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Psicologia Clínica
versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.29 no.2 Rio de Janeiro 2017
SEÇÃO TEMÁTICA
Medeia: o amor que devasta
Medeia: devastating love
Medeia: el amor que devasta
Valesca do Rosário CampistaI; Heloisa Fernandes CaldasII
IDocente da Graduação em Psicologia da Universidade Estácio de Sá, Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil
IIDocente do Programa de Pesquisa e Clínica em Psicanálise da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil
RESUMO
O feminino é um continente negro, o grande enigma que ronda a psicanálise, seja pelo viés fálico como Freud (1933/1990) formulou no curso de sua obra, seja pelo que extrapola o falo, apontando para um mais além, como demonstrou Lacan (1973/1985) em seu ensino. A proposta deste trabalho consiste em refletir sobre questões que concernem ao feminino e ao narcisismo estabelecendo conexões com o amor e a posição do sujeito feminino diante da perda do objeto amoroso. No curso do artigo, vamos recorrer à literatura, mais especificamente à tragédia grega de Eurípedes, Medeia, como ponto nodal do feminino uma vez que a heroína do teatro trágico retrata uma figura ultrajada, próxima de tantas mulheres da atualidade cuja voracidade pulsional e de gozo transborda os limites do falo. Com este artigo, esperamos contribuir para reflexões acerca da posição feminina não só na literatura grega, mas também acerca da devastação do feminino nos tempos atuais.
Palavras-chave: narcisismo; feminino; amor; devastação; gozo.
ABSTRACT
The feminine is the black continent, the great enigma surrounding psychoanalysis, either by the phallic path as Freud (1933/1990) formulated along his work, or by that which extrapolates the phallus, pointing beyond, as Lacan (1973/1985) demonstrated in his teaching. The aim of this paper is to reflect on issues that concern the feminine and the narcissism by establishing connections between love and the position of the female subject at the loss of the love object. Along the article, we turn to literature, more specifically, to Euripides’ Greek tragedy Medea, as a nodal point of the feminine since the heroine of the tragic drama portrays a reviled figure, close to so many current women whose drive-oriented voracity and jouissance overflows the boundaries of the phallus. With this article, we hope to contribute to reflections on the female position not only in Greek literature, but also within the contemporary devastation of the feminine.
Keywords: narcissism; feminine; love; devastation; jouissance.
RESUMEN
El femenino es el continente negro, un grande enigma que ronda a psicoanálisis, sea por el lado fálico como Freud (1933/1990) formuló en el curso de su obra, sea por el que extrapola el falo, apuntando para un más allá, como lo demostró Lacan (1973/1985) en sus trabajos. La propuesta de este trabajo consiste en reflexionar, sobre cuestiones que conciernen al femenino y al narcicismo estableciendo conexiones con el amor y la posición del sujeto femenino delante de la pérdida del objeto amoroso. En el curso del artículo, vamos recorrer a la literatura, mas específicamente, a tragedia griega de Eurípides, Medea, como punto fundamental del femenino una vez que la heroína del teatro trágico retrata una figura ultrajada, próxima de tantas mujeres de la actualidad cuya veracidad pulsional y de gozo transborda los límites del falo. Con ese artículo esperamos contribuir para reflexiones acerca de la posición femenina no solo en la literatura griega, pero también con la devastación del femenino en los tiempos actuales.
Palabras clave: narcisismo; femenino; amor; devastación; gozo.
Introdução
Para os mortais o amor é um grande mal.
Medeia (Oliveira, 2006, p. 61. Verso: 330)
Na aurora do século XX, as mulheres de Viena apresentaram a Freud a histeria, deixando-o estupefato diante das interrogações em torno da sexualidade feminina, um tema instigante que percorre toda a sua obra. Uma analisante, e também amiga de Freud, a princesa Marie Bonaparte, lança a ele uma pergunta que até os dias atuais permanece sem resposta: "O que quer a mulher?" (Bertin, 1989, p. 250). Em face ao mistério que envolve as mulheres, o pai da psicanálise indica – àqueles que desejem saber mais sobre a alma feminina – consultar a experiência das mulheres ou os poetas que, com sua criatividade artística, se antecipam à psicanálise (Freud, 1933/1990).
Da Grécia antiga à atualidade, o feminino encontra-se em torno de dois avatares: a destruição (Thanatos) e o fomento à vida (Eros). No curso da história, as mulheres têm sido consideradas como enigmáticas, uma encarnação do diabo, protagonizando a perdição do homem. Mulheres como Eva e Dalila figuram na Bíblia como representações do feminino e a derrocada do homem provocada por elas é o ponto basilar em torno do qual elas se sustentam.
Na atualidade, a mulher ainda se mantém enlaçada ao enigma, pois ela está sempre envolvida com as questões amorosas; ela ama, mas amar não é seu ponto forte e sim o desejo de ser amada. Com os aportes da teoria psicanalítica, o amor pode ser considerado como uma ilusão, um apelo às máscaras, uma suplência que possa recobrir a falta. Na mulher, há sempre uma demanda de amor dirigida ao Outro, uma demanda que visa ao infinito e que pode ter consequências catastróficas quando advém a desilusão. Diante da perda do objeto amado, não raro a imprensa falada e escrita (Santiago, 2013), assim como a clínica, dão notícias de mulheres que cometem um ato desatinado como, por exemplo, matar-se ou matar os próprios filhos.
