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Psicologia Clínica
versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.26 no.2 Rio de Janeiro dez. 2014
SEÇÃO TEMÁTICA
Considerações sobre os movimentos de medicalização da vida
Considerations on life's medicalization movements
Consideraciones sobre los movimientos de medicalización de la vida
Paula Lampé FigueiraI; Luciana Vieira CalimanII
IUniversidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil; Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória, Vitória, ES, Brasil
IIUniversidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil
RESUMO
A ideia de que problemas cotidianos são diagnosticáveis e tratáveis pela medicina é antiga e ao mesmo tempo comum na atualidade, na qual habituou-se entender e explicar a vida psíquica e as condutas éticas pelo conhecimento da materialidade corporal. Este artigo realiza uma análise sobre a relação entre o saber biomédico e pedagógico na construção da concepção de infância normal/anormal. Nas duas últimas décadas, o investimento em pesquisas que investigam o funcionamento cerebral tem ampliado significativamente o conhecimento científico das interações entre o físico e o psicológico e sustenta fortemente a cultura somática. Nesse processo, diagnósticos psiquiátricos se tornaram dispositivos importantes na explicação e intervenção dos processos de escolarização considerados problemáticos. No percurso teórico investigado, destaca-se como a combinação entre as ciências biomédicas e a educação marcou e tem marcado as práticas de intervenção sobre os problemas enfrentados pelas crianças ao ingressarem na escola.
Palavras chave: medicalização; cultura somática; infância; escola.
ABSTRACT
The idea that everyday problems are diagnosable and treatable by medicine is ancient as well as common today, when we are used to understanding and explaining the psyche and ethical conduct by knowing the materiality of the body. In the last two decades, investment in research investigating brain functioning has significantly expanded scientific knowledge of physiological and psychological interactions, which strongly support somatic culture. Thus, psychiatric diagnoses have become important tools in the explanation and intervention of schooling procedures considered "problematic". The combination of biomedical sciences and education has had an impact on intervention practices regarding the problems faced by children when they enter school. We are going to take a diachronic look at the relationship between biomedical knowledge and pedagogy that created the concept of normal/abnormal childhood.
Keywords: medicalization; somatic culture; childhood; school.
RESUMEN
La idea de que problemas cotidianos son diagnosticables y tratables por la medicina é antigua y al mismo tiempo común en la actualidad, donde se habituó a entender y explicar la vida psíquica y de las conductas éticas por el conocimiento de la materialidad corporal. Este artículo realiza un análisis sobre la relación entre el saber biomédico y pedagógico en la construcción de la concepción de infancia normal/anormal. En las dos últimas décadas, el patrocinio de investigaciones que se interesan por el funcionamiento cerebral, ha ampliado significativamente el conocimiento científico de las interacciones entre lo físico y lo psicológico y sustenta fuertemente la cultura somática. En este proceso, diagnósticos psiquiátricos se convirtieron en dispositivos importantes para la explicación e intervención de los procesos de escolarización considerados problemáticos. En el recorrido teórico investigado, se destaca como la combinación entre las ciencias biomédicas y la educación ha marcado las prácticas de intervención sobre los problemas enfrentados por los niños al ingresar a las instituciones educativas.
Palabras claves: medicalización; cultura somática; infancia; institución educativa.
Introdução
A ideia de que problemas cotidianos podem ser diagnosticados e tratados pela medicina é uma tendência antiga e ao mesmo tempo cada vez mais comum na atualidade. A medicalização dos comportamentos humanos considerados socialmente indesejáveis, ao menos nas sociedades ocidentais, se estendeu a quase todos os domínios da existência (Conrad, 2007; Caponi, 2009). A crença de que comportamentos e sentimentos têm causas e origens físicas e que aspirações morais devem ter como modelo desempenhos corpóreos ideais tornou-se bastante comum na atualidade, na qual o mito científico é legitimado como universal. É o que Costa (2005) chama de cultura somática, na qual as formas de vida que antes eram relacionadas a valores religiosos, éticos ou políticos, passaram a ser legitimadas através do debate científico, principalmente biomédico e neurocientífico. Na atual cultura somática, cada vez mais nos acostumamos a entender e a explicar a vida psíquica e as condutas éticas pelo conhecimento da materialidade corporal (Costa, 2005).
