciany de Souza Pereira OlintoI; Gilead Marchezi TavaresII

IPsicóloga, Montanha, ES, Brasil
IIUniversidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil

 

 


RESUMO

Tendo em vista a consolidação do ECA, tivemos, na cidade de Vitória (ES), a implantação do Programa de Educação em Tempo Integral (PETI). Este visa o atendimento, no contraturno escolar, de crianças e adolescentes em "situação de risco" por meio de atividades extracurriculares. Como parte do PETI, o Projeto Brincarte atende alunos de 4 a 6 anos da Educação Infantil. Este artigo objetiva evidenciar as implicações decorrentes da classificação "de risco" para as famílias atendidas pelo Brincarte. Tratou-se de pesquisa intervenção, com a presença ativa da pesquisadora em diversas atividades do Projeto tais como reunião da equipe administrativa e reuniões de pais e com a utilização de diário de campo para registros de todos os acontecimentos do campo por um período de 3 anos. Delimitadas a partir de uma ideia de risco pernicioso, às famílias imputa-se uma subjetividade-risco, na qual estão relacionados todos os fatores "fora da ordem" ou dos modelos estabelecidos como "normais" na sociedade.

Palavras-chave: família; risco; governo; pesquisa intervenção.


ABSTRACT

With the consolidation of the Child and Adolescent Statute occurred, in Vitória, Espírito Santo state, in Brazil, the implementation of the Full Time Education Program. This program is aimed at "risk situation" children and adolescents, at the school counterturn, by extracurricular activities. As part of the Full Time Education Program, the Brincarte Project receives kindergarten students between 4 and 6 years old. The objective of this paper is to highlight the implications arising from the "risk" classification for the Brincarte attended families. This was an intervention research, with the active presence of the researcher in different Project activities, such as administrative team meetings and parent meetings, and with the usage of a field diary for registry of all field activities over a 3-year period. The families, delimited after an idea of pernicious risk, purport a risk-subjectivity, in which are related all factors outside "the order", or the models established as "normal" by society.

Keywords: family; risk; government; intervention research.


RESUMEN

En el seno de la consolidación del ECA, tenemos, en la ciudad de Vitória en Espírito Santo, la implantación del Programa de Educación en Tiempo Integral (PETI). Este visa atender, en contra turno escolar, a niños y adolescentes en "situación de riesgo" por medio de actividades extra curriculares. Dentro del PETI existe un proyecto específico de atención de los alumnos de 4 a 6 años, denominado Brincarte. Este artículo objetiva evidenciar las implicaciones que advienen de la clasificación/indicación "de riesgo" para las familias atendidas en el Brincarte. El trabajo se desenvolvió por medio de una investigación intervención, con presencia de la investigadora en las diversas actividades del proyecto y con la utilización de diario de campo para registro de todos los acontecimientos por un período de 3 años. Como resultados, presentamos las familias atendidas como objetivo de control por el equipamiento social Brincarte, pues son considerados peligrosos al orden social. Delimitadas a partir de una idea de riesgo pernicioso, a las familias se les imputa una subjetividad-riesgo, en la cual están relacionados todos los factores "fuera del orden", fuera de los promedios, de los patrones y de los modelos establecidos como normales en la sociedad.

Palabras clave: familia; riesgo; gobernabilidad; pesquisa intervención.


 

 

Introdução

Na segunda quinzena de setembro de 2007, vimo-nos fazendo parte de outras famílias. Família de gente igual, de gente diferente. Como um recorte da própria vida, lá se tinha de tudo: da solidariedade e confiança cotidianas ao saber técnico especialista e verdades do senso comum.

É sabido que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada pela ONU, veio como marco inicial para estimular a criação de ações objetivando a proteção dos Direitos Humanos por meio de programas de governo. De acordo com Coimbra e Ayres (2008), a Constituição Federal de 1988, assim como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído em 1990, vieram reforçar esta ideia.

Em meio a todas as discussões em relação aos direitos da infância e da adolescência, propostas governamentais começaram a ser implantadas. Como exemplo, tivemos, na cidade de Vitória no Espírito Santo, a Lei Municipal 5.456/2002, que instituiu o ensino dos Direitos Humanos no currículo escolar do ensino fundamental da rede municipal, com foco especial para criança e adolescente (SEME, 2009).

Esse foi o início, na Prefeitura Municipal de Vitória/ES, da implantação de programas voltados à atenção à criança e ao adolescente, dentre eles o Projeto Brincarte, pertencente ao Programa de Educação em Tempo Integral (PETI). O Programa visava o atendimento, no contraturno escolar, de crianças e adolescentes em "situação de risco pessoal e social" por meio de atividades extracurriculares. Ao Projeto Brincarte impunha-se a responsabilidade do atendimento dos alunos de 4 a 6 anos dos Centros Municipais de Educação Infantil (CMEIs). Caminhando pela Cidade de Vitória podemos encontrar os núcleos desse Projeto nos mais variados territórios.

Este artigo tratará do Núcleo Brincarte localizado no Território da Ilha de Santa Maria (região empobrecida de Vitória, que congrega os bairros Cruzamento, Forte São João, Romão e Ilha de Santa Maria), que funcionava no Instituto Ação Fraternal (ONG), que constituiu nosso campo de investigação.

Atender famílias em situação de "risco pessoal e social" foi o objetivo apresentado na proposta do Projeto Brincarte. O encaminhamento da criança/família para o Projeto era expedido após o preenchimento de uma "ficha-diagnóstico" que apontava a família e, consequentemente, a criança que fazia parte dela como em "situação de risco social e/ou pessoal". As imagens sobre aquelas crianças/famílias foram então se formando com nuances torpes. Explicamos: aspectos que poderiam fazer parte da vida, naquele contexto, eram pensados como um risco à vida. Risco que, por sua vez, não apresentava clareza em relação a que ou a quem se referia. Mas, mesmo sem esta definição, defendia-se a necessidade de atenção, proteção ou até mesmo de controle do grupo que estivesse envolvido ou produzindo esse "risco".

Era claro que algumas ideias sobre "risco social" estavam sendo produzidas nos/pelos discursos e execução das ações de "proteção" em tempo integral, porém não havia muita clareza sobre as implicações dessas produções.

Dessa forma, buscamos pensar sobre o tipo de relação que estava sendo estabelecida com as famílias atendidas pelo Brincarte. Que concepção de risco estava sendo produzida naquele espaço? O que é estar em risco? Como pensar dispositivos nas políticas públicas que permeiem intervenções éticas, comprometidas com a potência de vida?