À luz da recomendação freudiana para consultar os poetas, a proposta deste artigo consiste em discutir questões que concernem ao feminino articuladas à tragédia grega Medeia, de Eurípedes. A escolha de uma tragédia grega deve-se, sobretudo, ao fato de que a psicanálise apresenta uma grande afinidade com a perspectiva do mito na tragédia, posto que, em ambas, há o acolhimento do conflito que preside, sobretudo, um modo específico de abordar a condição humana. Nosso propósito é discutir a posição feminina quando uma mulher como Medeia experimenta o sentimento de ultraje, encenando o transbordamento da pulsão ao situar-se nos confins do falo.
Inicialmente, apresentamos uma figura do feminino na literatura da Grécia antiga, Medeia, do poeta trágico Eurípedes; uma mulher que, ao se ver devastada, anuncia que o ódio decorre de um bem querer e que o amor encontra-se nele imiscuído. A seguir abordamos o narcisismo, o amor, a perda do objeto amoroso e o ultraje experimentado por Medeia. As considerações sobre o feminino ganham a cena com as construções teóricas de Freud (1933/1990) e Lacan (1973/1985), permitindo-nos estabelecer conexões com a posição amorosa de Medeia e seus efeitos devastadores mediante o real da castração. Para finalizar, trazemos o amor desatinado de Medeia desvelado no infanticídio, um ato que revela ser a morte necessária, não significando a mesma impossibilidade, nem o fim da vida, mas o seu coroamento.
Medeia na mitologia
Ficção, criação do artista, as obras literárias iluminam histórias no palco da vida ao trazer à cena uma concepção, um pensamento em torno da realidade. Em sua quimera, Eurípedes não cria Medeia, ela se origina num antigo ciclo de mitos dos quais permaneceram apenas fragmentos. Nas tradições helênicas, Medeia na mitologia é uma mulher importante e poderosa, dotada de inteligência superior e conhecedora da arte de curar e de rejuvenescer através do caldeirão mágico (Brandão, 2000).
Eurípedes (431 a.C.) adapta o mito de Medeia ao seu tempo, ao que desejava transmitir acerca da posição feminina na sociedade grega. Em sua concepção, ela não é uma deusa, mas uma mulher poderosa que se enamora de Jasão, líder dos argonautas. Apaixonada, ela abandona o pai e a pátria e para fugir com Jasão comete uma sequência de crimes que tem início com o assassinato e esquartejamento de seu irmão Apsirto durante a fuga da sua terra natal, a Cólquida. As partes do corpo do irmão foram jogadas uma a uma pelo caminho percorrido na fuga numa tentativa tresloucada de distrair seu pai e evitar que ele os encontrasse. Apesar de ter ficado sem entender o ato de Medeia, Jasão não demonstra surpresa, nem mesmo julga seus crimes, pois estes lhe são convenientes. Deixa-se levar por uma cegueira e pela incapacidade de perceber que o seu poder de macho não é reconhecido por Medeia. Nesse sentido, ela jamais irá se submeter aos seus ditames.
Ao chegar à Grécia com Jasão, Medeia é tratada como estrangeira, não sendo bem recebida pelos gregos. O casal vive feliz à revelia de todos, coroado com o nascimento de dois filhos, até que Jasão se interessa por Creuza, filha do rei de Corinto – Creonte –, que resolve casá-la com Jasão. Os castelos de Medeia caem por terra. A escolha de Jasão por uma nova mulher faz ruir o seu domínio, representando para ela um ultraje, uma invasão do Outro, que pode fazê-la cair como um nada, um resto. Entretanto, ela não despenca. Apoiada no ódio e tomada pela ira, Medeia passa a arquitetar e tramar sua vingança.
Repudiada por Jasão e expulsa da cidade, Medeia, com suas poções mágicas e fatais, mata Creonte, Creuza e incendeia o palácio real. Para que o marido sofresse de forma avassaladora e inigualável como ela própria estava sofrendo, decide também aniquilar os filhos que tivera com ele para em seguida fugir ao encontro de Egeu no carro do sol, puxado por duas serpentes aladas, presente do seu avô, Hélios, rei do sol.
O amor nas trilhas do narcisismo
Os poetas cantam em verso e prosa o amor, seus encantos, decepções, encontros e desencontros. Na criação de Eurípedes, por exemplo, Medeia é o protótipo do amor essencialmente narcísico, no qual o eu e o outro se somam, se complementam. O objeto amado é constituído para ela como um prolongamento do narcisismo, sendo o objeto do desejo um instrumento narcísico. O amor em Medeia se dá através do outro, em um movimento que complementa o eu e o objeto, carregando em seu âmago a destruição uma vez que a união carrega toda a verdade especular do sujeito. Mas o que nos diz Freud sobre o narcisismo e suas conexões com o feminino?
Seguindo a trilha da poesia e da literatura, Freud (1914/1990) aborda o feminino em sua conexão com o mito de Narciso para tratar de forma particular uma manifestação libidinal no desenvolvimento sexual humano, a saber, a escolha objetal apoiada nos laços estabelecidos com os primeiros objetos de referência para o infans.
O laço afetivo com um objeto amoroso se dá pela via da escolha objetal segundo dois modelos: 1) anaclítico – tem como referência a pessoa que cuida do infans (a mulher que alimenta e o homem que protege); 2) narcísico – centrado no próprio eu, o amor ao outro como objeto se dá a partir de si próprio (Freud, 1914/1996, p. 104). Interrogamos como se processa a escolha objetal no caso específico das mulheres e notamos que Freud deixa claro que a escolha amorosa narcisista recai, com certa frequência, sobre o sexo feminino. Nas palavras de Freud:
[...] As mulheres, especialmente se forem belas ao crescerem, desenvolvem certo autocontentamento que as compensa pelas restrições sociais que lhes são impostas em sua escolha objetal. Rigorosamente falando, tais mulheres amam a si mesmas, com uma intensidade comparável a do amor do homem por elas. Sua necessidade não se acha na direção de amar, mas de serem amadas; e o homem que preencher essa condição cairá em suas boas graças (Freud, 1914/1990, p. 105).
