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Psicologia Clínica
versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.30 no.1 Rio de Janeiro 2018
https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0030n01A05
ARTIGOS : TEMAS SOBRE PSICOLOGIA CLÍNICA
O outro pluralizado no processo de constituição subjetiva
The other pluralized in the subjective constitution process
El otro pluralizado en el proceso de constitución subjetiva
Viviane Marques Alvim Campi BarbosaI; Nádia Laguárdia de LimaII
IMestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil
IIProfessora Adjunta do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil
RESUMO
O presente artigo discute a função dos educadores de bebês e crianças pequenas na estruturação psíquica das crianças na atualidade. Para fazer essa reflexão, utiliza a teoria psicanalítica. O percurso teórico parte da experiência de satisfação em Freud (1895/1996) buscando compreender a construção da realidade psíquica operada a partir do encontro com o Outro, acrescida da teoria lacaniana de constituição do sujeito através do processo que envolve a dialética entre a alienação e a separação, para, finalmente, abordar os três tempos da fantasia analisados por Freud em 1919. Ele parte da premissa de que as marcas inaugurais que o Outro inscreve no corpo do bebê possibilitam a sua constituição subjetiva, uma vez que é o encontro com o Outro que introduz o sujeito na linguagem e desperta nele o gozo. Conclui que a função do professor não se confunde com o lugar do Outro parental na atualidade, ele entra como mais um elemento nesse trabalho de transmissão da linguagem, do desejo e da particularidade do gozo já iniciado.
Palavras-chave: Outro; bebês; constituição subjetiva; educação infantil.
ABSTRACT
This paper discusses the function of educators of babies and small children in the psychic structuring of children nowadays. The psychoanalytic theory is used to make this reflection. The theoretical path departs from the experience of satisfaction in Freud (1895/1996) aiming at understanding the construction of the psychic reality operated from the encounter with the Other, added to the lacanian theory of constitution of the subject through the process that involves the dialectic between alienation and separation to, finally, approach the three times of fantasy analyzed by Freud in 1919. The paper departs from the premise that the inaugural marks that the Other inscribes on the baby's body allow for its subjective constitution, since it is the encounter with the Other that introduces the subject to language and awakens pleasure. It is concluded that the teaching function is not confused with the place of the Other parental in the present time, it enters as another element in this work of transmission the language, the desire and the particularity of the pleasure already begun.
Keywords: Other; babies; subjective constitution; child education.
RESUMEN
El presente artículo discute la función de los educadores de bebés y niños pequeños en la estructuración psíquica de los niños en la actualidad. Para hacer esta reflexión, utiliza la teoría psicoanalítica. La trayectoria teórica parte de la experiencia de satisfacción en Freud (1895/1996) buscando comprender la construcción de la realidad psíquica operada a partir del encuentro con el Otro, junto con la teoría lacaniana de constitución del sujeto a través del proceso que involucra la dialéctica entre la alienación y la separación, para, finalmente, abordar los tres tiempos de la fantasía analizados por Freud en 1919. Él parte de la premisa de que las marcas inaugurales que el Otro inscribe en el cuerpo del bebé posibilitan su constitución subjetiva, una vez que es el encuentro con el Otro que introduce el sujeto en el lenguaje y despierta en él el goce. Concluye que la función del profesor no se confunda con el lugar de Otro padre en su actualidad, el elemento como el elemento más en el trabajo de la transmisión de la lengua, el deseo y la particularidad de gozo ha iniciado.
Palabras clave: Otro; bebés; constitución subjetiva; educación infantil.
Introdução
Com a crescente participação da mulher no mercado de trabalho, a família precisa contar com parcerias nos cuidados de seus filhos. Acompanhamos, na atualidade, uma demanda cada vez maior de serviços e instituições destinadas aos cuidados e à educação de bebês e crianças pequenas. Muitos pais deixam seus filhos nessas instituições durante todo o dia para que possam trabalhar. Sabemos, entretanto, que esse compartilhamento dos cuidados não é sem consequências para os envolvidos. Muitas crianças que frequentam essas instituições passam mais tempo nesse ambiente do que no meio familiar, pois permanecem em torno de 12 horas por dia fora de casa (Mariotto, 2009). Tal fato implica que o educador seja mais um ponto de referência para as crianças em seu vir a ser.
Sabemos, pela clínica psicanalítica, que o estabelecimento do laço com o Outro1 é fundamental na estruturação psíquica de um sujeito. Esse laço envolve um interesse particularizado pelo bebê, o que nos leva a questionar os efeitos, sobre o sujeito, de um cuidado compartilhado por várias pessoas, como acontece na atualidade. Fundamentalmente, cabe-nos interrogar os efeitos de um cuidado que não se restringe à esfera familiar e envolve, também, os educadores das instituições de educação infantil.
Uma vez que as instituições educacionais participam dos tempos precoces da vida de uma criança, é preciso reconhecer que ela passa a operar no processo constituinte do sujeito. Assim, podemos nos perguntar: quais as condições oferecidas pelas instituições para um sujeito que está no tempo presente de sua constituição subjetiva?
Para que o bebê sobreviva é preciso que ele seja afetado pelos cuidados do agente materno, atravessando, assim, sua condição orgânica, pelas palavras e laços de afeto que este imprime nos tratos atribuídos ao bebê. Desta maneira, a ordem da necessidade é interrompida pela incidência da linguagem da mãe dirigida ao bebê, adiando, neutralizando ou antecipando os imperativos da necessidade, para fazer vigorar a ordem simbólica. A ordem simbólica será responsável pelo advento da representação e do recalque que estruturarão o sujeito, deslocando-o de sua condição biológica para a condição humana (Vorcaro, 1999).
