Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Psicologia Clínica
versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.28 no.2 Rio de Janeiro 2016
SEÇÃO TEMÁTICA
A clínica psicanalítica com adolescentes: considerações sobre a psicoterapia individual e a psicoterapia familiar
The psychoanalytical clinic with adolescents: considerations on the individual psychotherapy and family psychotherapy
La clinica psicoanalítica con adolescentes: consideraciones de la psicoterapia individual y la psicoterapia familiar
Maíra Bonafé SeiI; Ana Carolina ZuanazziII
IUniversidade Estadual de Londrina (UEL) – Londrina (PR), Brasil
IIUniversidade de São Paulo (USP) – São Paulo (SP), Brasil
RESUMO
A adolescência demanda a elaboração psíquica de muitas perdas e construção de uma nova identidade. Frente a isso, diversos conflitos podem ser suscitados, sendo relevante o trabalho psicoterápico na promoção e manutenção da saúde emocional do adolescente. Alguns enquadres psicoterápicos podem se dar a partir da demanda identificada, como a psicoterapia em grupo, individual e familiar. O presente estudo almeja, assim, discutir as estratégias de intervenção empregadas no campo da adolescência a partir de experiências advindas da psicoterapia individual do adolescente e da psicoterapia familiar, na qual o adolescente pode estar inserido. Trata-se de um estudo teórico-clínico, empreendido por meio de uma pesquisa qualitativa, pautada no referencial psicanalítico, com ênfase nas contribuições da teoria winnicottiana. Como resultados, pode-se indicar que o envolvimento da família, direta ou indiretamente, no processo psicoterápico é fundamental para um bom desenvolvimento de um processo analítico que possa favorecer a autonomia e saúde dos jovens.
Palavras-chave: psicanálise do adolescente; Winnicott; família; psicoterapia psicanalítica.
ABSTRACT
The adolescence requires psychic elaboration of many losses and the construction of a new identity. Faced with this, several conflicts can be raised, being relevant the psychotherapeutic work to promote and maintain the emotional health of adolescents. Some psychotherapeutic framings may occur from the identified demands, such as group psychotherapy, individual and family. The present study thus aims to discuss intervention strategies employed in the field of adolescence, stemming from experiences of individual psychotherapy of the adolescent and family psychotherapy, in which the teen may be inserted. This is a theoretical and clinical study, undertaken through a qualitative research based on psychoanalytic approach with emphasis on the contributions of Winnicott’s theory. As a result, it can be indicated that family involvement directly or indirectly in the psychotherapeutic process is critical to a successful development of the analytical process, which may favor the autonomy and health of young people.
Keywords: adolescent psychoanalysis; Winnicott; family; psychoanalytical psychotherapy.
RESUMEN
La adolescencia envuelve la elaboración psíquica de muchas pérdidas y la construcción de una nueva identidad. Frente a esto, muchos conflictos se pueden plantear, con el trabajo psicoterapéutico relevante en la promoción y mantenimiento de la salud emocional de los adolescentes. Algunos encuadres psicoterapéuticas se pueden dar de la demanda identificada, como la psicoterapia de grupo, individual y familiar. Así, el presente estudio tiene como objetivo discutir las estrategias de intervención empleadas en el campo de la adolescencia, derivadas de experiencias de la psicoterapia individual del adolescente y de la familia psicoterapia, en la que se puede insertar el adolescente. Se trata de un estudio teórico y clínico, llevado a cabo a través de una investigación cualitativa basada en el enfoque psicoanalítico con énfasis en las aportaciones de la teoría de Winnicott. Como resultado, es posible indicar que la participación de la familia directa o indirectamente en el proceso psicoterapéutico es fundamental para un desarrollo exitoso del proceso de análisis, lo que puede favorecer la autonomía y la salud de los jóvenes.
Palabras clave: psicoanalisis del adolescente; Winnicott; familia; psicoterapia psicoanalítica.
A adolescência
A adolescência pode ser compreendida como uma fase de transição na qual o indivíduo passa da infância para a idade adulta. Entretanto, os limites cronológicos propostos para esse período apresentam grandes variações. Assim, a Organização Mundial de Saúde concebe a adolescência como o período entre 10 e 19 anos, diferentemente das Nações Unidas, que compreendem que adolescentes são aqueles que possuem idade entre 15 e 24 anos de idade (Eisenstein, 2005). Quanto ao Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990), ele indica a adolescência como a fase entre os 12 e os 18 anos de idade.
Um aspecto comum, contudo, centra-se na diferença entre adolescência e puberdade. A última refere-se a fenômenos de ordem biológica que instauram mudanças morfológicas e fisiológicas (Eisenstein, 2005), enquanto que a concepção de adolescência se situa mais no campo social (Jover & Nunes, 2005; Schoen-Ferreira, Aznar-Farias, & Silvares, 2010; Santos & Pratta, 2012), com diferenças a partir do contexto cultural no qual a pessoa está inserida.
Autores clássicos da psicanálise apontam para a adolescência enquanto um momento de elaboração de lutos pela perda do corpo infantil, da identidade e dos pais da infância (Aberastury & Knobel, 1981). Contudo, visões mais recentes (Endo, 2009, p. 83) questionam qual é o papel que o adolescente assumirá, tendo em vista o contexto social atual marcado por fenômenos como o consumismo e a violência, indicando que o "adolescente nada é, mas tudo se espera dele". Ademais, observa-se o fenômeno de uma adolescência sem fim, vista a ausência de meios adequados para a finalização desse momento de vida, com o jovem permanecendo sem responsabilidade, porém sem autonomia (Ávila, 2011).
Com isso, é compreensível a necessidade de intervenções psicológicas junto ao público adolescente para que ele consiga lidar com o sofrimento psíquico suscitado nessa etapa de vida. A psicoterapia poderia, a partir de suas diferentes modalidades, desempenhar um papel na promoção da saúde emocional desses jovens.