Entretanto, o grande encantamento que a mulher provoca no homem também tem o seu revés, em grande parte, devido "a insatisfação daquele que ama, de suas dúvidas quanto ao amor da mulher, de suas queixas quanto à natureza enigmática da mulher" (Freud, 1914/1990, p. 106), deixando assim em suspensão a natureza da alma feminina.
"O amor demanda o amor" (Lacan, 1973/1985, p. 12) e é exatamente por isso que jamais ele atinge a plenitude; amar é desejar sempre, mais e mais, posto que visa ao Outro em busca de uma garantia que jamais será encontrada. Entretanto, ele pode ser significado no outro da relação especular. Chegamos aqui ao ponto em que nos interessa particularmente refletir, a saber, a posição feminina em relação à escolha amorosa e à perda do objeto de amor que iremos tratar mais adiante.
Apesar de parecer ser o mais pueril dos sentimentos, o amor não é tão fácil de ser experimentado. Na obra freudiana, encontramos um recuo diante do mandamento "Amar ao próximo como a ti mesmo". Freud (1930/1990, p. 130) se dá conta da maldade profunda que habita o próximo; afinal, se ela está no outro, também está em si, o que é mais íntimo é ao mesmo tempo o mais estranho e, portanto, entendemos que se encontra fora da cadeia significante, próximo do que Lacan formulou como real.
Diante do reconhecimento da agressividade e do ódio na relação com o outro, o amor surge como uma via de acesso à felicidade, entretanto ele faz com que o sujeito se torne dependente, de forma perigosa, do mundo externo, visto que passa a depender do objeto amado e a perda do objeto pode culminar em um sofrimento intenso. Eis aí o paradoxo do amor: ao mesmo tempo em que narcísico, ele remete ao investimento no outro e, consequentemente, um desfecho fora do programado pode surgir fazendo ruir o sonho ilusório de completude. No amor, encontramos uma supervalorização do objeto decorrente da busca por uma completude que jamais será alcançada. O tão sonhado encontro com o objeto de amor é, na verdade, um desencontro, posto que o objeto por ser idealizado não corresponde às expectativas acerca do mesmo. É essa supervalorização que origina a paixão (pathos) e faz aparecer o amor em seu caráter de desmedido.
Em um primeiro momento de seu ensino, Lacan situa o amor, assim como Freud, pelo viés do narcisismo, como uma máscara, um engano narcísico que encobre a sua dimensão faltosa. Já no final de seu ensino, nos idos dos anos 70, Lacan se distancia da versão imaginária e propõe uma aproximação entre o amor e o real por uma via que ele denomina de semblante. É o amor que abre o acesso à pulsão e ao gozo e, "por isso dizemos que o amor se dirige ao real. Em vez de trapaça, é uma via que permite justamente, por passar pelo semblante, dar ao gozo um destino cultural, sustentar com ele uma parceria que permita o real do sexo" (Caldas, 2008, p. 12).
Na perspectiva de Lacan, o amor é um motor que faz suplência à inexistência da relação sexual (Lacan, 1973/1985) e, por esse viés, esconde o seu vazio estrutural, dando sentido ao mito popular que atribui aos amantes eternidade e paraíso. As relações amorosas denotam uma falta de harmonia entre sujeito e objeto, revelando um esforço precário do amor para fazer frente ao furo, à falta. Ao articular o amor à pulsão de morte, encontramos na posição amorosa um vazio que a habita e não a presença de um objeto, o que faz surgir o ódio e a face mortífera do amor. Nesse sentido, o amor é vão; ele é levado pelos enganos e desenganos entre a vida e a morte ao seduzir os incautos. Destarte, o amor mantém ou apaga a falta viva do desejo, cingindo na escolha de objeto uma idealização a fim de recuperar o narcisismo outrora perdido.
Amor e morte, portanto, estão enlaçados de forma amalgâmica, o que levou Lacan (1973/1985, p. 122) a produzir o neologismo "amódio", a saber, uma forma de enamoramento que decorre das duas polaridades: o amor encobrindo e o ódio desvelando a falta; desse modo, "ao perder o objeto amado, o sujeito sofre não tanto pela perda do objeto, mas pelo fato de ter que vir a se defrontar – novamente – com a falta originária do objeto, que era tão prazerosamente escamoteada pelo objeto amoroso" (Coutinho-Jorge, 2010, p. 179).
Estar preparado para a vida pressupõe enfrentar a morte. Nesse sentido, embrenhar-se no amor implica necessariamente que o sujeito se prepare para lidar com o ódio, um destino que não comporta passividade. O trágico com aura humana, assim é a Medeia de Eurípedes. Uma representante do amor ferido, do amódio. Ela revela as ambiguidades e o desejo de uma face humana à luz dos deuses, mulher capaz de sacrificar tudo que tem – sua pátria e sua família – em nome de uma paixão desmesurada, recuperar a dignidade perdida, o que ela só irá encontrar quando lançar sobre o objeto amado, "seu homem", toda a sua hostilidade. Representante do feminino na Atenas do século V, Medeia enaltece o amor pelo viés do ódio, esgarçando o sentido e fazendo surgir o buraco do real, no qual encontramos o que há de intolerável e insuperável na condição feminina.
