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Psicologia Clínica
versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.27 no.2 Rio de Janeiro 2015
SEÇÃO LIVRE
O lugar da toxicomania na economia da dor psíquica
The place of drug addiction in the economy of psychic pain
El lugar de la toxicomanía en la economía psíquica
Patricia RutsatzI; Mônica Medeiros Kother MacedoII
IPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
IIPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
RESUMO
A problemática do abuso de substâncias lícitas e ilícitas vem assumindo proporções preocupantes no âmbito mundial. O Brasil enfrenta profundas dificuldades relativas ao fomento e à aplicação de soluções efetivas para o fenômeno da toxicomania. Desde a perspectiva psicanalítica, o recurso ao tóxico pode ser entendido como uma das possíveis saídas humanas buscadas para o alívio da dor psíquica. O cenário contemporâneo evidencia, frequentemente, o recurso compulsivo à intoxicação como uma forma precária de enfrentar o mal-estar. A compulsão pelas drogas, aliada a esta leitura que problematiza o mal-estar na atualidade, explicita os frágeis recursos do Eu para um enfrentamento da dor no campo intrapsíquico. Esta revisão narrativa, a partir de aportes teóricos, buscou abordar a relação entre a toxicomania e as modalidades de economia psíquica predominantes na sociedade contemporânea. Para tanto, foram retomados os conceitos freudianos de "experiência de satisfação" e "experiência de dor" como vivências constitutivas do humano. Explora-se a intensidade traumática que dá a essas experiências um caráter predominantemente destrutivo na estruturação do Eu e em seus investimentos psíquicos.
Palavras-chave: toxicomania; dor psíquica; excesso traumático; condições do Eu.
ABSTRACT
The issue of legal and illicit substance abuse is assuming alarming proportions. Brazil faces profound difficulties relating to the promotion and implementation of effective solutions regarding the challenge of drug addiction. From a psychoanalytic perspective, the use of toxic substances can be understood as a possible human means of relieving psychic pain. The contemporary scenario shows repetitive compulsive use of intoxication as a poor way to tackle the problem. The compulsion for drugs, coupled with this reading that discusses the psychic pain nowadays, explains the fragile resources from the self to process the pain in the intrapsychic field. This narrative review, from theoretical contributions, seeks to address the relationship between drug abuse and forms of psychic economy prevalent in contemporary society. As such, the Freudian concepts of "satisfaction experience" and "pain experience" as constitutive human experiences are revisited. They explore the traumatic intensity given these experiences of predominantly destructive character in the structuring of self and its’ psychic investment.
Keywords: substance abuse; psychic pain; traumatic excess; I conditions.
RESUMEN
La problemática del abuso de substancias lícitas y ilícitas se muestra cada vez más en proporciones preocupantes en todo el mundo. El Brasil enfrenta profundas dificultades relacionadas con el fomento y la implementación de soluciones efectivas al fenómeno de la adicción. Desde una perspectiva psicoanalítica, el recurso al tóxico puede ser entendido como una de las posibles salidas humanas buscadas para el alivio del dolor psíquico. El escenario contemporáneo prueba, con frecuencia, el recurso compulsivo para la intoxicación como una forma precaria de enfrentar el malestar. La compulsión por las drogas, junto con esta lectura que trata sobre el malestar de hoy, muestra los recursos frágiles del Yo para el afrontamiento del dolor en el campo intrapsíquico. Esta revisión narrativa, desde aportaciones teóricas, buscó abordar una relación entre la toxicomanía y las modalidades de la economía psíquica predominantes en la sociedad contemporánea. Así, conceptos freudianos de la "experiencia de satisdación" y la "experiencia del dolor" fueron reanudados como vivencias constitutivas del humano. Se investiga la intensidad traumática que da para estas experiencias un carácter de predominante destruición en la estructuración del Yo y en sus investimentos psíquicos.
Palabras clave: toxicomanía; dolor psíquico; exceso traumático; condiciones del Yo.
Introdução
Sabe-se que a utilização de substâncias consideradas tóxicas consiste em uma prática realizada por diversos povos e culturas em diferentes momentos históricos. No entanto, segundo estudiosos entre os quais Birman (2012), Le Poulichet (2005) e Ribeiro (2009), observam-se, atualmente, proporções alarmantes no uso de drogas, o que convoca os estudiosos a fomentarem reflexões que possam contribuir para estudo e intervenção diante dessa problemática. Logo, a Psicanálise também é convocada a contribuir para os interrogantes desse tema.
O Relatório Mundial sobre Drogas de 2012, elaborado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, 2012) estima que cerca de 230 milhões, ou 5% da população adulta mundial, utilizaram alguma droga ilícita pelo menos uma vez em 2010. Nesse Relatório também consta que os usuários problemáticos de drogas, principalmente as pessoas dependentes de heroína e cocaína, totalizam cerca de 27 milhões, ou seja, 0.6% da população adulta mundial. Por sua vez, o Relatório de 2013 salienta o surgimento incessante de novas substâncias psicoativas, muitas delas lícitas e vendidas na Internet sem que ocorra nenhum controle sobre elas, um crescimento significativo no abuso de medicamentos de prescrição médica e, também, de novas drogas sintéticas (UNODC, 2013).
Conforme o último Relatório Mundial sobre Drogas realizado no Brasil em 2009, juntamente com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, o Brasil e a Argentina constituem o maior mercado de consumo de cocaína da América do Sul, sendo que apenas no Brasil o número de usuários aproxima-se de 900 mil. O consumo de opiáceos também apresentou índices elevados no país, com aproximadamente 640 mil consumidores abusivos da substância (UNODC, 2010).
