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Psicologia Clínica
versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.31 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2019
https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0031n01A02
SEÇÃO TEMÁTICA - PARENTALIDADE E CUIDADOS PRIMÁRIOS HOJE
De quem é a preocupação primária? A teoria winnicottiana e o cuidado parental na contemporaneidade*
Who is concerned with primary preoccupation? Winnicott's theory and parental care in contemporary times
¿De quién es la preocupación primaria? La teoría winnicottiana y el cuidado parental en la contemporaneidad
Nathalia Teixeira Caldas CampanaI; Carine Valéria Mendes dos SantosII; Isabel Cristina GomesIII
IDoutora em Psicologia Clínica no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, Brasil. nacampana@gmail.com
IIDoutora em Psicologia Clínica no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, Brasil. carinevmendes@gmail.com
IIIProfessora Titular no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, Brasil. isagomes.usp@gmail.com
RESUMO
Face às inúmeras transformações ocorridas nas últimas décadas no interior da família, este artigo tem o objetivo de investigar a parentalidade contemporânea, tendo como base teórica uma revisão do conceito winnicottiano de preocupação materna primária. Partindo de um estudo qualitativo, discutir-se-á o material oriundo de entrevistas semidirigidas realizadas com dois casais heterossexuais de classe média brasileira, com filhos de até três anos de idade, cuja participação masculina em termos de tempo dedicado aos cuidados com as crianças fosse semelhante ou superior à da mulher. Os resultados indicam que a preocupação primária pode ser desenvolvida também nos homens, o que nos leva a propor que se desvincule este conceito de determinismos biológicos e que seja adotada a denominação "preocupação parental primária". A maior participação masculina não se configurou como ameaça à relação mãe-bebê. E, assim como os homens podem oferecer holding à relação mãe-bebê, as mulheres também podem oferecê-lo à relação pai-bebê.
Palavras-chave: casal; parentalidade; pesquisa qualitativa; provisão ambiental; Winnicott.
ABSTRACT
In view of the numerous transformations that have taken place in recent decades within family structure and functioning, this paper aims at investigating contemporary parenthood, based on a review of Winnicott's concept of primary maternal preoccupation. In order to investigate these issues, this study employs a qualitative approach to analyse semi-structured interviews with two Brazilian middle-class heterosexual couples who are parents of children up to three years old, in which the man's participation, in terms of time devoted to childcare, is similar or greater than the woman's. Results show that primary preoccupation may also be developed in men. Based on that, we propose to detach this concept from biological determinism and adopt the term "primary parental preoccupation". The greater male participation did not figure as a threat to the mother-baby relationship. And just as men can provide holding to the mother-baby relationship, women can also provide holding to the father-baby relationship.
Keywords: couple; parenthood; qualitative research; ambient provision; Winnicott.
RESUMEN
Delante de varias transformaciones ocurridas en las últimas décadas en el interior de la familia, este artigo tiene el objetivo de investigar la parentalidad contemporánea, teniendo como base teórica una revisión del concepto winnicottiano de preocupación materna primaria. Partiéndose de un estudio cualitativo, se discutirá el material oriundo de entrevistas semidirigidas realizadas con dos parejas heterosexuales de clase media brasileña, con hijos de hasta tres años de edad, cuya participación masculina en términos de tiempo dedicado a los cuidados con los niños fuera semejante o superior a la de la mujer. Los resultados indican que la preocupación primaria puede ser desarrollada también en los hombres, lo que nos lleva a proponer que se desvincule este concepto de determinismos biológicos y que sea adoptada la denominación "preocupación parental primaria". La mayor participación masculina no se configuró como amenaza a la relación madre-bebé. Y, así como los hombres pueden ofrecer holding a la relación madre-bebé, las mujeres también lo pueden ofrecer a la relación padre-bebé.
Palabras clave: pareja; parentalidad; pesquisa cualitativa; provisión ambiental; Winnicott.
Introdução
A partir do conceito winnicottiano de preocupação materna primária, este artigo tem o objetivo de discutir o cuidado parental desempenhado por homens e mulheres na atualidade, proposta que se justifica na medida em que, cada vez mais, a literatura científica reporta maior participação masculina nos cuidados com as crianças e a possibilidade de exercício parental igualitário entre os cônjuges desde o início da vida do bebê.
Dentre as inúmeras contribuições de Winnicott para a teoria psicanalítica, destacamos sua perspectiva de que a etiologia do sofrimento psíquico está intimamente relacionada às falhas ambientais que podem ocorrer ao longo do desenvolvimento emocional primitivo do indivíduo. Assim, embora enfatize a importância da descoberta de Freud a respeito da existência da realidade psíquica, Winnicott confere relevância à realidade externa, ou seja, ao ambiente que é constituído por pessoas reais (Winnicott, 1960/1983, 1987/2006).
De acordo com Plastino (2014), uma das críticas de Winnicott à psicanálise tradicional era de que esta se constituiu a partir de pressupostos deterministas influenciados por valores da sociedade patriarcal, contendo assim historicidade e não elementos de natureza imodificável. Se hoje sabemos que alguns pressupostos teóricos são reflexo de uma modalidade histórica de práticas sociais e modelos de pensamento, nos parece relevante rever alguns aspectos do que Winnicott descreveu como ambiente suficientemente bom. Tomado como essencial para o processo de desenvolvimento emocional do bebê, o ambiente descrito pelo psicanalista durante o período de dependência absoluta é composto por uma mãe em estado de devoção tal que lhe permite identificar-se com as necessidades da criança e assim fornecer condições nas quais o bebê constituirá o seu verdadeiro self - condição em que o viver adquire um sentido criativo. Ao pai caberia a função de oferecer sustentação à mãe para que ela cuide do bebê (Winnicott, 1987/2006, 1957/2008).