Nesse contexto, tornou-se imperativo olhar mais de perto, tentar compreender melhor como os agenciamentos estavam se formando no Projeto Brincarte, colocar em análise as práticas que permeavam o Projeto. Cabe ressaltar que entendemos prática como aquilo que os homens efetivamente fazem, aquilo que imanta todo um conjunto de acontecimentos do tecido social (Veyne, 1982), Assim, analisar as práticas não significa julgar pessoas, uma vez que as práticas não têm donos, não são particulares de ninguém, elas estão no mundo e se atualizam em nossas ações cotidianas.

Este artigo visa evidenciar a produção de subjetividade no Projeto Brincarte a partir de processos guiados pela ideia de "risco" e de "proteção". Mais especificamente, pretendeu-se conhecer as implicações decorrentes da classificação/indicação "de risco" para as famílias ali atendidas.

A subjetividade é aqui entendida como formas de ser, estar e sentir que não se encontram dentro do sujeito como uma essência, por exemplo, ou como verdade interior da pessoa, mas que compõem os sujeitos por atravessamentos de instituições sociais. Segundo Baremblitt (1992), instituições são lógicas, racionalidades, regularidades de comportamento que regulam a atividade humana, caracterizando-as e explicitando o que deve ser (o que está prescrito), o que não deve ser (o que está proscrito) e o que é indiferente. Poderiam ser pensadas como normas, regras, mas incluem a maneira como as pessoas concordam, ou não, em participar dessas mesmas normas. Lourau (2004) salienta que o conteúdo da instituição é formado pela articulação entre a ação histórica humana, por um lado, e as normas sociais já existentes por outro. Desse modo, as instituições comportam um movimento de transformação constante que tende a abrir passagem para fluxos cambiáveis nas lógicas, a que chamamos de instituinte, e um produto resultante do processo de transformação, a que chamamos instituído. Uma instituição supõe ou precisa sempre de outra instituição, por isso dizemos que há um atravessamento de funções institucionais no nível das organizações e dos estabelecimentos. Estes últimos são a materialização das instituições e possibilitam sua operação cotidiana que se dá pelas práticas humanas.

 

Metodologia

A investigação que originou este artigo foi orientada pela pesquisa intervenção. Esta, de acordo com Rocha e Aguiar (2003), se desenvolve a partir da análise de práticas instituídas e naturalizadas, entendendo ainda que pesquisar é intervir, é atuar, é colocar em análise as implicações com o campo de pesquisa, é colocar-se politicamente no tema estudado, é afirmar uma postura ético-política e denunciar a direção política de uma suposta neutralidade.

[...] A pesquisa intervenção tem como objetivo a desnaturalização de um cotidiano vivido nas suas constâncias como atemporal, colocando atenção no que acontece, nas situações que resistem aos modelos, no que, nas sucessivas repetições, tensiona as crenças, os valores, a lógica que norteia a rotina. Nessa perspectiva, cotidiano não é uma dimensão fechada "em si mesma", pois ele se constitui também na dimensão das mudanças em que podemos ser afetados, intensificando um presente que produz rupturas, fazendo diferença nos modos de entender e sentir a realidade - uma diferença marcada por exercícios de singularização (Rocha & Uziel, 2008, p. 537).

Como dispositivo de construção do corpus de análise, foi utilizado o diário de campo como registros dos encontros com as pessoas que compunham o campo de investigação, além do levantamento documental do Termo de Convênio entre Prefeitura e ONG, a partir do qual o Projeto Brincarte era executado, e da Proposta Pedagógica do Brincarte. A pesquisa foi desenvolvida ao longo de três anos, incluindo registros de período em que a pesquisadora era também psicóloga atuante no Projeto (2007/2 e 2008) e registros de períodos em que a permanência em campo se deu como aluna do Mestrado (2009 e 2010/1), com a presença ativa da pesquisadora em diversas atividades do Projeto, tais como reunião da equipe administrativa, reuniões de pais, encontros formativos com educadores etc. Buscamos "rabiscar" acontecimentos, falas, reflexões, fatos... A tentativa era de acompanhar os processos de constituição de modos de vida que se faziam cotidianamente.

Assim, com caderno e lápis na mão e algumas ideias na cabeça, pusemo-nos a participar de atividades cotidianas do Projeto e a conversar com as pessoas que por lá circulavam. Alguns dos momentos importantes de análise se deram no período de entrada e saída das crianças, junto com pais ou responsáveis que por lá ficavam esperando o portão se abrir.

 

O Projeto Brincarte

O Núcleo do Projeto Brincarte no qual nos inserimos funcionava no Instituto Ação Fraternal (ONG), situado no Bairro "Forte São João", em Vitória (ES). O Instituto entrou em atividade no ano de 1985, por meio da Igreja Batista Missionária, com o objetivo de atender famílias no âmbito da assistência social. Todavia, foi de fato a partir do ano de 2002 que o Instituto passou a desenvolver projetos sociais, sendo legitimado juridicamente em 2007.

O Instituto Ação Fraternal tem como principal colaborador a Igreja Batista Missionária, mas também recebe apoio financeiro de pessoas físicas e parcerias firmadas com empresas, outras ONGs e poder público. Dentre tais parcerias, existia uma firmada com o Programa de Educação em Tempo Integral, via Secretaria Municipal de Educação de Vitória/ES, através da implantação do Núcleo Brincarte.

Os primeiros passos: o início do Brincarte na Ilha de Santa Maria

Atender famílias em situação de "risco pessoal e social" foi o objetivo apresentado na proposta dos Núcleos do Projeto Brincarte. A informação sobre o tipo de público a ser assistido era descrita tanto no Termo de Convênio entre Secretaria Municipal de Educação de Vitória e a ONG, quanto exposto no momento do processo seletivo dos profissionais que neles atuariam.

Cada Núcleo Brincarte mantém a mesma orientação quanto ao modo de organização e objetivo, variando somente em questões administrativas, tais como número de crianças que serão atendidas e quantidade de recreadores. Todos possuíam uma equipe técnica composta de pelo menos um pedagogo, um assistente social e um psicólogo.

Em relação à atuação do profissional psicólogo, foi ressaltado que não implicava em atendimentos clínicos individuais às crianças, mas sim em realizar ações mais diretamente com as famílias, sem, no entanto, haver a prescrição de um modelo de atuação ou de procedimentos a serem seguidos.

A meta do Núcleo Brincarte da Ilha de Santa Maria era assistir até 300 crianças/famílias da educação infantil do território, sendo 150 no turno matutino e 150 no turno vespertino, pertencentes à faixa etária de 4 a 6 anos, obrigatoriamente vinculadas aos CMEIs.

