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Psicologia Clínica
versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.30 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2018
https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0030n03Edt
EDITORIAL
O número 30.3 da Revista Psicologia Clínica é organizado em duas seções, uma temática e outra livre, e apresenta duas resenhas. A seção temática deste fascículo contempla o tema Questões contemporâneas: gênero, feminismo, migração e reúne cinco artigos. O primeiro, Nascimento e primeiros desenvolvimentos do conceito de gênero, dos autores Felippe Figueiredo Lattanzio e Paulo de Carvalho Ribeiro (ambos da Universidade Federal de Minas Gerais), tem como objetivo fornecer subsídios para pesquisadores da área no tocante à história e à genealogia de um conceito de gênero, citando vários autores pioneiros e defendendo a necessidade de desmontar a cisão entre os estudos de viés político e os de viés clínico na área de gênero, sem, contudo, desconsiderar tensões e paradoxos entre campos que mimetizam a complexidade e a transdisciplinaridade inerentes a este campo de estudos.
O artigo seguinte, Psicanálise, feminismo e os caminhos para a maternidade: diálogos possíveis?, dos autores Marina Valentim Brasil e Angelo Brandelli Costa (ambos da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), busca compreender se a maternidade, como algo inerente à identidade feminina, segundo afirma Winnicott, é possível sob a ótica feminista. O artigo desenvolve a indagação sobre a possibilidade de uma interlocução entre as produções atuais dos estudos feministas acerca da maternidade e a teoria psicanalítica winnicottiana, identificando na obra desse autor termos como inatismo, atenção integral e "mães normais" como possíveis percalços para uma articulação entre a teoria psicanalítica winnicottiana e os estudos feministas contemporâneos.
O terceiro artigo, Crise do patriarcado e função paterna: um debate atual na psicanálise, da autora Mariana Pombo (Universidade Federal do Rio de Janeiro), apresenta e problematiza um debate atual no campo da psicanálise sobre a função paterna, analisando-a segundo Freud, Lacan e em seguida Jean-Pierre Lebrun, Michel Schneider e Charles Melman, que associam a crise do patriarcado à crise da função paterna, entendida como categoria ahistórica, para finalmente explorar as ideias atuais de Michel Tort e Geneviève Delaisi de Parseval, que repensam a função paterna como categoria histórica, excluindo os traços do patriarcado e abrindo espaço para novas formas de subjetivação.
O quarto artigo da seção temática, Singulares deslocamentos na experiência psíquica de migrar, das autoras Alexandra Garcia Grigorieff (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) e Mônica Medeiros Kother Macedo (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), discute as condições do sujeito na experiência migratória e a relevância da atenção direcionada ao migrante. O trabalho tece um quadro histórico, político e econômico do Haiti, com a finalidade de detalhar o processo de migração haitiana para o Brasil após o terremoto de 2010. Tomando como eixo as proposições freudianas sobre as experiências de luto e melancolia enquanto investimentos e desinvestimentos psíquicos por parte do sujeito, são considerados, a partir da narrativa de um migrante haitiano, aspectos que permitem identificar riscos decorrentes da vulnerabilidade psíquica, evidenciando-se a relevância da reflexão sobre os fatores subjetivos no processo migratório. Destaca-se o potencial da prática de pesquisa como forma de ouvir a singularidade presente em um fenômeno humano.
O artigo que finaliza a seção temática, A segregação em Lacan cinquenta anos depois, dos autores Thalita Castello Branco Fontenele, Leonardo Barros de Souza e Maria Celina Peixoto Lima (todos da Universidade de Fortaleza), apresenta, cinquenta anos depois da elaboração do termo pelo psicanalista francês, a definição de segregação para Lacan, demarcando suas diferenças com as ideias de discriminação e exclusão, e pondo em pauta os efeitos dessubjetivantes disparados sobre tais figuras da segregação a partir do discurso totalitário da ciência. Essa constatação leva a concluir que a segregação pode ser interpretada como uma questão central da crise da civilização moderna científica, que revela e acentua o mal-estar inerente a si mesma, acarretando a importância de discuti-la a partir do que a psicanálise propõe, pois esta, mesmo nascida em tal civilização, nunca pretendeu suprimir o mal-estar, embora tencione subverter seus efeitos.