Estratégias psicoterapêuticas na adolescência
Como exposto, o adolescente pode necessitar de um espaço, como a psicoterapia, de elaboração das questões relativas à adolescência. Nesses casos, deve-se inicialmente verificar de quem é a demanda para o atendimento e o que motiva a busca pelo mesmo. Nesse sentido, Schoen-Ferreira, Silva, Farias e Silvares (2002) mapearam o perfil e as principais queixas de adolescentes encaminhados para um serviço de atendimento psicológico e perceberam que as queixas mais presentes nos prontuários se referiram a problemas escolares e desobediência. Já Verceze, Sei e Braga (2013) perceberam que a visão acerca da demanda pela psicoterapia de adolescentes se diferencia entre pais e filhos. Enquanto os pais demonstram uma grande preocupação com questões comportamentais e um foco em problemas de ordem acadêmica dos filhos, ligadas ao desempenho escolar destes, os adolescentes situam suas problemáticas como mais próximas às questões emocionais, ressaltando-se quadros depressivos que implicam na necessidade de um cuidado psicoterapêutico e, por vezes, psiquiátrico.
Quando há um efetivo desejo pela psicoterapia, deve-se refletir sobre qual a modalidade da intervenção adequada diante das diversas estratégias terapêuticas possíveis. Para alguns autores, a psicoterapia de grupo seria a mais indicada (Zimerman, 2000), dada a identificação dos jovens com seus pares, que facilitaria o compartilhamento de sentimentos a partir de vivências semelhantes. O grupo com adolescentes pode, assim, promover autoconhecimento, compreensão e alívio emocional (Moretto, 2012), além de conter as emoções e favorecer a diminuição no uso de actings, com melhora na expressão dos sentimentos (Verzignasse & Térzis, 2008).
A psicoterapia individual também se mostra como uma via para acolher o sofrimento psíquico dos adolescentes. Segundo Jordão (2008), os profissionais que atuam na clínica psicanalítica com adolescentes devem ter condições de lidar com questões primitivas, ter capacidade para atentar para a contratransferência e descargas emocionais intensas características do trabalho com esse público. Precisam estabelecer uma aliança terapêutica que inclua o adolescente, seus pais e o terapeuta, indicando a influência da família para o adolescente. Considera fundamental a atenção "às projeções parentais e aos consequentes alienamentos subjetivos, facilitando a individuação e a diferenciação do adolescente" (Jordão, 2008, p. 170).
Quanto aos objetivos da análise com adolescentes, Kupermann (2007), a partir das contribuições de Winnicott, defende que o final do atendimento pode acontecer quando o adolescente adquire a "capacidade de estar só". Deve, assim, ter autonomia em relação aos pais, percorrendo o caminho rumo à independência, com possibilidade de estar sozinho, mas sem uma vivência de abandono.
No que se refere à dinâmica de comunicação do adolescente, Braga (2012) discorre sobre a necessidade de se comunicar e o desejo do adolescente de se manter isolado. Em consonância, Santos, Santos e Oliveira (2008) destacam que o silêncio frequentemente presente nas sessões não deve ser compreendido apenas como decorrente de resistências. Reiteram o apontamento sobre o uso de actings pelo adolescente e indicam que o silêncio pode adquirir diferentes facetas, como em situações de caráter regressivo, retomando os apontamentos de Winnicott sobre a capacidade de estar só, e em outros momentos nos quais o silêncio tem uma função elaborativa, para que o paciente reflita e integre os conteúdos trabalhados no atendimento.
Observa-se, assim, a importância do manejo do terapeuta de adolescentes, com o desenvolvimento de recursos e estratégias para a psicoterapia. Como exemplo, tem-se Arenales-Loli, Abrão, Parré e Tardivo (2013) que abordam o uso do "Jogo Túnel do Tempo". Organiza-se como um recurso mediador que facilita o processo terapêutico ao favorecer o material associativo e ocupar um lugar entre o lúdico da infância e a linguagem verbal característica do adulto.
De maneira próxima, Sei, Oliveira e Braga (2014) desenvolveram um estudo no qual propõem a técnica "Jogo da Escrita", inspirada no procedimento de "Desenho-Estória", de Trinca, e no "Jogo do Rabisco", de Winnicott. Esse recurso, desenvolvido para uso na psicoterapia de adolescentes, favoreceu o estabelecimento do vínculo terapêutico e o manejo das resistências dos jovens no contexto terapêutico. Percebe-se, assim, que variados autores indicam que o uso da mediação (Zanetti, 2013) e de recursos artístico-expressivos (Sei, 2011), pode colaborar para a expressão e elaboração de questões emocionais. Tais propostas expressivas se apresentam, então, como elementos facilitadores do desenvolvimento do processo psicoterapêutico.
Adolescência, família e psicoterapia
Tendo em vista a importância da família na saúde mental de seus componentes, pode-se optar pela realização da orientação de pais no cuidado do adolescente. Esta pode ocorrer em espaços de instituições educativas, sócio-educativas (Furtado & Braga, 2011), instituições de saúde, como forma de acompanhamento da psicoterapia do adolescente (Hiluey, 2010) ou no formato de grupos multifamiliares organizados a partir da psicoeducação (Nicoletti, Gonzaga, Modesto, & Cobelo, 2010).
De forma complementar, há situações clínicas nas quais "a sintomatologia da criança reflete doença em um ou em ambos os pais ou na situação social, sendo isso que necessita de atenção" (Winnicott, 1984, p. 16). Uma das formas de intervir, então, é por meio da psicoterapia familiar, com a participação de todos os familiares, contemplando-se o grupo como um todo, com retirada do foco do membro sintomático. Essa mudança nem sempre é fácil, haja vista que mesmo famílias que buscam a psicoterapia familiar por vezes indicam que a queixa se localiza em apenas um dos familiares (Souza & Sei, 2014).
Ressalta-se, entretanto, que variadas são as abordagens em psicoterapia psicanalítica familiar, sendo que no Brasil nota-se a influência das vertentes inglesa, francesa e argentina, organizando-se como um campo ainda em construção no país (Gomes & Levy, 2009). Para essa prática, são consideradas as influências dos conteúdos transmitidos ao longo das gerações, seja de forma consciente e elaborada, seja por meio de elementos transmitidos inconscientemente de forma bruta (Magalhães, & Féres-Carneiro, 2004) e dá-se atenção para a transferência e contratransferência no setting terapêutico (Melo, Magalhães, & Féres-Carneiro, 2014; Zuanazzi & Sei, 2014). Por meio da psicoterapia familiar, é criado um espaço potencial que favorece o crescimento e o encontro de recursos para a resolução dos conflitos (Polity, 2002).