De fato, os dados evidenciam o impacto destrutivo que a proliferação do consumo de drogas apresenta na sociedade contemporânea e incitam indagações sobre os determinantes culturais e subjetivos implicados nessa problemática. As circunstâncias culturais do consumo de drogas sofreram importantes modificações ao longo da História, sendo que na atualidade essa problemática alcançou uma categoria epidêmica com graves consequências para a sociedade (Birman, 1999; Ribeiro, 2009).
No Ocidente, de acordo com Birman (1999), o consumo de drogas esteve relacionado ao advento da cultura grega e somente a partir dos séculos XIX e XX o consumo foi aumentando progressivamente, porém sem trazer prejuízos maiores até os anos 1950. Segundo o autor, o inicio da década de 1960 sinalizou uma mudança significativa nos hábitos relativos ao consumo de drogas. E, em função do movimento da contracultura, as drogas passaram a ocupar um lugar de destaque, associadas à subversão estética da existência. Entretanto, conforme o autor, a difusão social do consumo de drogas foi efeito do processo de criminalização, que teve no narcotráfico sua potência máxima. Dessa forma, para Ribeiro (2009) houve importante transformação no uso de drogas com o advento da ciência e a disseminação da ideologia liberal própria do discurso capitalista. A autora situa os tóxicos na categoria de gadgets, termo inglês que caracteriza invenções forjadas pela ciência, sem muita utilidade, mas que têm o efeito de distrair os sujeitos, oferecendo-lhes formas de uma ilusória recuperação da satisfação pulsional.
Nessa direção, Melman (1992) sustenta que o fenômeno da toxicomania é um sintoma social, por estar associado ao discurso dominante na lógica contemporânea. O discurso decorrente dessa lógica privilegia não o sujeito, mas o indivíduo consumidor, aquele que apela compulsivamente para objetos que prometem a manutenção de um estado ideal de completude. O padecimento do toxicômano, a partir dessa perspectiva, está calcado no ideal consumista que rege a sociedade contemporânea, pois, também, elege-se, via objeto-droga, um objeto que promete a satisfação plena. Nesse âmbito, compreende-se o consumo abusivo de entorpecentes como uma questão psíquica, mas também atrelada a demandas do contexto social.
Na perspectiva psicanalítica, a construção do psiquismo ocorre no entrelaçamento entre a pulsão e a cultura, o que situa a subjetividade sempre articulada com o social. No texto "Mal-estar na civilização", Freud (1930/1996) afirma que o desenvolvimento da civilização e a estruturação do psiquismo impõem sacrifícios à sexualidade e à agressividade constituintes do humano e, dessa maneira, geram um mal-estar. O autor aponta o consumo de drogas como uma das possíveis saídas humanas buscadas para o alívio da angústia e da dor provocadas pelas renúncias impostas ao sujeito em benefício da vida na civilização. Os seres humanos, diante das exigências civilizatórias, vivenciam um estado de mal-estar que pode assumir uma dimensão insuportável, levando à busca de medidas paliativas para atenuá-lo (Freud, 1930/1996). O tóxico representa, assim, uma forma de anestesiar o mal-estar e evitar a dor psíquica. Essa relação permite interrogantes sobre as condições do mal-estar atuais e situa o problema das drogas como elemento imprescindível nas reflexões a respeito das expressões contemporâneas de dor psíquica.
Conforme diz Birman (2012), vive-se uma cultura das drogas, sendo o recurso à intoxicação uma resposta, bastante frequente, ao mal-estar na contemporaneidade. Ao abordar o processo de produção social das toxicomanias pelas vias da medicalização psiquiátrica e do mercado de drogas pesadas, o autor questiona as condições da ética na sociedade atual. Segundo o autor, existe, atualmente, extrema medicalização das experiências humanas e a prática médica assume, cada vez mais, uma versão técnica, na qual o clínico não acolhe mais psiquicamente os pacientes, mas, sim, se concentra em aliviar o desamparo destes. Assim, a descoberta dos psicofármacos revelou-se um recurso poderosíssimo na regulação do sofrimento psíquico. Diante de qualquer afeto desagradável, o autor diz que os clínicos passaram a prescrever psicofármacos com o intuito de evitar qualquer sofrimento psíquico. Assim sendo, nessas modalidades de uso de substâncias licitas ou ilícitas, o recurso às drogas é tomado pelo sujeito como algo promissor, como um meio altamente potente de evitar o sofrimento e de alcançar um estado pleno de gozo. Logo, a função do tóxico na economia psíquica nessas circunstâncias é a de anestesiar o sujeito diante do conflito psíquico e da dor psíquica. Nessa direção, Birman (2012) relata que o recurso às drogas apresenta-se como resposta ao mal-estar da atualidade, constituindo-se tanto como sintoma social na cultura contemporânea, quanto como um sintoma em relação ao enfrentamento da dor de existir. Para ele, as antigas modalidades de sofrimento centradas no conflito psíquico cedem, agora, espaço para a emergência de uma modalidade de mal-estar que se evidencia como dor, inscrevendo-se nos registros do corpo, da ação e das intensidades. A compulsão pelas drogas, aliada a essa leitura que relaciona o mal-estar do sujeito com a intensidade e a ação, explicita, via repetição incansável da busca de um objeto-droga, os parcos recursos do Eu para um enfrentamento da dor no campo intrapsíquico. A ação se sobrepõe como forma de dar vazão às intensidades. Percebe-se, então, que a intensidade própria ao mal-estar na atualidade denuncia, particularmente, o enfraquecimento das referências simbólicas que delimitam o campo do desejo e aponta para a premência do registro do corpo e da ação para evidenciar o que concerne à dor. Nesse sentido, Birman (1999) destaca que as toxicomanias, como perturbações psíquicas e como epidemia, perdem qualquer inserção simbólica, histórica e religiosa e funcionam como padecimentos da ordem do gozo, porque este não é interditado pela linguagem e pela simbolização dos limites. Essas questões incitam reflexões sobre a cultura atual, pois é inegável o predomínio de formas de busca, pelo sujeito, de objetos que estão mais regidos pela lógica da destrutividade e pelo risco à vida.