Em algumas passagens de sua obra Winnicott deixa transparecer uma percepção que pode ser considerada um reflexo do discurso macrossocial no qual estava inserido, ou seja, a família apresentava-se como um núcleo composto por uma mãe e um pai com divisões dicotômicas de papéis e funções nos cuidados com os filhos. A conhecida afirmação de Winnicott (1987/2006) de que não existe bebê sem cuidados maternos, e que a mãe deve alcançar um estado de sensibilidade exacerbada, denominado por ele de preocupação materna primária, nos mostra não só a importância da relação mãe-bebê, como também marca a posição do psicanalista que realça a importância das mulheres enquanto mães no início da vida de seus filhos, mas pouco nos diz sobre os homens.
Entretanto, ainda que Winnicott relacione o estado de preocupação materna primária com a biologia do puerpério, podemos flexibilizar este conceito estendendo-o ao pai? Reflitamos sobre os requisitos para este estado a partir de uma afirmação do autor:
(...) acreditamos que a mãe do bebê é a pessoa mais adequada para cuidar deste mesmo bebê: é ela a pessoa capaz de atingir este estágio especial de preocupação materna primária sem ficar doente. Já a mãe adotiva, ou qualquer outra mulher capaz de ficar doente no sentido da "preocupação materna primária", estará possivelmente em condições de adaptar-se suficientemente bem, na medida da sua capacidade de identificar-se com o bebê. (Winnicott, 1956/2000, p. 404)
A definição do conceito de mãe suficientemente boa é a de um adulto que se adapte às necessidades do bebê. Winnicott (1965/2005) denominou de função materna suficientemente boa um conjunto de três funções que a mãe deve desempenhar junto a seus filhos ao longo dos primeiros estágios do desenvolvimento emocional: holding, handling e apresentação dos objetos. A respeito do holding, Winnicott (1987/2006) esclarece que, para além da oferta de um colo, o bebê precisa ser segurado, ou sustentado, a partir de um estado psíquico materno que lhe ofereça continência e, para que isso ocorra, a mãe deve ser capaz de se identificar com o bebê.
De acordo com a teoria winnicottiana, a capacidade da mãe para se adaptar às necessidades da criança não está relacionada à sua inteligência ou ao conhecimento racionalmente adquirido. O que a orienta é sua capacidade de identificação com o filho, e essa aptidão vem da sua própria experiência de ter sido um bebê e de ter recebido cuidados; ela guarda memórias corporais de conforto e segurança, além de experiências de intimidade pessoal (Winnicott, 1956/2000). Sobre essas premissas, não encontramos diferenças entre homens e mulheres; afinal, o pai também já foi um bebê e recebeu cuidados. Rosa (2009), num texto mais atual, retoma a distinção entre pai e mãe no exercício parental a partir da leitura dos textos de Winnicott:
(...) não se trata contudo, de priorizar a mãe ou o pai nos cuidados com o bebê, mas de compreender que o tipo de ambiente (cuidados) que o bebê precisa encontrar ao nascer, como pré-requisito para um amadurecimento saudável, faz parte mais genuinamente da natureza do ser mulher. (Rosa, 2009, p. 63)
Temos, então, que desde Winnicott até recentemente a influência do modelo tradicional de família e as distinções de gênero se perpetuavam frente ao cuidado com os filhos, principalmente nos primeiros anos de vida. O autor fundamenta sua teoria principalmente nos aspectos biológicos que atribuem às mulheres maior aptidão para cuidar dos filhos. Já o papel do pai é descrito como sendo de extrema importância para proteger a esposa e prover o lar, dado que as crianças são sensíveis ao mundo que as rodeia e à estabilidade que sentem na relação entre os pais (Winnicott, 1957/2008). Devido à ênfase que o autor deu, ao longo de sua obra, à importância dos cuidados maternos e pela pouca referência aos cuidados paternos, não seria surpresa se afirmássemos que, no primeiro ano de vida do bebê, é atribuído ao pai um papel secundário, cabendo à mãe, inclusive por determinismo biológico, os cuidados com a criança pequena. Entretanto, isso não é consenso na literatura dedicada à obra de Winnicott. Rosa (2009) afirma que atribuir escassez a respeito do papel do pai na teoria winnicottiana é reflexo de uma leitura secundária sobre o tema e que a paternidade para o psicanalista não se restringe à função interventora postulada pela psicanálise tradicional. A autora analisou a função do pai desde os estágios primitivos até o Édipo e concluiu que Winnicott confere importância à figura paterna desde o nascimento da criança, sem, contudo, dimensionar a possibilidade de um cuidado igualitário entre os cônjuges.
Em uma perspectiva semelhante, Plastino (2014) afirma que as figuras parentais e suas maneiras de interpretar o mundo e de agir mudaram significativamente da época de Freud até o presente. Assim, se no patriarcado a figura paterna estava associada à representação da lei, o autor enfatiza que para Winnicott este papel é precedido, ao longo do período emocional primitivo, pela experiência de um "acolhimento amoroso" (Plastino, 2014, p. 102) e não repressivo. Portanto, para além de ser o ambiente, o pai contemporâneo tenderia a assumir com frequência o papel que é denominado na obra de Winnicott como mãe substituta ou auxiliar (Winnicott, 1960/1983, 1987/2006). Além disso, o autor destaca que na obra winnicottiana a figura do pai é uma referência e modelo de integração para o filho, ao contrário da mãe, que começaria sendo para o bebê um conglomerado de objetos parciais (Plastino, 2014).
