SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.30 número3A realidade da perda: considerações sobre o luto e o exame de realidadeDiscutindo a guerra contemporânea: trauma, catástrofe e risco índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.30 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2018

https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0030n03A09 

SEÇÃO O LIVRE

 

Avaliação psicodinâmica de pacientes com transtorno de estresse agudo e pós-traumático em uma instituição pública

 

Psychodynamic evaluation of patients with acute and posttraumatic stress disorder in a public institution

 

Evaluación psicodinámica de pacientes con trastorno de estrés agudo y postraumático en una institución pública

 

 

Luciane Maria BothI; Bibiana Godoi MalgarimII; Lúcia Helena FreitasIII

IDoutoranda em Psiquiatria e Ciências do Comportamento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, Brasil. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). lucianeboth@gmail.com
IIDoutora em Psiquiatria e Ciências do Comportamento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, Brasil
IIIProfessora Associada do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Serviço de Psiquiatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), Porto Alegre, Brasil

 

 


RESUMO

Este estudo avaliou o funcionamento psicodinâmico de pacientes com Transtorno de Estresse por meio do Diagnóstico Operacionalizado Psicodinâmico (OPD-2), no que se refere à estrutura, conflito intrapsíquico e padrão interacional do sujeito. Foram avaliados três pacientes com diagnóstico de Transtorno de Estresse, seja Transtorno de Estresse Agudo, seja Transtorno de Estresse Pós-Traumático. As entrevistas foram transcritas e codificadas conforme o OPD-2, considerando a confiabilidade teste-reteste para a codificação dos itens. Todos os participantes apresentaram níveis moderados de sofrimento subjetivo, com limitações na continuidade de atividades cotidianas. O conflito prevalente foi a necessidade de ser cuidado versus a autossuficiência. O nível de estrutura psíquica foi avaliado como moderado, cujo receio principal é a perda de um objeto importante ou separação significativa de apoio e há dificuldade de regulação emocional. A compreensão dimensional do OPD permitiu uma compreensão do funcionamento psicodinâmico dos pacientes de forma mais clara, o que pode facilitar o entendimento do contexto clínico de estresse.

Palavras-chave: avaliação; psicodinâmica; estresse.


ABSTRACT

This study evaluated the psychodynamic functioning of patients with Stress Disorder through Operational Psychodynamic Diagnosis (OPD-2), regarding the structure, intrapsychic conflict and interactional pattern of the subject. Three patients with a diagnosis of Stress Disorder, either Acute Stress Disorder or Posttraumatic Stress Disorder, were evaluated. The interviews were transcribed and coded according to the OPD-2, considering the test-retest reliability for the coding of the items. All participants presented moderate levels of subjective suffering, with limitations in the continuity of daily activities. The prevailing conflict was the need to be cared for versus self-sufficiency. The level of psychic structure was assessed as moderate, in which the main fear is the loss of an important object or significant separation from support and there is difficulty in emotional regulation. By the dimensional understanding of the OPD, an understanding of the patients' psychodynamic functioning was made clearer, which may help in the understanding of the clinical context of stress.

Keywords: evaluation; psychodynamic; stress.


RESUMEN

Este estudio evaluó el funcionamiento psicodinámico de pacientes con Trastorno de Estrés a través del Diagnóstico Operacionalizado Psicodinámico (OPD-2), en lo que se refiere a la estructura, conflicto intrapsíquico y patrón interaccional del sujeto. Se evaluaron tres pacientes con diagnóstico de trastorno de estrés, ya sea trastorno de estrés agudo o trastorno de estrés postraumático. Las entrevistas fueron transcritas y codificadas según el OPD-2, considerando la confiabilidad test-retest para la codificación de los ítems. Todos los participantes presentaron moderado nivel de sufrimiento subjetivo, con limitaciones en la continuidad de actividades cotidianas. El conflicto prevalente fue la necesidad de ser cuidado frente la autosuficiencia. El nivel de estructura psíquica fue evaluado como moderado, cuyo temor principal es la pérdida de un objeto importante o separación significativa de apoyo y hay dificultad de regulación emocional. La comprensión dimensional del OPD permitió una comprensión del funcionamiento psicodinámico de los pacientes de forma más clara, que puede facilitar el entendimiento del contexto clínico de estrés.

Palabras clave: evaluación; psicodinámica; estrés.