As mulheres amam o amor
Na obra freudiana, as questões concernentes à mulher e à feminilidade são mantidas pelo viés da inveja do pênis, como uma condição necessária para que a menina possa entrar na triangulação edipiana e iniciar, a partir daí, uma longa trilha com vicissitudes pós-edipianas em direção à feminilidade. O complexo de castração é apontado por Freud como o grande diferenciador entre masculino e feminino e é a entrada no Édipo, assim como a inveja do pênis, que denota o cerne da feminilidade na medida em que propicia uma junção da castração ao desejo, como já foi aqui apontado.
Em Freud, encontramos dois momentos teóricos que tomamos como balizas para pensar a feminilidade pela via de uma relação estreita entre a mulher e a morte. Em 1913, Freud recorre ao Mercador de Veneza, de Shakespeare, para elucidar a sua hipótese de que destino e morte estão atados e de que quando um homem escolhe uma dentre três mulheres – a que dá à luz, a companheira, a que destrói –, a escolha recaí sobre a terceira, que nada mais é do que a representação da morte. Freud destaca a mulher como Deusa da morte, afirmando não se tratar de uma figura de terror, mas, sim, da mais bela e desejável das mulheres, pois "superar a morte é o triunfo da realização do desejo" (Freud, 1913/1990, p. 377).
Um segundo momento em que associa a mulher à morte é no texto "Cabeça de Medusa" quando Freud (1940/1990) retoma uma imagem que revela, sobretudo, horror e repúdio, a de uma mulher decapitada cujos cabelos aparecem sob a forma de serpente. O que o autor procura evidenciar é a representação da castração materna, a partir da qual a menina vai poder reconhecer a sua própria castração, o que lhe impõe um trabalho em direção à feminilidade.
Diante do reconhecimento de que a castração opera nos dois sexos, Freud (1923/1990) elabora o conceito de falo no campo psicanalítico como uma referência única para a constituição do psiquismo e, dessa forma, no caso das mulheres, à feminilidade só se acede a partir de uma incerteza e não como decorrente de um fato que irá se concretizar. Como Campista e Caldas (2013) comentam, na obra de Freud a mulher está, sobretudo, do lado da falta-a-ter e é necessário que ela se confronte com a castração, o que lhe abre três vias possíveis, sendo que em todas o que está em jogo é o viés fálico – reivindicação viril, pelo protesto de masculinidade ou maternidade –, uma representação substitutiva do falo perdido.
As mais intensas frustrações das mulheres podem ser localizadas, para Freud, na fase fálica. A relação amorosa com a mãe – vivida de forma intensa na fase pré-edipiana – deve ser diluída e abrir vias para os novos investimentos libidinais, entretanto há uma forte corrente agressiva paralelamente à intensidade amorosa e, assim, "quanto mais profundamente uma criança ama o seu objeto, mas sensível se torna aos seus desapontamentos e frustrações decorrentes desse objeto" (Freud, 1933/1990, p. 153); assim, as mulheres demandam exclusividade e não toleram compartilhar o objeto amado.
Nas mulheres, mais especificamente, a perda de objeto parece ter permanecido de uma forma mais efetiva uma vez que não se trata de perder o objeto em si e sim de perder o seu amor. O efeito da perda pode tornar-se uma catástrofe caso a dimensão da falta não seja tomada na perspectiva simbólica. Nesse sentido, Freud conclui que há um forte elo entre histeria e feminilidade, afinal o amor pode ter para uma mulher o efeito de castração, apontando em última instância para a sua dimensão fálica. É em relação ao falo que é possível para Freud (1933/1990) pensar o lugar do amor para uma mulher que deseja, ama e goza.
"As mulheres exprimem muito bem o real" (Lacan 1974/2003, p. 24), o que nos permite afirmar que elas estão mais conectadas com o insaciável do amor do que com o desejo. Nesse sentido, a hostilidade aparece como a outra face do amor, de tal modo que o gozo não se limita pela mediação fálica, ele a ultrapassa fazendo aparecer sua versão voraz. A voracidade de Medeia a impulsiona ao crime e interrogamos as possíveis relações entre a lei, o gozo e o Outro. Consideramos neste artigo que os crimes da heroína de Eurípedes estão referidos a um impasse entre esses três elementos, uma vez que a lei que causa o desejo provém do Outro, consente com ela e indica a instauração de um sujeito do inconsciente. É a exigência de gozo que empurra ao ato criminoso, revelando uma falha da lei em passar o gozo para o inconsciente, isto é, em operar com a satisfação por meio do recalcamento. Medeia é, portanto, empurrada para uma satisfação direta, que escapa aos circuitos do desejo, da simbolização e da castração como falta. A heroína da tragédia grega é movida por uma fúria sanguinária e uma paixão desmesurada em que ser o objeto de gozo de um homem atualiza a perda de uma libra de carne, lançando-a no limite do intolerável. O fato de uma mulher amar mais do que ser amada revela a sua posição frente ao falo.
As fórmulas da sexuação propostas por Lacan (1973/1985) em um tempo mais avançado de seu ensino, na verdade se apresentam como uma retomada, uma nova leitura do Édipo e do primado fálico em Freud. O que Lacan faz é propor a existência de dois registros como modalidades de gozo: um que está inscrito na lógica fálica, regido pela linguagem; outro, que não se inscreve nas leis do falo por se situar no mais além do falo, um suplemento, atribuindo ao feminino o lugar de não-todo fálico, retirando-o do enclausuramento no "continente negro" como havia previsto Freud (1926/1990, p. 242).
Com Lacan então, o feminino adquire um novo estatuto que revela uma ausência de relação estrutural com o limite estabelecido pelo falo. Ele ultrapassa, extrapola, se encontra no mais além do falo, faz aparecer o indecifrável e, assim, explica o fato de as mulheres serem loucas, mas não de todo, pois, uma vez submetidas à função fálica, elas não são inteiramente femininas (Lacan, 1974/2003).