Na medida em que a capacidade maturacional do bebê vai crescendo, a mãe começa a recuperar seus próprios interesses e a adaptação torna-se cada vez menos absoluta. Assim, quando a mãe deixa de se dedicar exclusivamente à criança, o que ocorre é uma espécie de desmame, que aos poucos permitirá que o bebê caminhe na direção da dependência relativa e, posteriormente, alcance a independência relativa (Winnicott, 1965/2005). O pai pode contribuir neste processo de desadaptação total ao começar a reivindicar a presença de sua esposa como parceira sexual (Plastino, 2014).
Apesar de toda a sensibilidade e expertise de Winnicott para teorizar a respeito das relações iniciais e dos estados primitivos de mente, considerando a diversidade de configurações e funcionamentos nos quais as famílias contemporâneas têm se estruturado, desenvolver outros ângulos de compreensão baseados numa tentativa de atualizar alguns aspectos da teoria winnicottiana nos parece pertinente.
Para empreender este exercício de revisão teórica, é necessário também apresentarmos uma breve explanação do que vem a ser este novo contexto entendido como contemporâneo. Para isto nos remetemos ao modelo da família colonial brasileira, composta por pai provedor, mãe cuidadora e filhos, e que por sua vez vem sofrendo transformações ao longo dos últimos anos (Bilac, 2014; Gomes & Levy, 2009; Roudinesco, 2003; Trifan, Stattin e Tilton-Weaver, 2014). Nesse sentido, em meio às diferentes configurações familiares na atualidade, a família composta pelo casal heterossexual e monogâmico passa por mudanças paradigmáticas, num processo de flexibilização de estereótipos de gênero, dos papéis e funções parentais e das hierarquias que permeiam o núcleo familiar, no qual estas têm migrado cada vez mais dos modelos patriarcais para um modelo tido como mais democrático - especialmente na classe média brasileira (Cúnico & Arpini, 2013; Lopes, Dellazzana-Zanon & Boeckel, 2014).
O termo parentalidade se refere a um processo de construção que se inicia antes mesmo do nascimento do bebê e pode se desenvolver em homens e mulheres, mas requer tempo para se consolidar e não se garante e nem se define por vínculos biológicos. Nesse sentido, o processo de se tornar pai e mãe deve considerar os laços parentais e os vínculos afetivos precoces que são fundamentais no processo de subjetivação da criança e para o desenvolvimento da vida psíquica do bebê. Solis-Ponton (2004) destaca que a criança não é passiva no processo de construção da parentalidade dos pais, pois o recém-nascido já tem competências que interferem de forma decisiva na parentalização. Teperman (2014) critica o conceito de parentalidade por considerar que este faz referência a um processo que não distingue função materna e paterna, o que implicaria uma indiferenciação no interior da família. Porém, destacamos que a contribuição do termo não é a homogeneização dos cuidados, mas sim a possibilidade de as funções parentais serem exercidas de formas mais flexíveis e considerando as relações de pertencimento e afetividade.
Santos, Campana e Gomes (no prelo), a partir de uma revisão sistemática de artigos indexados nos últimos cinco anos a respeito do termo parentalidade, verificaram que em alguns países as discussões já estão mais avançadas acerca do que pode ser compreendido como cuidado parental igualitário. Por exemplo, alguns estudos internacionais já incluem as condições e as implicações da licença parental em diversos países, cuja prática pode estar relacionada ao surgimento desse tipo de cuidado (Malmquist, 2015; Rehel, 2014; Stevens, 2015; Tiitinen & Ruusuvuori, 2015), enquanto no Brasil os estudos ainda se restringem à discussão dos desafios enfrentados pelas mulheres para conciliar família e carreira. De forma geral, a parentalidade contemporânea pode ser discutida como um projeto não só de casais, mas também de indivíduos que recorrem à produção independente (Gomes, 2017), passível de controle, planejamento e negociações entre os cônjuges de acordo com as conveniências e limitações de curto e longo prazo (Viala, 2011).
Tendo em vista o contexto referido e as formulações teóricas winnicottianas consolidadas até o momento, perguntamo-nos: as mulheres permanecem como as únicas responsáveis por cuidar das crianças ou já dividem esta tarefa com os homens? Como fica este estado de preocupação materna primária na atualidade? Se os homens têm se engajado cada vez mais nos cuidados com o bebê, não poderiam eles também cuidar a partir de um lugar de identificação e, consequentemente, experimentar um estado semelhante à preocupação materna primária? E se isso é possível também para os homens, de quem é a preocupação primária?
Método
Este artigo é derivado de duas pesquisas de doutorado, com metodologia qualitativa e referenciais teóricos psicanalítico e psicossocial, dedicados aos estudos sobre o desenvolvimento infantil, as interações pais-criança e as configurações familiares contemporâneas, bem como à investigação acerca da desconstrução de estereótipos referentes aos papéis parentais relativos ao gênero.
Remetemo-nos aqui à definição de metodologia qualitativa proposta por Turato (2003), que abarca a discussão sobre um conjunto de procedimentos para descrever e compreender as relações de sentido e de significado dos fenômenos humanos. Nessa abordagem metodológica, o pesquisador deve valorizar e também analisar as trocas afetivas mobilizadas ao escutar os sujeitos. É nele que se encontra o principal instrumento da coleta de dados, ou seja, nesse estudo frente ao modo como o pesquisador conduz a entrevista a partir de um roteiro temático preestabelecido.