 

 

Introdução

A formulação psicodinâmica, realizada por meio do processo avaliativo, reúne a dinâmica da situação clínica do paciente, permitindo uma clareza na compreensão do caso clínico em questão no que se refere às motivações, problemáticas, elementos-chave da história desenvolvimental do paciente, mecanismos interpessoais e intrapsíquicos inerentes (Task Force OPD-2, 2008). Nesse sentido, a avaliação psicodinâmica de pacientes que sofreram trauma psicológico tem características peculiares, que complementam o diagnóstico psiquiátrico nosológico de Transtorno de Estresse Agudo e Pós-Traumático, tais como: sofrimento subjetivo da doença (Eixo I), padrão de relacionamento interpessoal (Eixo II), conflito intrapsíquico (Eixo III), estrutura psicológica (Eixo IV); cada aspecto corresponde a um eixo do Diagnóstico Psicodinâmico Operacionalizado (OPD-2).

O trauma psicológico é considerado o resultado de uma situação experienciada pelo sujeito em que houve ameaça à integridade física e/ou psicológica a si mesmo ou a outrem, tais como assaltos, acidentes, perdas e violência de maneira geral (Eizirik et al., 2006; Laplanche & Pontalis, 1991; Peres, 2009). Ou seja, são causados por um agente externo de maneira que sobrecarregaram a capacidade do ego de processar a angústia e a dor psíquica provocadas (Zimerman, 2001). Para Freud, o trauma descreve eventos violentos ou inesperados que rompem com as defesas do psiquismo, tornando-o incapaz de funcionar normalmente; há perda da capacidade simbólica. Entretanto, é determinante a maneira como as pessoas processam a situação estressora após sua ocorrência para o estabelecimento do trauma ou recuperação satisfatória do evento. Destaca-se que os eventos traumáticos do presente podem associar-se inconscientemente a situações traumáticas do passado. Aponta-se que, após a ocorrência estressante, pode haver a configuração de hiperestimulação, cuja ansiedade é prevalente ou pode configurar-se como dissociação, em que o indivíduo parece anestesiado, mas esconde grande sofrimento interior (Garland, 2015).

As características diagnósticas de pessoas que sofreram trauma referem-se ao Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) e ao Transtorno de Estresse Agudo (TEA). Os sintomas predominantes de TEPT e TEA, a partir de um diagnóstico descritivo, são: lembranças intrusivas, recorrentes e involuntárias; sonhos angustiantes; reações dissociativas de revivência do evento traumático; sofrimento psicológico e reações fisiológicas intensas; evitação de estímulos associados ao trauma; cognições distorcidas; reações comportamentais; entre outros. As principais diferenças entre os diagnósticos referem-se a que o padrão sintomático do TEA ocorre dentro de um mês depois do evento traumático e cedem dentro desse período; se não, há a piora dos sintomas e evolução para o TEPT (APA, 2014).

No XII Congresso de Pesquisa em Psicoterapia SPR-Latino-Americano de 2016, foi exposto pelo palestrante Sidnei Schestatsky que, para o ano de 2018, no CID-11, tais características do TEPT constituirão o TEPT Simples (TEPT-S); enquanto o TEPT Complexo (TEPT-C) integrará situações de exposição a eventos ou a uma série de eventos de natureza extrema e prolongada, como em casos de violência doméstica recorrente. Os sintomas do TEPT-C propostos até o momento referem-se a: problemas graves e pervasivos da regulação dos afetos; crenças persistentes sobre si mesmo como alguém inferior, fracassado ou sem valor, acompanhadas de sentimentos de vergonha e culpa; dificuldades persistentes em manter relacionamentos afetivos ou sentir-se próximo e íntimo de outras pessoas; prejuízos significativos em diferentes áreas da vida da pessoa (pessoal, familiar, social, educacional, ocupacional); além das demais características do TEPT-S. Segundo Souza (2017), é um transtorno ainda pouco estudado, além de ser um tema atual.

Sobre os recursos individuais, há características que auxiliam na elaboração do evento traumático, tais como a constituição da capacidade de resiliência, a fase da vida em que o evento traumático ocorreu e a história pregressa. A internalização das representações de bons relacionamentos na infância auxiliam na estruturação de sujeitos mais seguros e estáveis (Garland, 2015). Destaca-se que as representações são construídas desde as relações primárias com os cuidadores e resultam em esquemas mentais representativos do self e do objeto que se desenvolvem ao longo do ciclo vital pelo próprio processo de amadurecimento, em que experiências internalizadas são as bases para a construção de estruturas representacionais complexas (Priel et al., 2007). Tais representações internalizadas são determinantes na regulação emocional e comportamental, e funcionam como modelo representacional de si mesmo e dos demais, bem como das relações interpessoais (Blatt, Auerbach & Levy, 1997; Fonagy, 1999; Zanatta & Benetti, 2012).