A busca feminina por um objeto amoroso, "meu homem", como é frequente escutar na clínica da atualidade, revela uma busca por um homem com atributos fálicos, mas isso também se constitui em um véu, ou seja, por trás dele não se encontra nada, sendo possível localizar apenas os efeitos da castração. Assim, a mulher procura por um "amante castrado ou um homem morto" como um "íncubo ideal" (Lacan, 1960/1998, p. 742). O que é possível depreender da assertiva lacaniana é que o amor é o avesso do véu que se dirige ao íncubo ideal e, assim, o objeto que a mulher adora é o homem submetido à castração no qual figura o "pai morto, guardião do gozo, instaurador da lei e do desejo, sendo também o agente da castração" (Quinet, 1995, p. 19). Como podemos notar, então, é pela via do amor que a mulher se identifica à castração do homem; é a partir do desejo dele que o desejo da mulher é suscitado.
Com o savoir-faire do poeta, Eurípedes retrata o encontro de Medeia com o real da castração no momento em que ela é abandonada pelo objeto amado e é por essa via que o amor mistura-se ao ódio. Desbancada do lugar de mulher amada, despencando do paraíso para o inferno, ela vive uma experiência extenuante. Lograda, usurpada em seus direitos de esposa e mãe, Medeia torna-se imponderada, ensandecida, sem um referencial que a sustente, próxima do real, como anunciam suas palavras (Oliveira, 2006, Versos 112 a 117, p. 41):
Sofrimento imenso!
Nada sofreia o sofrimento que me abate!
Ó prole odiosa de uma mater mórbida,
Meritória de maus votos
pereça com o pai!
Derrua, sem arrimo a moradia!
É possível notar nas palavras de Medeia que ela chega a um ponto onde as máscaras da mulher não se sustentam, onde não há mais nenhum pilar de referência que possa mantê-la ligada ao referencial fálico, o que a faz cair no vazio, na pura angústia, na devastação. O que surge nesse momento de desmoronamento, de queda do lugar de objeto do desejo do Outro, é puro terror, um momento crucial quando desfalecem os semblantes que cumpriam a função de alojar um gozo, fazendo irromper um real desmedido. Medeia é o paradigma precioso da desmedida, do excesso, do gozo Outro, do que diante do seu sofrimento e aniquilamento como sujeito ela é capaz de fazer, dando sinais da presença angustiante da alteridade do feminino.
O amor e a suplência fálica
Como dissemos no início deste artigo, o amor, por ser narcísico, busca, de forma ilusória, contornar a falta. Supomos então que por esse motivo ele faça suplência ao falo. Lacan (1958/1998) eleva o falo à categoria de um significante que de um lado protege e do outro mascara. O falo como significante determina um "não há", um lugar vazio que convoca sempre uma suplência, levando Lacan (1973/1985, p. 62) a formular que, como entre os sexos não há relação sexual, "o que vem em suplência à relação sexual, precisamente, é o amor". É no ponto onde algo não se inscreve que o amor e a arte podem ter função de suplência, suplência no sentido de suprir algo que não se deu. É importante ressaltar que o caráter de suplência do amor não lhe subtrai a dimensão de posição narcísica; afinal, "ao perceber que o amor, se é verdadeiro que ele tem relação com o Um, não faz ninguém sair de si mesmo" (Lacan, 1973/1985, p. 64-65).
O falo enquanto significante privilegiado dá razão ao desejo; "é para ser o falo, isto é, o significante do desejo do Outro, que a mulher vai rejeitar uma parcela essencial da feminilidade" (Lacan, 1958/1998, p. 701). A mulher visa ser o objeto de desejo de um homem, ao mesmo tempo que amada por ele de forma intensa, plena. Nas relações amorosas, é possível notar que o amor do lado feminino se apresenta em uma versão delirante, na medida em que a mulher está suspensa no Outro. O amor na mulher é marcado pela incerteza, pela busca por um homem que seja o significante do seu desejo. Uma mulher ao perguntar se o homem a ama quer encontrar uma certeza que, todavia, é da ordem da impossibilidade. Para Lacan (1960/1998), uma mulher ama a partir de uma posição erotomaníaca, ao passo que o homem ama de um ponto de vista fetichista. Na erotomania, mais especificamente, encontramos o predomínio do não todo fálico, um amor que pretende atenuar a falha significante por não conseguir recobrir a falta do Outro; dessa forma, na posição feminina situa-se um modo de demanda de amor relativa a uma identificação ao ser. Na versão masculina, a posição fetichista de amar revela o predomínio da lógica fálica. O fetiche, significante fixado da fantasia, comanda o objeto de gozo e pretende responder à falta do Outro – S (Ⱥ) – sem deixar resto (Caldas, 2009, p. 59).
Como vimos anteriormente, a perda do objeto amado constitui uma importante fonte de infelicidade, uma vez que provoca no sujeito uma posição de abandono e desamparo. Nas parcerias amorosas localizamos o que Miller (1998, 2008) aponta como "parceiro-sintoma", a saber, o objeto amado (um parceiro) como uma forma inconsciente de gozar e, nesse sentido, toda parceria amorosa apresenta sua versão sintomática.
O amor que sustenta a parceria demonstra, pela exigência de reciprocidade, que o sujeito não quer saber da solidão do gozo (Caldas, 2009, p. 56). A reciprocidade se constitui não só pela expectativa de amor que o amante demanda ao outro, mas também porque há, no outro, algo que faz com que ele seja amado; o traço que o amante atribui ao amado tem sua raiz no narcisismo do eu. O que se ama são as versões do objeto a encapadas pela imagem do eu ideal e sustentadas pelos significantes do Ideal do Outro, I(A). O amado, portanto, de certo modo é o responsável pelo amor que causa. Nesse sentido, afirmamos que um amor não correspondido pode ser considerado uma ofensa ao amante como podemos notar em Medeia; afinal, o amor inclui o ódio e o aniquilamento do outro.