Participantes
Dois casais heterossexuais, pertencentes à classe média brasileira, com renda a partir de 6 salários mínimos, de acordo com o parâmetro do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); na faixa etária de 30 a 35 anos; com grau de escolaridade universitário; com o primeiro filho contando até trinta e seis meses de vida, sem histórico de problemas orgânicos que pudessem interferir no desenvolvimento infantil. Consideramos que, para avaliar o cuidado parental igualitário, ambos os cônjuges deveriam ter tido a possibilidade de desenvolver carreiras profissionais e a literatura indica que o fenômeno estudado se concentra mais na classe média brasileira. Famílias constituídas em outros formatos (monoparentais, reconstituídas, homoparentais etc.) foram excluídas, pois pretendemos analisar a construção parental de pais e mães, biológicos e heterossexuais, de forma concomitante, além de observar as influências mútuas no exercício parental de cada membro do casal. Contudo, ressaltamos que, embora os casais escolhidos tivessem como meta a construção de uma família, a análise dos dados se pautou pela função parental e não pelo viés da conjugalidade.
Instrumentos
Os dados foram coletados em uma entrevista semidirigida com cada casal, a partir de um roteiro elaborado previamente, dividido em cinco partes: (1) informações gerais de identificação; (2) questões referentes às ideias prévias a respeito do que cada membro do casal imaginava que seria ser pai e ser mãe; (3) o período de gestação e as expectativas sobre o bebê; (4) a vivência do casal no período pós-parto e mudanças ocorridas; e (5) a parentalidade construída por cada membro do casal.
Procedimentos
Procedimentos de coleta de dados
As entrevistas foram realizadas na própria residência dos casais, com ambos os genitores; foram gravadas e, a fim de preservar as identidades dos participantes, as transcrições literais foram transformadas em relatos de entrevistas.
Os participantes receberam esclarecimentos sobre o teor da pesquisa e assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido no qual foram informados, de forma clara e precisa, sobre os objetivos, procedimentos e a justificativa do estudo, bem como a garantia de sigilo e o anonimato nos relatos produzidos com fins de publicação científica.
Procedimentos de análise de dados
O material coletado nas entrevistas foi analisado a partir de duas categorias temáticas elaboradas com base no referencial teórico escolhido e nos objetivos do estudo: (A) cuidados parentais que cada um dos cônjuges recebeu na infância; e (B) o exercício da parentalidade.
Procedimentos Éticos
Os projetos de pesquisa foram aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo: doutorado da 1ª autora, nº CAAE 42434815.9.0000.5561; doutorado da 2ª autora, nº CAAE 47948315.9.0000.5561.
Resultados
Casal 1: Carlos e Helena
Carlos (34 anos) e Helena (33 anos) são pais dos gêmeos André e Luca (29 meses) e estão juntos há oito anos - namoraram um ano antes de se casarem. O casal relatou que a decisão pelo casamento foi tomada de forma espontânea e que de início não pensavam em formalizar a união, mas resolveram se casar no civil por conta dos benefícios que poderiam adquirir, como, por exemplo, o plano de saúde familiar. Helena disse que "pediu a mão do marido" ao sogro para comunicá-lo a respeito do casamento de "forma mais criativa". Dias depois, Carlos repetiu esta ação com seus sogros por ter gostado da ideia de Helena. Vale destacar que após o casamento, ambos os cônjuges agregaram o sobrenome do parceiro aos nomes de solteiro, por iniciativa de Carlos.
A respeito da família de origem de Carlos, é relevante ressaltar que ele é filho de pais separados e, desde a primeira infância, foi criado por seu pai em uma cidade diferente de onde sua mãe morava. Apesar de ter se casado novamente, o pai sempre exerceu sua profissão no ambiente doméstico e se responsabilizou pelos cuidados com Carlos. Os pais de Helena permaneceram casados e a mãe foi mais participativa que o pai nos cuidados diretos com os filhos. Sobre as expectativas que tinham quanto ao que seria ser pai e mãe, o casal dá as seguintes declarações:
"Acho que todo mundo tem uma visão romanceada do que é ter filho; talvez as mulheres tenham até mais, porque a sociedade cobra que as mulheres tenham filhos. O homem talvez menos, porque tem essa sobrecarga que ele tem que ser o homem da casa, então ele já sabe que para ele tem alguma responsabilidade diferente." (Helena)
"Para mim, ser pai é estar com eles, essa era uma ideia antiga, mas que confirmei na prática. Não ia conseguir ter um emprego normal de oito horas de trabalho por dia e ser pai ao mesmo tempo. Acho necessário ter mais tempo com eles e me organizei para ser free-lance." (Carlos)
Helena disse que a gravidez foi planejada, mas que só se deu conta de que faltou planejamento econômico com a chegada dos filhos. Carlos foi participativo desde o início, durante a entrevista, quando a esposa contou que estava grávida disse: "fizemos o teste de farmácia". Ao que ele corrigiu em tom de brincadeira: "fizemos não, né? Você fez".
O período de gestação se deu sem intercorrências. Porém, devido ao fato de os bebês terem risco de se enrolarem no cordão umbilical um do outro, a obstetra orientou o casal a adiantar o parto para o sétimo mês de gravidez a fim de prevenir possíveis complicações. Os gêmeos ficaram dois meses internados até poderem ir para casa. Durante esses dois meses, Carlos e Helena foram juntos, todos os dias, à maternidade no período das sete às dezenove horas. A mãe pôde amamentar as crianças e o pai fez canguru, carregando os bebês junto ao corpo, nos horários estabelecidos pelas enfermeiras.
Quando os bebês receberam alta, a avó materna passou dois meses na casa do casal para auxiliar tanto nos cuidados com os meninos, quanto com os serviços domésticos. Nas palavras de Carlos: "o primeiro dia foi o mais intenso, depois você vai pegando o jeito (...) não dá para dizer que é igualitário (os cuidados com os filhos), porque muito da amamentação ficava com ela (se referindo a Helena)". Frente a esta fala do marido, Helena complementou que ele sempre deu banho, trocou fraldas e que por isso ela não se sentiu sobrecarregada.