Iniciando a seção livre, o artigo In Search of Connection: Towards a transdiagnostic view of dissociative phenomena through Research Domain Criteria (RDoC) framework, dos autores Pamela Indelli (Universidade Federal do Rio de Janeiro), J. Landeira-Fernandez (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) e Daniel C. Mograbi (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), sustenta que a visão categórica heterogênea das apresentações clínicas mantida pelas classificações nosológicas psiquiátricas atuais, que contribuem para a sobreposição de sintomas entre os diferentes distúrbios, influenciam seu diagnóstico e tratamento. O projeto Research Domain Criteria (RDoC), proposto pelo NIMH como abordagem alternativa, ainda carece de investigações sobre sua aplicação a fenômenos dissociativos, o que este artigo pretende suprir mediante análise de modelos teóricos presentes numa gama de condições clínicas, apontando para a adequação de um conceito transdiagnóstico de estados alterados de consciência.
O segundo artigo desta seção, Compreensão emocional em crianças e crenças maternas sobre competência emocional, das autoras Ana Beatriz de Mota e Souza e Deise Maria Leal Fernandes Mendes (ambas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), apresenta um estudo que examinou a compreensão emocional em crianças e sua relação com crenças maternas sobre competência emocional e cognitiva, esta enfatizada em muitos nichos culturais, por meio de entrevistas com 25 mães e da aplicação de duas tarefas às respectivas crianças, que obtiveram melhor desempenho nas tarefas de reconhecimento de expressões faciais de emoções, enquanto as entrevistas apontaram a categoria de capacidades relacionadas ao convívio social como reunindo habilidades desejadas pelas mães para seus filhos, seguida da capacidade de competência emocional. A autonomia surgiu também como uma capacidade almejada e valorizada pelas mães. O artigo busca ampliar a discussão acerca das crenças parentais e da importância das emoções para o desenvolvimento infantil.
O terceiro artigo desta seção, A realidade da perda: considerações sobre o luto e o exame de realidade, dos autores Leonardo Câmara e Regina Herzog (ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro), tem como objetivo desdobrar a afirmação de Freud segundo a qual o trabalho psíquico do luto é iniciado a partir da constatação da realidade da perda objetal mediante o exame (ou teste) de realidade. Os autores propõem uma definição de "exame de atualidade", tendo em conta a formação da capacidade de distinguir a separação da perda, o que leva à postulação de uma condição anterior à capacidade de vivenciar a perda objetal: o estado de perdição. Conclui-se que as construções desenvolvidas neste artigo podem auxiliar no entendimento de certas características de pacientes enquadrados nos chamados "estados-limites" e do lugar ocupado pelo luto na cultura contemporânea.
O último artigo, Avaliação psicodinâmica de pacientes com Transtorno de Estresse Agudo e Pós-Traumático em uma instituição pública, das autoras Luciane Maria Both, Bibiana Godoi Malgarim e Lúcia Helena Freitas (todas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e a última atuando no Serviço de Psiquiatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre), é um estudo que visa a avaliar o funcionamento psicodinâmico de pacientes com Transtorno de Estresse mediante o Diagnóstico Operacionalizado Psicodinâmico (OPD-2), no que se refere à estrutura, conflito intrapsíquico e padrão interacional do sujeito. Foram avaliados três pacientes com diagnóstico de Transtorno de Estresse Agudo ou Pós-Traumático e suas entrevistas transcritas e codificadas conforme o OPD-2, com a confiabilidade do teste-reteste para a codificação dos itens. Todos os participantes apresentaram nível moderado de sofrimento subjetivo, limitações na continuidade de atividades cotidianas e conflito entre a necessidade de ser cuidado e a autossuficiência. A compreensão dimensional do OPD permitiu uma compreensão do funcionamento psicodinâmico dos pacientes de forma mais clara, o que pode facilitar o entendimento do contexto clínico de estresse.
Finalizamos esta edição com duas resenhas: Discutindo a guerra contemporânea: trauma, catástrofe e risco, de Flávia Guerra Cavalcanti (Universidade Federal do Rio de Janeiro), e Alimentar-se ou comer? Uma questão de simbolização, de Marcia Schivartche (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), que examinam livros publicados recentemente: Guerra, catástrofe e risco: uma leitura interdisciplinar do trauma (2018), org. por Joel Birman e Isabel Fortes, e A obesidade "não toda" ou quando a gordura fala (2017), de Daniel Hamer Roizman, respectivamente.
Isabel Fortes
Esther Arantes