É importante ressaltar que esse laço envolve um interesse particularizado pelo bebê, tal como nos fala Lacan (1969). O autor, em "Nota sobre a criança", nos alerta que a função da família tem o valor irredutível de uma transmissão, de uma ordem diferente da satisfação das necessidades que é a de uma constituição subjetiva, sendo necessário que, para isso, haja a relação com um desejo que não seja anônimo. E acrescenta:
É a partir de uma tal necessidade que se julgam as funções da mãe e do pai. Da mãe na medida em que seus cuidados portem a marca de um interesse particularizado feito pela via de suas próprias faltas. Do pai na medida em que seu nome é o vetor da uma encarnação da Lei, no desejo (Lacan, 1969/2003, p. 369).
Assim, o exercício da "função materna" depende, dentre outras coisas, da capacidade do Outro materno de tomar o bebê a partir de um desejo não anônimo, sustentando no cuidado as operações para a constituição do sujeito, que cortam e costuram o corpo do bebê na relação com seus semelhantes. O Outro materno opera ordenando a vida simbólica, transformando-a em desejo. Sendo assim, o suprimento das necessidades vitais do bebê implica a estrutura desejante do sujeito que aí se apresenta, fazendo a função de agente que suporta a linguagem e sustenta, no cuidado com o bebê, certas operações constitutivas do sujeito, quais sejam, a alienação e a separação.
Mas como pensar a atuação das instituições educacionais para as crianças pequenas na atualidade? Para Kupfer (2007, p. 35), "é pela educação que um adulto marca o seu filho com marcas de desejo; assim, o ato educativo pode ser ampliado a todo ato de um adulto dirigido a uma criança". Mesmo que se reconheça que a inscrição das primeiras marcas simbólicas no corpo da criança é feita pelos agentes parentais, é preciso incluir o educador como participante na composição da estruturação psíquica dos bebês e crianças pequenas. Se, na atualidade, as instituições educacionais participam dos tempos precoces da vida de uma criança, não sendo mais um privilégio da família os cuidados e a educação oferecidos às crianças pequenas, a família, então, passa a dividir com os profissionais e instituições destinadas à primeira infância as várias representações do Outro na vida atual dos bebês e das crianças pequenas (Bernardino, 2009).
A nossa hipótese é a de que o trabalho do educador com crianças pequenas não equivale ao exercício da função materna, tal como foi definida por Lacan (1969/2003), em "Nota sobre a criança", mas também não pode ser aproximado do trabalho exercido pelos educadores formais com crianças maiores e jovens.
Neste artigo nos interessa acompanhar as marcas que o Outro inscreve no corpo dos bebês e crianças pequenas, possibilitando que eles advenham como sujeitos, uma vez que é o encontro com o Outro que introduz o sujeito na linguagem e desperta nele o gozo. Para isso, retomaremos a experiência de satisfação em Freud (1895/1996) buscando compreender como ela desperta o gozo no sujeito; a constituição do sujeito na dialética entre alienação e separação - operações que constituem o articulador entre o sujeito e o objeto a - e, finalmente, trataremos dos três tempos da fantasia trazidos por Freud em 1919.
O Outro da experiência de satisfação
Ainda que o ser humano esteja inevitavelmente imerso na linguagem, é preciso que cada sujeito dê o passo que consolide sua conquista e seu compromisso com a fala. É próprio da subjetividade humana existir articulada a uma rede de significantes e, embora a linguagem preexista ao sujeito, ele precisa dela se apropriar, diferenciando-se do Outro.
O início do processo subjetivo se dá pela operação de corte que cria a diferença entre o eu e o mundo externo e inaugura a relação do sujeito com o Outro. Essa operação decorre de um encadeamento de operações lógicas. Ela requer a participação do que Freud (1895/1996) nomeou de Nebenmensch, conhecido pela noção de próximo, aquele que se situa ao lado de, cuja tradução do alemão seria Neben, "ao lado de", e Mensch "homem" ou "ser humano", ou seja, "o ser humano que está ao lado". Assim, o Nebenmensch seria esse humano, ou isso do humano, que se situa ao lado de, o mais próximo e possui um papel fundamental no despertar perceptivo do bebê.
Para Lacan (1968-1969/2008), esse Nebenmensch é algo primário, que Freud nomeia de "grito", uma exterioridade que identifica esse algo que me é mais íntimo, justamente porque só pode ser reconhecido do lado de fora. Assim, esse próximo não é o que ele chama de Outro - que faz operar a presença da articulação significante no inconsciente, o "próximo é a iminência intolerável do gozo. O Outro é apenas sua terraplanagem higienizada" (Lacan, 1968-1969/2008, p. 219). O Outro é "um terreno do qual se limpou o gozo" (Lacan, 1968-69/2008, p. 220), é aí que se situa o inconsciente estruturado como linguagem; enquanto que a Coisa é o lugar do gozo.
No texto de Freud (1895/1996) intitulado "Projeto para uma psicologia científica" são oferecidos elementos importantes para o entendimento da construção da realidade psíquica no sujeito, a partir do estabelecimento do que o autor chamou de a experiência de satisfação. Esta experiência é apresentada nos termos de uma alteração irreversível no protoplasma de células nervosas que determinam as facilitações, responsáveis pelo aumento e pela diminuição de energia no aparelho psíquico. Assim, a experiência de satisfação foi o processo por meio do qual Freud abordou, na ocasião, a noção de um elemento mítico, capaz de situar o gozo, para sempre inacessível quando almejado pela representação.