Na interpretação que a arte faz da vida, com o amódio, Medeia declara a intensidade do seu amor punindo de forma implacável quem a fez sofrer. A posição fálica de Medeia não se reduz à inveja do pênis, como diria Freud, mas revela uma posição de gozo. Às mulheres é solicitado que elas permaneçam restritas ao homem amado e aos filhos. Medeia dá provas de que isso não lhe é suficiente. Ela é uma mulher para quem a maternidade não é um grande feito, inclusive considera que parir é pior do que empunhar égide (espada), como fazem os homens.
As mulheres, quando restritas ao amor e à dedicação ao objeto amado, são frequentemente ciumentas, tanto por demandar o ser, quanto por prender-se a ele. Na clínica com mulheres, observamos que existem diferentes posições diante da perda do objeto amado: umas ferem o parceiro, outras ferem a si mesmas – ambas as posições comandadas pelo pathos. Em geral, uma mulher tomada de ciúmes, quando perde o objeto amado para outra mulher, diz: eu me mato. Medeia não, ela diz: eu te destruo! Ela mostra com o ato infanticida até onde uma mulher pode ir quando o homem amado destrói os semblantes que a sustentavam como o objeto causa de desejo. O amor pelo "seu homem" na verdade é um amor por ela mesma, como tão bem ilustrou Lacan (1964/1988, p. 254): "eu te amo, mas porque inexplicavelmente amo em ti algo que é mais que tu – o objeto a minúsculo, eu te mutilo". É nesse momento que emerge a "verdadeira mulher", aquela capaz de renunciar a um bem precioso para abrir no homem um furo, um descontentamento que permanecerá para sempre revelado.
Para a mulher, torna-se necessário que o parceiro na relação amorosa ocupe o lugar demarcado pelo não-todo fálico, de modo que a falta opere e o amor, então, possa fazer suplência à inexistência da relação sexual (Lacan, 1973/1985). Nesse sentido, temos o amor-sintoma e, nesse campo, localizamos a devastação. O termo devastação, ravage em francês, foi utilizado por Lacan para tratar de dois temas específicos em relação ao feminino, um primeiro referido à relação mãe-filha e outro à relação homem-mulher. Ressaltamos, entretanto, que não devemos incorrer no erro de confundir devastação com reivindicação fálica, conforme esclarece Soler (2005, p. 186), posto que esses termos não coincidem, sendo possível localizar na devastação um mais além da perspectiva fálica onde encontramos não somente o "ágalma feminino, sempre fálico, mas o do gozo que ex-siste, mas que o Outro não reconhece, e, pelo qual, portanto, consequentemente a mulher apela para o Outro".
Para nós, Medeia se apresenta como protagonista da modalidade de gozo Outro, gozo suplementar, feminino, porque trata de forma contundente a alteridade da mulher, na qual o desgosto, o abandono e o desapontamento só podem ser vividos através de um ato que rompe de forma violenta com os laços regidos pelo falo. Encontramos na personagem de Medeia o contrassenso de que só há ordem na medida em que há desordem, a saber, a vida ao lado de Jasão (homem amado) está em ordem, até que a desordem se instaura no momento em que ele a abandona para se casar com outra mulher. Jasão é, portanto, seu parceiro-devastação.
No caso da relação homem-mulher que aqui nos interessa de forma privilegiada, o termo ravage indica que o parceiro pode ser tanto um arrebatamento, quanto uma devastação. A devastação deve ser entendida como "uma pilhagem que se estende a tudo, que não termina, que não conhece limites, e é em função dessa estrutura que um homem pode ser o parceiro-devastação de uma mulher, para o melhor e para o pior" (Miller, 1998, p. 115). "Na devastação evidencia-se nas mulheres uma insistência amorosa, que as aproxima da loucura, entretanto, não podemos considerá-las loucas de todo, pois, [...] o universal do que elas desejam é a loucura: todas as mulheres são loucas, como se diz [...]" (Lacan, 1974/2003, p. 538).
A devastação feminina revela a agonia da dor, a aflição, o sofrimento avassalador que remete a uma destruição que aniquila. O "núcleo da devastação é o gozo que devasta o sujeito, no sentido forte de aniquilá-lo pelo espaço de um instante" (Soler, 2005, p. 185), instante esse que inscreve o feminino na "lógica de absolutização do amor, que a impulsiona para uma busca insaciável do Outro" (Soler, 2005, p. 185).
O fim do casamento de Medeia com Jasão indica que o ódio como o avesso do amor é um risco pela esmagadora presença que o Outro do amor pode encarnar, assim como pela intensidade do investimento feito no objeto amado. Medeia extrapola as dimensões do referencial fálico; ultrapassada pelo gozo foracluído da linguagem, ao matar os filhos ela encena a face torpe e hostil da mulher que ama. O ultraje vivido por Medeia pode ser considerado como um véu, aquele que antecede a passagem ao ato, pelo qual uma mãe amorosa torna-se horrenda ao trucidar seus filhos. Ela deixa claro que ama os filhos, mas a morte se faz necessária. Medeia apresenta uma ambiguidade digna das contradições presentes em toda tragédia grega, na qual um personagem experimenta não apenas o conflito com o outro, mas também consigo mesmo, como podemos notar nas suas palavras endereçadas ao Coro (Oliveira, 2006, p. 121. Versos 1042-1065. Grifo nosso):
O que farei? Sucumbe o coração
ao brilho do semblante dos garotos.
