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Psicologia Clínica
versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.30 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2018
https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0030n03R01
RESENHAS
Discutindo a guerra contemporânea: trauma, catástrofe e risco
Discussing contemporary warfare: trauma, catastrophe and risk
Discutiendo la guerra contemporánea: trauma, catástrofe e riesgo
Flavia Guerra Cavalcanti
Doutora em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Brasil; Professora Adjunta do Instituto de Relações Internacionais da UFRJ. flaviagcavalcanti@yahoo.com.br
Resenha do livro: Birman, Joel; Fortes, Isabel (org.) (2018). Guerra, catástrofe e risco: uma leitura interdisciplinar do trauma. São Paulo: Zagodoni Editora. (130p.)
Guerra, catástrofe, risco e trauma são temas que têm aparecido conectados com cada vez maior frequência na mídia e em trabalhos acadêmicos das mais variadas áreas, como psicanálise, relações internacionais, teoria política, filosofia e saúde, entre outras. O livro Guerra, Catástrofe e Risco: Uma Leitura Interdisciplinar do Trauma, organizado por Joel Birman e Isabel Fortes, transita justamente nesse espaço interdisciplinar, procurando desenvolver problematizações a partir de um diálogo entre diferentes áreas sobre o papel da guerra e sua relação com o que se constitui hoje como ameaça, risco, trauma e catástrofe. Os seis artigos são resultado de um colóquio internacional ocorrido em março de 2016, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, do qual participaram pesquisadores de um acordo de colaboração científica, estabelecido em 2013, entre a UFRJ e a Université Paris-Diderot (Paris VIII).
O tema da guerra está posto, desde o início dos anos 1990, como um desafio à governabilidade neoliberal proclamada pelos Estados Unidos e pela ONU. O mundo pós-Guerra Fria não eliminou a guerra, como pretendiam os mais otimistas defensores da globalização, mas criou o que alguns autores chamam de "novas guerras" (Kaldor, 2007), uma modalidade de guerra permanente e continuada (Gros, 2009), que acontece em rede não territorial (Duffield, 2014). Incentivou ainda um discurso sobre a proliferação de novas ameaças, que poderiam vir dos mais diversos campos: economia, meio ambiente, saúde, migrações, energia, alimentação, numa lista virtualmente infindável. É nesse contexto que os conceitos de risco, trauma e catástrofe passam a ser cada vez mais invocados para se referir a situações cotidianas.
No ensaio "A questão da guerra em Freud", Joel Birman retoma o texto de Freud intitulado "Por que a guerra?", publicado em 1933, decorrente de uma troca de correspondência com o físico Albert Einstein. Nesse texto, Freud pensará a guerra e a impossibilidade da paz a partir do dualismo entre pulsão de vida e pulsão de morte, que já havia sido apresentado em 1920, em "Além do princípio do prazer", e em 1930, em "O mal-estar na civilização". Esta visão freudiana sobre a guerra difere daquela que prevaleceu até 1914 em seus escritos, particularmente em "Totem e tabu", de 1913, que trata do interdito de matar. A eclosão da Primeira Guerra Mundial levou Freud a rever sua posição. Em seu texto sobre a guerra, Freud afirma que a civilização se constitui a partir de limites impostos à força. No entanto, tal limite não é absoluto nem evita a emergência da guerra, porque o sujeito é sempre marcado, de maneira insistente, pela polarização entre pulsão de vida e pulsão de morte. Dessa forma, não seria possível, como queria Einstein, adotar ações preventivas em relação à guerra para alcançar a Paz Perpétua de Kant. "Esta polarização pulsional seria constitutiva da vida, de forma que interditar a violência pela 'ditadura da razão' implicaria pôr a vida em risco" (Birman, p. 21). O contrário, permitir a pulsão de morte em estado livre, também seria complicado, pois, resultaria na destrutividade humana.
Em "Análise com fim e análise sem fim" (1937), Freud afirma a incapacidade de disciplinar o sujeito por meio de três práticas: educar, governar e psicanalisar. Se, para alcançar a Paz Perpétua, é necessário disciplinar e educar o sujeito, então essa empreitada estará fadada ao fracasso. Segundo Birman, a tese do "narcisismo das pequenas diferenças" está localizada no mesmo contexto teórico. A agressividade e a destruição não dizem respeito apenas ao indivíduo, mas também aos grupos. Diferentes segmentos sociais e etnias não conseguiriam suportar a diferença e, por isso, tenderiam a recorrer à violência ao se defrontarem uns com os outros. O narcisismo das pequenas diferenças revela "a presença permanente da guerra na sociedade civil mesmo em tempos de paz e não apenas de guerra entre nações" (Birman, p. 28). A análise de Freud inverte, portanto, o enunciado de Clausewitz de que a Guerra seria a continuação da política em outros termos. A política é que se coloca como a continuação da guerra permanente na sociedade civil.