Diante desse panorama, almeja-se discutir, por meio de um estudo teórico-clínico, duas modalidades de intervenção com adolescentes: a psicoterapia individual e a psicoterapia familiar. Ambas as modalidades de intervenção se pautaram no referencial psicanalítico, com ênfase na teoria winnicottiana no que diz respeito ao manejo do terapeuta no setting terapêutico, à importância da espontaneidade para o viver saudável, tendo em vista o papel atribuído por Winnicott à família na promoção da saúde de seus membros.
Método
Trata-se de uma pesquisa qualitativa (Turato, 2005), empreendida por meio de um estudo teórico clínico (Souza, Sei, & Arruda, 2010; Telles, Sei, & Arruda, 2010). Como tal, almeja ilustrar e discutir duas estratégias de intervenção empregadas no campo da adolescência: a psicoterapia individual do adolescente e a psicoterapia familiar, na qual o adolescente pode estar inserido.
Tal proposta insere-se em um projeto de pesquisa que almejou pesquisar a psicoterapia psicanalítica no serviço-escola de Psicologia, para compreensão de processos e fenômenos implicados no atendimento psicológico. Foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos da Universidade Estadual de Londrina, a partir do parecer n° 017/2014, com assinatura do consentimento livre e esclarecido, bem como se procedeu à alteração de dados dos participantes com a finalidade de preservação do anonimato de pessoas envolvidas.
Participantes
Participaram deste estudo dois adolescentes, ambos com 12 anos, somados aos pais de um destes jovens, atendidos em psicoterapia psicanalítica pela mesma psicoterapeuta. Essa escolha dos participantes foi feita de forma intencional, haja vista a contribuição destes para a discussão do tema proposto (Turato, 2005).
Procedimentos
Foi empreendida a psicoterapia psicanalítica, de frequência semanal e duração aproximada de dois anos, em um serviço-escola de Psicologia. A prática foi embasada no referencial winnicottiano, aporte teórico também utilizado para a análise dos dados. Os atendimentos diferiram quanto aos participantes, sendo que um adolescente foi atendido em psicoterapia individual, por meio de estágio curricular, enquanto o segundo foi inserido na psicoterapia familiar a partir de um projeto de extensão (Sei & Zanetti, 2014). Nas duas situações estavam disponíveis materiais gráficos como lápis de cor, canetas, papéis diversos, material de recorte e colagem, proporcionando a possibilidade de comunicação por meio da linguagem expressiva no setting psicanalítico.
Resultados e discussão
Serão apresentados dois casos clínicos, um de psicoterapia familiar e um de psicoterapia individual, que ilustram, assim, duas possibilidades de atendimento clínico frente a queixas localizadas em adolescentes, entendendo-se a família como promotora de um ambiente facilitador do desenvolvimento emocional saudável.
Júlio
Júlio, 12 anos, passou pelo processo de avaliação psicológica por meio do qual foi indicada a psicoterapia familiar, visto que seus conflitos emocionais se ligavam à dinâmica familiar. Apresentou-se como um adolescente simpático e educado, porém logo se notou que sua polidez era acompanhada de sentimentos de ansiedade e angústia frente a diversas situações, especialmente, nas quais precisava lidar com emoções mais intensas.
Ilustra-se tal ponto com uma passagem em que Júlio, frequentemente chamado de "chorão" no colégio, se irritou com as provocações de um dos colegas e o agrediu fisicamente. Nota-se, dessa forma, que o adolescente já era apontado pela turma como aquele que chorava frequentemente, o "chorão", com alta frequência de episódios nos quais Júlio se emocionou diante de situações escolares diversas. Tinha-se, ademais, uma agressividade mal direcionada de sua ação. Ao ser provocado, não conseguiu manejar seus sentimentos e, sem encontrar recursos mais elaborados, restou-lhe apenas a agressão física para expressar seu descontentamento frente à situação.
Havia sempre estudado em colégio público até a constatação de que apresentava altas habilidades cognitivas e recebeu a oferta de uma bolsa integral em um colégio da cidade. Os pais ficaram muito contentes e atribuíram ao menino o mérito dessa conquista, entretanto tal reconhecimento foi acompanhado de uma intensa cobrança presente no discurso dos pais. Ao mesmo tempo que diziam que o menino se esforçou para conseguir a merecida bolsa, apontaram que a mesma equivaleria, simbolicamente, a um salário, como se o adolescente tivesse sido "contratado" para tirar boas notas e ter um desempenho "ótimo". Ele deveria, portanto, se esforçar ainda mais para manter as expectativas de seus "empregadores", correndo o risco de ser "demitido" caso não cumprisse com o esperado.
Consequentemente, receava perder o benefício financeiro caso apresentasse algum comportamento inadequado ou tirasse uma nota aquém do esperado em avaliações quinzenais do colégio. Os pais relataram que era frequente o adolescente chorar na véspera de suas avaliações, além de ficar extremante ansioso na espera dos resultados destas, sempre prevendo um baixo desempenho. Essa cena se repetia em todas as provas. Mesmo Júlio apresentando uma das melhores notas da sala, seu desempenho nunca era considerado satisfatório, nem pelo menino, e por vezes, nem por seus pais.
Ressalta-se que as disciplinas nas quais o adolescente apresentava notas menores – mas ainda assim acima da média da sala – eram matérias que exigiam reflexão e criatividade, como filosofia e artes, respectivamente. Ou seja, nas disciplinas que trabalham justamente o pensar sobre, que não têm uma regra a ser seguida, que exploram o criativo, o improviso, Júlio ia "mal", sem conseguir se "soltar" do aprendido, do pré-concebido e explorar suas capacidades criativas, fato que aponta para uma possível organização falso self (Winnicott, 1960/1983). Tinha-se uma submissão a demandas externas e perda de contato com o mundo subjetivo, de modo que uma abordagem mais criativa da vida acabava por não acontecer (Winnicott, 1975).
Júlio havia sido submetido no passado a um tratamento com metilfenidato, para melhora da sua "concentração" e "desempenho" em sala de aula. Em determinado período da psicoterapia familiar, a família cogitou a possibilidade do retorno ao tratamento farmacológico, visto que ele dizia ter grandes dificuldades de concentração e fixação dos conteúdos vistos em sala. Aliado a isso, Laura, mãe de Júlio, solicitava que o mesmo fizesse repousos diários de 15 minutos após o almoço, acreditando que isso "estimularia" seu cérebro, "aumentando" sua capacidade de reter os conteúdos de sala.