Em situações traumáticas como violência, no geral, pode haver o estabelecimento de estruturas psíquicas desorganizadas. Esse funcionamento psicológico caracteriza-se pela cisão das representações de objeto, instabilidade nas relações, dificuldade na organização de um sentido de identidade, e falhas na capacidade de mentalização / função reflexiva (Kernberg, Weiner & Bardenstein, 2003). Outros autores apontam que ocorrem problemas no desenvolvimento da mentalização quando há traumas, cuja ruptura prejudica a capacidade de pensar e refletir sobre os estados mentais ou de relatar relacionamentos passados (Bateman & Fonagy, 2006, 2010, 2013; Fonagy & Target, 1997; Weinberg, 2006). Em um processo psicoterapêutico, há a reencenação traumática com a estimulação da capacidade de refletir e mentalizar sobre o acontecido. Assim, é possível proporcionar uma nova compreensão, que produzirá novas representações (Gabbard, 2006).

Diante disso, é necessária a avaliação específica desse contexto traumático do paciente, procurando identificar os recursos e obstáculos do paciente e qual a explicação pessoal para a situação vivenciada. Ou seja, investigar as características e o funcionamento psicodinâmico auxiliam na avaliação e compreensão clínica desses pacientes. Nesse sentido, criou-se em 1990 um instrumento chamado Diagnóstico Operacionalizado Psicodinâmico (Operationalisierte Psychodynamische Diagnostik, OPD), que integra a dimensão psicodinâmica à sintomatologia descritiva comum dos manuais diagnósticos (Task Force OPD-2, 2008). Atualmente, há a 2ª versão do manual operacionalizado, inclusive com validação em espanhol, português (de Portugal), inglês e recentemente em português do Brasil, a partir de um estudo gaúcho da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) (Krieger, 2013).

 

Objetivo

O objetivo central é avaliar o funcionamento psicodinâmico de pacientes com Transtorno de Estresse Agudo ou Estresse Pós-Traumático por meio do Diagnóstico Operacionalizado Psicodinâmico (OPD-2), no que se refere à estrutura, conflito intrapsíquico e padrão interacional do sujeito.

 

Método

Delineamento

Trata-se de um estudo transversal quantitativo.

Participantes

A amostra, por conveniência, é composta por três pacientes oriundos do Núcleo de Estresse Traumático (NET-Trauma) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, vinculados no ano de 2016. Foram incluídos pacientes que desencadearam sintomas típicos de TEPT ou TEA devido a alguma situação traumática de violência urbana. O diagnóstico foi realizado mediante entrevista psiquiátrica utilizando clinicamente o DSM-5. Foram excluídos os pacientes que elaboraram tal evento de forma saudável, sem prejuízos laborais ou funcionais. Dessa forma, os participantes desse estudo são:

  • Participante 1: Homem, 54 anos, diagnóstico de TEA. Presenciou a execução de uma pessoa devido ao tráfico.

  • Participante 2: Homem, 47 anos, diagnóstico de TEA, porteiro de um serviço de saúde. Ele e alguns colegas de trabalho precisaram se defender contra um motim de 25 pacientes.

  • Participante 3: Mulher, 34 anos, diagnóstico de TEPT, Agorafobia, Transtorno de Ansiedade Generalizada. Foi uma das últimas pessoas a conseguir descer de um ônibus público em chamas.

Instrumento

O OPD-2 é um sistema de diagnóstico multiaxial que compreende cinco eixos, quatro dos quais psicodinâmicos e o último descritivo: (I) vivência da doença e pré-requisitos para o tratamento; (II) relações interpessoais; (III) conflito psíquico; (IV) estrutura psíquica; (V) diagnóstico nosológico tradicional, como DSM e CID (OPD-2, 2008; Tabela 1 - Anexo). Cada um desses eixos foi operacionalizado em um inventário diagnóstico, formulado por meio de abstração para avaliar processos observáveis e descritos (Pérez et al., 2009). Os dados dos respectivos eixos são identificados pela entrevista clínica, pelo discurso e conduta do paciente, bem como pela observação do terapeuta, seja pela contratransferência seja pela inferência de questões (Task Force OPD-2, 2008). O instrumento visa a formulação, identificação, foco e planejamento do tratamento (Schneider et al., 2008).