Conforme Berlinck (1999), o consumo abusivo de drogas ocorre sem que haja um correspondente esforço de pensamento e entendimento do que se passa com o sujeito. Dessa maneira, assim como as ciências sociais têm sido chamadas a abordar essa temática, a Psicanálise também é convocada no sentido de aportar reflexões e compreensões do papel do tóxico na vida psíquica do sujeito. Diante dessas questões, e reconhecendo as diversas e dramáticas consequências que o consumo de tóxicos contempla, optou-se por explorar neste artigo as contribuições que a Psicanálise apresenta ao articular as demandas da cultura, o sujeito psíquico, a experiência de dor e a toxicomania. Trata-se, portanto, de investigar o lugar que a toxicomania tem ocupado na economia da dor psíquica na sociedade contemporânea. Sem dúvida, a Psicanálise não pode se furtar a estender o olhar e refletir sobre fenômenos que denunciam a dor psíquica nas precárias condições de um sujeito habitar o mundo que não seja via recuso tanático ao tóxico. Desse modo, considerando-se o cenário epidêmico do consumo de drogas na atualidade, destacando-se a fragilidade psíquica como marca predominante nas subjetividades contemporâneas e tomando o recurso às drogas com forma frequente na busca de atenuar ou extinguir a condição de sofrimento, busca-se, neste artigo, problematizar questões relativas ao sujeito toxicômano e sua complexa relação com a dor psíquica. Para tanto, torna-se fundamental retomar os conceitos de experiência de satisfação e de experiência de dor como constitutivas do humano e explorar as contribuições da Psicanálise quando o excesso vivido danifica a estruturação do Eu e seus investimentos psíquicos.
A experiência de dor e suas vicissitudes psíquicas
A vivência de dor tem grande importância para a teoria psicanalítica por estar relacionada ao processo de constituição psíquica. Trata-se de um fenômeno complexo e enigmático que pode revelar diferentes desdobramentos nas possibilidades de investimento da economia psíquica de um sujeito.
Em "Projeto para uma psicologia científica", Freud (1895/1996) inaugura suas concepções sobre a dor psíquica ao postular duas experiências fundantes do aparelho psíquico: a experiência de satisfação e a vivência de dor. Ambas são caracterizadas por um elevado estado de tensão e uma exigência de descarga psíquica que deixa marcas permanentes no aparelho psíquico. Nesse texto, Freud, ao abordar a experiência de satisfação, revela a condição de desamparo e dependência absoluta em que o ser humano vem ao mundo. O recém-nascido é incapaz de pôr fim ao excesso de excitação que suas necessidades corporais provocam, então o alívio de tensão só pode ser obtido através da ação específica, ou seja, com a ajuda de um semelhante. É a intervenção desse outro humano que leva ao registro da experiência de satisfação.
A partir desse momento, a experiência de satisfação fica associada à imagem do objeto e ao movimento que permitiu a descarga. Em consequência dessa associação, surgirá, imediatamente, um impulso psíquico que procurará reinvestir a imagem mnêmica do objeto, reproduzindo a situação de satisfação original, agora em um processo alucinatório. Garcia- Roza (1998) ressalta que a intervenção alheia propicia, além da satisfação pulsional, uma troca simbólica e, consequentemente, há um progressivo registro dessa troca em uma ordem simbólica. Ao ser capaz de decifrar e significar as experiências iniciais, esse outro vem ocupar um lugar vital no psiquismo do bebê, que é incapaz de metabolizar as intensidades externas e internas sem ajuda exterior.
Já a experiência da dor, considerada por Freud (1895/1996) uma experiência fundante do psiquismo, remete a intensidades que desarticulam e excedem, rompendo as condições de contenção e ligação do aparelho psíquico. Para o autor, a experiência de dor consiste em uma invasão excessiva de grandes quantidades no psiquismo, sendo que os dispositivos de proteção psíquicos não conseguem resistir a essa ordem elevada de quantidades. A dor provoca no aparelho psíquico o aumento de tensão que é sentido como desprazer, produzindo uma tendência à descarga. Essa experiência produz, também, a facilitação entre a tendência à descarga e a imagem-lembrança do objeto que provocou a dor. Assim, além da quantidade, a dor possui a qualidade que é dada pelo sentimento de desprazer, e o aparelho psíquico tem a mais decidida propensão a fugir dela.
As experiências de satisfação e de dor são constitutivas do aparelho psíquico e propiciam a formação do Eu. O Eu surge, nesse momento da obra freudiana, como elemento que inibe ou adia o processo de descarga da tensão por meio de um processo de ligação, ou seja, de sua capacidade de transformar a energia livre em energia ligada. Por meio desse recurso, o Eu introduz o teste de realidade que revela a precariedade da alucinação enquanto possibilidade de solução para a tensão psíquica. A inibição proporcionada pelo Eu possibilita novas formas de investimentos, introduzindo o processo secundário e proporcionando critérios de diferenciação entre a percepção e a recordação. Essas aquisições psíquicas são fundamentais para realizar o processo de descarga de novas maneiras. Quando a percepção e o registro mnêmico não coincidem e a demanda biológica não pode ser satisfeita, o Eu começa a desenvolver a capacidade judicativa e, consequentemente, o pensamento, complexizando os recursos do aparelho psíquico. A ausência do objeto de satisfação, em alguma medida, faz com que o Eu se depare com a vivência de dor e com a insatisfação, consequência do aumento das intensidades pulsionais não descarregadas. Entretanto, é justamente o não encontro com esse objeto, a condição de falta deste, que proporciona ao Eu o acesso à construção da condição de pensar e de criar, secundariamente, vias colaterais que levam à complexização necessária e não maturativa do aparelho psíquico (Freud, 1895/1996).