João, pai de Júlio, encontrava-se em seu segundo casamento, tendo duas filhas do primeiro. Na infância (dos 10 aos 12 anos) enfrentou uma doença grave, fazendo longos tratamentos com corticoides. Isso o impediu de desfrutar plenamente parte da infância/início da adolescência por ter que ficar em casa, inclusive se ausentando da escola. Após o tratamento, João relatou sofrer bullying dos colegas por ter ficado com algumas sequelas do uso de corticoides (inchaço). Passou, ademais, toda a adolescência trabalhando para o pai, o que também contribuiu para que o mesmo não tivesse oportunidade de conviver com pessoas de mesma idade, prejudicando suas interações sociais. Ao longo dos atendimentos, essa questão surgiu algumas vezes como um movimento de identificação do pai em relação ao sofrimento vivido pelo filho.
Laura, por sua vez, relatou ter aproveitado muito sua infância e adolescência, sempre cercada de amigos e namorados. Sua adolescência foi um período marcante para o relacionamento com sua mãe. Apesar de recordar-se saudosamente desse período da vida, dizia-se entristecida por não ter mantido suas amizades, por vezes sentindo-se desprezada/ignorada por suas amigas.
Laura assumia um papel de organizadora do lar e da rotina familiar, cuidando, inclusive, de questões financeiras da família. Por vezes, ela se colocava à parte do sintoma familiar, resgatando o quanto sua infância e adolescência foram agradáveis. Em outros momentos, quando Laura conseguia se perceber fazendo parte de uma dinâmica que causava sofrimento, dizia-se infeliz e não realizada e, em certo momento, disse que sentia que, por esse motivo, acabava exigindo mais do filho.
João, logo nas primeiras sessões, mostrou-se solidário ao sofrimento do filho e, por vezes, dizia sentir-se responsável pelas dificuldades de Júlio, pois ele próprio não soube tomar outro rumo na vida. Em outros momentos, dizia que o se o garoto não exigisse de si e se mobilizasse, não seria bem-sucedido na vida, sendo isso o que importava.
Esses exemplos ilustram um pouco da dinâmica da família que veio para atendimento. Pais que sobrecarregavam o adolescente de expectativas extremante idealizadas, impossibilitando um desenvolvimento emocional saudável em que o adolescente pudesse testar seu ambiente e construir sua identidade a partir dele. Júlio encontrava-se pressionado a desempenhar papéis com necessidade de superar cada vez mais suas próprias capacidades e limites, temendo a rejeição. Pensa-se que a família de Júlio precisava da psicoterapia familiar para o desenvolvimento da capacidade de holding, por parte dos pais do garoto, sem invasões que comprometessem a "continuidade de ser" do filho (Winnicott, 2001).
Quanto à psicoterapia familiar, compareciam aos atendimentos a mãe Laura, o pai João e Júlio. A dinâmica apresentada pela família no início do processo terapêutico revelava o uso de diversos mecanismos de racionalização e negação. A família se mostrava bastante resistente a iniciar terapia no serviço-escola, partindo do princípio de que os terapeutas, por serem estudantes, seriam inexperientes. Por outro lado, também não se disponibilizavam a procurar clínicas particulares, mesmo apresentando condições financeiras para tal.
Antes mesmo do início da psicoterapia, a família já expôs suas expectativas em relação a quem os atenderia: deveria ser experiente, mesmo sabendo que estavam em um serviço-escola, cujo objetivo é de ensino da prática clínica ao discente, ainda em fase de aprendizado. Logo na primeira sessão, a família questionou a terapeuta sobre sua experiência em atendimentos e, em muitas outras situações, tentou colocar à prova seus conhecimentos.
A princípio, trouxeram uma queixa bastante centralizada e exclusiva em Júlio, "estamos aqui para o bem de Júlio" (sic). Para transformação da queixa depositada no paciente identificado para uma demanda centrada na relação familiar foram utilizados, durante as sessões, recursos artístico-expressivos com temas bastante focalizados na família como um todo, estimulando a inserção e participação de todos os membros. De tal forma, foram realizadas atividades expressivas como o genograma familiar (Franco & Sei, 2015), a linha da vida, o desenho da família, o jogo do rabisco coletivo (Liebmann, 2000), entre outros.
Objetivou-se com os recursos artístico-expressivos, abrir outra via de comunicação, que permitisse o diálogo menos racionalizado, mais voltado para expressão inconsciente, menos defensiva (Sei, 2011). Pode-se, assim, favorecer um contato com aspectos criativos, propiciando a emergência de um gesto espontâneo, mais consoante com um funcionamento pautado no verdadeiro self. Para Winnicott (1949/1994), os recursos artístico-expressivos somados à presença do terapeuta permitem a construção de pontes entre o mundo subjetivo e a realidade objetiva.
Tem-se, também, a possibilidade de reflexão sobre a dinâmica familiar, com a linguagem expressiva gerando produtos concretos que podiam ser visualizados pela família e suscitar reflexões independentes das possíveis interpretações efetuadas pela terapeuta. Desta forma, permitiu-se que a própria família chegasse a uma compreensão, algo positivo por não implicar em uma submissão do paciente aos apontamentos do terapeuta. Solicita-se a permissão do terapeuta para o paciente ser criativo na análise, sendo que essa criatividade "pode ser facilmente frustrada por um terapeuta que saiba demais" (Winnicott, 1975, p. 83-84).
Apesar deste aspecto criativo advindo das propostas expressivas, observava-se que a família e principalmente os pais mostravam-se resistentes, muitas vezes reclamando da "complexidade" da tarefa proposta, ou então questionando seus objetivos. Essa resistência para as atividades mais "lúdicas" aponta para a própria dificuldade da família, especialmente dos pais, em se expressar mais livremente. Transformar as palavras em imagens, simbolizar por meio de outros recursos que não a fala, era visto como algo muito "complexo" e "desestimulante". Nesse sentido, lembra-se da ideia de Winnicott (1975) de que a psicoterapia pode ter a função de possibilitar o brincar do paciente quando ele ainda não é capaz de fazê-lo, algo que não apenas está presente no atendimento infantil (Felice, 2003), mas serve como um modelo para o tratamento psicanalítico (Fulgencio, 2008).