A proposta era de atendimento de segunda a sexta-feira, em turmas de até 25 crianças. O grupo de funcionários, incluindo a equipe técnica, era composto por: 01 Psicólogo, 01 Assistente Social, 01 Pedagogo, 12 Educadores Sociais (contratados como "recreadores"), 04 estagiários (de preferência das áreas de educação física, artes e música), 01 assistente administrativo, 02 auxiliares de serviços gerais, 01 cozinheira, 02 auxiliares de cozinha e 02 porteiros. A função de coordenação era desenvolvida pela Assistente Social. Com relação à ida e à vinda das crianças dos Centros Municipais de Educação Infantil de Vitória-ES para o Projeto Brincarte na mudança de turno, foi disponibilizado transporte, cabendo aos responsáveis trazê-las e buscá-las no início ou na conclusão do turno de atendimento.

O cadastramento das famílias e matrículas das crianças no Núcleo era feito mediante encaminhamento dos CMEIs. A partir de tal encaminhamento, era realizado um "diagnóstico" baseado no resultado do preenchimento de uma "ficha-diagnóstico", que pontuava as condições socioeconômicas da criança e de sua família, tais como: família composta por pessoas usuárias de substâncias ilícitas, pais ou responsáveis alcoolistas, pais ou responsáveis desempregados, registro de violência física e/ou sexual na família, pais e/ou responsáveis apenados (ou ex-apenados). Observava-se ainda a quantidade de pessoas na residência, com detalhamento sobre quantos estavam na faixa etária entre 0 a 18 anos, valor da renda familiar, se os pais da criança que pleiteavam a vaga no Projeto Brincarte eram maiores de idade, se residiam em casa própria e de que tipo de material a casa era feita. Ressaltamos que todas estas características/condições eram observadas, mas nem todas pontuadas. A pontuação funcionava como um tipo de "escore" relativo ao "risco" da criança que poderia garantir a vaga para inclusão no atendimento em horário integral. Mas outras características/condições também eram averiguadas e registradas no prontuário da criança por ocasião das matrículas, tais como: famílias com mães adolescentes, famílias com mais de cinco filhos, famílias em que a mãe tinha filhos de pais variados e ainda famílias em cuja certidão de nascimento dos filhos não constava o nome do pai.

Dessa forma, uma imagem sobre o público que ali seria "assistido" foi se constituindo e a expressão de intolerância passou a compor as ações da maioria dos funcionários, que agiam como se tivessem que salvar a vida daquelas crianças, uma vez que estavam fadadas a um fim trágico por pertencerem a famílias "diagnosticadas" como em risco pessoal e social. Conforme discutem Coimbra e Nascimento (2005), a partir do "mapeamento" dos pobres surge uma grande preocupação com a infância e a juventude no sentido de que, num futuro próximo, esses poderão compor as "classes perigosas": as crianças e os jovens "em perigo", aqueles que deverão ter suas virtualidades sob controle permanente.

Não era sobre os fatores de risco que o Projeto Brincarte iria atuar, mas sim sobre as crianças, retirando-as dos espaços "perniciosos" que constituíam suas famílias. Assim, não havia uma previsão de tempo para o atendimento das crianças pelo Brincarte, tampouco uma avaliação de "cessação de riscos" a partir da permanência no Projeto.

Na medida em que o tempo foi passando, notou-se que algumas famílias que solicitavam vaga para o atendimento de suas crianças não estavam sendo assistidas porque não se "encaixavam" na avaliação diagnóstica que identificava e classificava quem "de fato precisava" da vaga. Nestes casos, as solicitações eram feitas por famílias cuja justificativa era de que todos os adultos trabalhavam o dia inteiro, mas, quando esta era a única justificativa, não ocorria, pelo menos em princípio, a disponibilização da vaga.

Em meio a esta situação, falas dessas famílias precipitavam falas questionadoras de outras famílias no momento em que vinham solicitar a vaga: "eu preciso ser bandido para conseguir vaga para colocar meu filho no Projeto Brincarte?"; "Há tempo precisava colocar meu filho aqui... mas, ouvi dizer... é verdade que aqui só tem filho de bandido?".

Enquanto esse burburinho atravessava o cotidiano no território assistido pelo Núcleo Brincarte, a equipe de funcionários que estava atuando ali também expunha olhares atentos, suspeitos, confusos, receosos, que passeavam pelo espaço... pelas crianças... pelas famílias... Temerosos que estavam sobre como e o que fazer com um grupo de crianças/famílias reconhecidas como em "risco social e/ou pessoal". Tudo parecia ser um risco, inclusive entender de que risco se falava ali e o arriscar-se a fazer.

Inicialmente a impressão era de que as famílias eram vilãs das quais deveríamos proteger as crianças. Crianças sobre as quais os educadores traziam, com fisionomia de espanto, relatos de anormalidade: "Elas batem muito... falam muitos palavrões... são violentas!". Mas outras inquietações também se fizeram presentes: só essas crianças brigam? E elas só brigam? O que é ser violento? O que faz com que os educadores vejam apenas os comportamentos "ruins" das crianças ali assistidas?

Em meio a essa tempestade de pensamentos, em nossas diversas chegadas no horário de entrada das crianças no Projeto observamos como os pais e/ou responsáveis pelas crianças as traziam e deixavam no Brincarte: beijos e abraços eram distribuídos no momento em que os pais se despediam das crianças que ali ficavam. Então, cremos que importava perguntar se aquelas ações eram esperadas na relação entre família e crianças diagnosticadas como "em risco"? Se, ao classificarmos a situação de risco em que as famílias se encontravam, consideramos também esse tipo de ação? Afinal aquelas expressões eram de afeto, eram também de cuidado, eram de vinculação.

Levando junto todas as questões, as ações propostas para aquele grupo começaram a acontecer e transitavam em salas as mais variadas: sala de música, sala do livro, sala de brinquedos, sala de dança e/ou esporte orientado, sala de arte, sala do vídeo e espaço livre para lazer. Também era realizado o horário de higienização, no qual se ensinava a lavar as mãos antes das refeições, escovar os dentes, pentear os cabelos etc.

O Núcleo oferecia às crianças atendidas as principais refeições do dia (almoço ou jantar conforme o turno e lanche). Na ocasião da alimentação era ensinado como comer, qual a quantidade de alimento ideal, como se portar corretamente à mesa e outros hábitos que indicavam a "boa" educação.