Embora o processo de biologização da vida e a busca pela localização corporal da mente não seja algo recente (Caliman, 2006), nas duas últimas décadas, com o forte investimento em pesquisas acerca do funcionamento cerebral, vemos que as relações entre o corpo e o psíquico se estreitaram nos estudos que versam sobre o tema. Estas pesquisas, que revelam supostas correspondências entre atividades cerebrais e funções mentais, ampliaram significativamente o conhecimento científico das interações entre o físico e o psicológico e têm servido como base para a produção de fortes dispositivos que sustentam a cultura somática.
Neste processo de fortalecimento das explicações biomédicas para os comportamentos definidos como normais e anormais, os diagnósticos médicos, principalmente psiquiátricos, se tornaram um dispositivo importante na explicação e intervenção dos processos de escolarização considerados "problemáticos". Não é de hoje que a combinação entre as ciências biomédicas e a educação tem marcado as práticas de intervenção sobre os problemas enfrentados pelas crianças ao ingressarem no universo escolar. Neste sentido, o presente artigo realiza uma análise sobre a estreita relação entre o saber biomédico e pedagógico na construção da concepção de infância normal/anormal nos processos de escolarização através das contribuições de Foucault (2010), Donzelot (1986), Dupanloup (2004), Lobo (2008), De Oliveira (2001), Werner (2000), dentre outros autores.
Foucault (2010) nos mostra que a partir dos séculos XIX e XX a psiquiatria se configurou como um ramo especializado da higiene pública, cujo objetivo era a prevenção e a eventual cura da doença mental como estratégia de precaução social, necessária contra os supostos perigos decorrentes de comportamentos socialmente indesejados, deixando de abordar o domínio da alienação mental para incidir sobre as condutas consideradas desviantes. A infância foi um dos principais objetos dessa construção, oferecendo a consistência necessária ao saber e às práticas de normalização de todas as outras etapas e dimensões da vida social e individual.
Mais próxima da origem, por isso sujeita à desordenação dos instintos, a apreensão de certas características regulares de seu desenvolvimento deu-se por meio daqueles que apresentavam variações negativas dessas mesmas características [...]. A transparência das normas da infância ofereceu a consistência necessária ao saber e às práticas de normalização de todas as outras etapas da vida - e, ainda, a todas as dimensões da vida social e individual (Lobo, 2008, p. 374).
A psiquiatrização da infância, marcada pela difusão dos saberes biomédico e pedagógico, teve como efeito a produção da ideia de criança anormal (Foucault, 2010) e da criança instável (Dupanloup, 2004; Lobo, 2008). Veremos que a combinação entre higienismo, psiquiatria, psicologia e pedagogia marca historicamente as práticas de intervenção sobre a infância e sobre os problemas enfrentados pelas crianças ao ingressarem no universo escolar.
Na atualidade, o encaminhamento de alunos com dificuldades na aprendizagem para atendimento médico e psicológico é uma prática comum em boa parte dos profissionais da área da educação, baseada em avaliações diagnósticas, com professores entendendo os problemas das crianças como de ordem individual, geralmente com causas atribuídas tanto a falhas na atividade neurológica quanto à desestruturação da família (De Souza, 1997). É importante enfatizar também que a exigência de um laudo médico ou psicológico para garantir o direito de a criança estar numa classe especial ou numa instituição especializada é frequente nesse cenário (Machado & De Souza, 1997), fortalecendo cada vez mais a ideia de que os ditos "problemas de aprendizagem" sejam entendidos como "problemas de cabeça".
Psiquiatria: a medicina do não-patológico
A tendência de construir explicações biológicas e médicas para comportamentos socialmente indesejados ou desviantes como o sentimento de melancolia ou de tristeza (a chamada depressão) e a infância problemática (nomeada de diversos modos ao longo da história) caracterizou grande parte do discurso higienista entre os séculos XIX e XX (Caponi, 2007). A princípio, essa tendência não configurou a psiquiatria como uma especialização do saber médico, mas principalmente como um ramo da higiene pública.