Freud (1985/1996) considerou que o investimento neuronal, que corresponde à ascensão de Qη (tensão), tem como efeito, em qualquer sistema, a propensão à descarga motora. E quando isso não ocorre, a elevação de Qη (tensão) no ψ (inconsciente) produz sensação de desprazer em ω (consciência). Ao contrário, sua diminuição acarreta a sensação de prazer. No sistema ψ, o primeiro caminho a ser seguido no sentido da diminuição dos níveis de Qη é a alteração interna. Como exemplo, Freud apresenta o estímulo proveniente da fome do bebê, que provoca uma modificação interna, expressa no grito. Assim, o grito cumpre, originariamente, uma função de descarga. Contudo, se o estímulo permanece, a descarga proporcionada por essa ação interna não fornece alívio suficiente, sendo, pois, preciso uma alteração no mundo externo, através de uma ação específica.
A ação específica tem como particularidade o fato de ela se dar apenas através de caminhos precisos. A oferta do seio que fornece o alimento, no exemplo da fome do lactente, pode ser abalizada como um paradigma da ação específica. É importante ressaltar que esse exemplo evidencia que o desamparo do organismo do bebê torna-o incapaz de realizar a ação específica sem a ajuda de um Outro, e é nessa impossibilidade real que se deve situar o lampejo do enlaçamento do sujeito ao Outro. Assim, a via de descarga pelo grito adquire "a importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais" (Freud, 1895/1996, p. 370).
Com a ação específica, o organismo é convocado a se inscrever no universo da linguagem; essa experiência permite ao bebê passar do registro das necessidades ao registro da demanda. O bebê recebe o alimento, mas recebe também a palavra; experiência que se inicia com o grito, com o descarregar da tensão e do desamparo inicial. O pensamento freudiano dessa época nos ensina que no campo do Outro qualquer coisa é expulsa em torno dessa primeira experiência que orienta a via subjetiva do ser humano.
A experiência de satisfação produz uma facilitação entre duas imagens mnêmicas, a do objeto e da descarga (Freud, 1895/1996), mantendo-as associadas de tal forma que o investimento em uma dá acesso ao investimento na outra. Com o reaparecimento do estado de urgência, lugar onde se situará o desejo, as duas lembranças são investidas simultaneamente. Devido a esse duplo investimento, na falta do outro assegurador a ativação desejante dos traços mnêmicos dessa experiência é capaz de produzir algo idêntico a uma percepção, isto é, uma alucinação. Dessa maneira, a primeira experiência de satisfação serve de suporte para a instalação da experiência alucinatória de satisfação.
Se nos pautarmos na teoria lacaniana, a experiência de satisfação é uma inscrição mítica de gozo que deixa traços mnêmicos dos atributos do gozo alocados no bebê. Essas marcas serão investidas libidinalmente no polo alucinatório de satisfação, atuando no sentido da repetição da experiência de satisfação. O princípio do prazer rege os trilhamentos que se repetem em direção às representações vinculadas ao desejo e instala o lugar da representação da pulsão (Lacan, 1972-1973/2008). Essas representações correspondem ao reencontro alucinatório do gozo e chegam à consciência na forma de identidade de percepção. Tal identidade diz respeito a uma percepção capaz de atender ao princípio de realidade (Lacan, 1968-1969/2008).
Enquanto o princípio do prazer comanda a associação de uma representação à outra, o princípio de realidade elege a aglutinação de certas representações como pertencentes à realidade. Assim, a partir de uma marca inaugural, a regulação homeostática visa o retorno a uma inscrição que servirá de apoio para a construção da realidade psíquica. A experiência de satisfação pode ser considerada a instauração de um traço que servirá de referência a tudo que há de relevante no mundo perceptivo e, consequentemente, a toda realidade humana (Lacan, 1959-1960/2008).
Com isso, Lacan destacou que a percepção, tal como é apresentada por Freud, não leva em conta nenhum critério de realidade, uma vez que o mundo da percepção se constrói a partir da alucinação fundamental. De certa maneira podemos dizer que, no homem, o mundo real é alucinatório. Disso se construirá o mundo externo no qual o sujeito se deslocará. Contudo, a ideia de que a experiência de satisfação da necessidade alimentar serviria de apoio para a satisfação pulsional possibilitou a Freud instituir uma historicidade constitutiva do sujeito na qual o Outro, através da ação específica, assume importante papel na estruturação do aparelho psíquico. O laço com um Outro primordial (suporte da linguagem), que o outro (semelhante) encarna, é o lugar fundador do sujeito.
Braunstein (2007) retomou o "Projeto" de Freud para pensar o conceito de gozo, tal como foi desenvolvido por Lacan. Para o autor, o corpo da criança presta-se ao abuso do Outro, é seduzido pelo Outro. A sedução está presente desde os primeiros cuidados oferecidos ao bebê, nos modos como se administra a satisfação das necessidades e "com a regulação e sujeição do corpo da criança às exigências e aos desejos inconscientes do Outro" (Braunstein, 2007, p. 22). Assim, o aparelho psíquico não seria dirigido pelo mando do princípio soberano do prazer-desprazer, mas por dois outros princípios contrários: o princípio do prazer - regulador e homeostático - e o gozo do corpo, "que orienta um retorno incessante de excitações irreprimíveis, uma força constante que desequilibra, sexualiza, torna o sujeito desejante e não marca reflexa" (Braunstein, 2007, p. 23). O corpo do bebê é, então, um objeto para o desejo e o fantasma do Outro e o bebê para constituir-se como sujeito deverá representar para si seu lugar no Outro, passando pelos significantes que advêm desse Outro sedutor e gozante e, concomitantemente, interditor do gozo.