Mulheres, titubeio! Os planos periclitam!
Vou-me, mas com meus dois filhos!
Prejudicar as crianças sem prejuízo
do pai não dobra o mal? Fará sentido?
Comigo não, adeus projetos árduos!
O Que passa em mim? Aceitarei
o escárnio de inimigos impunidos?
[...]
Está para nascer alguém que agrida
um filho meu! Se ananke, o necessário,
impõe sua lei indesviável, nós
daremos fim em quem geramos.
Ao afirmar que dará um fim a sua prole, Medeia anuncia o direito de retirar a vida dos filhos, pois foi ela quem os gerou e agora pode prescindir das insígnias fálicas que eles representam. O infanticídio empresta trama à posição narcísica de Medeia, ponto crucial que marca sua face terrível, aquela que está mais voltada para o excesso do gozo feminino. Para Medeia, matar os filhos decorre do fato de ela ser uma mãe amorosa e, nesse sentido, como mostra Eurípedes na peça, ela não poderia deixa-los aos cuidados do homem que os abandonou. O assassinato dos filhos torna-se absolutamente necessário para a sustentação da honra do seu nome e dos seus herdeiros.
Marcada pelos traços de injustiça, inferioridade e depreciação, Medeia enfrenta a dor de uma perda irreparável, um sentimento de incompletude que toca o real da castração. Por esse viés, afirmamos com Miller (2012, p. 77) que há entre a mulher e o real um laço de amizade, isso porque elas evidenciam o que escapa ao simbólico, essencialmente sua relação com a castração. Ao se confrontar com o real da castração, Medeia se empenha em subverter essa situação e provocar a castração no Outro. O seu objetivo é, sobretudo, cercear Jasão do que ele mais se gabava, a saber, o casamento com sua jovem noiva e o acesso ao trono.
Avassalada pela dor e, ali mesmo onde o desejo se retirou, Medeia não encontra uma proteção frente ao real e, nesse ponto, enunciam-se várias declinações da posição feminina: sacrifício, martírio, tristeza, desolação. O desencontro entre os parceiros Medeia/Jasão e a inexistência de um imperativo oriundo do supereu que possa contê-la levam Medeia a protagonizar o gozo Outro. Diante do que experimenta, ela conclui que ser mulher dói. No ponto de disjunção entre o amor (fertilidade) e o ódio (destruição), abre-se a cratera do real onde ela é lançada, não sem levar consigo o seu parceiro.
Um amor desatinado
Com recursos estilísticos próprios, Eurípedes (431 a.C.) imprime em Medeia a condição feminina de uma mulher livre das limitações da moral grega, uma figura do feminino envolta nas sombras da maldição, da violência e da transgressão em diversos níveis. O que há de excesso, de voracidade pulsional, em Medeia, se manifesta quando ela é abandonada por Jasão, seu homem, seu parceiro-sintoma. Aí localizamos a devastação, como podemos notar nas palavras da heroína de Eurípedes após saber das novas núpcias de Jasão: "[...] quanto a mim, só, butim de bárbara terra, sou ultrajada pelo esposo; não tenho mãe, irmão, nenhum parente em que desta procela encontre abrigo" (Oliveira, 2006, p. 55. Versos 225-228).
Como podemos notar no fragmento do diálogo de Medeia com o Coro (composto de mulheres), o avesso do amor constitui um risco pela esmagadora presença que o Outro do amor pode encarnar, assim como pela intensidade do investimento feito no objeto amado. Medeia extrapola as dimensões do referencial fálico, ultrapassando o gozo foracluído da linguagem ao cometer o infanticídio e encenar a face torpe e hostil da mulher que ama. O ultraje vivido por Medeia pode ser considerado como último véu, aquele que antecede a passagem ao ato, pelo qual uma mãe amorosa torna-se atroz ao trucidar seus filhos.
Medeia é marcada, sobretudo, pelos traços de injustiça, inferioridade, depreciação, o que remete à dor de uma perda irreparável, um sentimento de incompletude que toca o real da castração e, por esse viés, com Miller (2012, p. 77), afirmamos que "as mulheres são amigas do real" porque elas evidenciam o que escapa ao simbólico, essencialmente sua relação com a castração. Miller interroga se as mulheres, assim como afirma o dito popular, seriam passionais, sendo louco o homem que aposta nelas. Com a posição de Creonte diante de Medeia, consideramos que Eurípedes responde de forma afirmativa à questão proposta por Miller como podemos notar no diálogo, encenado na peça, no qual Creonte expulsa Medeia de Corinto (Oliveira, 2006, p. 65. Versos 339-405):
CR: Mas porque teimas e daqui não partes?
ME: Deixa que me demore um dia mais
E pense como hei de fugir e no sustento de meus filhos, pois
o pai não cuida de prestar-lhes nada:
tem pena deles: tu também és pai;
[...]
CR: Minha vontade não nasceu tirânica
e por delicadeza já perdi muito.
Mulher, vejo meu erro agora, contudo te permito.
ME: Onipresente é o mal. Quem negará?
[...] Ele a um tal grau chegou de parvoíce
que podendo paralisar-me os planos
se me exilasse, um dia permitiu-me
ficar, do qual cadáveres farei.