Antes de ser uma especialidade médica, a psiquiatria se institucionalizou como domínio particular de proteção social contra os perigos relacionados, direta ou indiretamente, a doenças ou comportamentos que pudessem colocar a sociedade em risco. A psiquiatria se institucionalizou como higiene de todo o corpo social, configurando-se, portanto, como "a medicina do não-patológico" (Foucault, 2010), abrangendo em seu campo as condutas consideradas anormais ou desviantes às regras de conformidade e ordem social, para além da questão da alienação mental.
Caponi (2009) afirma que a psiquiatria transformou-se num domínio de saber tanto intra quanto extra-asilar, na medida em que passou a se referir tanto ao campo da alienação mental quanto aos variados problemas cotidianos da vida. Com essa nova organização, a psiquiatria passou a classificar como sintomas fenômenos que até então não eram definidos como doença mental. A psiquiatria mudou radicalmente o seu objeto de estudo e suas formas de intervenção, abrangendo uma série de condutas que, até então, só tinham status moral, disciplinar ou judiciário. A partir daí, todas as condutas desviantes da norma social tornaram-se possíveis de ser psiquiatrizáveis (Caponi, 2009; Foucault, 2010).
Caponi (2009), Foucault (2010), Lobo (2008), dentre outros autores, afirmam que a desalienação da psiquiatria foi possibilitada pela expansão da teoria da degeneração proposta por Morel, na qual diversas condutas tornaram-se possíveis alvos de intervenção médico-psiquiátrica (Caponi, 2009). Segundo os autores, com essa teoria iniciou-se um novo modo de intervenção sobre os indivíduos, colaborando para o surgimento de novas classificações de doenças, permitindo a expansão de um conjunto de patologias comportamentais na segunda metade do século XIX. Caponi (2009) aponta que foi a partir da publicação das teorias de Morel que se configurou um novo modo de pensar as doenças mentais, incluindo junto com os delírios e alucinações um conjunto de condutas e características físicas entendidas como desvio patológico da normalidade.
A família medicalizada
De modo geral, no final do século XIX e início do século XX, médicos, higienistas e psiquiatras explicavam comportamentos socialmente indesejados a partir de parâmetros biológicos e hereditários. Diante da dificuldade que os primeiros estudos neurológicos encontraram para localizar lesões cerebrais como causa para supostos desvios de conduta, a psiquiatria construiu um grande corpo ampliado, que é o da "família afetada por patologias", como aponta Caponi (2007), ou a "família medicalizada", como assinala Foucault (2010). Caponi (2007) explica que por volta das décadas de 1820-1840 a preocupação com o histórico patológico familiar tornou-se comum na prática psiquiátrica, juntamente com os estudos das condutas indesejadas, nomeando e dando corpo às patologias e condutas que não tinham uma localização precisa.
As contribuições de Ariès (1978) e Donzelot (1986) acerca da constituição de um novo corpo familiar no final do século XVIII também são de grande importância para o entendimento do processo de psiquiatrização. Donzelot (1986) aponta alguns motivos para esse novo rearranjo da família burguesa. O grande número de mortes das crianças era vinculado principalmente às condições de nutrição observadas tanto nas famílias burguesas quanto nas populares, baseadas na prática de aleitamento pelas amas de leite. Além disso, a alta mortalidade infantil também era associada à prática de numerosos abandonos das crianças de famílias pobres, órfãs, e de filhos bastardos das famílias burguesas. Consequentemente houve um aumento significativo dos gastos do governo com a rede de assistência às crianças abandonadas (constituída desde o século XVII) nas cidades onde se observava um enorme crescimento populacional e um aumento da pobreza urbana (Donzelot, 1986). Neste sentido, a precariedade das práticas de nutrição nas famílias burguesas e a necessidade de economia nos gastos com as políticas de assistência para as crianças abandonadas fizeram com que a intervenção da medicina através do governo fosse uma forma de melhorar as condições de saúde para a garantia de sobrevivência dos indivíduos (Donzelot, 1986).
Ariès (1978) e Donzelot (1986) explicam que o modelo de família burguesa que emergiu nessa época tinha como prioridade a preservação de aspectos relacionados ao corpo e à saúde dos indivíduos bem como à manutenção do espaço organizado e arejado. Foi nesse contexto que se construiu a noção de infância como tempo do desenvolvimento e preparo para a vida adulta e momento de prevenção das doenças debilitadoras da saúde, das doenças mentais e da delinquência (Guarido & Voltolini, 2009).