Além disso, os meninos precisavam tomar complemento do leite materno e era o pai quem dava a mamadeira. (Neste momento da entrevista, o pai foi para a cozinha preparar o almoço das crianças enquanto os meninos disputavam o colo materno.) Helena falou que o marido poderia relatar a experiência dele com as mamadas e ele assim o fez, mas incluindo também suas percepções sobre a vivência da esposa - legitimou que foi participativo oferecendo sustentação e amparo, mas que foi ela quem passou pela experiência. Helena contou que nos primeiros quatro meses de vida dos bebês se sentia enclausurada, mas tinha medo de sair na rua com os dois, por não saber se seria possível amamentá-los ao mesmo tempo estando fora de casa. Carlos disse que não tinha o mesmo receio e insistiu para que saíssem de casa - o que Helena reconheceu como uma ação importante, por mais que tenha sido difícil para ela na época. Ao término da licença maternidade, Helena voltou ao trabalho e relatou como se sentiu com esse retorno:
"Amei voltar a trabalhar, foi libertador. Umas duas semanas antes eu estava bem tensa porque eles eram muito pequenos, antes deles nascerem eu achava que seria óbvio deixar eles no berçário com quatro meses. Mas, por serem prematuros, tem até indicação médica para não pôr na escola, mas acho que mesmo que não fossem prematuros a gente não ia colocar, são muito pequenos e frágeis. As pessoas (mulheres) perguntavam se eu estava bem, que podia chorar se quisesse, me senti até mal me perguntando se eu devia estar triste, chorando. Até falei para uma amiga que voltou agora de licença que 'tudo bem estar bem', é legal ser a profissional também, não ser só mãe." (Helena)
Carlos, por sua vez, disse que gostava de ficar em casa com os filhos, mas que teve dificuldade para se relacionar com a babá, pois ela não aceitava receber orientações dele. Ambos relataram que o primeiro ano de vida dos filhos foi marcado por uma sensação de atropelo e solidão. Em contrapartida, ressaltaram que gostavam da experiência de terem se tornado pais: "do jeito que a gente fala parece que a gente não gosta de ter filhos, mas não é isso. É que a gente fala das sensações que a gente acha que todo mundo tem." (Helena)
Durante a entrevista, os meninos solicitaram a mãe diversas vezes, fosse para pedir colo, comida ou brincar. Helena falou que eles estavam na fase "minha mamãe" para tudo, ao que Carlos respondeu que ficava enciumado ao ponto de precisar conversar sobre isso com o pediatra dos filhos: "ele disse que é porque eu sou carne de vaca" (Carlos) (expressão utilizada para se referir a algo que é comum, neste caso para dizer que o pai estava sempre com os filhos). A respeito de como se descrevem como pais, Helena falou que o marido é mais firme com a educação dos meninos e que ela se vê mais mole:
O BLW (Baby-Led Weaning - método de introdução alimentar sem papinha) só funcionou porque era o Carlos com a babá fazendo, eu não participava disso porque estava fora trabalhando e foi ótimo (...) tinha horas que eles começavam a chorar e eu punha a chupeta escondida do Carlos. Ele é bem mais rígido. (...) Isso dá um bom equilíbrio, agradeço por ele ser assim. (Helena)
Carlos disse que agia desta forma, pois quanto antes conseguisse estabelecer os limites com os filhos, mais fácil seria o futuro. Ele encontra resistência por parte de sua sogra, que discorda desta forma de educar, mas Carlos disse que estão amparados e orientados pelo pediatra. Ambos os pais se consideram carinhosos e afetuosos.
Casal 2: Adriano e Ariane
Adriano (32 anos) e Ariane (30 anos), pais de Ariel (nove meses), resolveram se casar após um ano de namoro e estavam juntos há quatro anos. A chegada de Ariel veio dois anos após o casamento. Enquanto Ariane relatava em detalhes a forma romântica como o pedido de casamento havia sido feito, Adriano enfatizou em tom de brincadeira que tinha muita vontade de ser pai: "eu tinha mais vontade de ser pai que de casar". Depois reformulou sua frase acrescentando: "na verdade, eu sempre quis ter uma família".
Os pais de Adriano se separaram quando ele estava com sete anos, e ele tinha um irmão mais novo. Seu pai casou-se novamente e teve mais dois filhos. Adriano descreveu a relação com o próprio pai como distante e disse que esta foi, durante muito tempo, viabilizada pelo telefone e encontros em datas comemorativas. No entanto, ele contou que uma reaproximação vinha acontecendo nos últimos seis anos. A mãe de Adriano não se casou novamente e, na adolescência dele, viajava muito durante a semana por motivos de trabalho, o que na perspectiva de Adriano acarretou um amadurecimento precoce de sua parte, já que, na ausência da mãe, era ele quem cuidava do irmão caçula. Dada essa situação, diz que, exceto pelo auxílio de uma cozinheira e uma faxineira, ele havia se tornado pai com 12 anos, pois além de cuidar do irmão, também era responsável por resolver várias pendências domésticas, como pagar contas.