Observa-se que o conceito de Eu vai passando por transformações ao longo da obra freudiana. No "Projeto para uma psicologia científica", como foi elucidado, Freud (1895/1996) ocupa-se da complexização do aparelho psíquico e descreve como o Eu metaboliza as intensidades próprias a esse processo. Foi nesse estudo que o autor propôs pela primeira vez a formalização do Eu.
Posteriormente, em "Sobre o narcisismo: uma introdução" (1914/1996), o autor amplia sua compreensão sobre o Eu, tornando-o uma instância psíquica e descrevendo-o como fruto de uma imagem unificada do si mesmo. Nesse sentido, o autor salienta que o Eu não está presente desde o princípio, sendo necessária uma nova ação psíquica para sua constituição unificada. Desse modo, a formação do Eu, em sua dimensão psíquica, indica necessariamente a presença e o investimento de um outro. Assim, o Eu se constitui como tal em face de uma imagem de perfeição e completude, lugar do Eu ideal o qual, segundo o autor no mesmo texto, é fruto do próprio narcisismo dos pais. Esse momento é marcado pelo investimento do ideal parental, sendo essa particularidade constitutiva do sujeito e formadora do Eu.
Nesse sentindo, a possibilidade de o Eu se complexizar, ou seja, de transpor um estado de desamparo e de absoluta dependência para outro de maior autonomia e de diferenciação do outro e do mundo externo, depende da qualidade do encontro com esse outro semelhante. Tanto a presença desse outro é fundamental para a constituição psíquica, quanto o será sua falta. O desenvolvimento do Eu consiste em um processo de distanciamento da inicial completude narcísica, o qual coincide com a entrada de um terceiro, normalmente o pai, entre a dupla. Em algum momento, o outro materno começa a olhar além do filho, buscando o que ela não tem e que esse filho também não preenche totalmente. A descontinuidade da díade mãe-bebê introduz a criança na experiência da falta. O reconhecimento da condição de falta perturba o narcisismo e confere um novo lugar ao Eu. Desse modo, a função paterna, ao inserir uma interdição, promove a passagem do Eu ideal para a possibilidade do Ideal de Eu. Mesmo sendo dolorosa a perda do ideal narcísico, ela possibilitará a criação de um percurso de vir a ser do Eu. Logo, percebe-se que uma experiência de dor acaba por dar ao psiquismo novas condições de investimento no devir.
Constata-se que a condição de complexização do Eu passa necessariamente por experiências de dor. O enfrentamento dessas vivências de dor viabiliza novas possibilidades de processamento da energia pulsional e proporciona a complexização do aparelho psíquico. Fica evidente, assim, o lugar e a importância conferidos à experiência de dor na constituição psíquica e no processo de aquisições psíquicas.
A noção de dor psíquica adentra de diversas maneiras no campo clínico. O que leva o sujeito a sofrer não necessariamente é um fato externo. O abandono das hipóteses iniciais a respeito da necessidade de um trauma real na etiologia da histeria viabilizou outras reflexões clínicas sobre os efeitos devastadores da dor psíquica.
Em "Além do princípio do prazer", Freud (1920/1996) constata a ação de uma força primitiva presente no psiquismo que coloca em xeque suas proposições a respeito desse princípio. Demandas clínicas após a Primeira Guerra denunciam a presença da neurose traumática, apontando novamente para a irrupção de quantidades intensas no aparelho psíquico, as quais acabam por atravessar o escudo protetor. O autor se refere à adversidade presente nessas constatações clínicas: "Outro problema surge, o problema de dominar as quantidades de estímulos que irrompem, e de vinculá-las no sentido psíquico, a fim de que elas possam então desvencilhar" (Freud, 1920/1996, p. 40).
Ao admitir a existência de um processo primário repetitivo, que não evita a repetição do que é da ordem do desprazer, Freud (1920/1996) amplia o olhar para o fenômeno da dor. Aborda-a, nesse momento, vinculada à concepção de trauma como uma vivência de dor, de caráter disruptivo, violento, no qual se ausentam condições de processamento ou de ligação psíquicas. Assim, os mecanismos psíquicos relativos ao que está além do princípio do prazer contêm em seu bojo marcas de experiências traumáticas que na repetição se atualizam em um circuito de dor.
Considerando-se as proposições teóricas abordadas, observa-se que o fenômeno da dor é apresentado tanto como fenômeno constitutivo da complexidade psíquica, quanto como a experiência ligada à intrusão de uma vivência do sujeito associada a um excesso traumático. Dessa forma, a partir da perspectiva freudiana, a experiência de dor é inerente ao processo de constituição do aparelho psíquico; contudo, também, pode pôr em evidência a impossibilidade de o sujeito criar destinos, no campo psíquico, para o que é da ordem do excesso. Cabe ressaltar, portanto, que o traumático como excesso de uma intensidade pulsional não é necessariamente patológico em si mesmo. O estatuto de patologia encontra-se vinculado à impossibilidade de o psiquismo buscar soluções possíveis para processar e metabolizar, psiquicamente, esse excesso. Fortes (2012) se refere a essa questão apontando os destinos possíveis que o sujeito pode dar a sua dor e ao seu desamparo. Para a autora é possível, diante da dor psíquica, conduzi-la a "formas alienantes da subjetividade, mas também a uma liberdade de ser; à criação de um mundo singular" (Fortes, 2012, p. 42). Compreende-se, assim, que a dor psíquica pode ter desdobramentos singulares. Como caracteriza Maia (2003), esses destinos podem ser subjetivantes ou dessubjetivantes, dependendo de como e em que condições o sujeito psíquico enfrenta suas dores. Logo, a presença de intensidades no aparelho psíquico exigirá do Eu um trabalho que estará sempre marcado pela singularidade de suas condições de enfrentamento.