Como observa Ariès (1978), até o final do século XVIII a infância era entendida como o tempo no qual a criança necessitava de cuidados indispensáveis para sua sobrevivência. O autor destaca que a infância era ignorada como um período do desenvolvimento humano e as crianças eram vistas como pequenos adultos. Não havia um lugar especial de aprendizagem, nem educador específico para ministrá-la e, portanto, nenhum lugar específico do saber particular acerca da criança (De Oliveira, 2001).
Até o século XVIII, a família tinha como função garantir a sobrevivência das crianças e assegurar a transmissão do nome e dos bens, não se constituindo como o lugar da afetividade, privacidade e intimidade conforme vemos na atualidade. A construção da noção de infância produziu uma diferenciação e separação entre crianças e adultos, passando a ser entendida como um período especial de dependência e de preparação para ingressar no mundo adulto, no qual a escola foi a grande responsável pelos cuidados da criança (Ariès, 1978).
Foucault (2010) se refere à constituição da família-célula como um núcleo dominado pelas relações pais-filhos. A sexualidade perseguida e proibida da criança foi um dos elementos constituintes da formação dessa nova família, nas quais o corpo infantil tornou-se o elemento principal. Mas ao mesmo tempo que a família se transformou em um núcleo afetivo, foi investida de uma racionalidade que a liga ao saber-poder médico, configurando-se, portanto como a "família medicalizada", como assinala Foucault:
Restringindo assim a família, dando-lhe uma aparência tão compacta e estreita, faz-se que ela fique efetivamente penetrável por certo tipo de poder; faz-se que ela fique penetrável por toda uma técnica de poder, de que a medicina e os médicos são transmissores junto às famílias (Foucault, 2010, p. 222).
A família medicalizada se configurou como agente de normatização da infância, como princípio de determinação, de discriminação da sexualidade e também o princípio de correção do anormal. Os pais ficaram com a missão de serem capazes de diagnosticar as doenças de seus filhos assim como fazem os terapeutas ou agentes de saúde na atualidade. Entretanto, esse controle familiar deveria ser sempre submisso à intervenção do saber biomédico (Foucault, 2010).
O interesse político e econômico que se começa a descobrir na sobrevivência da criança é um dos grandes motivos pelos quais se quis substituir a complexidade da grande família relacional pelo aparelho limitado, intenso e constante da vigilância familiar. Foucault (2010) explica que apesar de os pais terem o dever de cuidar de seus filhos impedindo que eles morram, além de vigiá-los e educá-los, tudo isso deveria seguir um determinado número de regras que garantiriam a sobrevivência das crianças de um lado, e sua educação e desenvolvimento do outro. "Ora, essas regras e a racionalidade dessas regras são detidas por instâncias como os educadores, como os médicos, como o saber pedagógico, como o saber médico" (Foucault, 2010, p. 222).
De Oliveira (2001) aponta que ao mesmo tempo que a família passou a ter importância central em relação à criança, também deixou de ser considerada devidamente capacitada para educar seus filhos, tornando necessário instruí-la, capacitá-la e muni-la dos conhecimentos que ela naturalmente não possui ou resistia a incorporar devido aos velhos costumes. Na medida em que o Estado não podia invadir a intimidade da família, o dispositivo médico penetrou na organização da nova dinâmica familiar para que pudesse controlá-la sem atingir as liberdades individuais ou produzir atritos. O saber médico não poderia dizer se o poder do pai sobre o filho ou a mulher era legal ou ilegal, mas poderia denominar a família como competente ou incompetente, ignorante ou esclarecida em relação às normas higiênicas desejadas.
Psiquiatrização da infância e o nascimento da criança anormal
Para De Oliveira (2001), foi a Medicina Higienista que produziu os princípios de uma Pedagogia Higienista, a grande aliada das famílias e do Estado nessa nova organização econômica e subjetiva. Baseada no saber médico e através de conhecimentos científicos e morais, a escola passou a apontar as crianças normais e anormais tomando como referência seus comportamentos e suas condutas.