Braunstein (2007), orientado pelos textos de Lacan, articula o gozo no corpo com o gozo do corpo, que supõem: o primeiro, um Outro sedutor e gozante e, ao mesmo tempo, interditor. E o segundo, o gozo originário, gozo da Coisa e anterior à Lei, sendo este último, um gozo ao qual o sujeito deve renunciar em troca da promessa de um gozo dos sujeitos da Lei.
À ideia de Freud (1920/1996) de que existe uma relação entre o prazer e o sofrimento Lacan deu o nome de gozo - uma satisfação inconsciente, sobre a qual o sujeito nada sabe. Retornando a Freud, podemos observar que o aparelho psíquico conduz à insatisfação e que o gozo é uma constante. Entretanto, o sujeito não se reconhece nesse gozo, o que faz com que Lacan considere a pulsão como acéfala.
Aludindo-se ao recém-nascido, sabe-se que, com a separação do ventre materno e a entrada na cultura, o homem é doravante submetido à ordem do desejo. No "Projeto" (1895/1996), Freud explica o movimento de apagamento e, assim, de distanciamento do sujeito da Coisa, das Ding. Essa experiência concerne à perda do gozo do infans para aceder ao universo simbólico. Evidencia-se, nesse movimento de distanciamento de das Ding, a dimensão ética, com o impossível do gozo pleno. A ausência do objeto inaugura o funcionamento do aparelho psíquico, propiciando a formação das "primeiras inscrições mnêmicas", noção introduzida por Freud na "Carta 52" (1896/1996, p. 282), que ele designa como Niederschrift - "o primeiro registro das percepções". Essas inscrições primeiras serão, posteriormente, reinscritas. Existe aí uma experiência dolorosa, mas necessária ao sujeito para entrar na linguagem: o grito que presentifica a ausência do objeto. A dor e o desprazer se desprendem do puro princípio do prazer.
Das ding é referente à marca daquilo que nunca se realizará, pois é, ao mesmo tempo, o primeiro objeto de satisfação e o primeiro objeto hostil, podendo ser compreendido por uma estrutura constante que permanece como uma Coisa inassimilável, podendo ser rastreada até os orifícios do corpo.
Para Braunstein (2007), o que resta de das Ding é o desespero pela ausência e o grito desencarnado, estando o fundamento do ser na diferença entre as representações possíveis e a Coisa que desapareceu para sempre, "deixando a reprodução do desencontro e a disparidade sobre as experiências da realidade, de uma realidade que depende de e, às vezes, não é senão o Outro da linguagem, dessa linguagem na qual haverá de transbordar as desrazões, estabelecer as diferenças. Terá que alienar-se" (Braunstein, 2007, p. 39).
Se, por um lado, a palavra leva à perda de gozo, por outro ela inscreve no corpo o gozo. "A palavra grava-se na carne e torna essa carne um corpo que é simbolizado nos intercâmbios com o Outro" (Braunstein, 2007, p. 40). "Somos todos náufragos resgatados do gozo que perdemos ao entrar na linguagem" (Braunstein, 2007, p. 40). Assim, no início existiria um gozo do qual não se sabe nada, apenas a partir do momento em que foi perdido. O sujeito lacaniano é, pois, produzido a partir da articulação entre dois Outros: "o Outro do sistema significante e o Outro que é corpo gozante" (Braunstein, 2007, p. 23).
O bebê, desde o início, seria um objeto para o gozo, para o desejo e para o fantasma do Outro. Dito de outro modo: ele apenas se constituirá como sujeito ao passar pelos significantes que procedem desse Outro sedutor e gozador e, ao mesmo tempo, interditor do gozo.
O Outro da alienação e da separação
No Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (Lacan, 1964/2008), Lacan descreve as duas operações imprescindíveis do ponto de vista da lógica da estrutura do sujeito: a alienação e a separação. Apresenta a ideia da constituição do sujeito aplicando a teoria dos conjuntos e suas operações de união e interseção, assim como lançando mão do termo vel (e/ou). O sujeito, então, não estaria constituído desde o seu nascimento e apenas se originaria através das operações, verificadas na cadeia significante.
Se inicialmente Lacan utilizava as categorias linguísticas da metáfora e da metonímia para descrever o trabalho do inconsciente, a partir do Seminário 11 os termos "alienação" e "separação" ocupam o lugar central e passam a designar as operações constituintes do sujeito. Operações estas que subordinam o sujeito ao significante do campo do Outro, fazendo com que o sujeito seja sempre um efeito do significante (Lacan, 1964/2008). A constituição do sujeito se dá, pois, no campo do Outro, através de processos dissimétricos: "do sujeito chamado ao Outro, ao sujeito pelo qual ele viu a si mesmo aparecer no campo do Outro, do Outro que lá retorna" (Lacan, 1964/2008, p. 203).
Na alienação trata-se, pois, de condenar o sujeito a uma divisão, na qual o vel da alienação é definido por Lacan da seguinte maneira:
uma escolha cujas propriedades dependem do seguinte: que há, na reunião, um elemento que comporta que, qualquer que seja a escolha que se opere, há por consequência um nem um, nem outro. A escolha aí é apenas a de saber se a gente pretende guardar uma das partes, a outra desaparecendo em cada caso (Lacan, 1964/2008, p. 206).
Assim, o vel constituído pela operação de alienação, por meio da qual o sujeito se funda, é sustentado pela lógica da reunião, que difere da adição. Evidencia-se que a reunião não consiste em adicionar os elementos de um grupo C aos elementos de um grupo D, pois aí os elementos em comum seriam duplamente contabilizados. Essa operação consiste em uma escolha em que os elementos do grupo C reúnem-se aos elementos do grupo D.