A mesma posição de Creonte com relação a Medeia nós encontramos em Jasão. Inicialmente Jasão tenta dissuadir Medeia de sua vingança afirmando que ela deve ir embora e deixar a prole para que ele crie com sua nova esposa. Medeia, então, concorda dizendo que ela estava "insensata", mas que havia mudado os seus planos, afinal as mulheres são o que são, "não direi um mal, mas fêmeas" (Oliveira, 2006, p. 113. Versos 860-865). Jasão acredita em Medeia e diz que a entende, "que é normal irar-se o sexo fêmeo, quando faz contrabando conjugal o esposo" (Oliveira, 2006, p. 115. Versos 886-889), demonstrando assim acreditar e apoiar Medeia.
Medeia, ao cometer o infanticídio, exacerba o seu sentimento de mulher abandonada, ela leva todos que a cercam à ruína, principalmente o seu homem, Jasão, por tê-la destruído ao confrontá-la com o real da castração. Para Medeia, atingir Jasão é um dever, feri-lo se torna fundamental, mesmo que ela também sofra; afinal, ela ama os filhos (Eurípedes, 2012, p. 157. Versos 1335-1341):
ME: [...] Fiz meu dever ao te atingir no peito.
JA: Tu também sofres e compartilha males.
ME: Mas vale a pena a dor, se tu não ris.
JA: Ó filhos, que maligna mãe tivestes!
ME: Ó prole morta por paterno vício!
JA: Mas não foi a minha destra que os matou.
ME: Mas tua transgressão e as novas núpcias.
JA: Por uma cama ousaste assassiná-los?!
ME: Crês que é pequena a dor para as mulheres?
Altiva, Medeia não recua; sequer deixa Jasão enterrar os próprios filhos, o que naquela época representava uma honra para um pai. Jasão profere: "[...] Que os deuses testemunhem que os mataste, que me impedes agora de tocá-los, impossibilitando de enterrá-los! Pudera nunca tê-los engendrado para vê-los mortos por ti" (Oliveira, 2006, p. 163. Versos 1386-1390).
Assim, Jasão, o "parceiro-sintoma", não reconhece Medeia, ela o destrói completamente, retirando dele tudo que lhe era mais precioso – seus filhos –; ela é, portanto, uma verdadeira mulher, diz Miller (2012, p. 74), pois "deixa o homem ver que o ter é ridículo. De certo modo, é a sua ruína".
Considerações finais
A posição feminina em relação ao amor privilegia a posição narcísica em relação ao objeto, posto que uma mulher ama ser amada. O que está em jogo, como vimos, é sua posição frente ao falo. A função fálica pode falhar naquilo que é sua atribuição, a saber, regulação simbólica – das palavras e do pensamento; imaginária – da realidade psíquica e fantasmática; real – da regulação do gozo. Diante da falha o que temos é uma irrupção do real como se pode perceber em Medeia, um exemplo da mulher devastada, só a carnificina pode resgatar o desejo.
Medeia é uma mulher que surpreendente com seu caráter de rebeldia: ela encanta ao mesmo tempo que assusta, interrogando e lançando olhares sobre a problemática que o feminino encena. Afirmamos que a posição infanticida em Medeia é marcada pela devastação diante da perda do objeto amado – um sofrimento vivido como uma ofensa –, na qual o amor aparece em sua dimensão de suplência fálica, não se tratando de uma mãe maldosa que não ama os filhos e, sim, da sexualidade feminina que visa, na suplência fálica, a um mais além da maternidade. Destarte, temos em Medeia uma mulher que extrapola o ser mãe, rompendo com a barreira fálica e fazendo surgir no infanticídio o enigma do amor.
Consideramos que na atualidade existem mulheres que se apresentam como musas, medusas, medeias do século XXI, elas fazem brilhar uma nuance singular, feminina. São mulheres antenadas com o corpo, a beleza, o trabalho, os homens; elas amam o amor, amam serem amadas, mas também permanecem aprisionadas em seu narcisismo, rompendo barreiras e encenando o mais além das fronteiras fálicas. Medeia na Grécia antiga, "A Rita" na atualidade, cada uma a seu modo, formula um desejo, celebra uma conquista, lamenta uma falta ou uma perda. No que se refere ao amor, as mulheres estão sempre às voltas com a esperança do amor faltante ou a lembrança do amor malogrado, mas nunca referidas ao amor feliz. Elas encenam, sobretudo, a proximidade com a falta, com a privação, com o real, dito de outro modo, com o limite do insuperável, insuportável, portanto, que atualiza em cada uma o estado de incompletude.
Por fim, afirmamos que existem medeias, mulheres na posição feminina, à beira da desrazão, da loucura e da devastação, cuja dor lancinante cinge o real, lançando-as nas raias do gozo Outro. Se há algo de novo a ser dito na tentativa de dizer o indizível da mulher é apontar para as marcas do avassalamento e do ultraje, presentes na posição feminina, que não cessam de não se inscrever.
Para concluir deixo-os com Chico Buarque (1966), em uma viagem nas trilhas do feminino. A retórica por ele apresentada em "A Rita" traz à cena o amor pela via da separação, apresenta-nos uma mulher que mutila o homem ao provocar perdas e danos deixando mudo o violão – um instrumento musical de valor que ao ser danificado emudece o artista –; ela é a medeia na musicalidade de Chico Buarque, a saber, uma mulher que atinge profundamente o homem ao abandoná-lo, retirando dele tudo que lhe era precioso. Aqui, encontramos uma troca simbólica em que tanto os filhos (para Medeia), quanto o violão (para Rita) aniquilam o homem.
[...]
A Rita matou nosso amor de vingança
Nem herança deixou
Mas causou perdas e danos
Levou os meus planos
Meus pobres enganos
Os meus vinte anos
O meu coração
E além de tudo
Me deixou mudo o meu violão.
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Recebido em 04 de maio de 2015
Aceito para publicação em 29 de maio de 2017