Quanto às produções advindas do uso da linguagem expressiva, destaca-se a linha de vida de Júlio, delineada na forma de um círculo fechado por meio do apoio de um CD, com indicações das atividades estritamente ligadas ao contexto escolar, ilustrando as escolas pelas quais já havia passado e finalizando com a frase "hoje eu fiz prova". Não havia indicações de outras situações de sua vida, como viagens da família à propriedade rural da mesma ou atividades de lazer e outros interesses que pudessem permear o viver do menino.
Na mesma proposta, João desenhou figuras espalhadas que representavam seus desejos (tranquilidade), suas conquistas (filhas, casa própria), seus interesses (carros). Em sua fala sobre a atividade, indicou que teve oportunidade de refletir sobre tudo o que sempre quis na vida e sobre o que tem. Relatou que estava muito feliz com sua vida e permaneceu muito tempo em silêncio, ouvindo a fala dos demais. Laura, por sua vez, fez vários riscos com cola colorida e brilho. Contou que o desenho representava quem ela era: uma pessoa muito alegre, otimista e realizada.
Além disso, a família sempre expôs o receio quanto ao que poderia surgir durante a adolescência de Júlio, sendo que Laura, após longo período de atendimento, indicou que foi nessa fase de sua vida que começou a se distanciar de sua própria mãe. Propôs-se, em uma das sessões então, a confecção de uma imagem em tamanho real que representasse Júlio adolescente, com características e expectativas em relação a essa fase. Percebeu-se a intensa menção a aspectos negativos, como violência e drogas, mais do que a indicação de expectativas positivas quanto ao adolescer do filho.
Com o passar do tempo, foi possível trabalhar a participação da família na psicoterapia, favorecendo reflexões sobre a dinâmica estabelecida entre os membros. Porém, após cerca de dez meses de atendimento psicoterápico, houve a necessidade de troca de terapeutas, o que teve grande impacto sobre a família. A nova terapeuta foi recebida com bastante resistência, estabelecendo-se, a princípio, uma transferência negativa. Foi necessário um trabalho de elaboração da perda da primeira terapeuta e de aceitação da nova terapeuta.
No período de elaboração da troca de terapeutas, a família mostrou-se novamente bastante racionalizada, muitas vezes agressiva com a nova terapeuta – e a queixa, novamente, foi localizada em Júlio. O deslocamento da queixa depositada em Júlio para a família como um todo foi possível somente após diversos testes de sobrevivência da terapeuta (Dias, 2002) e aprofundamento nas reflexões acerca da dinâmica familiar.
De forma geral, os recursos artístico-expressivos tiveram papel importante no processo de compreensão da família. Embora os pais, inicialmente, não se apresentassem tão disponíveis para essa atividade, foram aos poucos se mostrando mais receptivos, inclusive chegando a verbalizar (por meio da fala de Laura) a percepção de que, por meio da arte, muito poderia ser notado e comunicado. Nesse sentido, com o tempo, todos os membros demonstravam esforços em compreender o que o outro havia representado graficamente, não necessitando tantas intervenções da terapeuta na exploração de tais significados.
Ao final de pouco mais de dois anos, foi possível desenvolver a capacidade da família de identificar alguns de seus conflitos, possibilitando uma via de diálogo mais aberta entre os membros. Nesse sentido, os familiares raramente referiam-se ao desempenho escolar de Júlio. O adolescente mostrava-se menos pressionado e dizia conseguir "relaxar" mais e "deixar rolar" (sic).
Com o desenrolar da psicoterapia, o casal passou a apresentar no setting terapêutico questões mais relacionadas à relação conjugal tais como, entre outros, a dificuldade de comunicação entre o casal, pouco tempo destinado a momentos íntimos do que ao caráter parental/familiar. Aliviou-se, parcialmente, a sobrecarga de expectativas lançadas sobre Júlio, reconhecendo-se que parte das queixas era decorrente da dinâmica conjugal que se transferiu para exigências em relação ao filho e, com essa percepção, a família passou a se organizar melhor no sentido de ofertar melhores condições para que todos pudessem transpor esaa adolescência, que estava apenas se iniciando.
Jorge
Jorge, 12 anos, veio para atendimento psicoterápico individual devido à solicitação da mãe, Rosane. O menino foi atendido pelo serviço-escola por dois anos, tendo passado por duas terapeutas diferentes. As principais queixas elencadas pela mãe ao solicitar o atendimento relacionavam-se ao comportamento de Jorge. Ela se queixava que o menino tinha "comportamentos de adulto" e gostaria que ele fosse mais "criança", fato que faz pensar em uma possível organização falso self (Winnicott, 1960/1983). Julgava que o menino era muito "misterioso" (sic) e apresentava alguns comportamentos considerados por ela como estranhos como desenhar pessoas mortas e querer ter armas de brinquedo. Apesar dessas preocupações e da demanda pela psicoterapia do filho, Rosane faltou, nas entrevistas iniciais com a segunda terapeuta, apontando para um pouco comprometimento em relação às necessidades emocionais do menino.
Jorge morava com os pais e tinha um irmão mais novo, Joaquim. O irmão foi atendido durante um ano por um serviço-escola e era, naquele momento, atendido em uma clínica particular. A mãe passou por sessões de orientação de pais, momento no qual foi apontado que ela e os filhos se beneficiariam, caso Rosane realizasse psicoterapia individual. Apesar de concordar com o apontamento trazido, Rosane nunca se inscreveu para o atendimento, a despeito do serviço-escola estar situado em local muito próximo de seu trabalho. Demonstrou, igualmente, dificuldades em comparecer em entrevistas posteriores com a terapeuta de Jorge, além de deixar de levá-lo ao atendimento em dias que ela própria não precisasse estar próxima à região. Pensa-se, portanto, em uma indisponibilidade da mãe tanto no que se referia ao exercício da maternidade, quanto para o próprio aproveitamento de um espaço para o cuidado de si, implicando em consequências para Jorge.
A dinâmica estabelecida na família era bastante conflitiva e, por meio dos relatos de Jorge e das entrevistas feitas com Rosane, notou-se que muitos papéis estavam confusos. A mãe, quando chamada para entrevista sobre Jorge, trouxe muitos relatos sobre Joaquim, excluindo, por diversas vezes, o adolescente em questão. Jorge sempre aparecia "apagado" em seus relatos, "desvitalizado". O pai, Manuel, raramente era mencionado na fala de Jorge. Quando o era, estava realizando atividades muito passivas ou estava ausente; por exemplo, dormindo na sala, viajando, no trabalho etc.