A alienação consiste numa escolha forçada, pois ocorre uma espécie de luta entre o Ser (sujeito) e Outro (sentido). O sentido emerge no campo do Outro produzindo o desaparecimento do Ser, ao mesmo tempo o Ser não pode ser totalmente coberto pelo sentido dado pelo Outro, produzindo uma perda. Para exemplificar, Lacan utiliza o exemplo da bolsa ou a vida (Lacan, 1964/2008, p. 207). Se o sujeito escolhe a bolsa perde a vida, pois não é possível a bolsa sem a vida, e, se escolhe a vida fica sem a bolsa. Logo, a escolha a ser realizada implica em guardar a vida ou perder os dois.
Para Lacan (1964/2008), só há um lugar possível para o sujeito: no significante, estando este no campo do Outro. O sujeito, então, nasce da alienação do Ser no Outro, o que esclarece a afirmação de Lacan de que o que constitui o sujeito é o desejo do Outro. Entretanto, para que o sujeito se aproprie do desejo do Outro e o tome como próprio é preciso que se separe desse Outro no qual está alienado.
Na operação de alienação o sujeito é convocado a fazer uma escolha entre o sentido ou o ser. Se escolher o sentido ocorrerá uma perda de sentido, um ponto de sem-sentido que se origina no campo do Outro.
O significante produzindo-se no campo do Outro faz surgir o sujeito de sua significação. Mas ele só funciona como significante reduzindo o sujeito em instância a não ser mais do que um significante, petrificando-o pelo mesmo movimento com que o chama a funcionar, a falar, como sujeito (Lacan, 1964/2008, p. 203).
A segunda operação, denominada de separação, conclui a causação do sujeito e "termina a circularidade da relação do sujeito ao Outro" (Lacan, 1964/2008, p. 208) e apresenta uma torção essencial. Enquanto a operação de alienação se caracteriza pela forma lógica da reunião, a operação de separação está fundada sobre a lógica da interseção.
A interseção ocorre incluindo apenas os elementos comuns entre os conjuntos. Diferentemente da reunião, na qual os elementos comuns também são contados sem duplicação, na interseção são estes os elementos que serão levados em consideração. Portanto, podemos dizer que o elemento comum aos dois conjuntos é a falta.
A operação de separação surgiria, então, do recobrimento de duas faltas: a do sujeito e a do Outro. O encontro com a falta do Outro, ou com o desejo do Outro, abre ao sujeito a possibilidade de se identificar com essa falta e ocupar, inicialmente, o lugar do objeto que falta ao Outro. É a maneira como o sujeito tenta inicialmente se situar diante do desejo enigmático do Outro, "ele me diz isso, mas o que ele quer?" (Lacan, 1964/2008, p. 209). O sujeito constata, entretanto, que essa relação é marcada por um desencontro, ou seja, o Outro deseja além dele; a criança não é capaz de tamponar o desejo materno. Essa descoberta permite ao sujeito sair do lugar de objeto e escolher pelo desejo, situando-se como sexuado, através de identificações que o marcam.
A constituição primeira do sujeito ocorre no campo do Outro e Lacan a denomina alienação, o sujeito aí capturado é inevitavelmente dividido e é pura falta a ser. Ao retornar à estrutura que o alienou, colocando-se no ponto de intervalo da cadeia binária - S1....S2 - é que o sujeito tem a possibilidade de construir um lugar para si entre os significantes. Ademais, é nesse ponto de intervalo que o desejo do Outro vem se alojar. Nos intervalos do discurso do Outro, o sujeito encontra uma falta, concernente ao desejo enigmático do Outro. A criança, então, toma a perda ocorrida na operação de alienação, em que seu ser foi marcado pelo significante (S1) do Outro, como um primeiro objeto que faz prova ao desejo dos pais: "Pode ele me perder?" (Lacan, 1964/2008, p. 210). A fantasia de sua morte, de seu desaparecimento, é o primeiro objeto que o sujeito tem a pôr em jogo nessa dialética, e ele o põe. Nesse sentido, Lacan comenta que uma falta recobre a outra.
Enfim, o bebê, ao nascer, depara-se com uma estrutura simbólica que o antecede e com um lugar a ele previamente determinado nessa estrutura. A cultura, os laços parentais e o significante que o nomeia, entre tantas outras determinações simbólicas, têm efeitos sobre os sujeitos.
Mas a criança também ocupa o lugar de objeto a na fantasia do Outro. O sujeito se constitui no Outro, como nos diz Lacan (1962-1963/2005), e o que resta dessa operação de alienação no Outro é o objeto a. Todavia, no início o bebê precisa receber os significantes vindos do Outro: "É do Outro que o sujeito recebe sua própria mensagem" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 296), sendo preciso que ocorra uma suposição desse Outro dirigida ao bebê. Assim, antes que a criança se pergunte: "quem eu sou?" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 296), ela escutará: "tu és" (Lacan, 1962-63/2005, p. 297), "Ou seja, primeiro o sujeito recebe sua própria mensagem sob a forma invertida" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 298).
No Seminário sobre a angústia, Lacan (1962-1963/2005) realiza uma formulação mais precisa do objeto a através da abordagem da angústia e relaciona a angústia ao desejo do Outro. O sujeito precisa ser reconhecido pelo Outro, que instituirá algo que Lacan designa como a - objeto - que representa aquilo que está no nível daquele que deseja:
Ora, o a de que se trata, marcado como causa do desejo, não é essa vaidade nem esse resto. Se em sua função ele é realmente o que articulo, ou seja, o objeto definido como um resto irredutível à simbolização no lugar do Outro, ainda assim ele depende desse Outro, pois se assim não fosse, como se constituiria? (Lacan, 1962-1963/2005, p. 359).
