EDITORIAL

O número 30.2 da Revista Psicologia Clínica compreende duas seções: uma temática e uma livre. Ao final, contamos com duas resenhas. A seção temática versa sobre a "Clínica do social" e reúne quatro artigos. O primeiro, Encontros e desencontros entre Laplanche e Lacan: abordagens psicanalíticas das questões sociais, das autoras Cassandra Pereira França e Cristiana de Amorim Mazzini (ambas da Universidade Federal de Minas Gerais), versa sobre algumas críticas enunciadas por Jean Laplanche quanto ao "inconsciente estruturado como linguagem" formulado por Jacques Lacan, que apesar de parecerem ser inicialmente mero desdobramento do pensamento de Lacan, acabaram por se estender à corrente estruturalista como um todo, acirrando um debate que acabou por afastar, definitivamente, a produção desses dois autores. As denúncias do caráter conservador da psicanálise, por parte dos movimentos feministas e LGBT, embora sem referência direta a Laplanche, sinalizaram sua visão do quanto o poder participa da construção das subjetividades, impossibilitando separar poder e gênero.

No artigo que se segue, Esquizofrenia, clínica e saúde mental na psicologia sócio-histórica e na psicanálise, dos autores Fabiano Chagas Rabêlo, Reginaldo Rodrigues Dias, Gustavo Oliveira Carvalho (os três da Universidade Federal do Piauí) e Karla Patrícia Holanda Martins (Universidade Federal do Ceará), discutem-se as aproximações e distanciamentos quanto à clínica da esquizofrenia entre a psicologia sócio-histórica e a psicanálise, em ambas as quais há a valorização dos fenômenos de linguagem e a abertura para um projeto clínico não médico, estabelecido sob diferentes perspectivas na interlocução com a psicopatologia clássica. Na abordagem sócio-histórica, a ênfase recai nos aspectos cognitivos e macro da psicogênese, nas intervenções que promovem a cidadania e a mudança de cultura sobre a doença mental. Estas se encontram também presentes na visão da psicanálise, mas neste segundo contexto destacam-se intervenções mais voltadas para as especificidades dos laços sociais de cada sujeito.

O terceiro artigo, O 'Carrapateiro' visto de fora: olhares sobre uma cracolândia em Divinópolis, MG, dos autores Roberto Lopes Mendonça, Mardem Leandro Silva, Ana Lívia Amaral e Geovane Antônio Teixeira (todos da Universidade do Estado de Minas Gerais), busca conhecer a visão e a relação conflituosa entre moradores, comerciantes e usuários de drogas na população do entorno de uma região de uso público de drogas em Divinópolis, MG, através de entrevistas semiestruturadas, abordando o tipo de intervenção nos polos da saúde e da segurança pública e a falta de responsabilização da sociedade civil na situação.

O último artigo da seção temática, O Brasil e a Lógica Racial: Do branqueamento à produção de subjetividade do racismo, das autoras Kenia Soares Maia (Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro) e Maria Helena Navas Zamora (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), propõe uma análise teórica de algumas ideias sobre raça de Arthur de Gobineau, Nina Rodrigues e Oliveira Vianna, a partir da abordagem histórica de Michel Foucault. Pelo viés da análise institucional, examina-se a formação de lógicas produtoras de modos de ser e agir desde o final do século XIX e início do XX, baseadas em ideais racistas e cientificistas, bem como a subsequente política de branqueamento no Brasil, parte da lógica racial, e seus efeitos sobre a realidade subjetiva da população negra (e não negra) na contemporaneidade.

O primeiro artigo da seção livre, Comportamentos autolesivos e administração das emoções em adolescentes do sexo feminino, das autoras Carolina Silva Raupp, Angela Helena Marin e Clarisse Pereira Mosmann (todas da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Rio Grande do Sul), aborda um estudo desenvolvido com vistas a caracterizar a prática de comportamentos autolesivos em adolescentes, com manifestações de sofrimento psíquico associadas à depressão e ao suicídio, encontrados com frequência na atualidade, por meio da investigação sobre a expressão e a administração das emoções pelas adolescentes. Procedeu-se a um estudo de casos múltiplos, do qual participaram quatro meninas entre 13 e 15 anos, que responderam à Escala de Avaliação de Sintomas-90-R e a uma entrevista semiestruturada, constatando-se a precocidade dos comportamentos, seu caráter aditivo e sinalizando-se a necessidade de preparo dos profissionais para atender tais adolescentes.

O segundo artigo dessa seção, O trabalho de perlaboração e suas implicações para os sofrimentos narcísico-identitários: uma contribuição de R. Roussillon, dos autores Gilson Gonçalves Lopes e Perla Klautau (ambos da Universidade Veiga de Almeida, Rio de Janeiro), questiona o fato de a perlaboração, conceito fundamental do método clínico freudiano, ter recebido pouca atenção no cenário psicanalítico atual em relação à temática dos sofrimentos narcísico-identitários, alvo de interesse crescente por parte de pesquisadores. Nesse contexto, vale destacar a contribuição de Roussillon no tocante à extensão da técnica psicanalítica, visando a criar condições para o tratamento desse tipo de sofrimento, tornando possível o trabalho de perlaboração.

O artigo que se segue, Para além do paradigma histérico da anorexia: a ordem de ferro do supereu materno, das autoras Camila Ferreira Sales (Secretaria Municipal de Saúde de Mariana, Minas Gerais) e Cristina Moreira Marcos (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais), indaga como situar a afinidade entre anorexia e feminino, a partir de um caso clínico no qual se verifica uma submissão a uma ordem de ferro do supereu e uma não assunção de uma posição sexuada na dialética amorosa. Através da recusa daquilo que vem do Outro no registro do ter, a anoréxica busca criar uma posição particular no Outro.

O próximo artigo, Reflexões teóricas sobre o diagnóstico psicanalítico contemporâneo, dos autores Vitor Hugo Couto Triska e Marta Regina de Leão D'Agord (ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul), discute a lógica e os limites do diagnóstico psicanalítico tripartido enquanto correlato da concepção totêmica da cultura e algumas propostas que o problematizam frente às questões clínicas contemporâneas, além do alcance da racionalidade diagnóstica na contemporaneidade e sua necessária reformulação, em vista de concepções não universalistas de cultura.

O último artigo dessa seção, Verdade, acontecimento e sujeito, de Oswaldo França Neto (Universidade Federal de Minas Gerais), problematiza o conceito de verdade, propondo-o como indissociável dos conceitos de acontecimento e sujeito, como um excesso em relação ao campo da existência, pois, preservada como eterna e não particularizável, ela não poderia se localizar ou se deixar discernir como objeto. Consequente a essa proposta de vinculação necessária entre verdade, acontecimento e sujeito, a apresentação destes no campo da existência seria sempre histórica, desqualificando transcendências e desdobrando-se como subversão do que se apresenta normatizado.

Finalizamos essa edição com as seguintes resenhas:

A cronicidade da dor: narrativas clínicas e teóricas, de Clarice Medeiros (Universidade Veiga de Almeida e Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), resenha do livro A face crônica da dor, organizado por V. L. Besset e S. V. Zanotti, publicado em 2017.

Integrando o desenvolvimento desde a adolescência: teorias, pesquisas e exercícios para a qualidade de vida, de Edna Lúcia Tinoco Ponciano, Ana Luisa Alves, Karla Guimarães, Daniele Mello e Amanda Porto Padilha (todas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro), resenha do livro Cérebro adolescente: o grande potencial, a coragem e a criatividade da mente dos 12 aos 24 anos, de D. J. Siegel, publicado em 2016.

Isabel Fortes

Esther Arantes