Os pais de Ariane também se separaram quando ela tinha seis anos; ela era a caçula, com um irmão e uma irmã mais velhos. Seu pai começou uma nova relação com outra mulher e teve mais dois filhos. Ariane descreveu a relação com o pai durante seu crescimento como uma relação de "15 em 15 dias", e que dos 16 aos 21 anos morou com o pai para tentar uma aproximação afetiva, mas de modo geral o relacionamento foi descrito como frio e distante. A mãe de Ariane se casou novamente; no entanto, tornou a se separar após 11 anos de conjugalidade. A relação mãe e filha é descrita como conflituosa por diferenças de temperamentos e há, como na relação pai e filha, uma cobrança por parte de Ariane de uma presença mais afetiva. Sobre as expectativas em relação à parentalidade e à chegada do bebê, seguem as falas do casal:
"Foi uma gravidez muito planejada, a vida da gente sempre foi muito bem planejada, apesar de ter sido um curto espaço de tempo, assim da gente se conhecer, namorar, noivar e casar, mas assim, foi muito planejada, a gente queria uma estabilidade financeira pra poder dar uma qualidade pro filho da gente da melhor maneira, então pra mim foi uma realização, mas ao mesmo tempo foi uma espera já planejada." (Ariane)
"Acompanhei de perto, fazia questão de ir pra todas as consultas, perguntava tudo, sabe, anotava, ligava, marcava, fazia os exames, todos os ultrassons eu estava junto, exame de sangue, todos os exames eu estava junto, todos. E assim, fiz exatamente como eu sempre quis fazer, acompanhar de perto, que eu me senti... no dia do anúncio da gravidez eu não dormi e eu disse 'não, agora eu sou pai, se eu sou pai, eu vou ser um pai de verdade', então, eu acompanhei a gestação independente de sexo, independente de qualquer situação acompanhei a gestação da Ariane muito próximo, muito ativamente." (Adriano)
No momento do parto houve, de acordo com Adriano, um desentendimento entre genro e sogra, devido ao fato de a parturiente ter direito a apenas um acompanhante e a avó querer ter prioridade, ao que Adriano se opôs respondendo que: "era ele quem tinha feito e que era ele quem iria entrar". O impasse foi resolvido com a possibilidade de Ariane ter dois acompanhantes. Sobre essa participação da avó materna, também após o nascimento de Ariel, o casal contou que saíram do hospital e passaram 18 dias na casa da mãe de Ariane e um dia na casa da mãe de Adriano. Eles ressaltaram que o suporte das avós foi importante principalmente para Ariane, já que era sua primeira experiência parental. No entanto, Adriano disse que não se sentiu completamente satisfeito, pois eles eram um casal com um filho, mas faltava alguma coisa, referindo-se ao espaço privado do casal. Depois dos 18 dias eles decidiram voltar de vez para a própria casa. A mãe de Ariane ficou um pouco ressentida no começo, pois havia pedido um mês de licença do trabalho, mas depois se adaptou e ficou ainda uma semana no apartamento deles para ajudar.
Ariane destacou que o casal ficou responsável pelos cuidados com o recém-nascido e Adriano relata que desde o começo ambos se apropriaram da rotina de atividades em torno do bebê. Ele fez questão de ressaltar que a possibilidade de não estar assiduamente com esposa e filho não existiu para ele: "Eu sou pai, eu queria estar perto. Então eu dormindo do lado da Ariane, Ariane dormiu do meu lado, a gente dormiu do lado do Ariel. Quando ele acordava, acordava os dois. A gente viveu com intensidade esse primeiro momento." O casal também relatou que essa divisão de cuidados e afazeres tem sido um padrão na rotina e que eles têm dividido tanto os cuidados direcionados ao bebê quanto aqueles referentes aos afazeres domésticos. Acerca dessa divisão Ariane comentou:
"Tem dias que eu faço mais, tem dias que ele faz mais. É muito dividido assim, o cuidado com ele é todo dividido, não existe: ah, você é a mãe, você cuida de tudo, você faz tudo. Não! Aqui em casa é tudo dividido." (Ariane)
Após o nascimento do bebê Adriano conseguiu 70 dias (um mês de licença e 40 dias de férias acumuladas) para acompanhar esposa e filho. Ariane conseguiu ficar sete meses de licença e após o retorno aos seus dois empregos (ela trabalhava em dois hospitais nos turnos da manhã e da tarde) era Adriano quem ficava com Ariel durante o dia. Este pai tinha uma carreira na área militar que lhe permitia trabalhar duas vezes na semana. Ele concentrou suas aulas em dois dias da semana e, consequentemente, conseguiu ter bastante disponibilidade de tempo junto ao filho. Os membros do casal também destacaram em vários momentos que não gostariam de "terceirizar o cuidado", por isso resolveram eles mesmos serem os cuidadores principais da criança e acompanhar os pequenos avanços no desenvolvimento do bebê. Sobre o momento de separação do filho, Ariane declarou que ainda estava se adaptando e que era difícil lidar com a distância, mas que ela confiava no marido como cuidador: "Ele sempre foi muito presente nos cuidados. Não tenho restrição, não tenho medo, receio de nada de deixar com ele só."
Durante a entrevista Ariel esteve presente no colo da mãe. No início estava desperto, mas a mãe logo começou a embalá-lo e ele dormiu durante boa parte da entrevista, acordando quase ao mesmo tempo em que esta foi finalizada.
Discussão
A respeito dos casais entrevistados no que se refere aos cuidados parentais recebidos em suas famílias de origem, apenas Helena (casal 1) foi criada nos moldes da família tradicional (pais casados, cabendo ao pai a provisão financeira da família e à mãe os cuidados com os filhos). Os demais, Carlos (casal 1), Adriano e Ariane (casal 2) são filhos de pais separados. Porém, vale destacar que, enquanto Carlos foi criado por seu pai, de uma maneira que se afastava do modelo tradicional e que lhe serviu de referência para exercer a própria paternidade com seus filhos, Adriano reportou pouca convivência com seu pai e ao mesmo tempo relata ter desenvolvido precocemente, aos 12 anos, uma espécie de função paterna em relação ao irmão mais novo.