A intervenção dos higienistas1 na educação foi desde a normatização do espaço físico escolar até a definição do tipo de relação a ser estabelecida entre os professores e alunos, visando à "obtenção de uma juventude hígida e instruída, considerada necessária à construção do que se entendia por um país saudável"2 (Werner, 2000, p. 37). Ao ressaltar uma determinada noção de saúde como condição necessária ao aprendizado, a medicina higienista criou as bases para justificar o fracasso escolar como efeito de alguma doença ou deficiência.
Dupanloup (2004) considera que o movimento higienista, a questão da prevenção da loucura e da delinquência e o interesse pela psicometria efetivaram uma vigilância maior diante dos problemas comportamentais e emocionais infantis, cuja interpretação se deslocou da noção de doença para a de inadaptação, passando pelos conceitos de anomalia, debilidade, idiotia, imbecilidade, indisciplina, disfunção, anormalidade e de transtorno psiquiátrico.
Lobo (2008) afirma que "não foi a criança louca, mas a idiota que deu origem à psiquiatrização da infância pela constituição de um saber médico-pedagógico e sua extensão nas práticas de escolarização" (Lobo, 2008, p. 36) A idiotia era considerada uma fase do desenvolvimento humano
que todas as crianças normais rapidamente ultrapassavam, enquanto as idiotas, um pouco mais, um pouco menos, permanecem afundadas nessa etapa da infância normal. Logo, a idiotia não é uma doença, mas uma variação do processo de desenvolvimento, um estado que pertence à infância (Lobo, 2008, p. 372).
A institucionalização da idiotia como categoria nosográfica permitiu a produção de um determinado saber sobre a criança, servindo como subsídio para comparações entre idade mental e cronológica, bem como à elaboração de testes e teorias sobre o desenvolvimento infantil (Lobo, 2008). Apesar disso, Lobo afirma que a criança idiota nunca foi um grande problema para a escola, afinal
se sua resistência a tudo e a todos, se sua vontade negativa (Séguin) serviu de matéria bruta para a construção de muito que se conhece hoje sobre a criança, como também para a extensão dos controles da psiquiatria às práticas psicopedagógicas, ele mesmo sobrou no final do processo. Excluído da escola já estava, mesmo antes de entrar. Nunca foi preciso grande sutileza dos diagnósticos para deixá-lo de fora ou torná-lo um candidato ao asilo. A questão eram os outros, aqueles que num primeiro momento poderiam passar despercebidos ao olhar do mestre. Perigosa invisibilidade desses seres intermediários que, misturados nas escolas regulares, espalhavam a desordem e a indisciplina e impossibilitavam qualquer trabalho pedagógico (Lobo, 2008, p. 381).
Desde então, a grande questão para o universo escolar tem sido a figura da criança indisciplinada, desequilibrada e impulsiva, dentre tantas outras denominações, que marcou a construção da literatura médica-pedagógica sobre a criança anormal.
Por força dos critérios de escolarização, tornavam-se indiscerníveis os chamados falsos e verdadeiros anormais e, entre estes, os anormais de inteligência e morais. Estes últimos pertenciam a uma categoria difusa, semelhante aos que hoje transitam em fronteiras que facilmente se interpenetram: os problemas de aprendizagem e os de conduta, mais recentemente o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade e, de caráter ainda mais atual, algo como um transtorno da obediência (Lobo, 2008, p. 383).
A combinação entre os saberes higienistas, biomédicos, psicológicos e pedagógicos permitiu a construção da atual relação entre problemas de aprendizagem e problemas de saúde. Essa relação possibilitou a criação de classes especiais, bem como o surgimento de instituições especializadas e serviços de saúde vinculados à área da educação (voltados principalmente para a realização de diagnósticos de deficiências, problemas de aprendizagem e de comportamento), colocando em prática as teorias construídas a partir do entrecruzamento dessas disciplinas. A divisão normal/anormal tornou-se, portanto, a principal referência nas classificações que receberam as crianças, sendo a principal justificativa para a criação de terapêuticas e mecanismos especiais de escolarização (Guarido & Voltolini, 2009).