Impasses no enfrentamento da dor psíquica
Sigmund Freud, ao instituir a Psicanálise como um método clínico, se propôs a escutar o que aparecia como dor via sintomas, transformando, por meio de recursos da teoria e da técnica, a questão da dor em interrogantes próprios à essência do fazer analítico. A teoria psicanalítica problematiza a temática da dor psíquica em suas vertentes de elemento constituinte do sujeito e de fator de adoecimento.
No que diz respeito à sociedade contemporânea, abordar a temática do sofrimento ou da dor torna-se uma questão crítica, considerando-se que o sujeito contemporâneo nega o sofrimento e tenta, de muitas maneiras, evitá-lo (Birman, 2012; Fortes, 2012; Hornstein, 2012). Conforme Hornstein (2012), o homem atual sofre por não querer sofrer. A proposta de vida na atualidade é marcadamente hedonista, ou seja, evidencia-se um imperativo ao prazer a qualquer custo. Fortes (2012) dedica-se à temática da dor, afirmando que a sociedade atual transforma tudo em gadget, no qual os objetos são consumidos vorazmente, e a felicidade é a maior referência. Portanto, o hedonismo predominante parece conduzir à incontornável exclusão da vivência de dor.
Muitas reflexões sobre a contemporaneidade têm enfatizado a preocupação excessiva com a realização individual em detrimento do coletivo em relação ao universo consumista que se instituiu na atualidade (Birman, 1999; Melman, 2003). Lasch (1984) discute as condições da sociedade capitalista e aponta a cultura ao narcisismo como traço fundamental nessa conjuntura. O autor observa que a cultura contemporânea está organizada em torno do consumo em massa que estimula o narcisismo, tornando as pessoas frágeis e dependentes. Nesse âmbito, o indivíduo precisa forjar constantemente uma exaltação de si mesmo, produzindo o que o autor designou de estetização da existência. Nessa linha de raciocínio, Birman (1999) acrescenta ser a cultura da imagem correspondente essencial da estetização do Eu, porque ela instituiu a hegemonia da aparência, na qual o sujeito vale pelo que ele parece ser mediante imagens que ele produz diante da cena social.
De fato, os elementos predominantes na cultura apontam para a produção de subjetividades dirigidas por esses ideais narcísicos e hedonistas. Assim sendo, o sujeito se vê impelido a permanecer preso nessa lógica e a atender as demandas que predominam nesse cenário, perdendo, assim, a característica singular de seus próprios ideais. Melman (2003), abordando essa temática a partir da perspectiva lacaniana, constata que, atualmente, se vive busca incessante por identificações faltantes. A qual, segundo o autor, faz com que os ideais percam espaço frente aos objetos de consumo e, desse modo, o simbólico se esvazie em relação ao real do corpo. Assim, a atualidade aponta para o impedimento de transformações no que se refere às referências simbólicas que delimitam o campo do desejo. A economia psíquica contemporânea evidencia que o desejo se tornou insaciável frente à proposta consumista, sustentando uma ilusória completude. A partir disso, segundo o autor, constata-se o declínio gradual da lei paterna, a qual tem a função de marcar o sujeito com a inscrição da falta estruturante. A função paterna se apresenta estruturante justamente porque insere o sujeito no âmbito da renúncia, da castração. A fragilização dessa lei impede que seja inserido o princípio de realidade no psiquismo como um limite ao prazer contínuo. A introdução desse princípio é essencial, porque funda a capacidade de pensamento e de simbolização no aparelho psíquico. Logo, a fragilidade da lei simbólica acaba incapacitando o sujeito de se sustentar em referência a um limite, e a consequência disso, na atualidade, é o predomínio do incremento do estado de desamparo psíquico.
Embora uma condição de desamparo seja inerente à constituição psíquica e acompanhe o ser humano ao longo da vida, no cenário atual o desamparo tornou-se proeminente e marcado por uma dimensão traumática devido a seu excesso. Conforme Birman (2012), diante da ética determinada pela sociedade contemporânea, constata-se que as individualidades são marcadas pelo excesso que as impele à ação. "Em face do excesso que invade e se alastra sem limites, o psíquico procura se livrar pela ação para não correr o risco de ficar paralisado pela disseminação da angústia do real" (Birman, 2012, p. 96). Nesse mesmo contexto, o corpo também passa a ser alvo de descarga do excesso. O autor afirma que os eixos sintomáticos na atualidade incidem no corpo e na ação, marcando as subjetividades contemporâneas cada vez mais como deficientes em suas capacidades desejantes e simbólicas. Assim, o Eu não encontra outras vias para regulação das intensidades, ficando impotente e frágil diante desse cenário.
Constata-se que diversos autores (Birman, 2012; Fortes, 2012; Hornstein, 2012; Melman, 2003), ao abordarem as especificidades contemporâneas e suas repercussões no sujeito, evidenciam diferentes olhares sobre as transformações na cultura atual. Contudo, as diferentes leituras apontam para um elemento em comum: a fragilização nos processos de subjetivação. Assim sendo, as demandas da clínica atual afirmam o predomínio de modalidades de padecimento psíquico nas quais se evidencia a força destrutiva de intensidades que não são processadas pelo aparelho psíquico. Sob essa perspectiva, o sujeito da atualidade está marcado muito mais pelo registro do gozo do que pelo registro do desejo.