Entre as ações do Projeto Brincarte estava ainda a realização de encontros coletivos ou individuais com os responsáveis pela família, a fim de "orientar" os mesmos sobre o tipo de roupa mais apropriada para a criança vir para o espaço Brincarte, assim como a obrigação de levar a criança ao médico em toda situação de adoecimento. Alertava-se sobre o fato de a família ter que cuidar da criança doente em casa, de modo a não "contaminar" outras crianças do grupo. Advertia-se em relação a não deixar as crianças para serem cuidadas por outras crianças (irmãos ou primos) sozinhas em casa. A família também era orientada a não deixar a criança sozinha esperando o portão de entrada do Instituto se abrir, independentemente da justificava para não poder esperar a liberação da entrada.

Entretanto, comumente as famílias não cumpriam as "orientações". Cada família, em vários aspectos, continuava agindo em relação à criança do jeito que achava melhor ou possível. Por exemplo, em relação à atenção à saúde, muitas crianças continuavam sendo levadas para o Núcleo mesmo se estivessem com algum tipo de adoecimento (febre ou tosse, por exemplo). Quando o responsável era indagado se tinha percebido que a criança estava doente, ele respondia que não via naquele adoecimento necessidade de cuidados diferentes dos que já haviam sido prestados, e muito menos a necessidade de a criança ter de ficar em casa e não ir para o Brincarte.

Era um olhar diferente sobre a atenção à saúde do corpo, sobre a possibilidade de poder escolher entre ficar em casa e cuidar da criança ou ir trabalhar para ter "o sustento" da criança/família... Muitas vezes, quando isto acontecia, a família era advertida por escrito ou oralmente, mas a ação se repetia na mesma e em outras famílias.

No portão, era comum encontrar crianças sentadas, sem o seu responsável "oficial", esperando o momento de entrada. Quando se buscava saber onde estava o responsável, alguns dos outros que aguardavam a abertura do portão respondiam: "Saiu correndo... se não ia perder o ônibus e chegar atrasado ao trabalho". E outro falava "Já foi, disse que se chegar atrasada a patroa briga".

Dessa forma, fomos convocados a pensar sobre o tipo de relação que estava sendo estabelecida com aquelas famílias. O que ocorria era uma afirmação de outros modos de ser família, de viver a vida, de cuidar do corpo, uma forma de resistir a modelos colocados como ideais e universais? O que se tentava mudar, ensinar? A qual demanda o Brincarte estava atendendo?

Risco e resistência no Brincarte

Buscando a compreensão acerca do que se deve considerar como "risco social e pessoal", revisamos o processo histórico de produção da concepção de risco. Seguimos não na pretensão de encontrarmos respostas, mas de construirmos tantas outras questões e colocarmos em análise os atravessamentos diversos e difusos que compõem as propostas de atendimentos às crianças/famílias classificadas como em situação de risco social.

Segundo Spink (2000), a palavra risco teve seu primeiro registro no século XIV, mas ainda sem conotação negativa ligada ao perigo. No século XVI, o termo risco já adquire seu significado moderno, entretanto é em meados do século XVII que começa a constar nos léxicos da língua inglesa. Etimologicamente indica mais hipóteses do que certezas, e é possível que sua derivação seja do termo resecare, que significa cortar. A autora afirma que a palavra risco também parece ter sido usada para descrever penhascos submersos que cortavam os navios, daí surgindo seu uso moderno de risco como possibilidade de perigo, mas não como evidência imediata. Essa hipótese permite, ainda, entender o uso muito singular de risco em português para se referir a uma linha proveniente de um corte de navalha.

Para Spink (2000), a ampliação da noção de risco deve ser compreendida a partir da complexidade característica da vida moderna. Assim, "[...] focalizar os discursos e as práticas relacionadas com os variados riscos próprios da modernidade tardia possibilita refletir sobre as transformações que vêm ocorrendo na sociedade contemporânea [...]" (Spink, 2000, p. 58-59).

Seguindo o raciocínio da autora, o risco não pode ser entendido como um conceito estável. Tanto seu uso no cotidiano, quanto a decisão de sua utilização como forma de regulação de procedimentos técnicos diversos (na saúde, na segurança, na assistência etc.) estão relacionados com a construção histórica e social da realidade. Desse modo, é preciso ter em mente que se trata de uma noção moderna implicada intimamente nas nossas perspectivas em relação ao futuro. O risco hoje fala de gerenciamento e controle do futuro, o que nos "liberta" da ideia de destino, ou seja, "[...] Não que não houvesse experiência de perigo antes da época moderna. [...] A novidade é a ressignificação desses perigos numa perspectiva de domesticação do futuro" (Spink, 2000, p. 161).

Spink (2000, p. 162) afirma que "[...] a incorporação da noção de risco como um dos aspectos fundantes da subjetividade moderna foi fruto de transformações sociais e tecnológicas". Aponta como elementos constitutivos da incorporação do risco as transformações oriundas da laicização da sociedade e as mudanças econômicas e sociais oriundas do capitalismo comercial, além das transformações tecnológicas, entre elas a noção de probabilidade, que permitiu a formatação do conceito moderno de risco. Outros dois aspectos importantes para a noção de risco na contemporaneidade são a crença na racionalidade humana, exemplificada pela mentalidade securitária, e o interesse na noção de estatística populacional, tornando-se ferramenta para o controle da população, incluindo o autogerenciamento a partir dos aspectos educativo e preventivo.

A convocação de Beck (1992, p. 21) é para que pensemos o risco como "formas sistemáticas de lidar com os perigos e as inseguranças induzidas e introduzidas pelo próprio processo de modernização". Portanto, uma construção social e histórica em que tanto as causas quanto a magnitude de suas conseqüências são mediadas por interações sociais, históricas e culturalmente produzidas.

Dessa forma, de acordo com Castiel (1999, p. 66), "[...] se pode haver uma certeza estabelecida acerca das verdades sobre os riscos, é a de que estas são relativas". Mesmo quando risco é usado como equivalente de "perigo iminente" é importante atentarmos ao fato de que

[...] o risco não é algo que exista desde sempre, anterior à sua descoberta. Ao contrário, há seleção e construção social, pois depende de convenções de percepção, juízo e medida. Há variação cultural na seleção, nos juízos feitos, na distribuição de responsabilidades por sua administração e nos métodos de lidar com os riscos. Os que identificamos revelam não só o que acreditamos existir no exterior de nossa cultura, mas também, e sobretudo, sua própria constituição interna (Vaz, 2004, p. 13-14).

Convém destacarmos também o fato de que o aparecimento do conceito de risco no contexto político se deveu ao crescimento do movimento ecológico. Ou seja, ele era promovido por grupos situados à margem da sociedade, que propunham evitar um futuro catastrófico que atingiria a todos através de mudanças sociais. No entanto, outras questões políticas surgem e, desde o final da década de 80, o conceito de risco passou a ser promovido pela classe média, enfatizando a saúde e a segurança contra o crime. O que vemos a partir daí é a ideia de que a segurança de uns depende da contenção do risco imposto por outros (Vaz, 2004).