A psiquiatrização da vida na atualidade: cultura somática e cidadanias biológicas
Na atualidade, a apropriação dos discursos biomédico e psicológico pelo cotidiano escolar tem sido muito frequente, tanto na suspeita quanto na demanda de um diagnóstico. Hoje não só a psiquiatria, mas principalmente as pesquisas das neurociências, têm alimentado a esperança de que haja uma metodologia de ensino condizente com as novas descobertas sobre o funcionamento cerebral, bem como sustentado explicações sobre o fracasso escolar e sobre os comportamentos infantis (Guarido, 2010).
No âmbito do processo de escolarização, diagnósticos e medicamentos são tidos como recursos fundamentais no processo de aprendizagem das crianças ditas anormais e mesmo normais. Mas o que fez com que o diagnóstico biomédico tenha se tornado um dispositivo tão importante nos processos de escolarização em nossos tempos? Além do processo histórico analisado anteriormente, é no interior da constituição da cultura somática descrita por Costa (2005) e do fortalecimento das cidadanias biológicas, indicadas por Rose (2007), que podemos compreender a importância e legitimidade dada às explicações biomédicas para os comportamentos normais e anormais nos tempos atuais.
Segundo Costa (2005), na cultura somática atual o mito científico tem ocupado o lugar da verdade, do incontestável e do universal. As formas de vida que antes eram referendadas por valores religiosos, éticos ou políticos, passaram a ser legitimadas através do debate científico, principalmente biomédico e neurocientífico. Dentro dessa mitologia, ser jovem, saudável, longevo e atento à forma física tornou-se regra científica que aprova ou condena outras aspirações à felicidade. Já as crenças religiosas, políticas, psicológicas, sociais e outras são admitidas desde que se adéquem aos padrões de qualidade de vida (Costa, 2005). Para o autor, essa reviravolta no terreno dos valores criou novas concepções de normalidade e desvio, diferentes das construídas no século XVIII, época na qual o centro das questões sobre a normalidade psíquica era a razão.
As neurociências e a psicofisiologia desfizeram muitas ideias estabelecidas sobre o papel do físico na vida mental nas últimas décadas. As relações entre o físico e o psíquico se tornaram mais nuançadas e cada vez mais cientistas investem recursos financeiros e empenho intelectual para investigar o funcionamento cerebral. As atividades mentais que até então eram percebidas como autônomas em relação às físicas tiveram parte de seus mistérios supostamente desvendados através de imagens e leituras computadorizadas que prometem revelar conexões desconhecidas entre a estrutura do cérebro e determinadas funções psíquicas (Costa, 2005).
A biologia tem assumido um papel crucial nas sociedades ocidentais, hoje marcadas pelas biotecnologias e pela biomedicina (Caliman, artigo no prelo3). Na atual cultura somática, o corpo físico, especialmente na dimensão cerebral, passou a ser o personagem principal das histórias sobre a mente humana. Tornou-se cada vez mais plausível aceitar que os fenômenos psicológicos tenham uma causalidade física (Costa, 2005), seja ela localizável anatomicamente em alguma área do cérebro, seja ela causada por disfunções fisiológicas. Nossa cultura é marcada pela ênfase no corpo, mais especificamente no cérebro como sendo a sede da alma, da identidade, da política, da religião, do sentimento moral, do sofrimento psíquico. Para a biopsiquiatria atual, um sofrimento só é sofrimento, uma doença só é doença, um diagnóstico só é diagnóstico quando este for um biodiagnóstico, uma patologia só é considerada real quando sua existência biológica é comprovada (Caliman, artigo no prelo).
Hoje a interpretação das patologias psiquiátricas é essencialmente genética, neuroquímica e cerebral. Ela sustenta uma forma específica de ver o sofrimento e de compreender a subjetividade. Ela afirma o processo de cerebrização e biologização da identidade pessoal, legitimando apenas o que pode ser visualizado na superfície e na profundidade corporal (Caliman, 2006, p. 99-100).