Logo, diante do imperativo ao gozo e da constatação da fragilidade subjetiva, percebe-se que o sofrimento psíquico se faz evidente, principalmente, nas diferentes experiências no campo das relações humanas. Freud (1930/1996) já apontava em "O mal-estar na civilização" para as três fontes de sofrimento psíquico: do próprio corpo, condenado à decadência e dissolução, do mundo externo, que pode se revoltar com forças de destruição esmagadoras e impiedosas e, finalmente, dos relacionamentos com os outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte, segundo o autor, é capaz de abalar profundamente a existência do sujeito. Essa questão tem ressonância em uma problemática bastante proeminente na atualidade, a dos sujeitos que sofrem perante a sua relação com o outro. Segundo Maia (2003) o ideário de prazer imediato instituído na contemporaneidade acaba, também, regulando as relações afetivas, que precisam se adaptar a essa lógica. Para Fortes (2012) há uma característica de descartabilidade própria das relações hedonistas na atualidade. A autora ressalta tal perspectiva ao afirmar que "o outro, como diferente do Eu, não existe - ele só existe se corresponde ao ideal hedonista do Eu, ou seja, só existe para dar prazer ao sujeito" (Fortes, 2012, p. 44). Lançando mão desses recursos, o sujeito acaba por anular a figura de alteridade, impossibilitando qualquer relação intersubjetiva, que precisa considerar o outro na sua diferença.
Dessa forma, as fraturas nos limites do Eu, a intolerância à alteridade, a busca incessante pela satisfação, a crença no gozo pleno, se, por um lado parecem evitar o sofrimento, paradoxalmente constituem um engodo, pois denunciam o predomínio do excesso e das saídas evacuativas da tensão psíquica. Nesse campo de reflexão, cabe problematizar as consequências da impossibilidade de o Eu enfrentar a dor psíquica no cenário contemporâneo. Quando Maia (2003) e Fortes (2012) discutem os destinos dos processos traumáticos apontam para a importância de o excesso traumático ser integrado à economia psíquica. Para tal processo, será exigido do Eu importante trabalho e metabolização psíquica. Porém, observa-se, conforme Birman (2012), que as cartografias do mal-estar atuais parecem indicar que a dor psíquica encontra nos registros do corpo, da ação e das intensidades suas condições de expressão. Logo, o recurso à linguagem e ao pensamento parece situar-se aquém das condições do sujeito. Assim, constata-se que os sofrimentos psíquicos atuais contêm em seu cerne questões referentes às falhas simbólicas e indicam que o sujeito contemporâneo padece de condições de processar e inscrever psiquicamente suas experiências subjetivas. Percebe-se que a dor psíquica nesse contexto revela, de forma dramática, o efeito de experiências traumáticas e a precariedade do sujeito para enfrentá-la.
É em face dessa conjuntura que Melman (2003) ressalta como marca importante dessas economias psíquicas o fato de não haver mais alguém que se interrogue sobre sua própria existência ou sobre suas dores. O que está vigente atualmente é justamente o contrário, uma busca pela evitação da vivência da dor, sendo resultante desses movimentos a não-implicação do sujeito em seu sofrimento psíquico. Desta forma, há um fértil campo de intervenções que se somam a esses discursos dessubjetivantes. Desde a Psiquiatria há um movimento crescente de intervenções medicamentosas que erradicam sintomas de dor. A utilização de drogas lícitas contra angústia, medo, depressão indica uma forma atual de regulação do mal-estar e das dores. Conforme Birman (1999), a psicofarmacologia em prol da eficácia bioquímica transcendeu muito a prática psiquiátrica, estendendo-se ao campo da clínica médica em geral. Embora sejam diferentes, os caminhos e terapêuticas em pauta se propõem ao imediatismo e à anestesia da dor. Porém, diante do fracasso de dar conta da dimensão subjetiva inerente a esses padecimentos, é cada vez mais frequente o predomínio do ato como via de descarga das intensidades psíquicas não metabolizadas. Nesse cenário encontram-se as toxicomanias, nas quais se esconde ou se anestesia um sujeito dilacerado pela dor psíquica.
Toxicomania: a condição de assujeitamento frente à dor psíquica
Trabalhar a temática da Toxicomania sob a perspectiva psicanalítica é considerar a posição subjetiva desse padecimento. A partir da proposta freudiana trabalhada no texto "O mal-estar na civilização", o recurso às drogas é compreendido como uma resposta do sujeito ao mal-estar. Freud (1930/1996) afirma que o homem lança mão de medidas paliativas para suportar o sofrimento oriundo da vida em civilização. Essas medidas podem ser, basicamente, de três tipos: os derivativos poderosos, as satisfações substitutivas e as substâncias tóxicas. De acordo com o autor, o recurso às substâncias tóxicas é o método mais eficaz, pois age diretamente no corpo humano, produzindo sensações prazerosas e evitando impulsos desagradáveis. A substância tóxica passa a operar para alguns sujeitos como um "amortecedor de preocupações", proporcionando um refúgio para o sofrimento. O autor (1930/1996) assinala de forma bastante incisiva o perigo do uso de substâncias tóxicas, alertando para os possíveis danos que elas podem causar e ressalta que qualquer escolha levada ao extremo condena o indivíduo a ser exposto a perigos, caso a medida paliativa escolhida seja exclusiva. Desse modo, demarca, nesse momento, uma diferença entre a "intoxicação", referindo-se ao método usado para afastar o sofrimento, e a "intoxicação crônica", considerada a forma extrema desse método que extrapola os limites de um uso paliativo.