Risco como estratégia de governo das famílias pobres

Iniciavam-se as intervenções, sem possibilidades de recesso, férias ou algo do gênero. O pensamento era de que as crianças precisam ficar ao máximo no espaço do programa, distante do ambiente de "risco" que viviam, longe de suas "casas e vida perigosa".

(Diário de Campo, dezembro de 2007).

O Projeto Brincarte se apresentava como suporte para famílias cujo funcionamento fugia ao "ideal" esperado, sendo consideradas, por isso, um risco. Mais do que nunca víamos pessoas se movendo em prol desse ajuste ou remodelamento daquelas famílias, como uma "cruzada" para o salvamento de crianças.

Assim, percebíamos que as famílias "em risco" passavam a ser alvo de controle e prevenção, pois eram consideradas como perigosas à ordem social, uma vez que não circunscreviam a trajetória de vida de suas crianças numa sociabilidade conformista em função de subjetividades hegemônicas. Passetti (2009), ao discutir a educação na sociedade de controle, afirma que

A educação desinteressada exige um conjunto de práticas de controles visando boas condutas e investindo em uma sociabilidade conformista. Na atualidade, ela pretende formar pessoas alfabetizadas e escolarizadas, conhecedoras das leis, fiscais de governos, eleitores e cidadãos normalizados. Esse é seu ideal! (Passeti, 2009, p. 165).

Apresentamos o conceito de governo tal como proposto por Foucault (2006) - não como aquilo que se refere especificamente ao modo de funcionamento do Estado, como lugar de todo poder, mas as relações de força que implicam numa análise das formas de racionalidade, de procedimentos técnicos e de meios de execução da condução da conduta dos outros, por um lado, e exercícios de dominação das técnicas de si, por outro - para pensarmos o atual alvo da ação do Estado, as famílias "em risco", como sendo a estratégia do governamento das famílias pobres, produzindo inclusive, a partir desse controle, a "subjetividade-risco" em oposição/relação à "subjetividade-luxo". Esta última é pensada por Rolnik (2003) como a categoria que representa os seres vivos cuja incorporação pelo regime socioeconômico está supostamente garantida. Entendemos que o governamento das famílias pobres engendra modos de vida, produz subjetividades que propomos chamar de "subjetividades-risco". A estas estão relacionados todos os fatores "fora da ordem", fora das médias, dos padrões e dos modelos estabelecidos como normais na sociedade. A ela se deve a "necessidade" de isolamento ou eliminação deste "fora da ordem", para evitar a contaminação do "sistema" como um todo. Para tanto, vão se estruturando intervenções por meio de diagnósticos que desqualificam a família pobre e sequestram dela o direito de ensinar/"educar"/cuidar de seus rebentos infortunados (Donzelot, 1980). Assim, observamos que as práticas políticas que giram em torno da disciplinarização/docilização estabelecem mecanismos que embora sejam sutis são sempre eficientes na preservação da ordem burguesa (Scheinvar, 2009).

[...] Havia uma menina que o "tio" tinha deixado de castigo, por isso ela estava privada de brincar, só ficava no banco observando os coleguinhas de longe. Ela chorava muito. Enquanto eu estava no balanço com as crianças (lugar próximo da menina de castigo), o "tio" - que é um pouco mais rígido com as crianças do que os outros "tios" - se aproximou e começou a me falar algumas coisas. Contou que a turma dele era cheia de "crianças-problema". Primeiro me explicou que a menina estava de castigo, porque batia muito nos colegas. Frisou ainda que ela sempre ficava de castigo, pois, além do defeito de sempre agredir os colegas, com frequência ela levava os brinquedos da escola para casa escondidos na mochila. "É difícil eles fazerem isso (levar brinquedos para casa), pois a mochila deles não fica na sala, mas ela consegue, faz isso escondido, camuflado da gente, com agilidade, ela é muito esperta". Percebi que o esperta aqui não se referia, como de costume nas escolas, a uma criança comunicativa ou com habilidades, mas sim a uma esperteza moralmente repreensível [...]. Fiquei pensando em como é comum as crianças quererem levar para casa brinquedos de outros ambientes, de outras crianças. Continuando, me falou também de uma menina que uma recreadora enviou para a turma dele. Decidiu fazer isso pois não estava dando conta. Ele me explicou que ela é muito rebelde na escola, consequência de ter visto o pai e o tio serem presos... (Diário de campo, 24/09/2009).

A aula estava difícil. As crianças não paravam... A recreadora tinha alguns instrumentos desenhados numa folha e perguntava às crianças o nome deles. Depois, ela pegou os instrumentos que estavam na sala (dois tambores, agogô e reco-reco) e chamou os meninos mais comportados para tocarem quando ela pedisse. As crianças, nesse momento, fizeram silêncio e prestaram muita atenção. Quando terminavam, outras crianças eram chamadas para substituir as que tinham acabado de tocar. As escolhidas eram aquelas que estavam mais comportadas. O interessante é que as que haviam acabado de tocar, que tinham sido escolhidas por seu bom comportamento, minutos depois eram as mais "atentadas" e as que estavam fazendo muita bagunça agora, logo depois ficavam quietas e eram escolhidas para tocar (Diário de Campo, 01/10/2009).

Como integrante de um Programa de Educação em Tempo Integral, o Brincarte compõe a rede formal de educação, fortalecendo seus ideais de continuidade de uma ordem, de leis e poderes. Como discute Passetti (2009) a respeito da educação na sociedade de controle, o que se vê como a ordem natural das coisas é a submissão da infância à "moral superior" do mestre, do pai, do governante, por meio da obediência e de métodos pautados em "mentiras verdadeiras", que usurpam da criança seu tempo e seu espaço, limitando a experiência infantil a produtividades e docilidades e a "desvios padrões", que justificam a guerra entre os governados em nome da justiça e dos direitos (sempre individuais).

O tempo da criança é longo, e os espaços para elas são imensidões. A educação contemporânea insiste, por sua vez, em fazer dominar o tempo do adulto linear, disciplinado e conservador, voltado para produtividades, relacionado a respectivos descansos, e situado em seus espaços móveis e delimitadores a serem ocupados (Passetti, 2009, p. 167).