Considerando que Carlos e Adriano são participativos nos cuidados com os filhos e até mais presentes que as esposas no dia a dia das crianças, questionamo-nos sobre como as referências de paternidade que ambos tiveram podem ter alicerçado as bases para uma prática parental mais afetiva e ativa junto aos filhos. É possível inferir que o modelo de paternidade recebido por Carlos em sua relação com o próprio pai já pode ser considerado fora dos estereótipos de gênero, modelo que ele transmite em sua prática parental.
Adriano, por sua vez, demonstra em seu relato a falta de referência de um modelo paterno enquanto prática de cuidado. A paternidade foi transmitida para este pai como uma ausência que ele tenta ressignificar sendo "um pai de verdade". Em termos winnicottianos, é possível hipotetizar que a prática precoce de uma função parental em relação ao irmão desenvolveu em Adriano a necessidade de lidar com a situação a partir de um lugar de cobertura protetiva ambiental, servindo como referência de ambiente provedor. Assim, pode-se considerar uma propensão desenvolvida precocemente no sentido de se colocar numa posição de cuidado de si e do outro (Winnicott, 1960/1983).
Destacamos nesta discussão algumas desconstruções em relação a estereótipos de gênero nesses casais que pontuam transições do modelo patriarcal para relações mais igualitárias, seja na motivação de ordem econômica para o casamento civil (casal 1), algo que não se dá de forma naturalizada pela simples formação do par conjugal; ou ainda na motivação parental sobrepujando a conjugalidade - na fala de Adriano, que evidenciou a busca por uma parceira que lhe possibilitasse a paternidade (casal 2), algo mais próximo do discurso atribuído à mulher no contexto tradicional de família (Gomes & Levy, 2009).
Ambos os casais relataram que ter um filho é um projeto passível de planejamento, ainda que posteriormente se deem conta de que existem elementos impossíveis de serem antecipados (Viala, 2011). Entendemos que este tem sido um discurso presente na construção da parentalidade contemporânea e que traz para esse processo um caráter de controle e autonomia na decisão de se tornarem pais e mães, principalmente em indivíduos dessa estratificação social. Logo, a parentalidade, assim como outros aspectos da vida familiar, é entendida e operacionalizada como um projeto do casal, passível de negociação e sujeito a adiamentos em função daquilo que é considerado estabilidade, o que pode incluir critérios como afetividade, situação econômica, suporte familiar, entre outros elementos que poderiam influenciar a qualidade da prática parental (Viala, 2011). Nesse processo de construção do lugar imaginário da criança na família, ambos os parceiros teriam poder de decisão e escolha (Santos, Campana & Gomes, no prelo).
Considerando essa preparação imaginária para a chegada da criança, as experiências apresentadas descrevem a paternidade participativa, ou seja, aquela que se manifesta de maneira engajada desde que a criança nasce na mente dos pais - antes da concepção (Solis-Ponton, 2004). Um fator que também pode ter contribuído para a participação ativa dos homens na parentalidade é a abertura das mulheres para incluir os maridos nesta vivência, pressuposta a disponibilidade e interesse também da parte dos homens. Nos dois casais, as mulheres relataram uma divisão igualitária de tarefas e uma confiança nos cuidados oferecidos pelos maridos enquanto elas estavam trabalhando.
Outro aspecto que favorece a participação masculina nos cuidados diretos com a criança desde o nascimento é a possibilidade de desconstruir a ideia de que as mulheres são as mais aptas a cuidar dos filhos devido à condição biológica. Se de fato as mulheres são as únicas que podem amamentar, a possibilidade de o homem exercer canguru com o bebê insere o corpo do pai como um elemento que pode trazer novas vias de subjetivação para a criança - ainda que em um momento precoce não seja atribuída ao bebê a capacidade de diferenciar cuidados exercidos pela mãe daqueles exercidos pelo pai (Arruda & Lima, 2013). Desta forma, mesmo que não geste a criança e não a amamente devido a condições biológicas, os homens não teriam que invariavelmente exercer papéis secundários nos cuidados com os filhos, pois, como foi descrito nos relatos de ambos os pais, estes participaram em diferentes tipos de cuidado, como fazer canguru, ninar, dar banho, trocar fraldas, colocar para dormir e oferecer mamadeira (Zvara, Schoppe-Sullivan & Dush, 2013).
Winnicott (1957/2008) argumenta que um pai jamais pode se tornar uma mãe e que, mesmo que acredite em poder oferecer melhores cuidados ao bebê que a esposa, o homem deve buscar uma solução que não retire a mulher deste quadro. E continua: "É incomparavelmente melhor um pai forte, que pode ser respeitado e amado, do que uma combinação de qualidades maternas." (Winnicott, 1957/2008, p. 128) Concordamos com essa posição de Winnicott na medida em que não se trata de defender maior participação paterna às custas da ausência da mãe ou que os homens se constituam enquanto cuidadores como replicadores do materno. O material das entrevistas demonstrou que a maior participação paterna na vida dos filhos não comprometeu nem ameaçou o vínculo mãe-bebê. Por exemplo, durante ambas as entrevistas os bebês solicitaram e/ou permaneceram no colo das mães, lugar que foi respeitado pelos pais.
Vale destacar que cuidar de crianças e da casa não é equivalente a ser uma mãe, ou uma combinação de qualidades maternas. Partir desse pressuposto seria dizer que ações de cuidado são sempre da ordem do materno, ainda que seja o pai a realizar estas práticas. A paternidade participativa, aqui abordada, seria um fenômeno novo característico da contemporaneidade e que do nosso ponto de vista não implica um apagamento da masculinidade do pai (Helth & Jarden, 2013). O que estamos a defender nesta discussão gira em torno de um cuidado paterno que não está diluído no cuidado materno como uma substituição temporária.