Nesse panorama, pesquisas voltadas para a psicofarmacologia e para a construção de diagnósticos são vistas como importantes ferramentas. O lugar de destaque assumido pela neurologia e pela psiquiatria na atualidade não deve ser entendido, no entanto, somente a partir dos avanços de suas ferramentas, tecnologias, conquistas e resultados, mas deve ser retomado desde a consideração mais ampla que envolve a sua produção (Guarido & Voltolini, 2009). Afinal, como aponta Caliman (2006),
Nem sempre é dito que os estudos sobre as imagens cerebrais são constituídos de dados imprecisos e quase sempre contraditórios. Nem sempre é explicitado que a substituição da mente pelo cérebro resulta de transformações morais que extrapolam o discurso da prova científica. Além disso, paradoxalmente, ninguém comenta por que as tecnologias de imagem cerebral não são usadas no dia-a-dia da clínica do diagnóstico. Ninguém explica por que, na clínica, elas não são consideradas ferramentas autossuficientes quando se trata de "provar" a existência real do diagnóstico. Apesar de todos os avanços alcançados pelas tecnologias de imagem cerebral, na prática elas ainda não são ferramentas diagnósticas autoevidentes (Caliman, 2006, p. 96).
De acordo com Caliman (artigo no prelo) e Rose (2007), o discurso biomédico e as neurociências são fortes dispositivos produtores de cidadanias biológicas, termo criado por Nikolas Rose (2007) para descrever os projetos políticos que desde o século XIX basearam suas concepções de cidadania na existência biológica dos seres humanos, ou seja, propostas nas quais um indivíduo pertence ou não a um projeto de cidadania por partilhar ou não um determinado traço biológico (Caliman, artigo no prelo).
Desde 1980 presenciamos mudanças nas formas de cidadania e ativismo político, que tem girado em torno da saúde e da doença através de um processo de psiquiatrização da política pelo qual projetos para os cidadãos são formulados a partir de critérios somáticos. Compartilhar um traço biológico ou mais especificamente um traço patológico tornou-se prerrogativa para inserção dos sujeitos no sistema de direitos: direito à educação/educação especial; direito a acomodações no trabalho; direito à acolhida; direito a tratamento; direito à saúde; direito e acesso a certas políticas construídas para atender às necessidades destes cidadãos (Rose, 2007; Caliman, artigo no prelo).
A garantia de direitos a partir de condicionalidades psiquiátricas é sustentada por diversas ferramentas construídas pelo saber biomédico. Caliman (2006) destaca que a partir da década de 80 um espaço cada vez mais importante foi reservado às pesquisas de neuroimagem. As técnicas mais conhecidas eram as de imagem estrutural, como a Tomografia Computadorizada (TC), que investiga a existência de anomalias em determinadas estruturas cerebrais, e as de imagem funcional, como a Eletroencefalografia Quantitativa (qEEG), que analisa a atividade cerebral durante determinadas tarefas. Essas técnicas são até hoje muito utilizadas para a identificação de diversos biodiagnósticos psiquiátricos.
Caliman (artigo no prelo) explica ainda que na atualidade a prática diagnóstica assumiu uma centralidade excepcional e os biodiagnósticos tornaram-se entidades desejadas e necessárias, podendo garantir direitos políticos, educacionais, trabalhistas em uma sociedade altamente excludente e desigual, em que é comum ver-se privado de nossos direitos de cidadão. Para muitos, os biodiagnósticos oferecem uma explicação e produzem um sentido que alivia o fardo moral ao qual somos submetidos numa sociedade altamente individualizante, na qual diversas vezes somos responsabilizados pelos nossos fracassos. Nas biocidadanias os sofrimentos e queixas relatados são considerados reais porque são vistos como biológicos e, por isso, legítimos (Caliman, artigo no prelo).
Algumas questões sobre a psiquiatrização da vida escolar
A cultura somática de nossos tempos adentra de forma singular o universo educacional na atualidade. Cada vez mais vemos os problemas escolares serem interpretados como transtornos psiquiátricos com base predominantemente genética ou cerebral. Ao mesmo tempo, percebemos que no universo escolar e educacional um laudo psiquiátrico exerce muitas funções (De Freitas, 2011). Na era das cidadanias biológicas, um biodiagnóstico pode produzir sentidos, identidades, sociabilidades, legitimidade e garantir direitos.
O processo de individualização dos problemas de aprendizagem, base da cultura somática que atravessa o universo escolar, não é produzido apenas pela patologização e psiquiatrização biológica atual. A produção do fracasso escolar e as diversas explicações individuais, sejam elas psicológicas, biológicas ou sociais para os comportamentos que fogem da norma no universo escolar, antecede ou extrapola a constituição das cidadanias biológicas.