O objeto a é considerado como elemento irredutível que resta da alienação do sujeito no Outro. Esse objeto é procurado no Outro e se materializa no seio, nas fezes, no olhar e na voz, pois, ao mesmo tempo em que são peças destacáveis do corpo, mantêm com ele uma ligação (Lacan, 1962-1963/2005). O sujeito busca o seu complemento no Outro, tanto pela vertente significante quanto pela via do objeto.
Os três tempos da fantasia de espancamento: do amor ao gozo
A construção da fantasia em um sujeito só pode se dar em sua relação com o desejo do Outro, ou seja, enquanto estrutura lógica que subjaz aos ditos do sujeito e aponta para a sua posição diante do desejo. Para refletir um pouco a respeito da estrutura da fantasia para o sujeito retomaremos o texto de Freud "Uma criança é espancada: uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais" (1919/1996) e algumas das considerações tecidas por Lacan e seus comentadores a respeito do texto.
Em seu texto de 1919, Freud aborda uma fantasia, que frequentemente aparecia no relato de seus pacientes, buscando formalizar a sua lógica de funcionamento. Nessa ocasião, comenta que a fantasia de espancamento encontra-se geralmente nas neuroses e tem origem na ligação incestuosa do drama edípico. Essa fantasia tem caráter perverso e representa um momento constituinte do sujeito.
A fantasia de espancamento inicia-se voluntariamente pelo prazer que produz e está associada a uma satisfação masturbatória realizada nos genitais, ou seja, existe uma satisfação autoerótica que gera prazer para o próprio sujeito e que cria a fantasia. Tal satisfação remete a um traço primário de perversão, no qual o sujeito está fixado, e que se destacou prematuramente da sexualidade infantil, caracterizada por uma perversidade polimorfa (Freud, 1905/1996).
No início de seu texto, Freud (1919/1996) nos indaga sobre a relação que pode existir entre o sentido da fantasia de espancamento e as repressões corporais impostas pelos adultos às crianças em sua educação familiar. Disso o que se constata é que, na maioria das vezes, esses sujeitos não foram educados à força. Assim sendo, a fantasia de espancamento não se relaciona diretamente com o fato de a criança em questão ser espancada, mas sim com a possibilidade de ela ter sido acometida por um acontecimento infantil que causou a fixação de tal marca.
Tal fixação dispensa a necessidade de existir uma força traumática, no entanto o sentido de tal fixação pode estar no fato de ter havido, como causa desta, componentes sexuais "prematuros" para a criança, e por isso teríamos que supor que o acontecimento traumatizante, produtor da fantasia, se apresentaria, em algum ponto, como um fim provisional.
É importante ressaltar que, embora os pacientes de Freud não tenham precisado o momento em que surgiu pela primeira vez a fantasia, é possível depreender que tais fantasias foram nutridas desde tenra idade, "certamente antes da idade escolar e jamais depois do quinto ou sexto ano de vida" (Freud, 1919/1996, p. 195). Elas se constituem como marcas das primeiras experiências da criança, quando os fatores libidinais são despertados entre os dois e os quatro anos e meio de idade, ou pode ser "que tenham um histórico anterior, que atravessem um processo de desenvolvimento, que representam um resíduo e não uma manifestação inicial" (Freud, 1919/1996, p. 199).
Assim, as elaborações de 1919 de Freud evidenciam que a fantasia surge a partir das marcas que os bebês e as crianças pequenas recebem no laço com o Outro, sendo preciso que sejam reinscritas e reinvestidas pelo próprio sujeito no laço com o Outro; o que podemos perceber na seguinte passagem: "Quando a criança estava na escola e via outras crianças sendo espancadas pelo professor, essa experiência, se as fantasias estavam então dormentes, despertava-se de novo, ou, se ainda estavam presentes, reforçava-as e modificava-lhes perceptivelmente o conteúdo" (Freud, 1919/1996, p. 195).
Compreende-se como, em Freud, todo o aparato fantasístico que provém da sexualidade infantil e do Complexo de Édipo transforma-se no verdadeiro "núcleo das neuroses". Assim sendo, "a fantasia de espancamento e outras fixações perversas análogas também seriam resíduos do Complexo de Édipo, cicatrizes, por assim dizer, deixadas pelo processo que terminou" (Freud, 1919/1996, p. 208). Nessa passagem, fica claro que existe uma redução da fantasia a uma marca, determinante na vida do sujeito.
Avançando nas investigações sobre a fantasia, Freud (1919/1996) nos mostra que a organização sintática e gramatical que aparecia no discurso de seus pacientes sofria modificações em relação: ao autor da fantasia, quanto ao seu objeto, conteúdo e significado. Ao dedicar-se à descrição da fantasia de espancamento das crianças enumera três tempos em que ela se desdobra, quais sejam: 1) Uma criança é espancada; 2) "Estou sendo espancada por meu pai"; 3) "Provavelmente estou olhando" (Freud, 1919/1996, p. 201).
A primeira fase da fantasia de espancamento concerne a um período muito primitivo da infância e é caracterizada por apresentar aspectos indefinidos, como uma lembrança vaga, imprecisa. A criança que está sendo batida não é a que constrói a fantasia, não existe relação entre o sexo da criança que cria a fantasia e o da criança que está sendo espancada. Embora a identidade de quem bate na criança seja a principio obscura, sempre revela-se como um adulto, geralmente o pai. A fantasia de "uma criança é espancada" desdobra-se em uma situação em que o pai bate em uma criança que o sujeito da fantasia odeia por ter lhe tirado o lugar, como por exemplo, um irmãozinho. O enunciado que melhor traduz esse momento da fantasia seria: "O meu pai está batendo em uma criança que eu odeio" (Freud, 1919/1996, p. 201).