Ficava claro que muitas vezes Jorge assumia o papel de pai e marido nessa família. Era encarregado de disciplinar o irmão e "acalmar" a mãe quando esta se irritava com os comportamentos de Joaquim. Em uma determinada situação, Joaquim brigou com a mãe e ameaçou fugir de casa. A mãe pediu para que Jorge fosse atrás do irmão e o convencesse a retornar para casa. O adolescente foi em busca do irmão e conseguiu levá-lo de volta. Quando retornou para casa, a mãe estava chorando e Jorge a consolou. Nenhuma menção ao pai é feita. Parecia haver mais uma ausência do que uma presença do pai, sendo mais compreensíveis as dificuldades de Rosane em se apresentar como uma mãe suficientemente boa, uma vez que o ambiente em torno dela também era falho.
Dias (2003), ao retomar aspectos da obra de Winnicott, discorre sobre a importância do pai em variados momentos do desenvolvimento. No início, ele protege e ampara a mãe para que ela possa se identificar integralmente com seu bebê. Torna-se, posteriormente, "o primeiro vislumbre de inteireza e totalidade pessoal, e, deste modo, é usado como padrão de sua própria integração" (Dias, 2003, p. 140). Por outro lado, na etapa do concernimento, ao se dar conta das consequências da impulsividade instintual, a criança pode "contar com o pai – sua presença, firmeza, capacidade de intervir e pôr limites – para proteger a mãe de seus próprios impulsos" (Dias, 2003, p. 141). Contudo, quando isso não ocorre, observa-se uma perda da liberdade da criança em se movimentar, uma inibição da instintualidade, com um autocontrole que adormece um lado mais espontâneo.
Esta compreensão combina com a percepção de que, durante as sessões, Jorge também se apresentava como uma criança "desvitalizada" e pouco cativante. O adolescente interagia muito pouco e os sentimentos contratransferenciais da terapeuta eram relacionados ao tédio. Ele mantinha silêncios prolongados e frequentemente ficava jogando no celular, respondendo pontualmente às colocações da terapeuta ou simplesmente as ignorando.
Tal tipo de comportamento faz novamente pensar na importância da sobrevivência da terapeuta (Dias, 2002), possibilitando uma relação de confiabilidade com esta que favoreça outro tipo de posicionamento na sessão, mais espontâneo e criativo. Isso pode ser verdade no caso de Jorge, especialmente ponderando tratar-se de um atendimento empreendido em um serviço-escola, que pressupõe uma vinculação do terapeuta por tempo limitado após o qual frequentemente este se desliga do atendimento, como o ocorrido com Jorge no ano anterior.
O que se observa, no entanto, é que uma das principais atividades que Jorge realizava era jogar jogos eletrônicos. Certa vez, o menino disse que quando Joaquim o provocava ele ia para o computador ou ficava jogando no celular para não se irritar. Em outra ocasião, contou sobre o falecimento de sua avó materna. Essa figura era muito importante em sua infância visto que o adolescente permanecia a maior parte de seu dia junto dela. Quando a avó faleceu, Jorge relatou que a mãe passou a ensiná-lo a usar o computador e o estimulava a jogar. O menino falava sobre a percepção de que a mãe fazia isso para que ele não pensasse em sua avó.
O falecimento da avó pareceu ser um marco importante na dinâmica dessa família. Com esse acontecimento, Jorge passou a ficar grande parte de seu tempo sozinho com o irmão e assumiu algumas responsabilidades como ir ao mercado próximo a sua casa comprar lanches. Na época do falecimento da avó materna, Jorge tinha sete anos e Joaquim, três anos. O menino passou a ser responsável pelo irmão quando os pais estavam ausentes.
Por meio do atendimento, Jorge passou a interagir mais em sessão. Mantinha-se trazendo poucos conteúdos pessoais e com dificuldades em demonstrar suas emoções, porém conseguia manter diálogos mais longos e fazer algumas reflexões como a apresentada anteriormente. Nesse sentido, a despeito do setting ser provido de recursos artístico-expressivos, Jorge raramente fazia uso dos mesmos. Em uma ocasião, quis usar tinta guache e papel. Após algumas pinceladas no papel, questionou se poderia pintar as paredes da sala de atendimento. A terapeuta não impediu tal atitude, deixando-o livre para agir como preferisse. Apesar disso, Jorge não pintou as paredes, apenas ameaçava encostar o pincel e ficava olhando a reação da terapeuta. Essa passagem significativa de um movimento verdadeiro e falso self ocorreu em uma sessão nos últimos meses de atendimento. Talvez indicasse um movimento de aproximação com a terapeuta, ou, pelo menos, uma tentativa de testar o setting. Embora houvesse interesse do garoto em permanecer em terapia em um espaço particular, a mãe, em sessão de encerramento, apontou não ter tal disponibilidade financeira, apesar de o filho mais novo estar inserido em um espaço como tal.
Apontamentos gerais
Como pôde ser observado, os casos apresentados guardam semelhanças e diferenças entre si. O olhar atento para essas semelhanças e diferenças é importante quando se reflete acerca dos sintomas dos adolescentes e seus recursos internos e externos.
Quando se pensa em recursos internos, observa-se que Júlio apresentava capacidades cognitivas que lhe possibilitavam se destacar em alguns contextos e fazer uso dessa competência para compensar outras dificuldades, como as advindas do campo emocional. Júlio conseguia enriquecer um diálogo e fazer-se presente. Jorge, por outro lado, apresentava-se muito mais como um garoto que pouco chamava atenção, ficando em segundo lugar em diversas atividades. Ambos apresentavam muitas questões relacionadas à sobrecarga emocional. Júlio conseguia simbolizá-las e verbalizá-las quando lhe era disponibilizado o espaço psicoterápico. Jorge, por outro lado, usava o setting terapêutico de forma mais primitiva, permeada pelo silêncio, pelo não simbolizado. Ele transmitia seus conteúdos por meio do não-dizer, do ignorar, representando, talvez, a forma como se sentia.