Percebe-se, a partir das proposições freudianas, que o recurso ao tóxico pode adquirir uma dimensão crônica, o que evidencia um espectro muito amplo nas formas de uso de substâncias tóxicas. Trata-se de considerar, então, o fenômeno na sua heterogeneidade, pois ele apresenta diversas facetas e intensidades, e justamente por isso precisa ser examinado em sua complexidade. Sustenta-se a ideia de trabalhar, neste artigo, o fenômeno da Toxicomania como uma especificidade do uso de substâncias tóxicas que comporta uma modalidade de existência do sujeito a partir do consumo exacerbado de tóxico. Vários autores (Birman, 1999; Le Poulichet, 2005; Ribeiro, 2009) realizam uma diferenciação importante entre o uso de drogas e a toxicomania propriamente dita. Essa última é caracterizada principalmente pela impossibilidade de o sujeito viver sem a droga, pois nela existe uma condição de aderência do sujeito a um único objeto. Le Poulichet (2005), autora que vem estudando essa temática, afirma que na toxicomania a droga cumpre uma função vital devido ao estabelecimento de uma relação de exclusividade com esse objeto. Convém destacar que essa modalidade de uso de substâncias pode ser denominada Toxicomania, Drogadição ou Adição e, desse modo, neste estudo, as nomenclaturas serão consideradas equivalentes, pois apontam para características essenciais que indicam o investimento com caráter de exclusividade que o sujeito tem com a droga.
Para aprofundar e diferenciar as diversas formas de uso de drogas, Le Poulichet (2005) utiliza a propriedade do pharmakon, oriundo da obra A farmácia de Platão e posteriormente trabalhada por Derrida (1972/1997). A expressão pharmakon contempla uma duplicidade de sentidos, podendo operar tanto como remédio quanto como veneno, como droga maléfica e benéfica. Nesse sentido, a droga pode operar como remédio para a angústia, mas pode ser transformada em veneno quando ocupa o lugar principal de investimento psíquico do sujeito. A autora emprega o conceito de operação farmakon ao padecimento da toxicomania para compreender a função do tóxico na vida psíquica do sujeito. Apesar de o princípio do farmakon estar presente no uso de drogas, a operação farmakon é uma operação própria das toxicomanias e designa a especificidade do ato que precisamente cria essa modalidade de padecimento. Nas toxicomanias, diz Le Poulichet (2005), o tóxico constitui um sintoma que permite ao sujeito escapar de uma dor que lhe é insuportável. Desse modo, é a partir dessa condição de adoecimento que se estabelece a complexa relação do sujeito toxicômano com a dor psíquica.
A busca pelo prazer imediato e pela completude com o tóxico na toxicomania denuncia uma tentativa do sujeito de fugir de uma realidade insuportável. O tóxico entra na economia psíquica parecendo ser algo promissor, constituindo-se como o meio mais poderoso de que o sujeito lança mão a fim de evitar o que concerne à dor psíquica. Essa afirmativa se embasa na constatação de que há uma busca incessante, por parte dos sujeitos, pela satisfação plena e pela abolição de uma condição de sofrimento. A relação do tóxico com a dor psíquica é trabalhada por Marucco (2013), que se refere ao ato de drogar-se como uma tentativa vinculada ao tratamento da dor e não como uma busca de prazer. Conforme o autor, nenhuma pessoa que se droga sente prazer em fazê-lo, mas o faz pela necessidade de acalmar a si mesma.
Logo, torna-se fundamental especificar a dimensão que o tóxico assume na vida psíquica dos sujeitos na toxicomania, pois essas subjetividades são exclusivamente marcadas pelo consumo desmedido, sendo esse ato uma modalidade de existência. Portanto, o sujeito não reconhece outras formas de busca de prazer e entra em uma compulsão pelo objeto-droga, caracterizando um regime de gozo mortífero. Trata-se de um gozo solitário que revela a fragilidade narcísica dessas subjetividades. À medida que não conseguem investir em outros objetos, os toxicômanos acabam excluindo o outro do laço social, permanecendo extremamente isolados e dedicando suas vidas à servidão da droga. A função do tóxico carrega, então, a força da destrutividade e põe em evidência ao mesmo tempo tanto a dimensão e a intensidade da dor psíquica quanto a denúncia da impossibilidade do sujeito de fazer frente à dor.
A operação farmakon, própria das toxicomanias, representa justamente a busca do "cancelamento tóxico" da dor psíquica, estabelecendo condições somente alucinatórias de satisfação, como afirma Le Poulichet (2005). Esse modo alucinatório e imediato de satisfação se opõe à temporalidade que ordena o mundo simbólico. Segundo a autora, esse recurso contra a dor psíquica é uma resposta à falta de elaboração do próprio corpo, efeito de uma grave perturbação do narcisismo que aponta diretamente para uma insuficiência da função simbólica. Se, por um lado, o êxito da droga está em proporcionar um refúgio para o mal-estar, por outro as toxicomanias revelam-se igualmente fracassadas, pois, inevitavelmente, remetem ao vazio quando a necessidade de abstinência se impõe.
Marucco (2013) também destaca que o ato adictivo termina sempre acompanhado de um mal estar quase insuportável. Segundo o autor:
O circuito adicto termina sempre em dor, não faz outra coisa senão mostrar o caráter de uma repetição compulsiva. Contudo cabe ressaltar que na economia psíquica sempre o excesso é sentido como desprazer, e é isso que continuamente repete o adicto (Marucco, 2013, p. 53).
Assim, embora a utilização do tóxico propicie um efeito imediato de prazer, a necessidade desenfreada do tóxico provoca um aprisionamento do sujeito ao objeto droga, produzindo imenso sofrimento. Logo, o sujeito capturado nesse modo de viver ao invés de, diante da dor, efetuar um trabalho psíquico de enfrentamento e de simbolização recorre ao recurso alucinatório do tóxico. A toxicomania revela, assim, o fracasso no enfrentamento da dor psíquica, tanto pelo ponto de vista da busca pelo tóxico como solução, quanto da condição resultante desse processo.