Assim, na primeira fase da fantasia de espancamento a criança espancada é indistinta, desse modo pode ser qualquer um, entretanto nunca é a própria criança, é sempre outra. Nessa primeira fase existe o espancador, a criança espancada e aquela que olha a cena. Aparece a conjectura de que o pai bate na criança odiada por aquela que olha demonstrando assim seu amor por esta. Interessante assinalar que a "primeira fase resume o que Freud denominou o "egoísmo infantil" (Fernandes, 2007, p. 85): de acordo com Freud é característico da criança ser "egoísta" e querer o amor do pai apenas para ela, ser o escolhida do pai.
Para Lacan (1956-1957/1995), a situação fantasística é complexa por comportar os três personagens: o agente da punição, aquele que se submete a ela e o sujeito. Nesse sentido, estamos à frente de uma estrutura intersubjetiva plena, ou seja, "o importante não é que a coisa tenha sido falada, mas que a situação ternária instaurada na fantasia primitiva porte em si mesma a marca da estrutura intersubjetiva que constitui toda a palavra consumada" (Lacan, 1956-1957/1995, p. 118).
Nesse primeiro tempo existe uma referência ao sujeito tomado como um terceiro e que aparece na cena "como aquele aos olhos de quem isso deve se passar, na intenção de fazê-lo saber que algo lhe é dado, o privilégio da preferência, a precedência" (Lacan, 1956-1957/1995, p. 118). Existiria, então, nesse primeiro tempo, uma "comunicação de amor" ao sujeito, por receber do agente da punição a sentença de seu desejo de ser amado. Segundo Jorge (2010), nesse momento do texto de Freud existe uma referência ao fato de os impulsos sexuais estarem dominados pela linguagem do amor e da ternura e não se manifestarem ainda como precisamente sexuais:
Como vimos, ele havia deixado claro anteriormente que, na primeira fase, não se tratava nem de algo francamente sexual, nem de algo propriamente sádico, mas uma espécie de embrião dessas duas coisas. Contudo, tal contradição é reforçada na sexta e última seção do texto, quando, a título de recapitular as contribuições anteriores, menciona novamente que as duas fases conscientes [a primeira e a terceira] parecem ser sádicas (Jorge, 2010, p. 102).
Da primeira para a segunda fase ocorrem intensas transformações, já que a pessoa que bate continua a mesma, enquanto a criança que é batida desloca-se para o próprio sujeito. Em comparação à primeira, temos uma cena reduzida a dois personagens: o agente da punição e a criança espancada. A frase que melhor representa essa fase da fantasia é: "estou sendo espancada pelo meu pai" (Freud, 1919/1996, p. 201).
O eu está nessa ocasião fortemente acentuado. Aqui, a fantasia se tornou masoquista e Freud ressalta que o sentimento de culpa é sempre o responsável pela transformação do sadismo em masoquismo, pois o fato de ser batido satisfaz a culpa edípica e permite, ao mesmo tempo, a obtenção de um prazer de modo regressivo. O "prazer será ser espancado pelo pai, pois está sendo substituído o amor incestuoso impedido de aparecer dessa forma para o paciente, amor reprimido depois da infância" (Fernandes, 2007, p. 85).
Para Freud, a segunda fase é a mais importante de todas, visto que o sujeito admite ter um lugar na fantasia. A fantasia não tem um sentido real, tem um conteúdo que permanece fora da consciência, que não pode ser recordado e indica a expressão do sentimento de culpa pelo amor incestuoso. Nesse momento da fantasia o que parece ocorrer é o deslocamento, a alteração de algum elemento que talvez já tenha sido marcado de erotismo no ato de ser espancado.
E, finalmente, na terceira fase, o adulto que bate e a criança espancada são substituídos por equivalentes e o autor aparece apenas no lugar de quem olha, não coincidindo com a criança espancada. A pessoa que bate nunca é o pai, mas um substituto dele, "um professor ou qualquer outra autoridade" (Freud, 1919/1996, p. 206); a criança que cria a fantasia não aparece - "provavelmente estou olhando" (Freud, 1919/1996, p. 201) - e são várias crianças que estão sendo espancadas.
Logo, nesse terceiro tempo o sujeito está na posição tanto daquele que goza assistindo a cena quanto daquele que é espancado, numa posição identificatória. Podemos dizer que a fantasia é sádica apenas na forma, pois a satisfação é masoquista. Mas a característica essencial dessa fase é que "a fantasia se liga agora a uma forte e inequívoca excitação sexual, proporcionando, assim, um meio para satisfação masturbadora" (Freud, 1919/1996, p. 201).
A terceira fase da fantasia de espancamento se aparenta à primeira, porém não aparece mais o pai como aquele que bate, os agentes ativos e passivos ficam indiferenciados, e a posição do sujeito nesse momento é de tê-la como o sustentáculo de uma intensa excitação, inequivocamente sexual que provoca, como tal, a satisfação.
Na terceira e última fase, a fantasia aparece numa circunstância totalmente dessubjetivada, a criança parece estar coletivizada. Os sujeitos, personagens da fantasia, são incertos: algumas crianças indefinidas apanham de um adulto que também pode ser qualquer um. Lacan grifa o pronome "se" que representa a indeterminação do sujeito para ressaltar que o "bate-se" traduz a "dessubjetivação essencial que se produz nessa relação" (Lacan, 1956-1957/1995, p.119).