Procedimentos éticos, de coleta e de análise

Os sujeitos participantes deste trabalho foram informados dos objetivos da pesquisa e foram convidados a participar do trabalho de forma voluntária. A coleta de dados pelas entrevistas foi realizada enquanto os pacientes estavam em tratamento com residentes no serviço do hospital. As entrevistas foram conduzidas por profissionais experientes em psicoterapia psicodinâmica, gravadas em áudio e em seguida transcritas. Posteriormente, as entrevistas foram operacionalizadas conforme os cinco eixos do sistema OPD, com a elaboração do entendimento diagnóstico acerca da entrevista. O juiz avaliador é um expert em OPD, com treinamento específico no sistema multiaxial, e não conhecia os pacientes. Utilizou-se o coeficiente Kappa para avaliar a confiabilidade teste-reteste com poder de 70% (Perroca & Gaidzinski, 2003). Quanto aos aspectos éticos, o projeto foi aprovado no Comitê de Ética da instituição de ensino vinculada e foi assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

 

Resultados

Os participantes apresentaram diversas características em comum no que se refere à compreensão psicodinâmica, talvez por se tratar de diagnósticos decorrentes de eventos traumáticos. Também foram identificadas diferenças particulares em cada paciente. Optou-se por apresentar os dados com arrimo nos eixos dimensionais do OPD-2.

No Eixo I, vivência da doença e pré-requisitos para o tratamento, os participantes apresentaram um sofrimento subjetivo moderado, com limitações no domínio mental e social. Demonstraram dificuldades em realizar suas atividades cotidianas, apresentaram dores ou desconfortos e se mostraram moderadamente ansiosos ou deprimidos. Tais sintomas estavam presentes há mais de um mês. A participante 3 apresentou elevados níveis de ansiedade. Todos os pacientes almejavam uma melhora oriunda de tratamento psicológico, com o intuito de trabalhar a elaboração das questões traumáticas para restabelecerem suas vidas anteriores e esforçavam-se para alcançar novas perspectivas de vida. Destaca-se que os participantes desejavam cessar o uso da medicação iniciada após o evento traumático. O participante 2 almejava em demasia a redução dos sintomas, apesar de resistências internas à mudança. Particularmente, a participante 3 possui uma visão muito espiritualista de apoio para superar obstáculos.

O Eixo II, padrão de relacionamento interpessoal, foi aquele em que mais houve discrepâncias. Quanto à perspectiva dos pacientes, eles vivenciavam a si mesmos desde a preferência por se harmonizar e evitar a agressividade, até procurar não depender dos outros e reivindicar espaço e independência; por exemplo, os participantes 1 e 2 não conseguiam trabalhar durante algum tempo, enquanto a participante 3 só conseguia sair de casa acompanhada; foi predominante o fato de cuidar-se muito, permanecer em alerta e proteger-se de ataques. Em relação a como cada paciente percebia os demais, prevaleceram características em que os outros permitiam muito espaço, deixando que o paciente escolhesse o nível de autonomia em algumas situações, mas em outras se impunham com grosseria, bem como negavam a culpa em relação a alguma questão, apesar de se preocuparem em demasia e se protegerem de possíveis ataques permanecendo em alerta. Já sob a perspectiva dos demais, os pacientes eram vivenciados como pessoas que permitiam que os outros atuassem autonomamente sobre si, apegando-se a alguém para ser um suporte protetor e apoiador. Assim também, os pacientes isolavam-se e separavam-se dos demais e de suas atividades, cuidando-se muito. Diante disso, os outros eram frequentemente percebidos, na relação com os pacientes, como pessoas que se preocupavam muito consigo mesmos, podendo se impor de forma grosseira em alguns momentos e ser excessivamente afetuosos em outros. Especialmente, o paciente 1 demonstrava muita dependência em situações frágeis de sua vida, como um apoio durante tais momentos; entretanto, os outros reivindicavam e faziam exigências a ele, nem sempre acolhendo suas demandas. Observou-se que o participante 2 evitava a agressividade, procurava ser independente e se isolava dos demais, já que estes se comportavam de forma grosseira e negavam a culpa. E a participante 3 destacava-se por apresentar maior dependência que os demais, enquanto estes permitiam essa dependência, pois preocupavam-se muito com ela e procuravam ser afetuosos.