Diante disso, Guareschi (2007) propõe pensarmos que outros tipos de sujeitos estão sendo produzidos na contemporaneidade mediante novos modos de subjetivação. É preciso pensarmos em modos de subjetivação advindos de rearranjos da ordem cultural, política, econômica e social, que ocorrem a partir de outras formas de relacionar-se com o tempo, com a velocidade, com a fragmentação, a efemeridade e com outros aspectos da atualidade. As subjetividades-risco estão aí como efeitos e componentes essenciais da engrenagem que põe em funcionamento uma sociedade de controle "de riscos".

E assim vemos "[...] a mobilidade e o volátil demarcando posições no campo subjetivo, o que se mostrava de longo prazo, com grande durabilidade, definitivo, apresenta-se com um caráter cada vez mais transitório" (Guareschi, 2007, p. 231). Esta é a marca da subjetividade-risco, que sinaliza a necessidade de ordem ao mesmo tempo que se enreda na fugacidade e imprevisibilidade imanente ao processo capitalístico em curso. Pensá-la dessa maneira implica olhá-la como um tipo de experiência forjada por relações entre verdade e poder que incidem na instituição familiar. A família opera como dispositivo de controle por meio da "educação" das crianças e, para tanto, deve seguir um modelo "ótimo" (dentro dos padrões burgueses), que se configura, estrategicamente, como meta sempre inatingível para as famílias pobres, que se empenham em entrar no molde inventado para caber em alguns poucos.

Direito à proteção integral?

"Eu preciso usar droga para conseguir vaga, para colocar meu filho no Projeto Brincarte?"

"Há tempo precisava colocar meu filho aqui... mas ouvi dizer... é verdade que aqui só tem filho de bandido?"

(Diário de campo, novembro de 2009).

Em princípio, o Brincarte se apresenta como parte de uma política "pública" com vistas a garantir o direito de proteção integral da criança encerrado pelo ECA. A despeito da necessidade das famílias de um serviço que acolha seus filhos no horário comercial (horário de trabalho para a maioria das pessoas, inclusive pessoas com filhos), a garantia do direito aparece atrelada à presença de "irregularidades" nas famílias.

A seleção para frequentar o espaço do Brincarte é, como percebemos, uma seleção "às avessas", ou seja, quanto mais "problemas" as famílias apresentarem, mais facilmente o seu filho terá direito à vaga do Projeto. Tais problemas ou "fatores de risco" presentes nas famílias configuram-se, para o processo de seleção do projeto, como modos de vida decorrentes de: a) precárias condições de sobrevivência, tais como se a família reside em casa própria, número de cômodos na casa, lugar de pousada da criança etc.; b) direitos violados, por exemplo, o fato de terem, em algum momento de suas vidas, sua integridade física e mental prejudicada (se alguém na casa já foi vítima de violência física ou sexual é um "bom" critério para obter a vaga no Brincarte); c) o uso de droga socialmente difundida e culturalmente valorizada, como as bebidas alcoólicas e o cigarro; d) o fato de terem cumprido pena judicial, mesmo que nada mais "devam" à sociedade; e) o uso de drogas ilícitas; f) a idade dos pais etc. A entrada no Brincarte está condicionada à acumulação desses variados "problemas" ou "situações de risco".

Entendemos que as situações acima referidas são de ordens diversas e comportam também uma diversidade de modos de vida. Mais importante ainda é atentarmos para o fato de que situações de violações de direitos as mais variadas são tratadas por uma via minimamente estranha do ponto de vista dos direitos humanos, uma vez que o atendimento da criança pelo Brincarte ocorre em função de uma situação de risco que inegavelmente é avaliada pelo seu público como sendo pejorativa, embora inclua casos nos quais integrantes da família sofreram violações de direitos. O que queremos dizer é que o sujeito sofre a violação de direitos e ainda é visto como parte de um contexto que oferece risco à criança.

Tendo em vista que o Brincarte atende crianças matriculadas na rede pública de ensino e em territórios considerados "vulneráveis", de saída sabemos que seus usuários são, em sua maioria, pobres. Se o seu objetivo é garantir a proteção integral de crianças, colocando-as a salvo de situações consideradas de risco, por que se limita ao recebimento de crianças pobres e moradoras de regiões pobres? Por acaso nas famílias abastadas não há uso de bebidas alcoólicas, uso de drogas ilícitas, gravidez adolescente, violência doméstica? O objetivo do Brincarte e a seleção para a disponibilização de suas vagas operam uma divisão em seu território de modo a apartar famílias pobres "normais" e famílias pobres "em situação de risco" (e tudo que vem junto com isso: famílias problemáticas, perigosas, suspeitas etc.).

A seleção para a entrada no Brincarte, ao mesmo tempo que desconsidera uma gama de especificidades, de pormenores, ou a própria história oral de cada família, torna visível e amplia modos de vida próprios de famílias pobres que passaram ou passam por situações precárias de sobrevivência, desqualificando-os. Não pretendemos afirmar, com isso, que o Projeto não seja fundamental para o público, mas as vias de sua efetivação, o discurso dela decorrente, os jogos de verdades que o atravessam devem ser evidenciados e problematizados, uma vez que não modificam/intervêm diretamente nos "fatores de risco", mas nas pessoas que são percebidas como "de risco".

Famílias e a "ordem social"

A análise do discurso presente na seleção do Brincarte não pode prescindir de uma discussão acerca do modelo de família produzido no mundo moderno. Segundo Scheinvar (2006), as pessoas no mundo moderno passaram a ter como referência a família em vez da comunidade. De modo que, quando qualquer criança ou jovem comete um ato condenável socialmente, é a família que deve ser convocada a assumir a responsabilidade por estas ações.

O risco, personalizado na família e, por consequência, na criança que faz parte dela esvai-se dos "fatores", da "situação", das concretudes socioeconômicas da comunidade. Desse modo, a família é considerada como um ponto isolado da comunidade onde está inserida, vista então como espaço privado a ser vistoriado e avaliado pelo social em nome de uma ordem pública. Como resultado do esquadrinhamento, temos um desmembramento do cotidiano familiar que é construído na comunidade e consequentemente uma ideia de indivíduos desvinculada da noção de coletivo. A estratégia de governo da população pobre aqui apontada é a vigilância dos governados por eles próprios, de modo que as famílias se "policiam", observando quem não está agindo como "família de verdade". Dessa forma, uma mãe de criança assistida pelo Projeto diz a respeito da entrevista de seleção: "Mas de todas as perguntas, a que achei mais importante é se nós trabalhávamos, pois tem muita criança aqui que os pais não precisam, não trabalham" (Diário de campo, 06/08/2010).

Capturados por esta lógica de individualização da família, vemos as produções sociais como nascidas no âmbito familiar, um espaço privado, berço de todos os males sociais.