O toxicômano instala-se em uma condição de assujeitamento, à medida que se amarra a um circuito compulsivo e mortífero de total dependência da substância. Se o ato de se drogar passa a ser a única forma de existir, o sujeito acaba por desaparecer. Marucco (2013), ao referir-se à supressão do sujeito nesse padecimento, diz que não é o objeto droga que cria a toxicomania, mas o sujeito que, em seu sofrimento e tentando escapar dele, constitui uma operação defensiva.
Assim, enquanto anestesia compulsivamente a sua dor, o toxicômano também se anula enquanto sujeito. Imerso em seu sofrimento, ele parece impedido de alcançar qualquer tentativa de elaboração simbólica ou de promover interrogantes sobre seu mal-estar, criando uma forma de assujeitamento frente à própria dor psíquica. Essa solução engendrada denuncia a precariedade dos recursos psíquicos presentes nesses padecimentos. Nesse cenário, a contribuição da Psicanálise com seu arcabouço teórico é resgatar e pôr em evidência o sujeito e sua singularidade, no aprisionamento à modalidade exclusiva de investimento no objeto-droga. Acredita-se que, desde essa perspectiva, seja possível lançar um olhar que reconheça a complexidade do processo de construção de uma posição subjetiva, a importância de recursos para que o Eu possa fazer frente à dor psíquica não pela via compulsiva do ato.
Assim, a compreensão da heterogeneidade do fenômeno toxicômano, a partir da perspectiva psicanalítica, não pode se furtar a problematizar a condição de assujeitamento que dá ao tóxico um lugar central na vida de um sujeito. Trata-se de explorar as condições de fragilidade do sujeito psíquico a fim de fomentar um trabalho de escuta que possa possibilitar novas formas de enfrentamento de intensidades insuportáveis e, consequentemente, viabilizar um novo estatuto subjetivo sustentado pelo potencial simbólico.
Considerações finais
Considerando-se o impacto destrutivo que a proliferação do consumo de drogas apresenta na sociedade contemporânea, o objetivo deste artigo foi problematizar a condição do sujeito toxicômano a partir da complexa relação do tóxico com a dor psíquica. Buscou-se abordar o tema da dor psíquica e sua distinta implicação, considerando-se o processo de constituição psíquica e sua ocorrência em uma experiência traumática. Abordaram-se as demandas e os ideais predominantes na cultura contemporânea e suas repercussões no cenário epidêmico do consumo de drogas, examinando-se, dessa maneira, a relação entre as formas de mal-estar contemporâneas e as condições subjetivas de enfrentamento destas.
Constata-se o dramático efeito nas subjetividades que o fenômeno da toxicomania denuncia atualmente. As drogas, tanto lícitas quanto ilícitas, constituem uma singular forma de laço social e enunciam o recurso à intoxicação como precária resposta do sujeito diante do mal-estar contemporâneo. Logo, o tóxico ocupa definitivamente uma dimensão específica na economia da dor psíquica e denuncia importantes fragilidades do Eu. Entende-se que fenômeno da dor é intrínseco ao processo de estruturação do psiquismo, mas, também, a dor, em sua dimensão de excesso, pode surgir vinculada à concepção do traumático. A vivência de dor associada à presença de intensidades de caráter disruptivo e excessivo no psiquismo inviabiliza as condições de processamento ou de ligação psíquicas.
Torna-se essencial para a complexização do Eu o estabelecimento de recursos intrapsíquicos para desenvolver a capacidade complexa em sua forma de ser e estar no mundo. Nesse contexto, percebe-se o declínio do operador da função paterna, a qual se apresenta como estruturante na formação do Eu, pois o insere no âmbito da falta. Essa situação alimenta a ilusória completude narcísica que permeia a cultura atual e impede a necessária complexização do aparelho psíquico. Assim, a cultura contemporânea tem propiciado fatores importantes para a fragilização dos processos de estruturação do Eu, sendo que a compulsão pelos tóxicos passa justamente a denunciar a fragilização subjetiva vigente.
Constata-se nesse cenário que o Eu não encontra vias para regulação das intensidades e tampouco para processar as experiências de dor fora do circuito do uso do tóxico. É através da precariedade do ato que o toxicômano descarrega as intensidades insuportáveis. Os acessos à via da linguagem e do pensamento estão seriamente comprometidos e restritos diante da toxicomania. Impossibilitados de a eles recorrer, os sujeitos, nesse padecimento, encontram-se dilacerados e alienados nessa forma de existir, e acabam elegendo, compulsivamente, uma forma de "cancelamento tóxico" para sanar suas dores.
A herança freudiana permite compreender e interrogar as questões relativas às dores psíquicas presentes nos padecimentos psíquicos. Diferente da nosografia psiquiátrica, e de algumas proposições psicopatológicas decorrentes de classificações a partir do comportamento, na compreensão de padecimento própria da Psicanálise o que se deve priorizar na problemática dos tóxicos é o sujeito. Nesse sentido, a Psicanálise prioriza resgatar o sujeito na condição da toxicomania para, então, viabilizar destinos subjetivantes para o excesso e para a dor psíquica. Alcançar a possibilidade de simbolizar a dor é dar condições à intensidade de ascender a um estatuto simbólico. A escuta psicanalítica é importante ferramenta para se compreender o que o sujeito tem a dizer a respeito de sua singular relação com a dor psíquica. Esse recurso terapêutico possibilita que o sujeito possa nomear o excesso que o acomete, colocando-o em palavras e, assim, alcançando destinos amparados pelo campo simbólico que proporcionam uma posição subjetiva e de autonomia perante tanta dor.
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Recebido em 16 de outubro de 2014
Aceito para publicação em 23 de julho de 2015