Em relação ao Eixo III, conflito psíquico, há o fator do estresse presente, que interfere na avaliação do conflito intrapsíquico, já que a contradição no sistema motivacional do paciente pode ser explicada pela presença de uma exigência concreta externa ou interna que modifica seu comportamento devido ao trauma. Entretanto, pode-se observar que o evento traumático ativa o padrão conflitual repetitivo na biografia dos pacientes. Dessa forma, é possível observar o conflito prevalente na vida desses sujeitos. A necessidade de ser cuidado versus autossuficiência foi o conflito principal identificado em todos os pacientes, tanto no processamento ativo (autossuficientes e independentes) como no passivo (submissos e dependentes). Esse conflito refere-se à necessidade dos indivíduos de receber algo, para se certificarem da atenção e dos cuidados que recebem ou que dão, com desejo de cuidado e segurança ou defesa contra esses. Assim, pode-se perceber que o indivíduo com esse conflito é capaz de estabelecer uma relação com o outro. Como conflito secundário, pode-se apontar a submissão versus controle, em que a ênfase do indivíduo é dominar o outro ou submeter-se ao outro cujos impulsos agressivos desempenham um papel central. O sistema motivacional, nesse sentido, procura reparações a serviço da manutenção estrutural a partir, por exemplo, de fenômenos compulsivos.

O Eixo IV, estrutura psíquica, apresenta-se nesses pacientes num nível moderado, em que os conflitos são mais destrutivos e o receio principal é a perda de um objeto importante ou a separação significativa de apoio e regulação. A percepção reflexiva do self está um pouco reduzida, com introspecção limitada dos próprios afetos, tentando manter-se estável pela evitação do afeto; apresentam inflexibilidade emocional, prevalecendo o autocontrole e defendendo-se contra esses afetos. Os interesses próprios e os dos outros não são claramente percebidos, ou são enfatizados de forma rígida, e a capacidade de empatia é limitada. Os pacientes frequentemente são explorados pelos outros e são incapazes de se defender contra isso. Assim, envolvem-se com facilidade em problemas, como ocorreu com os participantes 1 e 2. Todos os três participantes têm imagens internas de figuras de apego não muito estáveis. Dessa forma, tornam-se dependentes de alguém que os acolham nesse momento, podendo promover uma importância emocional do outro de maneira excessiva. Observa-se que os participantes procuraram figuras de apoio, tais como pais e cônjuges. Em relação ao trabalho, almejam a compreensão da equipe e dos dirigentes quanto a faltas e uso de medicação, exemplificado pelo participante 2, mas nem sempre são acolhidos, como ocorreu com o participante 1.

Por fim, o Eixo V refere-se ao diagnóstico descritivo, em que todos os pacientes apresentam Transtorno de Estresse, seja Agudo, seja Pós-Traumático.

 

Discussão

O objetivo do presente estudo foi avaliar o funcionamento psicodinâmico de pacientes com transtorno de estresse mediante um diagnóstico multiaxial. Os participantes apresentaram diversas características comuns entre si, tiveram sofrimento subjetivo moderado, com dificuldades emocionais e sociais, voltadas para dependência ou autossuficiência dos participantes e para o controle dos afetos.

Em relação a vivências de fatores psicológicos (Eixo I), os pacientes não reconhecem sentimentos de sofrimento, apenas demonstram limitações no controle de impulsos, que corroboram as características sintomáticas comuns de pacientes expostos a eventos aversivos. A exposição ou vivência do estressor perturba o equilíbrio do sujeito com duração de três a trinta dias, no diagnóstico de TEA, e por ao menos um mês, nos casos de TEPT, que é uma evolução do TEA. A resposta comum a esses eventos envolve ansiedade, tanto como revivência do evento quanto como forma de reatividade a ele; pode haver sintomas dissociativos ou uma resposta de raiva intensa, que pode provocar agressividade (APA, 2014). Os sintomas dos participantes são concordantes com as situações que vivenciaram. Entretanto, percebe-se que eles não reconhecem o sofrimento subjetivo. Nesse sentido, sugere-se que os pacientes fazem uso da dissociação e negação, além de demonstrarem desadaptação social nas áreas do trabalho, atividades de lazer e família.

Sobre o Eixo II (relacionamento interpessoal), há rigidez do padrão para o estabelecimento de relações interpessoais, com tendências à dependência e à submissão, procurando harmonizar-se com os demais, mas também podendo ocorrer atitudes agressivas, com tentativas de reconhecimento do seu espaço. Essas características aproximam-se do relatado nos pacientes com TEPT da pesquisa de Cahill e Foa (2007) e corroboram com as características dos demais eixos.