Insistir na privatização do conflito, ao localizá-lo nas pessoas e não nas estruturas, nas concepções, na produção de subjetividades e nas práticas cotidianas, é uma forma até de potencializá-lo. A família tem se convertido em um dispositivo de privatização do social na medida em que ela passou a ser o alvo privilegiado na cobrança a que é submetida pelo controle social. No entanto, a família não é produzida no sentido de analisar, debater, propor e intervir, enfim, nos processos em que se vê imersa (Scheinvar, 2006, p. 55).

Scheinvar (2006) pontua que, nesse contexto, o que se percebe é, ao contrário de ausência de Estado, na realidade a presença do Estado como algo fundamental, com fortes e decisivas implicações nas áreas de interesse da ordem burguesa, de modo a garantir o que for preciso para controlar o exercício da violência, a partir de regras de mercado, embora tal postura/intervenção seja revestida de "ações" em nome de direitos. Dessa forma, o que se observa é a ideia de individualização do sujeito/família, de modo que, ao se falar em violência, particulariza-se cada caso como se fosse uma disfunção, uma "desestrutura" provinda da família, especialmente a família pobre, que por sua vez deverá ser a primeira a ser esquadrinhada, controlada, como se nela, somente nela, estivessem todos os males sociais. Controle definido a partir de ações nas quais

[...] não se ouve o que eles querem, damos aquilo que achamos melhor, ou que queremos dar, porque não supomos que o outro tenha voz, tenha interesses, desejo [...] uma "cultura redentorista" que prega a salvação do outro através da realização de nossas vontades, do domínio de nossa ideia de certo, de cura (Bocco, 2008, p. 54).

As reflexões daí advindas remontam às questões acerca da "gênese" do risco: o risco está na família, vem da família? O que notamos é que "[...] a falta de condições objetivas para manter padrões sociais aceitáveis, perante o ascendente índice de desemprego e o esvaziamento da máquina pública, expressa-se na busca individualizada - e até desesperada - de estratégias de sobrevivência [...]" (Scheinvar, 2006, p. 52).

Daí, vemos que em nome do direito à proteção integral as famílias são convocadas a se adequarem aos modelos apresentados como ideais e ficam aprisionadas na ilusão de que o seu modo de vida não tem valor, já que muitas vezes os equipamentos sociais diagnosticam e classificam a família como incapaz de ser família (Scheinvar, 2006).

Poder e resistências no Brincarte

Tendo em vista o entendimento das relações de poder não como movimento de submissão e dominação, ou ainda enxergando os indivíduos como alvos passivos, chamamos a atenção para movimentos de resistência ao poder circulando no Projeto Brincarte. Algo como uma "falsa" demonstração de submissão, concordando com tudo, de maneira a se "deixar" enquadrar na "violenta classificação" para alcançar a vaga necessária para a criança: uma forma de "abrir o portão".

Comecei a conversar com uma mãe que tem suas filhas (gêmeas) aqui desde fevereiro deste ano. Segundo ela, não passou por seleção, veio porque as suas crianças já eram do tempo integral no CMEI. O único receio que teve foi com o translado (andarem no ônibus escolar sozinhas para irem daqui para o CMEI), mas fala que as filhas se adaptaram bem. Continuou falando que elas dão muito trabalho, não deixam fazer nada quando estão em casa. Com a rotina daqui, por volta das 19 horas já estão dormindo. Voltei a perguntar: não exigiram nada para elas participarem do Brincarte, nem que você trabalhasse fora? Ah, sim, trabalho perguntaram, é que agora não estou trabalhando, há um mês. Mas não mando crianças doentes ou se dormirem mal. Encerramos a conversa por ali (Diário de Campo, 28/07/2010).

Sete horas da manhã. Pais, avós, irmãos mais velhos chegam pouco a pouco no Brincarte. Algumas crianças choram ao se separarem dos cuidadores. No começo não sei bem como agir, sento-me no banco sob a mangueira, no meio do pátio. Sinto-me um intruso. [...] O conceito de risco social aparece no discurso do porteiro, servindo inclusive de motivo para mais precaução no tratamento daquelas crianças. [...] Coloco-me ao lado do portão de entrada, dou bom dia às crianças e aos pais que chegam. Já é quase hora de fechar os portões, quando chega mais uma criança. O pai traz o menino de mãos dadas e o deixa no portão. O pai se dirige a mim e ao porteiro e diz "valeu". Rapidamente, vira as costas e vai embora. O menino se recusa a juntar-se aos outros colegas, permanecendo próximo ao portão. [...] Uma das "tias" do projeto chama o menino para se sentar com os amigos. Diante da negativa, ela pega ele no colo. O menino esperneia, enquanto do lado de fora do portão o pai, que eu pensava ter ido embora, fala: "para de fazer pirraça... Um homem grande igual você". [...] Mais tarde, a coordenadora do projeto me explica que a família desse menino mudou-se de casa e de bairro há pouco tempo. Como o garoto estava matriculado ali, ele continuava sendo levado para aquele Brincarte, apesar da distância em relação à nova casa. O longo trajeto fazia com que a criança tivesse que acordar mais cedo e se cansasse mais durante o caminho (Diário de Campo, 27/04/2010).

Lado a lado com o controle e o monitoramento estão a leveza e o cuidado no Projeto. Isso porque nas relações cotidianas outros modos de ver e pensar famílias, crianças e cuidadores faziam-se nos encontros calorosos da diferença acolhida na igualdade. Diferença não é o mesmo que desigualdade. Aqui pensamos a diferença como movimento de transmutação essencial à vida como potência. Assim, diferença e igualdade não se opõem, uma vez que igualdade diz respeito à equidade na relação, na potência da vida.

As histórias construíam-se nesses encontros...

Numa quinta chuvosa e fria, pela manhã, chego ao Projeto. Na portaria, ninguém. Havia ligado na véspera e marcado com a pedagoga. De fora, olho pro pátio e uma criança está sozinha, na chuva. A cozinheira me vê e pede ao porteiro para abrir para mim [...]. O recreador começou a contar uma história, fazendo sons de bichos os mais diversos. As crianças eram, a todo o momento, convocadas a participar, a descobrir de quem ele estava falando. Todas olhavam fascinadas. Menos o menino, que continuava a chorar. O tio parou a história e disse que era assim mesmo no começo e as crianças diziam que ele já iria se acostumar, que também choravam, mas que agora era legal estar lá. Muitas delas conheciam o garotinho, pois eram da mesma sala dele no CMEI e o confortavam. Até que ele, sempre no colo do recreador, foi se envolvendo na história contada e não chorou mais. [...] Na história, o tio perguntava se já tinham visto determinados animais, como tinha sido, o que os animais faziam, onde tinham visto e as crianças traziam suas experiências do "Morro do Romão", "lá no alto da favela", com seus "sapos pequenos com rabinhos", cachorros, corujas e até dinossauros, que juravam existir! (Diário de Campo, 27/08/2009).