O segundo ensaio de Guerra, catástrofe e risco aborda um tipo de guerra que hoje parece permanente: a guerra ecológica. Em "A Guerra ecológica: reflexão sobre a dimensão conflitual do homem com seu meio ambiente", Maud H. Devès propõe uma leitura do conceito de guerra ecológica a partir da psicanálise. Para isso, empreende um levantamento sobre a suposta multiplicação das catástrofes. Desde os anos 1970, os discursos sobre catástrofe vêm aumentando exponencialmente, ainda que, de fato, os eventos catastróficos não sejam tão frequentes quanto, por exemplo, acidentes de trânsito. Nos anos 1990, os termos risco, catástrofe, proteção e segurança se tornaram bastante comuns no discurso científico-administrativo, sendo associados à noção de risco e ganhando um uso político. Já o discurso popular apresenta uma visão positiva da catástrofe, a qual renova e vitaliza a sociedade.
A teoria freudiana teria uma contribuição para a reflexão sobre a guerra ecológica porque "evidencia a existência de um conflito intrínseco na relação do homem com seu meio ambiente, conflito que faz eco ao conflito pulsional observado por Freud" (Devès, p. 54). O sujeito vive entre a natureza pulsional e as exigências culturais que o obrigam a renunciar a suas pulsões. Com a emergência da guerra, ele retornaria à agressividade de suas pulsões. O conceito de guerra ecológica, ao contrário da expressão "crise ecológica", nos remeteria à responsabilização do agente pela catástrofe ambiental.
O terceiro texto do livro, "Estado de guerra global: exceção, medo e crueldade sobre a periferia no século XXI", de Pedro Cláudio Cunca Bocayuva, aborda o que seria um novo tipo de estado de guerra, que recorre ao direito de intervenção supostamente humanitária para reordenar o "sistema-mundo" de acordo com os interesses das grandes potências. O novo estado de guerra global é permanente e difuso, espraiando-se pelos mais diversos lugares do planeta e impondo um regime de segurança como "a forma complementar e necessária de gestão da reprodução social dos padrões de dominação" (Bocayuva, p. 59). Assim, o conceito de segurança, que se alarga nos estudos internacionais desde os anos 1990, também é frequentemente associado às periferias, aos direitos sociais e às dinâmicas multiculturais. A guerra global se institui nesses espaços por meio de métodos inquisitoriais e coloniais direcionados a uma população marginalizada, em situação precária e constantemente submetida à crueldade.
Bocayuva salienta que o retorno da guerra como fenômeno legitimador da ordem global não poderia se estabelecer sem o apoio do capital financeiro e simbólico. É necessário, portanto, analisar o papel desses capitais na reprodução de certa visão do que constitui segurança, ameaça, catástrofe e risco. Também se torna imprescindível pensar a guerra em conjunto com as práticas de polícia global, uma vez que a diferenciação entre o interno (organizado pela polícia) e o externo (campo de atuação das forças armadas) vem se esvaindo na contemporaneidade. Outro elemento para pensar a transformação trazida pelo novo tipo de estado de guerra é a geografia crítica, capaz de registrar a produção de territórios, campos, espaços e zoneamentos a partir de tecnologias e regimes de segurança.
A guerra volta a ser o tema principal no artigo subsequente, "Considerações sobre a morte na atual guerra da mundialização", de Christian Hoffman, mas agora sob a luz da literatura e da psicanálise. Entre os vários tipos de guerras, os gregos consideravam a stasis - ou guerra civil - a pior de todas. No século XXI, poderíamos nos indagar: o que é a guerra civil e como ela se estabelece hoje? "O conceito de 'guerra difusa' proposto por Frédéric Gros permite destacar o embaralhamento entre a guerra clássica, a guerra total, a guerra civil e esta nova forma de guerra" (Hoffmann, p. 88). A ideia de uma guerra contínua tem, ainda, eco na afirmação de Freud, em "Por que a guerra?" (1933), de que não há possibilidade de resolução do conflito entre as pulsões de vida e morte. O mal sempre se faz presente e sua manifestação produz uma satisfação que "é associada a um grau extraordinariamente alto de gozo" (Freud apud Hoffmann, p. 93). Em Lacan, esse gozo receberá o nome de o gozo Outro, "o ilimitado", que consiste em "querer fazer o Um" com o outro. A guerra ilimitada e difusa teria uma lógica semelhante. O gozo obtido na destruição é ilimitado e da ordem do impossível.