O DSM-5 aponta a possibilidade de fatores de risco pré-traumáticos que incluem problemas emocionais na infância ou transtornos mentais prévios (APA, 2014). Nesse sentido, acredita-se que a qualidade dos cuidados parentais funciona como modelo representacional das interações (Bowlby, 1988), cujas representações influenciam como o sujeito percebe e interage com a realidade, tendo uma função regulatória emocional. Tal conceito é denominado mentalização (Fonagy et al., 2002; Fonagy & Target, 1997). Percebe-se que os participantes têm dificuldades na regulação do afeto, dificuldades de empatia, o que indica dificuldades de mentalização. Também utilizam mecanismos de defesa primitivos para lidar com situações de estresse, tais como dissociação, despersonalização, projeção, agressão, acting-out, deslocamento, cisão e somatização. Tais defesas demonstram a desadaptação diante da realidade, com distorções dela.

Em relação ao Eixo IV (estrutura psíquica) pode-se observar um nível de personalidade mediano em relação às funções, tais como autopercepção, regulação emocional, comunicação interna e externa, e vinculação (Task Force OPD-2). Esses aspectos corroboram dados da literatura que sugerem que indivíduos com essas características possuem recursos limitados para elaborar eventos traumáticos (Bachar, Hadar & Shalev, 2005; Savic et al., 2012). Com isso, esses sujeitos possuem dificuldades na manutenção de relacionamentos interpessoais, oscilações de humor, isolamento, entre outras, já que extrapolam a capacidade do ego em processar a angústia provocada. Por isso, um evento traumático não pode ser considerado somente conforme o agente externo, mas também conforme os recursos internos dos indivíduos para sua superação. Tais acontecimentos traumáticos vão sendo gradativamente elaborados (Santana, 2015). A ansiedade principal é a perda ou separação de um objeto importante, combinados com o receio dos próprios impulsos intensos (Task Force OPD-2).

Sobre o Eixo III (conflito psíquico), prevaleceu em todos os participantes a necessidade de ser cuidado versus autossuficiência, de modo passivo como ativo. Nesse conflito, observa-se desejo de segurança, tanto por comportamentos essencialmente cuidadores e pouco exigentes, procurando agradar aos demais e querendo estar "sempre juntos"; como por comportamentos que demonstram ser totalmente dependentes e exigentes, com medo de perder o outro, estando sempre disponíveis aos demais. Tais aspectos caracterizam-se por tentativas de receber cuidado como um desejo inconsciente e uma busca por manter o controle da situação e de sua vida, correspondente ao conflito secundário submissão versus controle. O conflito secundário tem o objetivo central de dominar o outro ou de submeter-se aos outros ao serviço da manutenção estrutural. Também pode haver tentativas de desvalorizar o outro, com o objetivo de parecer "bom" para si mesmo. Observa-se uma raiva desesperada e uma vontade de subjugar diante dos demais com a pretensão de receber cuidado. Assim, há uma submissão às regras sociais e às responsabilidades com tentativas de ir trabalhar, mesmo com sintomas graves, cujas vontades e desejos de si mesmo são subordinados.

A avaliação geral do paciente sob a perspectiva do OPD demonstra a riqueza de características avaliadas, procurando uma compreensão psicodinâmica do sujeito, não somente dos sintomas que ele apresenta, mas também dos padrões relacionais e estruturais do paciente. Esse instrumento demonstrou ser eficaz na avaliação de pacientes com diagnóstico de TEA e TEPT devido à violência urbana.

Na pesquisa em questão é característica a ocorrência de violência urbana em todos os casos. Sobre esse aspecto, aponta-se que está cada vez mais comum esse tipo de evento na sociedade, em que suas consequências psicossociais e impacto na vida do sujeito, para pensar em possibilidade de intervenção, ainda são pouco discutidas (Gonçalves, Queiroz & Delgado, 2017). Há autores que apontam indícios de alta prevalência de transtornos mentais associados à violência urbana (Mari, Mello & Figueira, 2008). Tal violência está associada à gravidade e ao surgimento de alguns transtornos, como o TEA e o TEPT, considerando pertinente avaliar as alterações na personalidade do sujeito na incidência de sintomas de ansiedade e depressão, situando fatores de risco e proteção (Santana, 2015).