E as regras? Esquece-se delas... Percebe-se então que dominador e submisso se misturam na própria relação. Bem mais intensa do que se imagina é a vida que pulsa em meio aos encontros do Projeto, esquecendo-se a "condenação" que se fez com uma classificação de risco.

Por hora, acreditamos que para a maioria das crianças/famílias a classificação não era uma questão que importasse de fato... O que importava era a vaga e, como quaisquer crianças, brincavam, choravam, davam risadas, a despeito das classificações. E isso imputava novas direções para as práticas do Projeto, que, numa recursividade, também geravam novos e diferentes efeitos nas práticas familiares...

O descumprimento e/ou esquecimentos das normas, como insubmissão, é

[...] condição do exercício do poder, ela instiga sua ação de modo que este exercício apenas se opera quando está de algum modo garantida sua possibilidade de reversão. É neste sentido que poder e violência não podem ser tomados como equivalentes, não tem a mesma natureza, pois se o exercício do poder se configura como ação sobre ação, eventuais ou atuais, e por isso supõe sujeitos ativos, a violência é uma ação que opera direta ou indiretamente sobre objetos, corpos, e visa impedir a ação do outro e não, incitá-la (Heckert, 2004, p. 36).

[...] A seguir conversei com outra mãe, também me apresentando como ex-funcionária e novamente perguntei sobre a entrada da criança, o que exigiram, se exigiram algo. Ela respondeu que nada, só a necessidade da vaga, falou que teve que esperar um pouco e conversar no "gabinete" da diretora. Engraçado, parece que a única coisa que interessa lembrar é que conseguiram a vaga e não o que tiveram que responder para conseguir. A mãe relata: o Brincarte ajuda, porque às vezes tenho que ficar fora o dia todo para dar faxina. E pagar alguém é muito caro. Quando perguntei se o Brincarte ajudava em algo, ela disse: a desenvolver a criança. Depois, três outras crianças chegaram com as irmãs. Em momento separado perguntei a cada uma delas se sabiam como foi a entrada das crianças que elas estavam trazendo ao Projeto. Todas responderam que não sabiam. Mais uma vez tive a sensação de que pouco importava de certa forma o que lhes perguntavam ou queriam saber sobre elas. Uma destas crianças tinha mais de um ano que estava aqui. Nesse momento o silêncio já não era o mesmo, gritos estalavam entre os bancos e os brinquedos (Diário de campo, 21/07/2010).

Dessa forma, o que foi sendo visto no Projeto diz respeito a lutas pela vida, por condições dignas de viver, em meio aos empregos alternativos, ao alto custo para ter um cuidador (babá), ao fato de os filhos mais velhos muitas vezes cuidarem dos mais novos no contraturno do CMEI.

É preciso se observar a distinção entre a "necessidade" da vaga no Brincarte e a obrigatoriedade de participação por ser classificado como sendo "de risco". Isso porque inicialmente a escola faz o encaminhamento de alunos que devem participar do Brincarte. Nesse campo, sentidos diversos perpassam as práticas do Projeto, meio que se cruzando, se complementando, se superpondo, efetuando as relações de comunicação variadas: as famílias respondem, informam, reagem, escapam...

 

Considerações finais

Vemos realidades sendo produzidas no Projeto Brincarte: realidades de risco e de corpos em risco, bastando para tanto ter "traços" de pobreza. Busca-se dar visibilidade àquilo que não atende a um padrão de segurança, ou seja, aos modelos permitidos. Vimos claramente que a equipe do Brincarte da Ilha de Santa Maria enxergava nas crianças atendidas "anormalidades": seus palavrões, sua agressividade, sua má educação. Restava-nos questionarmos acerca do tipo de racionalidade que permitia que víssemos sempre os comportamentos "ruins" das crianças ali assistidas a ponto de não potencializarmos suas risadas e fantasias; que víssemos as brigas e os palavrões daquelas crianças em especial como sendo demarcadores de certa fatalidade na vida.

Partimos do entendimento de que a definição de risco é permeada pela esfera moral e dependente de cada sociedade e momento histórico (Spink, 2000). Assim, cabe questionarmos como o Estado pode "ditar" o "jeito correto" de evitar o risco e/ou controlá-lo? Por que os riscos estão sendo localizados na família pobre em vez de serem percebidos como produto de agenciamentos contemporâneos de uma sociedade reflexiva (Beck, 1992), vinculados a situações econômicas, políticas e sociais?

Entendemos que foi a partir da incorporação do termo risco que o Estado passou a redimensionar o controle através da institucionalização de direitos e garantias sociais (Yamamoto, 2007). Dito de outra forma, com o risco (perigo iminente oferecido por alguns a outros) ocupando o lugar de grande problema social na atualidade surgem equipamentos sociais e políticas para garantir maior controle social. Porém para controlar é necessário se identificar na sociedade a presença de riscos à vida e à ordem social. É necessário legitimar a presença de riscos e a demanda por intervenção, a ponto de justificar-se qualquer forma de intervenção.

Desse modo, observa-se que as ações "contra o risco" são medidas que, longe de eliminá-lo, apenas o colocam em evidência e produzem subjetividades-risco - modos de vida limítrofes entre o normal e o anormal, que devem lutar incessantemente contra sua "natureza perigosa", mantendo-se sob vigilância contínua (sobre si e sobre os outros). Dessa forma, acreditamos que as ações do Brincarte, atravessadas por instituições hegemônicas, vistas por um ângulo de maior proporção (no nível macro) não promovem rupturas na ordem social capitalística.

No nível micro - lugar das lutas travadas nos encontros cotidianos, na "tentativa nossa de cada dia" - sabemos que as classificações "de risco" para as famílias e as crianças atendidas no Brincarte são também desviadas, dribladas, quando aquelas transpõem os sofrimentos imputados pela desqualificação de seus modos de vida e buscam novas "entradas" na vida, pois

Em toda parte se está em luta - há, a cada instante, a revolta da criança que põe seu dedo no nariz à mesa para aborrecer seus pais, o que é uma rebelião, se quiserem - e, a cada instante, se vai da rebelião à dominação, da dominação à rebelião (Foucault, 2006, p. 232).

 

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Recebido em 17 de julho de 2012
Aceito para publicação em 22 de janeiro de 2013

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