Quando se atenta aos recursos externos, nota-se que ambas as famílias exerciam grande influência no desenvolvimento emocional dos adolescentes, sendo, em diversos momentos, propiciadoras de intensos conflitos e angústias. Porém, diferentemente da família de Jorge, a família de Júlio se comprometia com a psicoterapia, entendendo-se enferma e disponibilizando-se, mesmo que com resistências, a estar nesse local de exposição de suas vulnerabilidades e de reflexão de seus conflitos. A família de Jorge, por outro lado, resistia ao processo terapêutico, localizava seus conflitos em ambos os filhos, negando sua enfermidade e contribuição para os sintomas deles. Quanto a esse campo, Winnicott (1975) indica que o desenvolvimento depende do ambiente e, quando a família possui
disponibilidade para ser usada, ela o é em grande escala, mas se não mais se encontra disponível para esse fim, ou para ser posta de lado (uso negativo), torna-se necessária, então, a existência de pequenas unidades sociais, para conter o processo de crescimento do adolescente (Winnicott, 1975, p. 194).
A importância da família está não apenas nos primórdios do viver, mas também na passagem pelo processo de adolescer. Se a família não se organiza como esse ambiente facilitador, o jovem pode buscar um apoio em seus pares, fato que não ocorre sem consequências. Estas são claramente observadas em Jorge, seja nas situações que relatava sobre sua vida, seja na maneira como se posicionava no setting terapêutico. Se por um lado houve uma procura pelo atendimento, por outro este se deu de forma pouco comprometida, com dificuldades de Rosane em fazer-se presente neste, repassando para a terapeuta o papel de cuidar de seu filho. Jorge acabava tendo que se mostrar mais maduro do que efetivamente era, "mais adulto", sem um reconhecimento de que o crescimento leva tempo, sem possibilidade concreta de continuar a ser criança para posteriormente adolescer. Os comportamentos problemas observados pela mãe eram, na realidade, um reflexo do conflito familiar que estava estabelecido, com Jorge tendo que assumir funções para as quais não estava preparado. Tinha-se uma mãe e um pai que não conseguiam se envolver suficientemente com o menino a ponto de permitir que ele fosse autêntico e verdadeiro, enquanto o irmão ficava como recebedor de toda a atenção da família.
De acordo com Winnicott (1975, p. 202),
enquanto o crescimento se encontra em progresso, a responsabilidade tem de ser assumida pelas figuras parentais. Se essas figuras abdicam, então os adolescentes têm de passar para uma falsa maturidade e perder sua maior vantagem: a liberdade de ter ideias e de agir segundo o impulso.
Considerações finais
Pensa-se que, no contexto clínico, é importante o terapeuta refletir sobre as indicações terapêuticas de cada caso. Nas situações relatadas, acredita-se que a psicoterapia familiar pôde ajudar a família de Júlio a se organizar de outra maneira, mais próxima às necessidades do filho. Nesse sentido, acredita-se que um apoio mais extenso à família de Jorge como um todo seria interessante. Seu processo terapêutico deveria ser acompanhado de uma intervenção mais constante no campo da orientação de pais, da psicoterapia de sua mãe ou, até mesmo, de uma psicoterapia familiar, indicações não acatadas pela família.
Ambos os garotos estão apenas iniciando a adolescência, tendo um longo percurso, permeado pela aquisição de uma força física real e um desenvolvimento da sexualidade que tornam passível de realização o que antes estava no campo da fantasia (Winnicott, 1975). Tudo isso se soma a um quadro de imaturidade, marcado por estratégias próprias de comunicação e momentos de isolamento (Braga, 2012), com alternância entre rebeldia e dependência. Para que tudo corra bem, é importante, mais uma vez, que a família se envolva e se disponha a acolher os adolescentes nessa fase tão delicada, intempestiva e surpreendente. Como exposto por Kupermann (2007), objetiva-se o desenvolvimento da "capacidade de estar só", em posição mais autônoma e menos ligada às projeções dos pais; além disso, que possam sair de uma posição de dependência em relação à família, com posterior possibilidade de efetiva entrada na vida adulta (Ávila, 2011).
Nos casos descritos, espera-se que a psicoterapia, empreendida a partir de um olhar mais amplo para o grupo familiar, seja por meio da psicoterapia familiar (Sei & Zanetti, 2014), seja pela orientação de pais que busca acompanhar a psicoterapia do adolescente (Hiluey, 2010), desempenhe um papel de promoção da saúde mental desses jovens. Almeja-se dar uma contribuição para um desenvolvimento pautado no verdadeiro self, com um viver carregado de sentidos e espontaneidade deles próprios e, se possível, também de suas famílias. Aos profissionais que atuam na clínica psicanalítica com adolescentes, deseja-se que estes possam apresentar uma escuta sensível às comunicações do jovem em atendimento, cientes da importância da família nesse processo.
Referências
Aberastury, A., & Knobel, M. (1981). Adolescência normal. Porto Alegre: Artes Médicas. [ Links ]
Arenales-Loli, M. S., Abrão, J. L. F., Parré, R. R., & Tardivo, L. S. L. P. C. (2013). O jogo como mediador na entrevista: um novo lugar no processo psicoterápico com adolescentes. Boletim – Academia Paulista de Psicologia, 33(2), 405-426.
Ávila, L. A. (2011). Adolescência sem fim. Vínculo, 8(1), 40-45. [ Links ]
Braga, C. M. L. (2012). Comunicação e isolamento na adolescência: compreendendo o uso de blogs pelos jovens na atualidade. São Paulo: Zagodoni. [ Links ]
Brasil. (1990). Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Recuperado em 04 set. 2014 de <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm> [ Links ].