 

Considerações Finais

A avaliação psicodinâmica dos participantes com diagnóstico nosológico de TEPT ou TEA ampliou a compreensão desses pacientes. Não se tem a pretensão de generalizar as características dos diagnósticos em questão, mas pode-se identificar aspectos em comuns apresentados pelos pacientes, tais como: dificuldades em realizar suas atividades cotidianas com sofrimento considerável (Eixo I), padrão relacional de dependência devido a possíveis falhas no vínculo de apego (Eixo II). O conflito principal observado foi voltado para necessidade de ser cuidado versus autossuficiência (Eixo III) e os participantes apresentaram poucos recursos para manter a estabilidade emocional, mais inclinada ao autocontrole pela evitação do afeto (Eixo IV).

Os resultados do OPD integram informações clínicas que auxiliam na indicação e planificação da terapia, possibilitando uma compreensão do funcionamento psicodinâmico do paciente de forma mais clara, o que pode facilitar o entendimento do contexto clínico de estresse. Mediante a compreensão dimensional, foi possível identificar recursos e obstáculos a serem trabalhados em psicoterapia, cuja relação terapêutica pode ser uma oportunidade de configuração relacional que oferece o desenvolvimento de representações internas de vínculo seguro. Assim, o tratamento também é uma forma de prevenir a revitimização e construir mecanismos de enfrentamento mais adaptativos.

Observa-se que uma das limitações do presente estudo refere-se à codificação por somente um juiz avaliador, apesar da confiabilidade teste-reteste e do seu treinamento no instrumento OPD. Outro aspecto, é que os residentes responsáveis pela entrevista não tinham conhecimento do instrumento, com o que alguns itens não foram codificados devido à falta da informação correspondente, o que não invalidou a utilização do instrumento. Aponta-se a necessidade de investir em mais pesquisa abrangendo o transtorno do estresse em diferentes características pessoais para consolidação dos resultados. Revela-se que os autores não têm conflitos de interesse quanto ao desenvolvimento ou ao resultado desta pesquisa.

 

Referências

APA (American Psychiatric Association) (2014). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5 (trad. M. I. C. Nascimento et al.), 5ª ed. Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Bachar, E.; Hadar, H.; Shalev, A. Y. (2005). Narcissistic vulnerability and the development of PTSD: a prospective study. Journal of Nervous and Mental Disease, 193(11), 762-765.         [ Links ]

Bateman, A.; Fonagy, P. (2006). Mentalization-based Treatment for Borderline Personality Disorder: A Practical Guide. Oxford University Press.         [ Links ]

Bateman, A.; Fonagy, P. (2010). Mentalization based treatment for borderline personality disorder. World Psychiatry, 9.         [ Links ]

Bateman, A.; Fonagy, P. (2013). Tratamento baseado na mentalização e transtorno de personalidade borderline. In: Clarkin, J. F.; Fonagy, P.; Gabbard, G. O. (orgs.). Psicoterapia psicondinâmica para transtornos de personalidade: Um manual clínico. Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Blatt, S. J.; Auerbach, J. S.; Levy, K. N. (1997). Mental representations in personality development, psychopathology, and the therapeutic process. Review of General Psychology, 1, 351-374.         [ Links ]

Bowlby, J. (1988). Uma base segura: aplicações clínicas da teoria do apego (trad. S. M. Barros). Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Cahill, S. P.; Foa, E. B. (2007). Psychological Theories of PTSD. In: Friedman, M. J.; Keane, T. M.; Resick, P. A. (orgs.). Handbook of PTSD: Science and practice, p. 55-77. New York: Guilford Publications.         [ Links ]

Eizirik, M.; Schestatsky, S.; Knijnik, L.; Terra, L.; Ceitlin, L. H. F. (2006). Contratransferência e trauma psíquico. Revista de Psiquiatria Rio Grande do Sul, 28(3), 314-20.         [ Links ]

Fonagy, P. (1999). Persistencias transgeneracionales del apego: una nueva teoria. Aperturas psicanalíticas, 4. (Trabalho apresentado no "Grupo psicoanalítico de discusión sobre el desarrollo", reunião da APA, Washington, DC).         [ Links ]

Fonagy, P.; Gergely, G.; Target, M.; Jurist, E. L. (2002). Affect regulation, mentalization, and the development of the self. Nova York: Other Press.         [ Links ]

Fonagy, P.; Target, M. (1997). Attachment and reflective function: Their role in self-organization. Development and Psychopathology, 9, 679-700.         [ Links ]