Podemos observar que os diagnósticos de transtornos de aprendizagem são vinculados a uma visão que desconsidera o fato de que a vida escolar é atravessada e constituída por uma multiplicidade de fatores sociais, coletivos e afetivos, deslocando assim a questão para o indivíduo e patologizando-o. Nesse sentido, acreditamos que é importante problematizar a construção e institucionalização de conceitos e categorias médicas que interferem nos processos de escolarização.
A grande maioria das queixas escolares sobre as crianças encaminhadas a especialistas é formulada em termos de falta, déficit, carência, anormalidade, patologia. Predomina o modelo teórico atravessado por uma concepção que entende a queixa escolar como um problema individual, deslocando a discussão do eixo político-pedagógico para causas e soluções supostamente psíquicas e/ou biomédicas (Collares & Moysés, 2010). É uma visão que desconsidera o que se passa na escola, analisando as dificuldades do processo de escolarização como problemas cujas causas são de caráter estritamente individual e que nega as influências e/ou determinações das relações institucionais e sociais sobre a vida, encobrindo as arbitrariedades, os estereótipos e os preconceitos de que as crianças são vítimas no processo educacional e social (De Souza, 1997).
Machado (1996) afirma que o fracasso escolar é uma produção social e o encaminhamento da criança para especialistas é um efeito dessa produção, legitimada por determinadas concepções e práticas do dia-a-dia escolar que individualizam as suas causas no corpo das crianças. Concepções que, segundo De Oliveira (2001), aludem ao fracasso escolar como hereditariedade, aptidões, questões emocionais, problemas de personalidade, causas orgânicas, familiares, sociais, culturais, condições de ensino e aprendizagem nas escolas, etc.
Observa-se também a predominância ou fortalecimento das explicações patológicas, biológicas e cerebrais. Guarido (2010) aponta que vemos com certa frequência a divulgação na mídia de resultados de estudos e pesquisas especialmente sobre o funcionamento cerebral, as funções de neurotransmissores e as novas conquistas das ciências genéticas e neurológicas. Essas descobertas científicas aparecem, de modo geral, como explicações dos comportamentos, sensações e sofrimentos humanos.
De Souza (2010) explica que os defensores das explicações biológicas para as dificuldades nos processos de escolarização apresentam a patologização desse processo como um direito. A criança tem o direito de ser atendida, diagnosticada e medicada, é um direito da família ter conhecimento do problema (patológico) da criança, e principalmente, o governo deve custear as despesas para a efetivação desses procedimentos (De Souza, 2010). O argumento tem se fortalecido nos espaços legislativos em grande parte dos estados e cidades brasileiras através de projetos de lei que visam criar serviços tanto na área de educação quanto na área de saúde para o atendimento de crianças com problemas na escola.
Para além de classificação e controle, não podemos esquecer que, de acordo com Rose (2007), os biodiagnósticos produzem realidades. Dessa forma, cabem-nos as seguintes indagações: qual o impacto no sujeito diagnosticado e na sua família? O que pode se produzir nas instituições que serão marcadas por determinados biodiagnósticos, como as escolas que recebem uma criança com um diagnóstico de transtorno da aprendizagem? Acreditamos que tais problematizações tornam-se fundamentais na prática de todos os profissionais que lidam direta ou indiretamente com o universo escolar e educacional em sua interface com a saúde.
Notas
1 A Saúde Pública no Brasil no final do século XIX e início do século XX caracterizou-se por ações de inspeção e controle dos indivíduos através de medidas enérgicas e autoritárias (Lobo, 2008; Werner, 2000). Essas medidas visavam erradicar as epidemias de doenças como varíola e febre amarela na população através de campanhas de vacinação e erradicação das doenças.
2 Entre as ações dirigidas à saúde da população infantil, as quais originaram o modelo da "saúde escolar" (Werner, 2000), destaca-se a higienização do ambiente escolar. Tratava-se de um conjunto de medidas dirigidas ao saneamento do ambiente escolar visando impedir a propagação de doenças transmissíveis.
3 Artigo ainda não publicado. Caliman, L. V. Os bio-diagnósticos na era das cidadanias biológicas. Cadernos de Subjetividade PUC-SP.
Referências
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Recebido em 15 de agosto de 2012
Aceito para publicação em 30 de maio de 2013