Dias, E. O. (2002). Da sobrevivência do analista. Natureza humana, 4(2), 341-362. [ Links ]
Dias, E. O. (2003). A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Eisenstein, E. (2005). Adolescência: definições, conceitos e critérios. Adolescência & Saúde, 2(2), 6-7. [ Links ]
Endo, P. C. (2009). O adolescente: ilustre figura do contemporâneo. Estilos da Clínica, 14(27), 82-91. [ Links ]
Felice, E. M. (2003). O lugar do brincar na psicanálise de crianças. Psicologia: teoria e prática, 5(1), 71-79. [ Links ]
Franco, R. S., & Sei, M. B. (2015). O uso do genograma na psicoterapia psicanalítica de casal e família. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 8(2), 399-414. [ Links ]
Fulgencio, L. (2008). O brincar como modelo do método de tratamento psicanalítico. Revista Brasileira de Psicanálise, 42(1), 123-136. [ Links ]
Furtado, H. P. P., & Braga, C. M. L. (2011). Programa escola de pais: uma proposta de intervenção junto a pais de adolescentes institucionalizados. Serviço Social Revista, 14(1), 145-172. [ Links ]
Gomes, I. C., & Levy, L. (2009). Psicanálise de família e casal: principais referenciais teóricos e perspectivas brasileiras. Aletheia, 29, 151-160. [ Links ]
Hiluey, A. A. G. S. (2010). A formação para orientação de pais: um diálogo interdisciplinar. Vínculo, 7(2), 2-8. [ Links ]
Jordão, A. B. (2008). Vínculos familiares na adolescência: nuances e vicissitudes na clínica psicanalítica com adolescentes. Aletheia, 27, 157-172. [ Links ]
Jover, E. R., & Nunes, M. L. T. (2005). Construção histórica da noção de adolescência e sua redefinição na clínica psicanalítica. Imaginário, 11(11), 15-33. [ Links ]
Kupermann, D. (2007). Sobre o final da análise com crianças e adolescentes. Estilos da Clínica, 12(23), 182-197. [ Links ]
Liebmann, M. (2000). Exercícios de arte para grupos: um manual de temas, jogos e exercícios. São Paulo: Summus. [ Links ]
Magalhães, A. S., & Féres-Carneiro, T. (2004). Transmissão psíquico-geracional na contemporaneidade. Psicologia em Revista, 10(16), 243-255. [ Links ]
Melo, C. V., Magalhães, A. S., & Féres-Carneiro, T. (2014). Family secrets: a therapeutic resource as countertransference. Estilos da Clínica, 19(1), 163-182. [ Links ]
Moretto, C. C. (2012). Experiências com um grupo de adolescentes: um estudo psicanalítico. (Tese de Doutorado em Psicologia. Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Centro de Ciências da Vida, Pós-Graduação em Psicologia. Campinas, PUC-Campinas, SP).
Nicoletti, M., Gonzaga, A. P., Modesto, S. E. F., & Cobelo, A. W. (2010). Grupo psicoeducativo multifamiliar no tratamento dos transtornos alimentares na adolescência. Psicologia em estudo, 15(1), 217-223. [ Links ]
Polity, E. (2002). Algumas considerações sobre o espaço potencial. Psicologia: teoria e prática, 4(1), 21-28. [ Links ]
Santos, L. F., Santos, M. A., & Oliveira, E. A. (2008). A escuta na psicoterapia de adolescentes: as diferentes vozes do silêncio. SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas, 4(2), 1-15. [ Links ]
Santos, M. A. D., & Pratta, E. M. M. (2012). Adolescência e uso de drogas à luz da psicanálise: sofrimento e êxtase na passagem. Tempo psicanalítico, 44(1), 167-182. [ Links ]
Schoen-Ferreira, T. H., Silva, D. A., Farias, M. A., & Silvares, E. F. D. M. (2002). Perfil e principais queixas dos clientes encaminhados ao Centro de Atendimento e Apoio Psicológico ao Adolescente (CAAA)-UNIFESP/EPM. Psicologia em estudo, 7(2), 73-82. [ Links ]
Schoen-Ferreira, T. H., Aznar-Farias, M., & Silvares, E. D. M. (2010). Adolescência através dos séculos. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 26(2), 227-234. [ Links ]
Sei, M. B. (2011). Arteterapia e psicanálise. São Paulo: Zagodoni. [ Links ]
Sei, M. B., & Zanetti, S. A. S. (2014). O projeto de extensão enquanto estratégia na formação em psicologia: uma experiência no atendimento a família. Espaço para a Saúde (Online), 15(supl.1), 118-124. [ Links ]
Sei, M. B., Oliveira, D. C., & Braga, C. M. L. (2014). O jogo da escrita e a construção de estratégias para o atendimento psicanalítico de adolescentes. Encontro: revista de psicologia, 17(2), 1-16. [ Links ]
Souza, B. M., & Sei, M. M. (2014). A localização da queixa familiar em um paciente identificado. Revista Conexão UEPG, 10(1), 102-111. [ Links ]
Souza, C. G. P., Sei, M. B., & Arruda, S. L. S. (2010). Reflexões sobre a relação mãe-filho e as doenças psicossomáticas: um estudo teórico-clínico sobre psoríase infantil. Boletim de Psicologia, 60(132), 45-59. [ Links ]
Telles, J. C. C. P., Sei, M. B., & Arruda, S. L. S. (2010). Comunicação silenciosa mãe-bebê na visão winnicottiana: reflexões teórico-clínicas. Aletheia (ULBRA), 33, 109-122. [ Links ]
Turato, E. R. (2005). Métodos qualitativos e quantitativos na área da saúde: definições, diferenças e seus objetos de pesquisa. Revista de Saúde Pública, 39(3), 507-514. [ Links ]
Verceze, F. A., Sei, M. B., & Braga, C. M. L. (2013). A demanda por psicoterapia na adolescência: a visão dos pais e dos filhos. Revista de Psicologia da UNESP, 12(2), 92-102. [ Links ]
Verzignasse, V. C. P., & Térzis, A. (2008). Acting out em um grupo de adolescentes. Vínculo, 5(2), 129-149. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1983). Distorção do ego em termos de falso e verdadeiro "self". In D. W. Winnicott, O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional (p. 128-139). Porto Alegre: Artmed. (Original publicado em 1960) [ Links ]
Winnicott, D. W. (1984). Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Zanetti, S. A. S. (2013). O uso terapêutico da mediação: um entendimento psicanalítico a respeito da produção artística. Revista de Arteterapia da AATESP, 4(2), 48-55. [ Links ]
Zimerman, D. E. (2000). Fundamentos básicos das grupoterapias. Porto Alegre: Artmed. [ Links ]
Zuanazzi, A. C., & Sei, M. B. (2014). Psicoterapia familiar psicanalítica: reflexões sobre os fenômenos transferenciais e contratransferenciais em um serviço-escola de psicologia. Vínculo, 11(1), 16-24. [ Links ]
Recebido em 27 de novembro de 2014
Aceito para publicação em 02 de junho de 2016