Os cuidados exercidos pelo pai, mesmo que se assemelhem aos exercidos pela mãe, implicam uma nova experiência subjetiva para a criança, ainda que nos primeiros meses o bebê não saiba estabelecer diferenciações entre o colo do pai e o da mãe (Castoldi, Gonçalves & Lopes, 2014). Estas distinções se estabelecem ao longo do desenvolvimento egoico, emocional e cognitivo da criança. Além disso, de acordo com Santos e Antúnez (2018), o pai que se estabelece enquanto contato afetivo e presença desde o início pode trazer contribuições para o psiquismo infantil referentes à diversidade das experiências vivenciadas pelo bebê e que são acrescidas pelas idiossincrasias específicas da pessoalidade paterna.
Seguindo esse raciocínio, observamos que os dois pais apresentaram em seus discursos diferentes posições intersubjetivas no que diz respeito à prática parental. Enquanto Adriano, com um bebê de nove meses na época da entrevista, utilizou-se de um discurso concernente a um funcionamento fusionado entre a tríade pai-mãe-bebê, Carlos, com dois bebês de 29 meses, demonstrou em seu discurso estar num momento posterior de diferenciação psíquica em relação aos bebês e à esposa. Estes discursos são destacados aqui por sua relevância no que diz respeito à condição identificada como necessária para a preocupação materna primária e para a constituição do holding psíquico. Logo, estes dois pais demonstraram não só a experiência de um momento mais fusionado com o bebê (Adriano), característico da posição parental inicial em relação ao bebê, como também a capacidade de desadaptar-se e estabelecer uma separação psíquica (Carlos) necessária para a individuação da criança.
Helena e Ariane dedicam grande parte de seus dias às carreiras, o que não as impede de cuidarem de seus bebês, demonstrando intimidade e trocas afetivas com os filhos durante as entrevistas. Ressalta-se, porém, que para Helena o trabalho é visto como uma atribuição desejada e libertadora frente a um possível fechamento na função materna, enquanto para Ariane o retorno à rotina de trabalho é associado a um momento de separação da díade mãe-bebê. Destes diferentes posicionamentos entendemos que a maternidade tem sido vivida como uma das múltiplas atribuições que a mulher tem assumido na atualidade, o que pode estabelecer ambivalências em relação ao que é considerado prioridade na vida da mulher. Neste contexto, também podemos nos remeter ao discurso social dirigido a essas mães no sentido de corroborar ou flexibilizar as expectativas naturalizadas quanto à existência do instinto materno e da devoção (Fiorin, Oliveira & Dias, 2014).
Na atualidade, o exercício parental não pressupõe rigidez de funções e nem inversão de papéis entre pais e mães. Nos dois casais entrevistados estão presentes as características do que Winnicott definiu ser um ambiente suficientemente bom (1987/2006), porém, cada casal encontrou uma maneira de construir e sustentar este ambiente. Retomando o objetivo deste artigo, propomos então que contemporaneamente se fale em "preocupação parental primária". Desfazendo a premissa que a mulher sustenta o bebê e o homem oferece sustentação à díade mãe-bebê, ainda que esta seja uma possibilidade de exercício parental, acrescentamos que pai e mãe podem estar lado a lado, em uma sustentação mútua, oferecendo holding ao bebê.
Este trabalho não pretende esgotar o tema da parentalidade contemporânea. O material das entrevistas abre campo para pensarmos nos pressupostos da família tradicional em relação ao lugar secundário atribuído à carreira da mulher quando comparado à vivência da maternidade. Ou ainda no sentimento de solidão e incompetência que pode ser despertado nos cuidados oferecidos ao bebê, em oposição ao de segurança e controle que pode prevalecer no exercício profissional. Nesse contexto, as mulheres podem vivenciar a potência identitária pelo exercício profissional e não apenas pela maternidade, o que poderia justificar o desejo de retornar às atividades profissionais em um curto período. Esta ideia está em oposição ao que foi apontado pela psicanálise tradicional, a qual destaca um bebê fálico a serviço da completude narcísica materna (Freud, 1933/1996). Há também a presunção de um cuidado mais eficiente por parte do agente feminino, ainda que se trate de babás ou educadoras de creches, o que faz com que os homens que querem ser cuidadores de seus filhos tenham que estar constantemente demarcando um lugar que não é socialmente autoevidente. Estas são temáticas a serem exploradas e desenvolvidas em pesquisas futuras.
Consideramos, portanto, que a parentalidade está em um período de transição entre dois modelos: aquele caracterizado como tradicional, pela delimitação de papéis e funções entre os membros do casal em função do gênero nos cuidados com o bebê; e um novo modelo que permite o cuidado parental igualitário, não necessariamente em termos de divisões e tarefas iguais entre homens e mulheres. Este tem sido entendido como a possibilidade de pai e mãe cuidarem de seus filhos sem seguirem estereótipos de gênero rigidamente delimitados, o que poderia impedir o surgimento de ações e cuidados espontâneos e dificultar a emergência de práticas parentais mais flexíveis. Entende-se com isso que a assunção de um processo constitutivo em que seja possível o contato com os cuidados provenientes do pai e da mãe poderia ampliar a diversidade no viver criativo e fomentar uma constituição de self menos rígida no que diz respeito às relações entre homens e mulheres.
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Recebido em 26 de dezembro de 2017
Aceito para publicação em 17 de maio de 2018
* Este trabalho é resultado de duas teses de doutorado, que contaram com apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processos nº 2015/03045-0 e nº 2015/24335-7.