Logo, o que sucede na fantasia de espancamento é:
1.o primeiro tempo o sujeito consegue inserir um terceiro na cena estando ele de fora - olhando, mas de fora da cena. → Eu sou afetado pelo Outro porque ele me ama;
2.No segundo tempo o sujeito está numa posição dual - ele e o outro, ou... ou... → Eu sou afetado pelo Outro porque eu o amo;
3.No terceiro tempo está numa posição de ser capturado pela cena. → Somos todos afetados pelo Outro.
Sendo assim, podemos apreender e extrair do texto "Uma criança é espancada" não mais a história cronológica, mas os tempos da construção da fantasia, não apenas como causadores da neurose, mas como algo que responde de forma fixa. A fantasia pode ser tomada como uma significação dada aos enigmas que se apresentam ao sujeito em relação a sua traumática entrada na linguagem e na sexualidade. Essa entrada acontece, necessariamente, a partir do investimento libidinal de um adulto - seja este o pai, a mãe, um cuidador, um professor, que, ao retirá-lo da apatia, permitirá elevar seu corpo ao estatuto de corpo erógeno, pulsional, inscrito na linguagem.
No entanto, essa alienação do sujeito na linguagem o condenará à submissão ao desejo do Outro e ao horror que advém da posição de objeto. A ficção que constitui a fantasia permite ao sujeito ter um lugar no campo do Outro.
Jorge (2010, p. 104) propõe que a dialética das três fases, desenvolvidas por Freud em "Uma criança é espancada", seja entendida como o deslocamento que se passa na estrutura da fantasia da ênfase no polo do amor para a ênfase no polo do gozo. Segundo o autor, a entrada do sujeito no mundo da linguagem através de diferentes fixações, em determinado polo da estrutura da fantasia, é o que possibilita ao sujeito passar ao outro polo e constituir a sua estrutura: neurótica, perversa ou psicótica (Jorge, 2010, p. 105).
A fantasia de espancamento é posta por Freud (1919/1996) como uma destituição do amor dos pais pela criança. Essa destituição acontece em virtude do amor que os pais devem compartilhar com uma outra criança, que é desprezada e odiada pela criança que constrói a fantasia.
A criança no primeiro tempo da fantasia, está na posição de quem é amada com exclusividade pelo pai: "Ele só ama a mim e não a outra criança, pois está batendo nela" (Freud, 1919/1996, p. 204). A exclusividade desse período traz a culpa e ela é a responsável por transformar o sadismo em masoquismo, passando da primeira fase para a segunda. Se a primeira fase é o momento da escolha do objeto edípico - os outros apanham, eu não -, a segunda fase desloca a criança que é espancada: não é mais a outra criança rival que apanha, mas sim a própria criança que fantasia. Essa fantasia do segundo tempo é acompanhada por alto grau de prazer. E é nesse momento da segunda fase da fantasia que Jorge (2010) sublinha o lugar do gozo. "É preciso incluir aqui o gozo e, mais precisamente, o gozo masoquista. Nela, a frase é: "Estou sendo espancada pelo pai", na qual o gozo masoquista está finalmente expresso" (Jorge, 2010, p. 107).
E conclui:
Os três tempos da fantasia "Uma criança é espancada" parecem, assim, caminhar precisamente na seguinte direção: do amor ao gozo. Da posição de sujeito, que a criança ocupa no primeiro tempo, para a posição de objeto, a, que se delineia no segundo tempo e se configura rapidamente no terceiro. Isso pode ser depreendido com o que Freud enuncia sobre esse terceiro tempo: ele é acompanhado de uma excitação intensa, inequivocamente sexual, proporcionando assim um meio para a satisfação masturbatória (Jorge, 2010, p. 108).
Conclusão
Ao longo deste artigo, podemos apreender as marcas que o Outro imprime no corpo dos bebês e crianças pequenas, compreendendo que a estrutura não é concedida a priori, embora possa ser suposta, nem é o efeito de um momento único, é o produto de uma construção, que se subdivide em tempos lógicos.
Se na atualidade os cuidados dispensados à pequena criança podem incluir uma pluralidade de adultos, como, por exemplo, os educadores, consideramos que o professor que atua na educação infantil tem um papel importante no processo estruturante do sujeito. Nessa perspectiva, entendemos que o professor de bebês e crianças pequenas ocupa o lugar de um Outro, dentre os vários Outros que se pluralizam na transmissão dirigida à criança, apoiando e reforçando o trabalho subjetivo já iniciado pela família. O professor de bebês e crianças pequenas atua no momento das primeiras inscrições no psiquismo, fornecendo apoio ao trabalho de subjetivação, mesmo que a prática educativa só revele os seus resultados a posteriori, ou seja, só se terá acesso ao resultado dessa intervenção do Outro através dos seus efeitos, no caso a caso.
A hipótese que levantamos é a de que a função do professor não se confunde com o lugar do pai ou da mãe na constituição subjetiva, ele entra como mais um elemento nesse trabalho de transmissão da linguagem, do desejo e da particularidade do gozo. Entretanto, para que o educador possa sustentar essa transmissão, é preciso que ele opere de posse de um desejo particularizado e não-anônimo pela criança, reconhecendo-a em sua singularidade.
Assim, consideramos essencial que o professor, a partir de sua posição subjetiva, tome cada criança em sua particularidade, reconhecendo-a e nomeando-a de maneira própria, dando lugar às singularidades nesse espaço coletivo. Dessa maneira, o professor, ao encarnar o lugar do Outro na instituição, transmite, com sua presença, a particularidade do seu desejo, a castração e o seu modo de gozo, auxiliando no trabalho de constituição da subjetividade da pequena criança.
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Recebido em 16 de fevereiro de 2016
Aceito para publicação em 24 de novembro de 2017
1 O Outro, em uma das definições dadas por Lacan no Seminário 11, "é o lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer" (Lacan, 1964/2008, p. 200).