Em "Risco e futuro", Paulo Vaz convida a uma reflexão sobre a atualidade do risco e como nossa percepção sobre ele está intrinsecamente ligada à forma como imaginamos o futuro. O risco refere-se à "probabilidade de ocorrência de um evento indesejado" (Vaz, p. 99), que pode ser uma doença, uma catástrofe, uma ameaça ou a guerra. O conceito de risco tem se difundido crescentemente desde os anos 1960 em todos os países ocidentais. Por que teria ocorrido essa disseminação? A tese de Vaz é que o conceito se tornou onipresente por conta do modo como nosso presente concebe o futuro e como relacionamos poder e medo. De Platão até o século XVII, os homens entendiam que o futuro reproduziria o presente. Com a Modernidade, no final do século XVIII, ocorre uma cisão temporal entre presente e futuro: este poderia ser qualitativamente melhor do que aquele. A partir da década de 1960, o futuro deixa de ser uma promessa de progresso ou de algo melhor e passa a ser visto como "catástrofe provável se houver a continuidade de nossas práticas" (idem, p. 105). No caso da saúde, fica bem clara a correlação, apontada nesses discursos, entre boas práticas no presente e ausência de doença no futuro. O próprio processo de cura é infinito, pois precisa ser mantido ao longo da vida. Vaz destaca que essa mesma lógica do risco está presente na guerra permanente e ilimitada teorizada por Gros.
O último artigo do livro, "Corpos desaparecidos: guerra e resistência no Brasil", de Fernanda Canavêz, Isabel Fortes, Regina Herzog e Simone Perelson, conecta o tema da guerra aos corpos dos desaparecidos na ditadura civil-militar (1964-1985) e do ajudante de pedreiro Amarildo (2013). A partir da relação entre psicanálise e cultura, as autoras mostram que "o luto opera como um modo de resistir ao aniquilamento do corpo desaparecido perpetrado em tais situações, buscando tornar visível a morte" (Canavêz et al., p. 120). Assim, o luto também seria uma forma de resistência à anulação da vida nos estados de exceção. Na ditadura civil-militar, a aniquilação funcionou de forma sistemática e organizada, enquanto na segunda década do século XXI ela seria mais difusa por ocorrer em uma democracia sob estado de exceção. É esse tipo de guerra difusa, para retomar o termo de Gros, que se instala em regiões periféricas onde os corpos carecem de visibilidade. O caso Amarildo, e toda a comoção social por ele gerada, mostraram uma demanda da comunidade pela visibilidade do corpo e pelo luto. Para entender essa relação do luto com a comunidade, as autoras aproximam a concepção de Judith Butler daquela que aparece no texto "O eu e o isso" (1923), de Freud, qual seja, a de que o luto deve ser definido como introjeção (a perda de um objeto sexual implica uma alteração do ego que só pode ser descrita como instalação do objeto dentro do ego). Para Butler, o luto é o momento em que o sujeito se depara com um enigma que nos liga ao outro. Portanto, cabe perguntar: que tipo de comunidade, de ligação com o outro, estamos construindo no Brasil quando vários corpos desaparecem sem serem percebidos? Qual o luto que não estamos realizando? Que tipo de guerra contemporânea está sendo travada nas periferias brasileiras por meio de regimes de segurança que ressignificam nossas concepções de risco, catástrofe, trauma, ameaça e futuro?
Referências
Duffield, Mark (2014). Global governance and the new wars. London & New York: Zed Books, p. 293. [ Links ]
Gros, Frédéric (2009). Estados de violência. Ensaio sobre o fim da guerra. São Paulo: Ideias & Letras. [ Links ]
Kaldor, Mary (2007). New & Old Wars. Organized Violence in a Global Era. Califórnia: Stanford University Press. [ Links ]
Recebido em 29 de julho de 2018
Aceito para publicação em 25 de agosto de 2018