Gabbard, G. O. (2006). Psiquiatria psicodinâmica na prática clínica (trad. M. R. S. Hofmeister), 4ª ed. Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Garland, C. (2015). Abordagem psicodinâmica do paciente traumatizado. In: Eizirik, C. L.; Aguiar, R. W.; Schestatsky, S. S. (org.). Psicoterapia de orientação analítica: Fundamentos teóricos e clínicos. Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Gonçalves, H. C. B.; Queiroz, M. R.; Delgado, P. G. G. (2017). Violência urbana e saúde mental: desafios de uma nova agenda?. Fractal: Revista de Psicologia, 29(1), 17-23.         [ Links ]

Kernberg, P. F.; Weiner, A. S.; Bardenstein, K. K. (2003). Transtorno de Personalidade em crianças e adolescentes: uma visão geral. Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Krieger, D. V. (2013). Operationalized Psychodynamic Diagnosis 2: apresentação da versão brasileira e estudos preliminares de validade e confiabilidade (dissertação de mestrado). Porto Alegre: UFRGS, Curso de Pós-Graduação em Psiquiatria e Ciências do Comportamento.         [ Links ]

Laplanche, J.; Pontalis, J. B. (1991). Vocabulário de psicanálise (trad. P. Tamen), 5ª ed. Lisboa: Moraes Editores.         [ Links ]

Mari, J. J.; Mello, M. F.; Figueira, I. (2008). The impact of urban violence on mental health. Revista Brasileira de Psiquiatria, 30(3), 183-184.         [ Links ]

Peres, J. (2009). Trauma e superação. São Paulo: Roca.         [ Links ]

Pérez, F.; Alvarado, L.; Parra, G.; Dagnino, P. (2009). Diagnóstico Psicodinámico Operacionalizado (OPD-2): Evaluación preliminar de la validez y confiabilidad inter-evaluador. Revista Chilena de Neuro-Psiquiatría, 47(4), 271-278.         [ Links ]

Perroca, M. G.; Gaidzinski, R. R. (2003). Assessing the interrater reliability of an instrument for classifying patients: kappa quotient. Revista da Escola de Enfermagem da USP, 37, 72-80.         [ Links ]

Priel, B.; Besser, A.; Waniel, A.; Yonas-Segal, M.; Kupermic, G. (2007). Interpersonal and intrapersonal processes in the formation of maternal representations in middle childhood: Review, new findings and future directions. Israel Journal of Psychiatry and Related Sciences, 44(4), 255-265.         [ Links ]

Santana, M. R. M. (2015). Transtorno de Estresse Agudo: Um estudo sobre as características de personalidade e estilos defensivos em pacientes vítimas de trauma físico (dissertação de mestrado). Porto Alegre: UFRGS, Curso de Pós-Graduação em Psiquiatria e Ciências do Comportamento.         [ Links ]

Savic, D.; Knezevic, G.; Damjanovic, S.; Spiric, Z.; Matic, G. (2012). The role of personality and traumatic events in cortisol levels - Where does PTSD fit in?. Psychoneuroendocrinology, 37(7), 937-947.         [ Links ]

Schestatsky, S. (2016). XII Congresso de Pesquisa em Psicoterapia SPR-Latino-Americano. Porto Alegre, Brasil.         [ Links ]

Schneider G, Mendler T, Heuft G, Burgmer M. (2008). Validität der Konfliktachse der Operationalisierten Psychodynamischen Diagnostik (OPD-1) - Empirische Ergebnisse und Folgerungen für die OPD-2. Zeitschrift für Psychosomatische Medizin und Psychotherapie, 54(1), 46-62.         [ Links ]

Souza, C. M. (2017). A violência contra a mulher como fator de risco para o desenvolvimento do transtorno de estresse pós-traumático (dissertação de mestrado). São Paulo: Universidade Metodista de São Paulo, Escola de Ciências Médicas e da Saúde, Curso de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde.         [ Links ]

Task Force OPD-2 (2008). Diagnóstico Psicodinámico Operacionalizado: Manual para el diagnóstico, indicación y planificación de la psicoterapia. Barcelona: Herder.         [ Links ]

Weinberg, E. (2006). Mentalization, affect regulation, and development of the self. Journal of the American Psychoanalitic Association, 54, 251-270.         [ Links ]

Zanatta, D.; Benetti, S. P. C. (2012). Representação mental e mudança terapêutica: Uma contribuição da perspectiva psicanalítica da teoria das relações objetais. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 28(1), 93-100.         [ Links ]

Zimerman, D. E. (2001). Vocabulário contemporâneo de psicanálise. Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

 

 

Recebido em 24 de novembro de 2017
Aceito para publicação em 28 de dezembro de 2017

 

 

Anexo

 

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons