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Psicologia Clínica
versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.31 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2019
https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0031n01A07
Após o processo de seleção dos artigos, eles foram lidos na íntegra e analisados por duas juízas independentes, com uma terceira juíza consultada em casos de discordância. O conteúdo dos 11 artigos foi analisado segundo os seguintes critérios: (1) número de mulheres participantes do estudo; (2) idade média das mulheres; (3) delineamento; (4) elementos da intervenção; (5) número de sessões; (6) formato de tratamento (individual ou grupal); (7) sintomas avaliados; e (8) principais resultados (ver Tabela 1). Os resultados encontrados nas categorias de análise foram discutidos a partir de três eixos temáticos: aspectos metodológicos (categorias 1, 2 e 3), aspectos técnicos das intervenções (categorias 4, 5, 6 e 7) e principais resultados obtidos (categoria 8). Estas categorias de análise foram definidas pelas pesquisadoras e foi utilizado o software Excel para tabulação dos dados. Em relação aos aspectos metodológicos, foram utilizados os critérios da escala PEDro, baseada na lista de Delphi. Trata-se de um consenso entre peritos para que os pesquisadores possam identificar quais estudos poderão ter validade interna e poderão conter informações estatísticas suficientes para que os resultados possam ser interpretados. A escala é apenas um parâmetro; ela não pode ser utilizada como medida única de validade das conclusões de um estudo (Verhagen, 1988).
Resultados
O número de participantes nos estudos variou entre 35 e 405 mulheres. A idade das pacientes variou entre 18 e 40 anos. Quanto ao delineamento dos estudos, identificou-se que nove artigos (Bass et al., 2014; Bermann & Graff, 2015; Cohen, Field, Campbell & Hien, 2013; Iverson, Gradus, Resick & Smith, 2011a; Iverson, Resick & Suvak, 2011b; Johnson & Zlotnick, 2011; Matud, Fortes & Medina, 2014; Miller et al., 2014; Resick et al., 2008) foram ensaios clínicos randomizados. Todos os artigos incluíram avaliações longitudinais dos sintomas, ou seja, executaram avaliações em pelo menos dois momentos (pré e pós-teste). Além disso, todos os estudos realizaram avaliações de follow-up após o término da intervenção, com o objetivo de verificar se os resultados dos protocolos se mantiveram com o passar do tempo (Tabela 1).
Utilizou-se os critérios estabelecidos na escala PEDro pela lista de Delphi para identificar a qualidade metodológica dos estudos (Verhagen, 1988). Os critérios de avaliação da escala são: (1) identificação dos critérios de elegibilidade; (2) randomização dos sujeitos nos grupos experimental e de controle; (3) alocação secreta dos sujeitos; (4) grupos semelhantes em relação aos indicadores de prognósticos mais importantes; (5) participação cega dos sujeitos no estudo; (6) administração cega dos terapeutas; (7) avaliadores que medem os resultados o fazem de forma cega; (8) mensurações de resultados-chave em mais de 85% dos sujeitos; (9) grupo de controle e grupo experimental receberam o tratamento adequado conforme alocação, e para estudos não randomizados, a análise dos resultados-chave foi realizada de acordo com a intenção de tratamento; (10) os resultados das comparações estatísticas entre os grupos foram descritos para pelo menos um resultado-chave; e (11) o estudo apresenta medidas de precisão e de variabilidade para pelo menos um resultado-chave. Os resultados desta análise estão apresentados na Tabela 2.
Em relação aos elementos da intervenção, identificou-se que todos os protocolos utilizaram a psicoeducação como elemento do tratamento. Três dos 11 artigos foram escritos a partir de um único experimento com protocolo de CPT (Iverson et al., 2011a; Iverson et al., 2011b; Resick et al., 2008). O tratamento incluía diversas técnicas de TCC, dentre elas a técnica do questionamento socrático e sessões de psicoeducação.
Todos os nove artigos que avaliaram sintomas de TEPT (Bass et al., 2014; Cohen et al., 2013; Cort et al., 2014; Iverson et al., 2011a; Iverson et al., 2011b; Johnson & Zlotnick, 2011; Matud et al., 2014; Ortiz et al., 2011; Resick et al., 2008) citaram o uso de técnicas de exposição em seus protocolos, mas apenas os três estudos com o CPT explicaram como a técnica de exposição foi aplicada. Nestes casos, as participantes eram convidadas a escrever suas experiências de violência e precisavam ler e reler o relato durante todo o tratamento até a diminuição da ativação emocional.
Quatro dos 11 artigos citaram a importância de trabalhar aspectos relacionados à autoestima (Cort et al., 2014; Matud et al., 2014; Miller et al., 2014; Ortiz et al., 2011). As intervenções utilizadas para melhorar a autoestima das participantes foram inserção de tarefas agradáveis realizadas pelas mulheres e a discussão e identificação de conquistas alcançadas antes e durante o tratamento.
A técnica Resolução de Problemas foi identificada em quatro dos 11 artigos como estratégia de tratamento e prevenção à recaída (Bermann & Graff, 2015; Cort et al., 2014; Matud et al., 2014; Miller et al., 2014). Um dos artigos citou a inserção do treino em habilidades sociais em seu protocolo, mas não foi explicado o processo da intervenção (Matud et al., 2014). Dois artigos utilizaram a reestruturação cognitiva para a identificação de crenças, modificação de pensamentos e medos sobre violência e maternidade (Bermann & Graff, 2015; Cohen et al., 2013). Três artigos citaram a prevenção à recaída ao final de seus tratamentos (Cort et al., 2014; Johnson & Zlotnick, 2011; Matud et al., 2014).
Em relação ao formato do tratamento, cinco aderiram ao formato individual de psicoterapia (Iverson et al., 2011a; Iverson et al., 2011b; Johnson & Zlotnick, 2011; Matud et al., 2014; Resick et al., 2008) e seis ao formato grupal (Bass et al., 2014; Bermann & Graff, 2015; Cohen et al., 2013; Cort et al., 2014; Miller et al., 2014; Ortiz et al., 2011). Acerca do número de sessões, os protocolos variaram entre oito e 20 sessões, com média de 1h30min cada. A respeito dos sintomas alvo das psicoterapias, nove estudos consideraram o tratamento dos sintomas de trauma e de depressão em seus protocolos (Bass et al., 2014; Cohen et al., 2013; Cort et al., 2014; Iverson et al., 2011a; Iverson et al., 2011b; Johnson & Zlotnick, 2011; Resick et al., 2008; Matud et al., 2014; Ortiz et al., 2011). Um dos protocolos abordou a dependência química (Cohen et al., 2013) e outro incluiu o tratamento de crianças que também vivenciaram situações de violência doméstica (Bermann & Graff, 2015).
De acordo com os resultados alcançados pelos protocolos de tratamento, todos os estudos apontaram melhoras significativas nos principais sintomas do foco de intervenção, como por exemplo, ansiedade, depressão, TEPT e revitimização. Dos 11 artigos, sete apresentaram o tamanho de efeito d de Cohen (Bass et al., 2014; Bermann & Graff, 2015; Iverson et al., 2011a; Johnson & Zlotnick, 2011; Matud et al., 2014; Ortiz et al., 2011; Resick et al., 2008). Não houve diferença significativa entre os resultados de impacto da psicoterapia grupal comparados aos do método de psicoterapia individual.
No artigo de Cohen et al. (2013) identificou-se que mulheres que sofreram exposição recente à violência doméstica demoraram mais para se engajar no tratamento, quando comparadas às mulheres sem histórico ou com episódios menos recentes de violência. No estudo de Iverson et al. (2011b) foram encontradas correlações positivas entre TEPT e depressão. Os resultados ainda indicaram que quanto menores os níveis destes sintomas, menor foi o índice de revitimização. Os estudos com o protocolo CPT apresentaram como hipótese inicial que a versão desta abordagem com sessões de exposição seria mais efetiva do que a versão sem exposição. Contudo, a versão sem exposição mostrou-se mais eficaz na redução de sintomas de TEPT e depressão.
Os estudos de Ortiz et al. (2011) e Matud et al. (2014) buscaram avaliar constructos positivos como autoconfiança, sensação de segurança e apoio social, emocional e instrumental, além de avaliar apenas sintomas psicopatológicos. Estes aspectos podem mediar o impacto da violência. Os resultados do estudo de Matud et al. (2014) apontaram que as pacientes obtiveram melhoras em todos esses aspectos, enquanto as participantes do grupo de controle melhoraram apenas sua percepção de apoio social. No follow-up, os efeitos da intervenção se mantiveram. No estudo de Ortiz et al. (2011), além da verificação dos sintomas, foi investigado se a presença de histórico de violência familiar na infância, violência em outros períodos da idade adulta e violência institucional guardava relação com a exposição mais recente à violência doméstica. O histórico dessas formas de violência foi identificado como fator de risco para a exposição recente à violência doméstica. Este mesmo estudo também considerou a combinação de serviços de saúde mental e defesa jurídica no tratamento. O resultado apontou que essa concepção multidisciplinar de tratamento foi eficaz na redução do risco de revitimização.
Discussão
Os artigos selecionados foram discutidos a partir de três eixos principais: (1) aspectos metodológicos; (2) aspectos técnicos das intervenções; e (3) principais resultados encontrados nos estudos. Em relação à qualidade metodológica, os estudos apresentaram boa avaliação por apresentarem em sua maioria um grupo de controle e um experimental, com sujeitos distribuídos aleatoriamente em cada grupo e semelhança em relação ao prognóstico, para obter uma maior validade de resultados. Além disso, os resultados-chave foram avaliados e analisados de acordo com a intenção de tratamento. No que diz respeito às considerações éticas, identifica-se a adequação dos estudos ao atender às normas sobre pesquisas envolvendo seres humanos. Mesmo nos experimentos com grupo de controle, os participantes recebiam algum tipo de intervenção básica (como psicoeducação ou exposição a relatos clínicos, apenas), e estas intervenções apresentaram resultados positivos no pós-teste. Além disso, os estudos com CPT descreveram na discussão a questão de que os resultados refutaram a hipótese da pesquisa, o que também é um fator que denota a adequação ética do experimento (Iverson et al., 2011a; Iverson et al., 2011b; Resick et al., 2008). É por meio destes resultados inesperados que muitas vezes os pesquisadores identificam novos problemas de pesquisa que contribuem para o avanço do conhecimento. Nem todos os critérios da escala PEDro são descritos na metodologia dos artigos, mas os estudos randomizados controlados (Bass et al., 2014; Bermann & Graff, 2015; Cohen et al., 2013; Iverson et al., 2011a; Iverson et al., 2011b; Johnson & Zlotnick, 2011; Matud et al., 2014; Miller et al., 2014; Resick et al., 2008) apresentaram alocação secreta dos sujeitos, os avaliadores mediram resultados de forma cega, e os grupos eram semelhantes em relação ao prognóstico, o que indica uma boa qualidade metodológica nas pesquisas (Verhagen, 1988).
Em relação às intervenções, os resultados corroboram a literatura no que diz respeito à importância da psicoeducação para que as mulheres possam compreender seu próprio funcionamento, aprender sobre o ciclo da violência, sobre seus direitos e também sobre como podem buscar ajuda nas redes de proteção existentes em cada país (Beck, 2007; Gomes, 2012). Além disso, a psicoeducação assume papel importante no tratamento dos sintomas desencadeados pelas situações de violência, como depressão, ansiedade e estresse. Ainda que a literatura aponte evidências de eficácia nas técnicas de exposição para o tratamento do TEPT, poucos estudos explicam como são feitas as intervenções. O estudo que originou os três artigos sobre a CPT tinha como hipótese que as técnicas de exposição a imagens mentais e a relatos clínicos seriam eficazes para redução dos sintomas de TEPT. No entanto, surpreendentemente, a CPT foi mais eficaz na versão sem relatos clínicos (Iverson et al., 2011a; Iverson et al., 2011b; Resick et al., 2008), o que evidencia uma lacuna existente nos estudos sobre intervenções com foco na exposição. Os pesquisadores entendem que as técnicas de exposição parecem funcionar, e, portanto, é importante que próximas pesquisas possam seguir testando hipóteses para aperfeiçoar intervenções para tratamento de sintomas de estresse.
Dois estudos abrangeram fatores adicionais de avaliação e intervenção, que é o caso da pesquisa com dependência química (Cohen et al., 2013) e do experimento que incluiu crianças (Bermann & Graff, 2015). A literatura descreve a comorbidade da violência com a dependência química. Portanto, é imprescindível que alguns protocolos de tratamento incluam ambos os aspectos como focos de intervenção (Gomes & Diniz, 2008; Ribeiro et al., 2009). Em relação ao tratamento que incluiu crianças, a literatura também aponta a necessidade de que as psicoterapias dirijam um olhar mais contextual para a violência doméstica, já que esse é um tipo de violência que causa impacto em todas as pessoas que compartilham o ambiente familiar. As crianças que participaram dessa pesquisa foram incluídas em um grupo diferente do das mães, e ambos os grupos de psicoterapia ocorriam concomitantemente (Bermann & Graff, 2015).
A questão da revitimização também foi abordada nos estudos, corroborando a literatura que aponta esse fator de risco para as mulheres em situação de violência. Romper o ciclo da violência deve ser um dos objetivos terapêuticos, e o uso da técnica de resolução de problemas se mostrou eficaz. Ainda com este objetivo, quatro estudos apontaram a necessidade de focar aspectos de promoção de saúde das participantes, como por exemplo melhorar a autoestima e a qualidade de vida (Cort et al., 2014; Matud et al., 2014; Miller et al., 2014; Ortiz et al., 2011). Um ponto interessante a ressaltar é que, em um destes experimentos, mesmo as pacientes do grupo de controle melhoraram sua percepção de apoio social (Matud et al., 2014). Uma das hipóteses é que as mulheres conseguem promover melhoras pela própria relação de ajuda estabelecida em um processo de psicoeducação e acolhida.
Em relação aos resultados obtidos, os estudos apresentaram, em sua totalidade, níveis de melhora dos sintomas-alvo. As conclusões apontam que as técnicas de TCC se mostraram eficazes para reduzir sintomas de ansiedade, depressão e estresse (Bass et al., 2014; Miller et al., 2014; Ortiz et al., 2011). Em contrapartida, parece não existir entre os pesquisadores um consenso entre o número de sessões necessárias para redução dos sintomas de TEPT. Além disso, nenhum estudo apresentou o processo completo de suas intervenções, dificultando a replicação dos protocolos pelos clínicos. É importante que os artigos possam apresentar a estrutura do tratamento e das sessões, descrevendo também o processo, além de apresentar os resultados. Percebe-se que o foco dos experimentos são os resultados, e não aspectos relacionados ao processo terapêutico.
Os artigos que preencheram critérios da busca desta revisão sistemática foram em sua totalidade internacionais. No Brasil não se encontrou nenhum estudo empírico atualizado para esta demanda. Isto é um dado preocupante, pois as estatísticas apontam que pelo menos 13 milhões de mulheres já sofreram violência no ambiente doméstico em nosso país, e na maior parte dos casos notificados o agressor é o cônjuge ou ex-cônjuge (CPMI, 2013). A escassez de estudos empíricos brasileiros que avaliem tratamentos para essa população é um dado alarmante, que justifica a necessidade de criação e/ou adaptação de protocolos e estudos que avaliem a eficácia de psicoterapia para mulheres vítimas de violência conjugal.
De forma geral, esta revisão sistemática possibilitou um entendimento do contexto nacional e internacional de estudos que buscam avaliar tratamentos psicológicos em TCC para mulheres vítimas de violência. Identificou-se a necessidade de realização de experimentos brasileiros que possam também avaliar o impacto e o processo de tratamentos que abranjam a temática da violência doméstica, já que a prevalência deste tipo de violência é alta no Brasil. Nos estudos que tenham como foco a avaliação do processo terapêutico, é importante que os autores incluam em seus resultados a descrição passo a passo da intervenção, para que clínicos e pesquisadores possam replicar protocolos com validação empírica. Para que os sintomas comuns às pacientes com histórico de violência conjugal sejam tratados, sugere-se a inclusão de técnicas de regulação emocional associadas às técnicas de exposição gradual às memórias traumáticas. Sugere-se, ainda, que os protocolos de atendimento desenvolvidos tenham como um de seus objetivos a flexibilização de estereótipos de gênero. Um limitador desta pesquisa pode ter sido a exclusão de dissertações e teses, pois muitas vezes trabalhos empíricos de processo e resultados são descritos neste tipo de publicação. Contudo, a exclusão deste material ocorreu porque considerou-se a avaliação cega por pares, utilizada pelas revistas científicas, como indicador da qualidade metodológica dos estudos.
Sabe-se que um experimento de qualidade prevê alguns aspectos metodológicos específicos, como a aleatoriedade da amostra, avaliação cega de resultados e comparação estatística adequada. Os estudos empíricos internacionais que avaliaram protocolos de tratamento de TCC para mulheres vítimas de violência apresentaram qualidade em sua metodologia de pesquisa e, portanto, conferiram validade aos resultados encontrados. No entanto, identifica-se a necessidade de experimentos que exemplifiquem o processo de psicoterapia, permitindo assim a replicação dos protocolos por clínicos e pesquisadores.
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Recebido em 09 de janeiro de 2017
Aceito para publicação em 20 de abril de 2018
SEÇÃO LIVRE
Iluminismo e romantismo na formação psicanalítica
Enlightenment and romanticism in psychoanalytical training
Iluminismo y romanticismo en la formación psicoanalítica
Pedro Cattapan
Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio das Ostras, RJ, Brasil. pedrocattapan@hotmail.com
RESUMO
Este artigo versa sobre a adoção por parte da International Psychoanalytical Association (IPA) dos modelos de formação disponíveis quando surgiu a necessidade nesta instituição de formar um grande número de psicanalistas. Sustenta-se que seus modos de formação inspiradores foram a escola moderna iluminista e a concepção romântica de formação. Pretende-se demonstrar os efeitos e os problemas destes legados no modelo adotado pela IPA. Para tanto, examinar-se-á a constituição da escola moderna e as alternativas a ela idealizadas pelo Iluminismo; também se estudará de que modo o pensamento estético de Burke e Goethe orientou as bases para se esboçar uma formação romântica. Finalmente, se demonstrará como o tripé da formação psicanalítica evidencia essa herança híbrida: cursos teóricos (como continuação da escola moderna), análise pessoal (e sua herança da formação "de dentro para fora" romântica) e atendimentos supervisionados (onde os dois legados aparecem, indicando qual deles prevalece em determinada instituição de formação).
Palavras-chave: psicanálise; iluminismo; romantismo; formação.
ABSTRACT
This paper deals with the adoption by the International Psychoanalytical Association (IPA) of the models of training available when the need to qualify a large number of psychoanalists arose in this institution. One proposes that its inspiring modes of training were the modern school from Enlightenment and the Romantic conception of formation. One intends to show the effects and problems of these legacies in the model adopted by IPA by focusing on the constitution of the modern school and on the alternatives to it idealized by the Enlightenment, and also on how Burke's and Goethe's aesthetic theories guided the foundation for a Romantic formation. Finally, it will be shown how the psychoanalitical training tripod carries this hybrid legacy: theoretical courses (as an extension of the modern school), personal analysis (and its legacy of the Romantic "inside-out" formation) and supervised treatment (where both are present, indicating which legacy is stronger in a given training institution).
Keywords: psychoanalysis; enlightenment; romanticism; training.
RESUMEN
Este trabajo versa sobre la adopción por parte de la International Psychoanalytical Association (IPA) de los modelos de formación disponibles cuando surgió la necesidad en esta institución de formar un gran número de psicoanalistas. Se sostiene que los modos de formación que la inspiraron fueron la escuela moderna iluminista y la concepción romántica de formación. Se pretende demostrar los efectos y los problemas de estos legados en el modelo adoptado por la IPA. Para ello, se centrará em la constitución de la escuela moderna y en las alternativas a ella ideadas por la Ilustración; também se estudiará de qué modo el pensamento estético de Burke y Goethe orientó las bases de uma formación romántica. Finalmente, se demostrará cómo el trípode de la formación psicoanalítica evidencia esta herencia híbrida: cursos teóricos (como continuación de la escuela moderna), análisis personal (y su herencia de la formación "de dentro hacia fuera" romántica) y atendimientos supervisados (donde las dos herencias aparecen, pero donde se indica la predominante).
Palabras clave: psicoanalisis; ilustración; romanticismo; formación.
Introdução
A formação psicanalítica não foi inventada única e exclusivamente a partir de referências interiores ao campo psicanalítico. Minha intenção, com este trabalho, é de mapear as origens do modelo de formação psicanalítica tal como formalizada nos anos 1920 nas concepções e consequentes aplicações dos modos de formação iluminista e romântico que atravessaram todo o século XIX e início do XX. É certo que o modelo iluminista vigorou e foi nele que foram educados Freud e seus discípulos ao frequentarem a escola e a universidade, mas a formação romântica, mesmo permanecendo marginal, também incidiu no que se estabeleceu como formação de psicanalistas, segundo o "modelo Eitingon" (Schröter, 2011).
O modelo iluminista de formação
Compreenderemos o iluminismo aqui como a adesão parcial ou integral de vários pensadores oitocentistas ao projeto cartesiano (Gusdorf, 1982, 1984). A capacidade reflexiva e crítica do intelecto é exaltada como o fundamento do poder humano de alcançar a verdade, como a marca de sua independência em relação à natureza, bem como instrumento a ser utilizado para dominá-la (Descartes, 1637). Para todos os iluministas, a razão e a ciência ergueram-se como valor em si, referencial ético e político, por vezes até mesmo estético, de felicidade, justiça e beleza; e são os motores do processo que passou a ser chamado de modernização.
Ao tomar a razão como método basal de lidar com o pensamento e com o mundo, o iluminismo empreendeu uma crítica àquelas que se estabeleceram como práticas sociais e políticas fundamentadas apenas nos costumes ou na tradição (em especial a monárquico-religiosa-patriarcal). Como contrapartida, propôs a racionalização das atividades das mais simples até o governo político e a educação dos homens (Hobsbawm, 1979).
A formação dos homens necessariamente ocupará um lugar estratégico se se quer ver a transformação da sociedade inteira a partir da racionalização. Na esteira da importância adquirida pela formação, veio forçosamente a valorização das crianças e dos jovens como o futuro da nação moderna. Eles precisam, a partir de então, ser qualificados por meio da educação para que o futuro seja o progresso da razão - e não o retorno ao obscurantismo ou uma estagnação diante de um irracionalismo resistente. Emílio ou Da Educação (Rousseau, 1762), de Jean-Jacques Rousseau, foi escrito nesse contexto com fins de mostrar a potência da educação esclarecida em permitir que um indivíduo naturalmente bom possa crescer sem ser corrompido pela desigualdade e pela injustiça, vislumbrando assim um futuro melhor.
Com a influência iluminista sobre os revolucionários franceses que tomaram o Estado, a formação de pessoas tornou-se um tema político. A conquista da liberdade e da igualdade só seria estabelecida de uma vez por todas caso a educação de crianças e adolescentes já fosse praticada sob estes valores (Caron, 1994). A educação reformada pela razão, e, mais especificamente, pela ciência passa a ser o método para a chegada à felicidade coletiva, transformando os resistentes e os ignorantes.
Além do progresso moral em direção à felicidade e da manutenção da bondade humana, extraídos de Rousseau, para a cultura iluminista-revolucionária também é importante um progresso intelectual e técnico para que um indivíduo possa servir socialmente e a humanidade possa progredir em seu domínio cartesiano sobre a natureza e a desrazão. Isso fez com que a concepção iluminista de educação e de escola divergisse, ao menos em parte, daquela comum no Antigo Regime. Segundo os historiadores Phillipe Ariès (1973) e Jean-Claude Caron (1994), esta tinha bem mais a função de socialização do que de promover um aprendizado de conteúdos que capacitariam ao indivíduo para a ascensão social (econômica, intelectual e política), que é justamente o propósito basal da escola moderna democrática pós-revolucionária criada sob fundamentos racionais iluministas.
Mas o iluminismo não foi um movimento monolítico e dele emergiram diferentes ideias sobre como transmitir a razão e a ciência, quando da implementação do ideal igualitário de educação para todos. O convite à observação e à verificação da natureza - enfim, o experimento - é um método formativo, mas seria o mais apropriado como política pública para todos? Seria apropriada a relação pessoal entre preceptor esclarecido e aluno, enlaçando amor e razão? J.-C. Caron (1994) nos mostra como D'Alembert e La Chalotais, dentre outros, tomaram posição a favor deste modelo. Mesmo que o modelo tenha raízes aristocráticas, Rousseau pressupôs seu Emílio nele. Na Enciclopédia (Diderot & D'Alembert, 1751-1765) podemos encontrar a valorização de uma relação mestre-aluno nada aristocrática; a referência é à relação entre o artesão e seu aprendiz. Essa forma de aprendizagem cativou alguns iluministas, pois aqui a formação não diz respeito a um verniz erudito, mas à formação profissional, útil aos dois envolvidos e a toda a sociedade. Aprende-se praticando, sendo corrigido, especializando-se, dominando o olhar, a mão, a matéria, a natureza por meio do intelecto e dos músculos como seus apêndices. Richard Sennett acredita que "os enciclopedistas queriam que os trabalhadores comuns fossem admirados, e não lastimados" (Sennett, 2008, p. 108) em sua atividade serena, tranquila e disciplinada. Vale sinalizar que entre as práticas artesanais descritas na Enciclopédia está a criação dos filhos. Portanto, parte do iluminismo acreditava que a racionalidade das oficinas era um modelo de educação mais benéfico à sociedade do que, por exemplo, o modelo hierárquico dos colégios do Antigo Regime. Aqui aparece um primeiro elogio iluminista ao disciplinamento.
Porém, Caron (1994) destaca ainda que outra posição é tomada, por exemplo, por Roger Ducos, em 1792, diante da Convenção, quando propõe criar uma geração nova mediante uma educação uniforme. Uniformidade não combina com a relação mestre-aprendiz, em que o adulto se empenha no progresso daquela criança em particular - seria impraticável! Como seria possível haver uma quantidade tão grande de mestres? A defesa de Ducos está mais próxima da tomada de posição do Estado revolucionário: a opinião pública deveria ser controlada em nome da nova ordem e da paz nacional. Estava em pauta a compreensão de que a educação é uma forma de dominação. Por isso mesmo, seria necessário que a frequentação das instituições de educação fosse obrigatória. Sabemos que foi este modelo de educação que predominou desde então.
A escola moderna se tornou o lugar de formação do homem moderno. Uma instituição obrigatória a todos onde o coletivo prevalece sobre o individual e o saber racional e científico encontra cada vez mais espaço. Esta resultante da Revolução Francesa será exportada para toda a Europa e as Américas e, por toda parte, repetirá o paradoxo criado: reforma no sistema educacional para que a razão e a ciência convertam a educação num ensino para a felicidade, de um lado (o progresso, como o positivismo - doutrina herdeira do iluminismo - exalta); e, de outro, uma uniformização da opinião pública controladora das liberdades (a ordem, também um valor positivista, como a bandeira brasileira não nos deixa esquecer). A instrução passa a vir acompanhada de práticas que normalizam e padronizam indivíduos dentro das instituições de ensino para, em seguida, habitarem um mundo dentro dos padrões esperados de razoabilidade. Este é o modelo de educação oriundo do iluminismo que se estabeleceu como garantia de modernização.
O internato e o semi-internato como escolas a serviço do progresso da razão surgem exatamente neste contexto. A mãe de sangue, para Michelet (1869), é importante, mas a verdadeira mãe, a escola, aparece para instruir, nutrir todas as crianças. A família, mantenedora de tradições injustas e obscurantistas, de castigos retrógrados, do autoritarismo do pai, da religião da mãe é um obstáculo a ser vencido no caminho do Esclarecimento. Assim, é preciso afastar a criança desse meio nocivo ao seu desenvolvimento. Os internatos tinham o propósito de solucionar esse problema e preparar o homem do amanhã como um esforço a mais para sermos republicanos. Tanto nos colégios internos como nos colégios abertos, o distanciamento da família em relação ao espaço escolar foi intencional. As normas das escolas não eram as mesmas do lar, mas deveriam ser a base da sociedade no futuro, seja em casa, seja na ordem pública. Foi assim que o modelo disciplinar de funcionamento institucional já presente nas escolas antes da Revolução foi mantido (Foucault, 1974-1975, 1975). E, num modelo muito diferente do da formação nas oficinas, novamente encontramos a valorização iluminista da disciplina.
Esse modelo era bastante eficaz no propósito do controle sobre a opinião pública, já que previa um sistema de vigilância piramidal; era também eficaz na organização racional do espaço e do tempo, servindo como ensino prático de gestão racional; também instaurava normas de conduta avaliadas objetivamente no que diz respeito à própria serventia institucional do comportamento (e, portanto, supostamente desvinculadas de referências ético-morais tradicionais e injustas), normas estas acompanhadas de premiações e punições como método educativo eficiente em adestrar corpos, tornando-os dóceis e úteis, uma vez que adquiriam um saber-fazer.
Michel Foucault mostra brilhantemente, em Vigiar e punir (1975), como as instituições disciplinares se assemelhavam umas às outras em seu funcionamento, mas ainda assim vale salientar como as reformas no campo da educação e do tratamento dos loucos tornaram os procedimentos nessas áreas, até então bastante heterogêneos, muito parecidos. Na educação e na psiquiatria, a criança e o louco serão tomados, nessa operação, como os sem razão. Quanto aos loucos, Pinel apostou que eles poderiam adquirir o maior dos bens, a razão, e assim serem curados e reintegrados à sociedade (Foucault, 1961). A psiquiatria moderna se fundava ali, naquela prática bem próxima da pedagógica, uma vez que era preciso ensinar ao louco a desenvolver um discurso e uma conduta racionais. No entanto, se os loucos, encarcerados desde o século XVII, encontravam a possibilidade de saírem às ruas, para isso, seria preciso que deixassem de ser loucos e se tornassem úteis, dóceis e razoáveis. O mesmo se esperava das crianças ao terminarem seus anos de escola; aliás, as crianças que não frequentavam a escola eram consideradas mal educadas, vagabundas, indisciplinadas e um perigo em potencial para o bom funcionamento social. É contemporâneo ao nascimento da escola moderna o desprezo e a desconfiança com a formação extra-escolar; haveria algo de louco nela.
É importante lembrar também que tal mescla de instituição disciplinar com projeto iluminista também se viu presente nas universidades europeias. Ali, a autoridade do professor era mantida e defendida pelo respeito, mas sendo difícil distinguir se tal respeito vinha do seu uso da razão, do conhecimento acadêmico-científico ou do lugar hierárquico e dos títulos possuídos. Provavelmente um pouco de cada. Enfim, a manutenção do modelo disciplinar já estabelecido deu continuidade à manutenção do poder do professor sobre o aluno, todavia não mais apenas como o poder de quem sabe sobre quem não sabe, de quem dita sobre quem copia ou de quem pode castigar sobre quem deve se submeter, próprios da escola do Antigo Regime. Agora, a esse poder soberano do professor do Antigo Regime soma-se o poder de moldar a conduta do aluno por meio da vigilância, da exigência de observância das normas, do adestramento. O professor agora é o exímio executor de uma pedagogia, de um método de ensino - como se só ele fosse capaz de transmitir certos saberes a seus alunos. Isto difere bastante, seja do professor do Antigo Regime, seja do aprendizado pelo experimento. O segundo, sugerido por alguns iluministas e que está na base do próprio método cartesiano, reconhece em qualquer intelecto que raciocine a capacidade de conhecer; o sujeito pode aprender em sua investigação da natureza sem um tutor. Já o primeiro, o professor do Antigo Regime, não tinha preocupações pedagógicas, era tão somente um comerciante de aulas e palestras (Ariès, 1973).
Percebe-se então que a ideia de que o Esclarecimento promovido pelo professor iluminista poderia ser efetuado num diálogo entre partes igualmente interessadas em fazer a razão prevalecer e ditar o final e glória da cena de descoberta da verdade é e foi algo absolutamente idealizado e quase nunca vivido. O lugar hierárquico concedido ao professor devido ao seu saber já comprovado, conjugado à concepção da criança ou do aprendiz como incipiente em termos de razão, quase nunca permitiu o diálogo entre as partes, mas, ao contrário, o emprego do poder instituído do primeiro sobre o segundo. O aluno passa, assim, a ser concebido apenas como recipiente de intelecto passivo, ou que deve ser tornado passivo, para receber o conteúdo do ensino.
Segundo Caron (1994), desde sua reformulação após a Revolução Francesa, o ensino primário teria como objetivo principal o aprendizado do que seria considerado basicamente necessário para a vida social, já o ensino secundário, que coincidiria com a adolescência, seria marcado pelo ensino moral também, como se vê no Grande Dicionário Universal do Século XIX, de Pierre Larousse (Larousse, 1866-1876), para o qual nos anos da adolescência, a higiene e a educação devem preparar e fundar, de alguma maneira, a saúde física e moral do homem. Foi exatamente entre 1780 e 1880 que se instaurou o ensino secundário em toda a Europa. A partir dessa época, a escola passa a representar na Europa o caminho regular pelo qual, por meio da instrução e da educação, o jovem ascende à ou na burguesia. Mas o que se chama saúde moral a ser transmitida no ensino secundário não é a mesma coisa que o ensino moral no Antigo Regime. O ensino secundário portaria o signo da tentativa da burguesia de criar uma elite em seu próprio âmbito e em relação às classes populares. Uma elite que se distinguiria do resto da burguesia e do proletariado por cultivar valores diferentes do ideal pequeno-burguês de estabilidade no amor, na família, na saúde e no trabalho. Essa elite cultivaria o amor pelo belo, pela ciência, pelos clássicos, pela filosofia; valores que supostamente a elevariam acima das preocupações mundanas rasteiras e a fariam experimentar o que resta de ascensão espiritual num mundo sem Deus. Tratar-se-ia da tentativa de conjugar a ascensão da razão como método universal e legítimo de busca da felicidade com valores clássicos não contaminados pelas derrotadas religião e aristocracia; algo semelhante ao projeto estético oitocentista neoclássico, derivado do iluminismo e da Revolução, e que buscou reunir o culto ao belo e o culto à razão, porém tornando-se no século XIX não apenas um referencial estético, mas também ético (Argan, 1992). A ciência transforma a escola para adorar a ciência: eis algo que se aprende na escola.
Como já apontado, as universidades modernas também se desenvolveram reunindo o modelo escolar do Antigo Regime com a exigência de que o ensino e as pesquisas ali realizados fossem científicos. Foucault (1975-1976) nos lembra que desde o século XVIII as universidades vêm desempenhando importante papel na seleção de quais saberes serão os universitários e quais serão dali excluídos, quais saberes constituirão a comunidade científica e quais não serão reconhecidos como ciência; além do mais, toda pesquisa científica será realizada e padronizada na universidade. Desde então foi decretado o desaparecimento do cientista-amador e a concentração de toda a ciência reconhecida como tal no interior da universidade. A razão e a verdade científica passam a ser bens possuídos pelo sistema escolar-universitário, que serão oferecidos àqueles que se disciplinarem ao seu modus operandi. Além dessa função, como a universidade está inserida no sistema educacional, ela também serve à formação e padronização profissional, submetendo cada profissão ao crivo da racionalidade prática. Isso quer dizer que ela passa a significar a caixa-forte das Luzes e o destino necessário para se alcançar o Esclarecimento e, ao mesmo tempo, um lugar de aprimoramento técnico disciplinar; centro de pesquisa, teoria e aprendizagem de uma profissão.
Peter Sloterdijk, em sua Crítica da razão cínica (1983), ataca a crença burguesa de que o aprimoramento por meio da formação seria de fato um herdeiro e o destino desejado para o Esclarecimento. Ao contrário, o autor viu emergir ao longo dos séculos XIX e XX, e em torno desta crença, uma postura indesejada, mas disseminada por toda parte, inclusive entre os profissionais da educação: o cinismo. O cínico, como "um tipo das massas" (Sloterdijk, 1983, p. 32), não acredita em nenhum progresso rumo à felicidade, mas aceita sustentar o sistema educacional nos moldes construídos a partir do iluminismo e das instituições disciplinares porque ele serve ao status quo ou, ao menos, às garantias mínimas de conquista de um trabalho; trata-se de uma espécie de conformista melancólico, de associal integrado.
Os planos de aula das escolas modernas são paródias da ideia de desenvolvimento (...). No sistema cultural moderno, a ideia do conhecimento corporificado decai nos docentes, assim como nos estudantes. Os professores (...) são (...) chefes de treinamento em cursos de aquisição de um saber distante da vida. (Sloterdijk, 1983, p. 130)
A formação nos moldes iluministas-escolares não seria uma formação para a vida em sua integralidade, mas estaria voltada para a adequação à razoabilidade social e profissional, como se se acreditasse cinicamente que um fragmento da vida pudesse ser desligado de todo o resto.
Ao contrário do que parece com sua crítica ácida, Sloterdijk é um defensor do Esclarecimento, mas tenta incentivar seus leitores a levar o Esclarecimento além de onde chegou e parou - e, para isso, seria preciso fazer, entre outras coisas, uma crítica à formação. Em certo sentido, ele busca manter a radicalidade da posição kantiana sobre o assunto. Quando Kant foi convidado a definir o que é o Esclarecimento (Kant, 1784), descreveu-o como uma saída de uma posição de imaturidade da humanidade - o que mais uma vez ratifica o lugar central da formação das crianças e jovens para os iluministas. A imaturidade em questão seria aquela dos que suspendem o uso de sua própria razão ao aceitarem a autoridade de alguém. Para Kant, obediência e uso da razão deveriam ser claramente distinguidos um do outro. Parece ser nesse mesmo sentido que Sloterdijk continua sua crítica à escola moderna:
Se não houvesse professores que se empenhassem desesperadamente pelo Esclarecimento apesar da aula e que investissem sua energia vital, apesar das condições, nos processos pedagógicos, não haveria mais quase nenhum estudante que conseguiria experimentar o que afinal estaria efetivamente em questão em uma escola. Quanto mais sistematicamente a educação é planejada, tanto mais ela depende do acaso ou da sorte, se é que a educação ainda pode acontecer efetivamente como iniciação da vida consciente. (Sloterdijk, 1983, p. 131-132)
O ponto central da crítica de Sloterdijk ao modelo escolar iluminista-moderno pode ser resumido, assim, nesta afirmação em forma de aforismo: "É constitutivo do Esclarecimento preferir o princípio da liberdade ao princípio da igualdade" (Sloterdijk, 1983, p. 149). E não parece ser isso o que as instituições disciplinares oferecem.
Concepções românticas de formação
O pensamento, os valores e o estilo de vida românticos desenvolveram-se como crítica à visão de mundo iluminista. A Revolução Francesa, com sua promessa de transformar o mundo em racional e belo, um mundo melhor, mais justo e mais harmônico, ao menos de imediato não alcançou propriamente seus objetivos. Viu-se, do lado dos revolucionários, personagens que poderiam, eles também, serem chamados de injustos, inimigos da liberdade e da igualdade e nem um pouco fraternos. Além do mais, a guerra civil, as traições, o Terror, a guilhotina, a retomada do poder eclesiástico e o estabelecimento do despotismo napoleônico apresentaram aos franceses uma realidade bem distante das promessas iluministas (Hobsbawm, 1979). Tal "espetáculo" não foi assistido somente pela população francesa, mas também pelo resto da Europa e do Ocidente, o que foi determinante para a força obtida pelas críticas românticas à utopia iluminista. Ainda assim, se um certo estilo de vida romântico se desenvolveu ao longo do século XIX, o romantismo não criou um modelo de educação com força para derrubar a escola moderna iluminista.
Como Georges Gusdorf (1982) observa, compreender o romantismo como uma unidade é um esforço meramente teórico; afinal, é justamente nesse momento histórico que as particularidades e diferenças serão reconhecidas como riquezas irredutíveis a uma unidade. Ainda assim, há uma constante valorização do que foge à disciplina; por exemplo, os caprichos e manias dos indivíduos, seus estilos e gostos próprios, passam a ser considerados adoráveis na cultura romântica. A criatividade e o gênio tornam-se virtude e ideal de vida. Tomaremos as ideias de duas grandes referências românticas, Edmund Burke e F. W. Goethe, a respeito da formação como parâmetro do que poder-se-ia esboçar como concepção romântica de educação.
Edmund Burke (1757) tem em seu projeto estético-educativo o objetivo de minorar o valor do belo identificado ao racional e, ao contrário, elevar o do sublime à mais engrandecedora experiência. Ao contrário do domínio, da estabilidade e da harmonia, o autor nos propõe que o sublime provocaria descompasso, angústia, terror e medo, mas também reflexão e uma espécie de prazer com o que supostamente seria desprazeroso, o deleite (delight). A experiência sublime viria lembrar ao homem sua pequenez e desamparo frente às forças da natureza, sejam as do mundo externo, sejam as de sua profunda natureza interna. Seja a razão, seja a harmonia com pretensões estabilizantes, não há poder humano que possa fazer frente àquelas forças descomunais. A razão e o belo como domínio do pensamento sobre a natureza jamais nos permitem apercebermo-nos daquela verdade. Ao contrário, seriam uma ilusão de segurança, engodo com o qual a civilização racionalista se comprometeu. Para Burke, o sublime provocaria um transbordamento, uma afetação tão intensa que causaria uma desindividuação radical, uma quebra de fronteiras entre o eu e os mundos externo e interno. Esse pensador acredita que será a experiência de desindividuação provocada pelo sublime que tornará os homens criativos e poéticos. O indivíduo genial será aquele inspirado por uma experiência sublime. Portanto, seria educativo lançar-se em experiências dessa qualidade, pois só assim é possível emergir tal ideal de homem - o gênio.
Goethe, quando jovem, o pré-romântico do Sturm und Drang, também traçou diretrizes importantes para o que seria educar do ponto de vista romântico. O Sturm und Drang foi um movimento artístico-intelectual concebido em torno de um trabalho de crítica mordaz à hegemonia do iluminismo e à centralização do núcleo da cultura ocidental na França (Goethe, 1772). Os membros desse movimento se dedicaram à tarefa de retirar o mundo alemão, com todas as suas particularidades culturais e naturais, da desvalia à qual o relegavam outros intelectuais alemães, deslumbrados com os ideais do outro lado do Reno. Ao valorizar o que havia de particular na cultura alemã, fizeram, no entanto, mais que isso: rebelaram-se contra o culto à razão e exaltaram as multiplicidades, as paixões e a vida.
Em Goethe (1772, 1774), as diversas formas de vida, em toda sua multiplicidade e poder metamórfico, harmonizam-se na natureza e numa cultura mais vasta, as quais aglomerariam todas as possibilidades de ser. O projeto iluminista é, desse modo, apenas uma entre múltiplas possibilidades de a humanidade se organizar e, se tomado em sua radicalidade, é limitador da vida. O jovem Goethe será, desse modo, um grande defensor das forças imanentes em oposição à transcendência de qualquer ideia ou modelo de cultura. É nesse sentido que a vida será uma noção importante para o poeta. Ela seria o maior valor a que os homens deveriam se voltar. Os conceitos, a razão, as ideias nos afastam da vida, que é pura energia transformadora. A vida não sai ilesa das generalizações; ao contrário, ela está na particularidade única de uma experiência, de uma realidade, de um ser humano. Na vida está o imediatismo do ser, a espontaneidade. Não obstante, a vida se refere sempre à própria natureza, mas natureza aqui corresponde à grande unidade que comporta todas as multiplicidades, todas as diferenças, todas as singularidades de cada vida. A natureza não é mais a natureza racional da ciência iluminista, um objeto a ser estudado e manipulado; ela, ao contrário, nos remete às singularidades irredutíveis que coabitam o mundo, sendo, em última análise, irredutível a um objeto. A desarmonia entre o homem e a natureza acontece toda vez que uma determinada forma de experiência cultural se impõe como a única tolerável e, dessa maneira, proíbe as multiplicidades de existirem.
Nesse sentido, se a vida - e não a razão - é o valor maior, a educação do homem será concebida de modo diferente. Uma vez que a vida é singular e irredutível às generalizações, cabe a cada um de nós tomar posse de nossa vida em oposição às forças contrárias a ela. A vida deve ser vivida em sua singularidade - o homem deve construir sua própria vida, tomar sua própria história nas mãos e conduzi-la; deve se automodelar. Por isso, em Goethe a arte ocupa um lugar destacado na educação. A arte é a tradução em ação da liberdade, da vida desconectada de uma cultura específica, para fazer parte de uma espécie de cultura mundial que inclui todas as subculturas em suas diferenças e possibilidades, confundindo-se com a própria natureza.
O romance de formação, invenção goethiana, é, juntamente com a autobiografia, a expressão na literatura do que se entendia como educação romântica, como se lê em Os sofrimentos do jovem Werther (Goethe, 1774) e até mesmo no título de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (Goethe, 1777-1786). Trata-se da narrativa de uma vida como aventura, como um lançar-se na experiência e transformar-se a partir dela. Trata-se da demonstração da construção de uma singularidade subjetiva e a valorização estética da realização da conquista da própria verdade.
Além das balizas traçadas por Goethe e Burke para uma educação romântica, Gusdorf (1982) salienta que a formação tal como concebida pelos românticos é sempre de dentro para fora e, portanto, muito diferente do modelo escolar. O conhecimento nunca se daria única e exclusivamente como a captura racional que um sujeito faz de seu objeto, mesmo que ensinado a fazê-lo; ao contrário, a troca afetiva parece condição sine qua non para o que os românticos considerariam o verdadeiro conhecimento. É claro que se perde muito da objetividade, mas a verdadeira transformação subjetiva se daria assim. A obediência disciplinada e a exposição de um conteúdo teórico ou prático transmissível por meio de exercícios racionais seriam uma transformação superficial do sujeito; apenas a experiência afetiva com um outro poderia levar a transformações profundas. O romantismo chama o sujeito à iniciação em um mistério: seja na descoberta de si, seja no amor a um outro, seja na experiência sublime da natureza ou na conversão religiosa. Não há programa estabelecido para essa aventura, ela é um contínuo desafiar-se e conhecer-se no processo e, ao mesmo tempo, porta, devido à exclusividade da experiência, uma incomunicabilidade. Daí a desconfiança romântica quanto à possibilidade de se ensinar a verdade pela comunicação inteligível.
As concepções românticas de formação não tiveram força suficiente para se transformarem em modelo de formação para as massas, ou mesmo para a burguesia. A escola moderna iluminista ergueu-se como modelo imbatível para todas as sociedades ocidentais. A desconfiança romântica quanto à capacidade de se transmitir a verdade, o entendimento da formação como um trabalho do indivíduo de dentro para fora, o reconhecimento de que cada indivíduo deveria ter uma formação singular para poder expressar a potência de sua vida e a tomada do gênio - figura excepcional - como resultante da experiência sublime certamente não ajudaram na implementação e disseminação de uma alternativa ao sistema educacional vigente que se dedicava à padronização de corpos úteis, dóceis e reprodutíveis. Ainda assim, foram fundamentais na formação dos artistas e literatos modernos que, por sua vez, destilaram o veneno romântico nos apreciadores de suas obras.
Após percorrer as vias principais dos mapas da formação segundo o iluminismo e o romantismo, localizarei alguns efeitos dessas duas tradições intelectuais-formativas na construção do modo de formação psicanalítica tornado referencial - o da clínica de Berlim sob a administração dos psicanalistas Karl Abraham e Max Eitingon, sob o aval de Freud.
Formação psicanalítica - na tensão entre iluminismo e romantismo
Bem antes da crise com Alfred Adler que conduziu à primeira grande ruptura no campo psicanalítico e o levou a cada vez mais buscar formalizar o que seria e o que não seria psicanálise e, com isso, a se preocupar com a formação dos analistas (como no artigo "A história do movimento psicanalítico" de 1914), no ano de 1907, nas famosas reuniões de quarta-feira, Freud já expressava algumas ideias que vigorariam depois (Checchia, Torres & Hoffmann, 2015). Por exemplo, na reunião de 27 de novembro de 1907, Freud censura a técnica adotada por Wilhelm Stekel e inspirada por Jung, da utilização das palavras indutoras, já considerando que ela se afasta da técnica clássica. Ali, portanto, já aparece um zelo com a técnica clássica e uma censura à adoção de outras vias. Sua intervenção no debate parece ter fins esclarecedores e instrutivos; foi o mesmo motivo que o levou, um pouco depois, a escrever o artigo "Psicanálise 'silvestre'" (Freud, 1910). Ali já se praticava um tipo de formação, mas muito diferente do que veio a se realizar depois.
Nessa época, a formação dos psicanalistas se conduzia assim: em torno de Freud havia algo semelhante a uma iniciação em um mistério; encontros com poucos discípulos, permeados de afetos, debates, discussões, alternâncias de palestras, interpretações psicanalíticas mútuas, conselhos e recomendações técnicas (Nunberg, 1959). A formação era, nos termos de Nathan G. Hale Jr. (1995), centrada num sistema patriarcal, onde o patriarca era Freud - ele era o educador de todos; nos termos de David M. Sachs (2011), o modelo era de um guru e seus discípulos. Respirava-se um ar um tanto romântico, talvez devido ao ineditismo daquela aventura ou talvez aos próprios fundamentos da psicanálise, como se verá mais adiante. Talvez seja possível também reconhecer aí vestígios da relação mestre-aprendiz tal como interpretada pelos iluministas, onde o laço afetivo e o ensino da psicanálise na sua própria prática pareciam pilares importantes. De qualquer modo, não havia ainda uma formalização da formação, mas Freud já a desejava. Isso fica claro na ata da reunião de 20 de outubro de 1907. Ali, Adler coloca em dúvida a possibilidade de a psicanálise poder ser ensinada ou aprendida. O secretário Otto Rank registra assim a resposta de Freud: "Em resposta a Adler, Freud afirma que não resta dúvida de que o método psicanalítico possa ser aprendido. Ele poderá ser aprendido uma vez que regras seguras estabeleçam limites à arbitrariedade dos psicanalistas individuais." (Rank, citado por Checchia, Torres & Hoffmann, p. 352-353).
Portanto, Freud tinha como objetivo instituir regras para o ofício da psicanálise e entendia que isso estava intimamente ligado à possibilidade de sua transmissão. Aparentemente, as regras aqui aludidas seriam de regras sobre a prática da psicanálise, sem que ficasse claro se haveria necessidade de regras sobre a forma de ensiná-la.
Durante e após as crises e rupturas com Adler, Jung e Stekel, ou seja, durante as publicações dos "Artigos sobre a técnica", e se julgarmos a posição de Freud a partir deles, temos de reconhecer que, ao mesmo tempo em que tenta definir claramente o que é e o que não é psicanálise (Freud, 1914), ele concede grande liberdade no uso da técnica por meio de suas recomendações aos analistas contidas naqueles artigos. E nada surge a respeito de regras quanto à formação dos psicanalistas.
É após a Primeira Guerra Mundial que as coisas mudam. Em 1919 Freud publica o artigo "Sobre o ensino da psicanálise nas universidades" (Freud, 1919b [1918]). Como o nome indica, Freud tenta adequar o ensino da psicanálise ao modelo universitário. Esse momento precisa ser contextualizado. Tanto Peter Gay (1988) quanto, mais esmiuçadamente, Hale Jr. (1995), Michael Schröter (2011) e Sachs (2011) mostram como a psicanálise muda de patamar, no que diz respeito ao seu reconhecimento internacional, após a Grande Guerra. Hale Jr. (1995) insiste que o reconhecimento do sucesso no tratamento psicanalítico dos neuróticos de guerra tornou a psicanálise mais aceitável, seja para os Estados, seja para o público em geral, seja no campo médico (surgiu uma psiquiatria de orientação psicanalítica). Claramente cresceu o interesse e o número de atendimentos nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Alemanha.
Num contexto de rápida expansão da psicanálise, o tema da formação de psicanalistas entrou na ordem do dia. Assim surgiu o artigo de Freud acima mencionado. Freud sempre quis que a psicanálise fosse reconhecida como uma ciência - e, como a escola e a universidade modernas lhe ensinaram, é o modelo escolar que, supostamente, na modernidade garantiria a formação científica. Outro indício de que o movimento psicanalítico tomava o modelo escolar-universitário moderno como adequado à formação de psicanalistas surge no Sexto Congresso da IPA em 1920, cuja ata se encontra no The International Journal of Psychoanalysis (IPA, 1920): o pastor Oskar Pfister, apoiado por Hans Sachs, Freud, Abraham e Ferenczi, propõe que a Executiva da IPA investigue se seria possível emitir diplomas em psicanálise.
Aliás, o editorial desse primeiro volume do The International Journal of Psychoanalysis, assinado pelo então presidente da associação, Sándor Ferenczi (1920), indica um movimento de centralização de poder da IPA com a renovada discussão sobre o que é e o que não é psicanálise; ali é categoricamente afirmado que a IPA é uma instituição de sustentação de verdades duramente conquistadas até serem contraditadas por novas evidências, e também uma instituição de contraposição e crítica às tendências disruptivas e reacionárias que acompanham a psicanálise.
Também no contexto mencionado surge a policlínica de Berlim, administrada por Karl Abraham e Max Eitingon. O próprio Eitingon (1922) é explícito quanto à razão da criação dessa policlínica: atender à convocação realizada por Freud em sua comunicação no Congresso de Budapeste (Freud, 1919a [1918]), na qual se explicita tanto a vontade de oferecer psicanálise a um público mais amplo quanto de formar mais psicanalistas em instituições voltadas para isso.
Se reunirmos essa comunicação de Freud, seu artigo sobre a psicanálise nas universidades, o aumento pós-Guerra da demanda de psicanálise - até mesmo por parte do Estado - e o que se tornou a policlínica de Berlim, é possível afirmar que o movimento psicanalítico se empenhou deliberadamente em construir uma instituição nos moldes da escola moderna iluminista para a formação de psicanalistas e atender às exigências de padronização da prática exigidas pela universidade (bastião da ciência) e pelo Estado moderno (o maior aplicador e disseminador da ciência como prática - ao menos nos anos 1920). Passava pelo projeto de poder do movimento psicanalítico tentar conquistar o respeito científico e técnico da universidade e do Estado.
Com os esforços de Eitingon, em três anos de existência a policlínica se transformou num instituto de formação com um caráter acadêmico e um programa de estudos fixo, seguindo um modelo tripartite: análise pessoal, aulas e atendimento sob supervisão. Ali, "graduava-se" em psicanálise, surgia uma identidade, uma uniformidade profissional antes apenas esboçada. Esse ficou sendo conhecido como o "modelo Eitingon", que foi importado pelas demais sociedades componentes da IPA, sob o aval silencioso de Freud. Sabemos que, se Freud se opusesse a alguma posição política ou teórica no campo psicanalítico, ele se manifestaria publicamente, mesmo que envelhecido e adoentado, como se demonstra em sua defesa da análise leiga (Freud, 1926b) e na crítica aos desenvolvimentos teóricos e técnicos de Rank (Freud, 1926a [1925]).
A importação gradual do modelo da policlínica pelas demais sociedades de psicanálise parece fazer parte do esforço da IPA de controlar o desenvolvimento da psicanálise num universo de membros tornado muito maior após a Grande Guerra. Segundo Hale Jr. (1995), o que estava em pauta era a emergência de um sistema de monopólio e controle sobre a profissionalização que codificou teoria e terapia. Quem estivesse fora da instituição e se dissesse praticante da psicanálise encontraria um opositor que, com desconfiança, poderia chamá-lo de farsante ou louco.
A adoção pela IPA de um modelo escolar padronizado e burocratizado para se transmitir a psicanálise ocorreu nesse contexto. Uma história análoga à criação da escola moderna iluminista, que precisou ser implementada quando foi considerado necessário educar todos. Na IPA, foi o grande aumento da demanda de psicanalistas e de candidatos a psicanalista o que alavancou a escolarização da formação. O único modelo de formação de grandes grupos que se conhecia era a escola moderna. Mas os problemas da escola foram também herdados. Agora havia menos liberdade e mais igualdade. Perguntamo-nos se esse efeito era acidental ou intencional na apropriação do modelo escolar pela IPA, uma vez que continuava seu movimento centralizador e de combate aos divergentes.
Sloterdijk é preciso na crítica à adoção pelas instituições de formação psi do modelo escolar, no qual os professores detêm voz, saber e poder e cabe aos alunos a passividade, instaurando uma relação perversa: "Ao invés de oferecer uma psicologia da autoridade e uma radioscopia do masoquismo político, os diretores de escola dos movimentos psicológicos tendem a degustar até mesmo as benesses da autoridade e a utilizar mecanismos masoquistas a seu próprio favor." (Sloterdijk, 1983, p. 134).
Além disso, o modelo escolar também traz o inconveniente de ser um esforço "de fora para dentro", uma transformação superficial do aluno. Talvez por esse motivo, e tendo em vista que a psicanálise, como investigação do inconsciente, provoca tanto no paciente como no analista profundas resistências, seria preciso um trabalho a mais além do modelo escolar.
O próprio objeto da psicanálise, o inconsciente, bem como outro conceito fundamental, a pulsão, foram construídos por Freud no interior de sua prática, mas a partir de premissas distantes do racionalismo que vigorava em seu meio médico inicial. Parecem bem mais próximos de uma tradição romântica: o primeiro problematiza a supremacia do eu fundado no pensamento racional como idêntico ao sujeito e capaz de dominar o corpo e a natureza igualmente racionalizáveis (Mosé, 2004). A afirmação da existência do inconsciente traz consigo outra afirmação: a de que um campo de desejos e fantasias não dominado pelo eu se impõe a ele e determina a vida do indivíduo, apesar de sua suposta deliberação consciente (Freud, 1900a, 1900b, 1915b). Do mesmo modo, o conceito de pulsão nega o corpo como objeto natural sobre o qual incide a razão; a pulsão sexual é o efeito da erogenidade do corpo, ela é excitação que exige trabalho de descarga e prazer - e, para que esse trabalho seja realizado, o corpo é cartografado por meio das fantasias de realização de desejo que permitiriam a descarga pulsional (Freud, 1905, 1915a; Birman, 2000). Desse modo, o conceito de pulsão anula a separação entre corpo e pensamento, entre soma e psiquismo; ao contrário, o psiquismo se engendra em seu fundamento como um mapeamento corporal-afetivo das fantasias sexuais.
Podemos afirmar, portanto, que os conceitos de inconsciente e pulsão, tão caros a Freud e à psicanálise de um modo geral, mostram que o funcionamento racional do pensamento consciente domina apenas parcialmente a conduta; por trás dele há o corpo pulsional e o inconsciente. Essa posição político-teórica, conjugada ao problema da contratransferência, manteve no interior das discussões psicanalíticas o problema da formação não só como uma apropriação de um conhecimento racional transmitido por um mestre, mas também como o manejo do problema da experiência sublime do inconsciente e do corpo pulsional que adentram a experiência analítica dos lados do paciente e do analista (Birman, 2000; Saint Girons, 2005).
A exigência de análise pessoal por parte do candidato a psicanalista é, portanto, mais antiga do que a policlínica de Berlim, mas foi mantida. Essa exigência parece, assim, ter extraído suas raízes não do modelo escolar iluminista, mas das concepções românticas de educação, nas quais o sujeito só seria capaz de alcançar a verdade não por meio de aulas, mas por uma aventura subjetiva, uma busca de um conhecimento mais profundo de si, incluídos aí os percalços e dificuldades do processo. A transformação subjetiva da experiência psicanalítica seria condição necessária para se tornar psicanalista. Essa posição foi sempre defendida por Freud, sendo explicitada em um de seus últimos trabalhos (Freud, 1937), o que prova a manutenção de sua posição. Apesar da emergência do modelo escolar, a exigência de que o psicanalista tenha feito análise aparece, portanto, como uma resistência das raízes românticas das primeiras experiências de transmissão da psicanálise presentes nas reuniões de quarta-feira. Nem todos aqueles psicanalistas fizeram análise, mas as atas daquelas reuniões claramente demonstram que a transformação "de dentro para fora" era fundamental, que o posicionamento do sujeito e a investigação do próprio inconsciente e da própria experiência como analista eram muito valorizadas (Checchia, Torres & Hoffmann, 2015).
Vem também da herança romântica a sustentação da dúvida se a psicanálise é passível de ser transmitida, uma vez que é uma transformação de dentro para fora - e, portanto, difícil de se verificar. Também a herança romântica traz o cultivo da adoração e idealização dos psicanalistas de destaque como seres geniais e criativos, expressões em vida de uma verdade. A formação psicanalítica, devido ao modo escolar, tenderia a produzir uma massa de psicanalistas normais, sensatos e burocráticos (talvez um tanto cínicos, no sentido dado por Sloterdijk); mas a exigência de análise pessoal faz surgir desta massa, vez por outra, psicanalistas geniais, adorados, que rapidamente se tornam líderes locais. A exigência romântica de transformação de si diante do sublime inconsciente (Saint Girons, 2005), por não ser programática, não permite que todos sejam geniais, mas cria condições para que alguns destes "artistas" despontem.
O pensamento de Freud, seja na formulação de conceitos psicanalíticos, seja na construção de estratégias de formação de analistas, é o tempo todo marcado pela tensão entre essas duas heranças: a romântica e a iluminista. No que diz respeito ao exercício do tratamento sob supervisão, invenção da policlínica de Berlim, terceiro componente do tripé constitutivo da formação psicanalítica segundo o "modelo Eitingon", ele parece compor-se como um amálgama das tradições iluminista-escolar e romântica-experiencial. Afinal, a supervisão parece ocupar um lugar entre a aula e a análise, uma espécie de campo turvo entre aquelas duas práticas. E, por isso, talvez seja um ponto sensível para se avaliar a instituição de formação em questão. Na prática da supervisão se poderá afirmar a presença maior ou menor das influências iluministas ou românticas no modo de formar psicanalistas. Supervisores que tendem a controlar seus supervisionados, dizendo-lhes o que fazer e o que não fazer, ensinando-os a diagnosticar ou interpretar corretamente o que se passa naquela análise específica, disciplinando-os e instruindo-os, seriam verdadeiros herdeiros da escola iluminista. É esse estilo que aparece no "Report of the Berlin psycho-analytical polyclinic" (1922), assinado por Max Eitingon, no qual se lê que lá os supervisores acompanhavam de perto as análises dos aprendizes mediante anotações feitas por estes; conseguir-se-ia assim - segundo o relatório - detectar facilmente seus equívocos e gradualmente eliminar a maioria dos erros que os inexperientes cometem. Por outro lado, supervisores que estimulam o supervisionado a ele mesmo se haver com suas questões e pressões inconscientes, a explorar a experiência afetiva presente naquela análise, a ele próprio construir seu modo de ser psicanalista, a se lançar no mistério de cada encontro analítico, seriam herdeiros legítimos do romantismo; cada um pagando o preço da tradição em que está inserido.
Conclusão
Encerro aqui minha apreciação sobre o tema proposto. É verdade que investigações futuras podem ainda destrinçar mais delicadamente as heranças romântica e iluminista no "modelo Eitingon". E seria desejável que tal trabalho fosse feito, pois se complementaria com este em sua intenção de conduzir o leitor a perceber a insuficiência das tentativas de fundamentação de um modelo de formação psicanalítico a partir dos constructos teóricos internos à produção de conhecimento psicanalítico naturalizados ou mesmo tomados como a expressão de uma verdade intelectual irrefutável. As verdades forjadas pelo saber psicanalítico são em parte herdeiras de uma história ao mesmo tempo maior e menor do que a da psicanálise. Referi-me, neste artigo, seja a uma história maior anterior à psicanálise, a dos conflitos entre os projetos de formação iluministas e românticos que repercutiram na história da psicanálise, seja a uma história menor interior à psicanálise, mas interior não no sentido do desenvolvimento dos conceitos como autônomos da prática; ao contrário, me refiro aos efeitos que a prática, as experimentações, as circunstâncias políticas internas e externas à psicanálise têm na produção de ideias que se tornaram canônicas na história da psicanálise. Assim, abre-se o convite para a reflexão dos psicanalistas atuais sobre o que querem herdar e o que devem deixar morrer.
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Recebido em 10 de novembro de 2017
Aceito para publicação em 23 de dezembro de 2017
SEÇÃO LIVRE
Repetição e contingência na clínica da psicanálise e na arte da performance*
Repetition and contingency in the psychoanalytical clinic and in the art of performance
La repetición y la contingencia en el psicoanálisis clínico y en el arte de la performance
Camila Ferreira SalesI; Guilherme Massara RochaII
IMestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Brasil. camilaferreirasales@gmail.com
IIProfessor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Brasil. massaragr@gmail.com
RESUMO
Tanto Freud quanto Lacan deixaram um legado peculiar no que diz respeito à interface entre psicanálise e arte: utilizar o material estético como recurso para pensar a clínica psicanalítica. Nesta, os processos de subjetivação implicam o atravessamento da repetição significante pela pulsão. Lacan nomeia tiquê (τύχη) o retorno do real que incide sobre a repetição de signos (autômaton). De maneira análoga, há na arte - especialmente a contemporânea - um modo de apresentação de temas que não se atêm à categoria do sentido, mas que se abrem para o universo dos afetos e pulsões. O objeto estético, nesse sentido, pode ser pensado como objeto pulsional. A partir de alguns exemplos da obra de Marina Abramovic, artista sérvia que vem sendo descrita como a avó da arte da performance, veremos como isso se articula.
Palavras-chave: psicanálise; repetição; arte da performance; contingência.
ABSTRACT
Both Freud and Lacan have left a peculiar legacy concerning the interface between psychoanalysis and art: the use of aesthetic material as a resource for thinking the clinic. Subjectivation processes in the psychoanalytical clinic imply the pulsion to traverse the repetition as a significant. Lacan names Tyche (τύχη) the return of the real that bears on the repetition of signs (automaton). In an analogous way, in art - especially contemporary art - there is a way of presenting themes not bound by the category of meaning, but open to the universe of affections and pulsions. One can think the aesthetic object, in this sense, as a pulsional one. By taking some examples from the work of Marina Abramovic, a Serbian artist who has been described as the grandmother of performance art, we will see how these processes connect.
Keywords: psychoanalysis; repetition; performance art; contingency.
RESUMEN
Tanto Freud como Lacan han dejado un legado único en relación con la interfaz entre el psicoanálisis y el arte: el material estético empleado como recurso para pensar la clínica. En esta clínica, los procesos de subjetivación implican que la pulsión atraviese la repetición, en su papel de significante. Lacan nombra tyche (τύχη) el regreso de lo real que incide sobre la repetición de signos (autómata). De modo semejante, existe en el arte - sobre todo en el arte contemporáneo - una manera de presentar los temas que no se atienen a la categoría de sentido, sino que se abren al mundo de las emociones y de las pulsiones. El objeto estético, en este sentido, se puede considerar como un objeto pulsional. A partir de algunos ejemplos de la obra de Marina Abramovic, artista serbia que viene siendo descrita como la abuela del arte de la performance, vamos a ver cómo esto se articula.
Palabras clave: psicoanálisis; la repetición; el performance; la contingencia.
A performance como tiquê
No Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan trata das repetições em análise a partir de dois termos aristotélicos: autômaton e tiquê. Tiquê significa o "encontro do real" (Lacan, 1964/2008, p. 57). É algo que está para além do autômaton, que designa, por sua vez, o retorno dos signos comandado pelo princípio do prazer. A repetição em autômaton responde à necessidade de articulação da cadeia significante em torno daquilo que Freud já apontava como sendo a primeira experiência de prazer. Já tiquê está em relação com o real, com o que se produz por acaso. Por isso, sua ocorrência na análise é da ordem da contingência.
É nessa mesma ordem que, conforme veremos neste artigo, inscreve-se a obra de arte. Como propõe Guilherme Rocha (2008), as diversas obras e procedimentos próprios da arte contemporânea são contemplados no programa de um "tratamento do simbólico pelo real" (p. 223). Isso significa que, no lugar de uma proposta figurativa e predicável da arte, aparecem os objetos-questão que interrogam o espectador e se produzem junto ao sujeito. Conforme o autor:
Onde triunfavam as formas estabelecidas, os estilos de época e as mídias consagradas advêm o informe, a subjetivação do estilo, a dissolução da fronteira entre a obra e o suporte de sua criação. A ação da contingência é decisiva na confrontação das obras aqui consideradas. (p. 223)
Tanto Freud quanto Lacan deixaram uma herança peculiar no que diz respeito à interface entre psicanálise e arte: utilizar o material estético como recurso para pensar a clínica. Esse artigo se propõe tratar de conceitos que atravessam a clínica psicanalítica e a experiência subjetiva da arte contemporânea - tanto a experiência do público quanto a do próprio artista. Para tal, nos servimos da performance de Marina Abramovic, artista sérvia que atualmente vive e desenvolve seu trabalho em Nova Iorque. Não se trata de interpretar a artista, tampouco reduzir sua obra a estruturas formais da psicanálise. Nosso objetivo é mostrar que a performance, por ser um tipo de arte contemporânea, apresenta uma opacidade de sentido que vem esvaziar a repetição das imagens e fazer aparecer algo do real por trás da dimensão da fantasia.
Tomemos como exemplo alguns trechos da obra de Marina Abramovic. Em 1977, numa performance denominada Expanding in space (Expansão no espaço), a artista e seu parceiro, Ulay, se colocavam de costas um para o outro, nus, no centro de um estacionamento fechado. À frente de cada um, a uma distância de mais ou menos 5 metros, havia uma espécie de pilastra móvel de 15kg cada. Os artistas então andavam em direção às estruturas até se chocarem fortemente contra elas, com todo o corpo, e depois voltavam a se colocar um de costas para o outro no centro do espaço. Esse movimento se repetia durante 46 minutos, enquanto eles caminhavam numa velocidade cada vez maior, passando enfim a correr e se chocar contra as pilastras, arrastando-as até as extremidades opostas do galpão. O resultado disso era a expansão do espaço entre as estruturas, o que justifica o nome da performance. Em entrevista recente1 a artista contou que ela e Ulay saíram da cena com seus corpos tão doloridos que precisaram ficar de repouso durante um mês.
Em outra performance, Art must be beautiful, artist must be beautiful (A arte tem que ser bela, a artista tem que ser bela), de 1975, Marina Abramovic está nua e começa a pentear seu cabelo com uma escova de metal na mão direita. Ela vai penteando com uma força cada vez maior e depois inicia o mesmo movimento com a outra mão, com um pente de metal. Ao longo da performance ela vai repetindo a frase que lhe confere o nome: "a arte tem que ser bela, a artista tem que ser bela". Ela permanece durante uma hora nessa repetição até seu rosto se machucar e seu cabelo ficar completamente embaraçado. Percebe-se que há uma repetição exaustiva de movimentos até chegar a um esgotamento, um verdadeiro estrago no corpo.
Semelhante repetição até o ponto de exaustão pode ser vista em Freeing the Body (Libertando o Corpo). A artista fica nua, apenas com a cabeça embrulhada num cachecol preto, movendo seu corpo durante 8 horas no ritmo de uma bateria africana. Ela se move - numa espécie de catarse ou conversão - até cair (Stiles, Biesenbach & Iles, 2008).
Marina Abramovic se considera a avó da performance e, em entrevista recente, ela declarou que já se cansou de ouvir a pergunta "por que isso que você faz é arte?". Disse que já não tenta responder mais, apenas dedicando-se a levar ao público uma experiência diferente, que o surpreenda, que o desloque de seu lugar comum e o convide a uma vivência inédita. Para ela, esse é o papel da performance: não endossar nossa ânsia pelo desvendamento do sentido na arte.
A performance artística provoca a quebra desse suporte semântico sobre o qual estamos habituados a constituir nosso mundo de relação. É evidente que, nas cenas acima narradas, a repetição de imagens e movimentos faz aparecer, num determinado momento, algo extremamente perturbador, seja uma queda ao chão, um corpo machucado ou um rosto ensanguentado. Isso que se produz no corpo - na carne do corpo - causa choque, surpresa, susto ou estranheza, especialmente pela falta de sentido que comporta.
Pode-se chamar de contingente esse encontro inesperado com um corpo, digamos, fora do lugar - entendendo esse lugar como um ideal. Trata-se de um corpo que não corresponde a uma imagem ou fantasia adequada de corpo. Portanto, a repetição vista na performance não coaduna com o fenômeno de proliferação de signos que geraria um sentido para a cena, mas faz emergir o elemento novo que invade a cena e evoca a dimensão de um resto indizível - resto de corpo - que se relaciona ao que Lacan chamou de tiquê.
A repetição na psicanálise
Vejamos primeiramente como Freud entendia o paradoxal movimento de repetição que conjugava numa mesma experiência sensações de prazer e desprazer. A respeito do sintoma obsessivo, por exemplo, ele faz uma observação interessante: "O que não aconteceu de maneira conforme ao desejo é tornado não acontecido mediante a repetição de outra maneira" (Freud, 1926/2014, p. 58). Isso que não aconteceu conforme ao desejo diz respeito a uma vivência traumática cujo excesso de excitação não pôde ser descarregado no plano simbólico. O ideal, para Freud, é que o trauma tivesse escoamento pela via do processo secundário, por meio da ligação do afeto com palavras, na instância do pré-consciente.
No entanto, o que o sintoma obsessivo mostra é que tal vivência traumática, uma vez não tratada pelo sistema simbólico, passa pelo processo do recalque que separa o elemento quantitativo da representação correspondente. Assim, enquanto o conteúdo ideativo é lançado para o inconsciente, o afeto encontra outra forma de escoamento: o ato repetitivo. O sujeito atua em vez de simbolizar. Esse é um dos motivos que leva à formação do cerimonial obsessivo e que Freud nomeia "anulação do acontecido" (Freud, 1926/2014, p. 57). O sintoma aparece como tentativa de resolver a angústia do não acontecido, localizando numa série repetitiva algo que de outra forma ficaria disperso, como energia flutuante a provocar excitações contínuas no aparelho psíquico e causar desprazer. "A construção de um sintoma é o substituto de alguma outra coisa que não aconteceu." (Freud, 1917/1996, p. 287)
Ora, Freud reconhece que o intuito de anular uma ação passada (ação esta que não ocorreu conforme o desejo), tal como ocorre nos rituais mágicos e cerimônias religiosas, por ser algo impossível de se realizar, só pode proliferar ainda mais a repetição do ato. Por exemplo, um sujeito obsessivo pode lavar as mãos diversas vezes acreditando estar se livrando de uma experiência passada, embora conscientemente ele saiba que lavar as mãos não vai satisfazer tal desejo. Ele acaba provocando, com este ritual, uma repetição que ao invés de alívio causa mais angústia.
Temos então que o sintoma obsessivo combina esses dois impossíveis: o fato passado que não aconteceu conforme o desejo (fato traumático) e a anulação desse fato mediante a repetição a fim de torná-lo não acontecido (sintoma). Dessa combinação de "não acontecidos" resulta a positividade da repetição que vem proliferar o sintoma e, com isso, atualizar o resto intraduzível do trauma, do não-realizado.
A compulsão à repetição, como aparece no sintoma obsessivo, forneceu a Freud a chave para o entendimento da pulsão de morte. Ela se sustenta sobre a impossibilidade de realização do desejo, impossibilidade que tem sua origem na separação do objeto que foi o primeiro a garantir satisfação à criança. Uma vez perdido, o objeto deixará seu traço no caminho por onde o princípio do prazer buscará reencontrá-lo. Freud (1925/2011), no texto A negação, explica que o princípio de realidade é totalmente pautado sobre a necessidade de reencontro com esse objeto e por isso anda de mãos dadas com o princípio de prazer. "A meta inicial e imediata do exame de realidade não é, portanto, encontrar na percepção real um objeto correspondente ao imaginado, mas sim reencontrá-lo, convencer-se de que ainda existe" (p. 280).
A perda do objeto, cuja experiência prototípica é a perda da mãe logo quando do nascimento do bebê, é, para Freud, o trauma por excelência. Ela se atualiza na brincadeira do fort-da, quando a criança manifesta a separação de forma repetitiva, a fim de anular seu teor traumático, passando de uma posição passiva a uma posição ativa. Freud considera que a brincadeira com o carretel se encontra em conformidade ao princípio de prazer, pois a criança "só foi capaz de repetir sua experiência desagradável na brincadeira porque a repetição trazia consigo uma produção de prazer de outro tipo, uma produção mais direta" (Freud, 1920/1996, p. 27).
É este o ponto paradoxal da teoria econômica freudiana: se a compulsão à repetição é de domínio da pulsão de morte, já que repete uma atuação desagradável para o sujeito e com isso gera angústia, por outro lado ela está em conformidade ao princípio de prazer, por produzir alívio de tensão e por tentar anular aquilo que não ocorreu de acordo com o desejo. É pela compulsão a repetir a brincadeira do fort-da que o princípio de prazer domina o além desse princípio, a pulsão de morte. Trata-se da tentativa de chegar à homeostase a partir da descarga de energia gerada por uma experiência traumática (no caso, a separação da mãe), por um processo em que se repete a cena angustiante de modo ativo, não mais passivo. O sujeito não mais é vítima do fato traumático - ou daquilo que não ocorreu conforme o desejo - pois pelo sintoma ele encontra uma forma de tratamento.
Freud (1920/1996) percebeu claramente esse paradoxo a partir dos sonhos traumáticos de guerra, que o levaram a questionar sua teoria de que todo sonho era uma realização de desejo. Conteúdos oníricos horripilantes de cenas de guerra só podiam ser movidos por alguma outra força que precisava de escoamento. Se não se tratava apenas de uma experiência de prazer ou de realização de desejo, haveria também a pulsão de morte que, contraditoriamente, participava do princípio de prazer, repetindo algo desprazeroso na tentativa de se chegar ao equilíbrio psíquico. O sonho, assim como a repetição no sintoma, colocava em cena algo de outra ordem que não a do prazer, e sim do traumático. Isso o levou à seguinte conclusão: "O princípio de prazer parece, na realidade, servir às pulsões de morte" (Freud, 1920/1996, p. 74).
Lacan (1962-1963/2005) propõe uma leitura que recoloca o princípio quantitativo freudiano na dimensão entre o significante e o real, ressaltando a estrutura em detrimento da análise energética operada por Freud. Ele diz que a hipótese freudiana da repetição do fort-da como tentativa de amenizar a perda da mãe é apenas secundária. O que está no centro dessa dinâmica é mais exatamente a hiância que introduz, com a ausência da mãe, a separação em que a criança se destaca ela própria como objeto. O carretel é a colocação em ato do próprio sujeito, donde ele resulta como objeto a.
Logo, a separação da mãe deixa a fenda por onde a criança se introduz na ordem significante, tornando possível sua entrada no universo simbólico. É também dessa separação que surge o hiato entre o desejo e a garantia de seu não esgotamento. Causado pela divisão, o sujeito repete na tentativa de encontrar uma satisfação-toda que é ilusória, mas que ao mesmo tempo sustenta o movimento do desejo e garante sua existência.
Em Lacan, a repetição que corresponde a autômaton diz respeito à rememoração, conforme Freud a explicita nos escritos técnicos, uma vez que ela procede da necessidade do significante em se repetir. Tal como vemos nas manifestações do sintoma e do sonho, a repetição exaustiva procede da cadeia significante, embora os elementos que compõem tais formações do inconsciente não sejam exclusivamente simbólicos. Verifica-se tal repetição no sintoma obsessivo, por exemplo, com a promessa de anular a marca do trauma pela proliferação infinita de signos. Signos que, convenhamos, pouco ou nada têm a ver com a experiência original. Relembremos o sintoma obsessivo clássico de lavar as mãos: o que ele diz sobre a experiência traumática original? É difícil encontrar qualquer correspondência.
Na clínica, a elisão significante faz aparecer o real sincrônico que reduz o sujeito a seu aspecto negativo, a sua origem em das Ding (Lacan, 1972-1973/1985). Ocorre quando o autômaton é interrompido pela tiquê, ou seja, o significante cessa no ponto em que é ultrapassado pela pulsão. A rememoração esbarra num limite que é do real e que acontece por acaso, sem previsão. É esse limite que se trata em tiquê. O pensamento orientado pelo processo primário (pensamento inconsciente) não pode jamais recobrir o real, porque este é justamente o que "não para de não se escrever" (Lacan, 1972-1973/1985, p. 127).
Da mesma forma, é impossível resgatar a experiência de satisfação original com o objeto, como Freud (1925/2011) diz: "Mas reconhecemos, como precondição para que se instaure o exame da realidade, a perda de objetos que um dia proporcionaram real satisfação" (p. 280). O que significa que a experiência da falta se origina da perda desse objeto a partir da qual a cadeia significante se instaura na tentativa de reencontrá-lo. Em Freud, trata-se de uma perda real, que se presentifica na figura da mãe.
Já em Lacan, o objeto perdido não tem consistência real (no sentido de realidade), mas é um objeto que funciona no nível do real, na materialidade da Coisa (das Ding), articulado à cadeia significante. Entende-se que o campo do real - impossível de ser recoberto pelo significante ou pela repetição em autômaton - se manifesta pela pulsão que insiste em retornar. "O real é aqui o que retorna sempre ao mesmo lugar - a esse lugar onde o sujeito, na medida em que ele cogita, onde a res cogitans, não o encontra" (Lacan, 1964/2008, p. 55).
Se o real é o que retorna sempre ao mesmo lugar é porque, na tentativa de reencontrar o objeto que não está lá, que Lacan vai chamar de objeto a, surge um movimento interminável de busca de realização do desejo. A compulsão à repetição de que Freud nos dá notícia é a insistência de voltar a um estado anterior, de puro prazer, antes da separação entre o Eu e o objeto. Freud atribui o sentimento primordial de desamparo a essa separação, e é dela que se origina o afeto de angústia. Porém, é desse destacamento do corpo do outro, desse objeto a ao qual o sujeito se vê reduzido no jogo do fort-da, que Lacan parte para dizer que a angústia é na verdade o contrário do que Freud postula. Ela está não na separação da mãe, mas na ausência dessa separação, ou seja, quando a criança não é senão um prolongamento do corpo materno.
Em Lacan, a angústia é falta da falta. Ela anuncia ao sujeito o perigo de se ver misturado a essa mãe-toda, o perigo da ausência do intervalo, entendido esse intervalo como o simbólico que se introduz no real e que sustenta o desejo. A angústia é sinal do real: "já podemos dizer que esse etwas (algo) diante do qual a angústia funciona como sinal é da ordem da irredutibilidade do real" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 178).
Por isso Lacan elege o fenômeno do duplo como paradigma para o afeto de angústia, associando-o ao sentimento de estranheza. No duplo, não se reconhece o lugar da falta, pois ela está preenchida por um objeto que a tampona, do que resulta que "a falta vem a faltar" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 52). Como no conto do Homem de Areia, de E. T. A. Hoffmann, comentado por Freud em seu famoso ensaio O estranho (1919/1996), o aspecto de estranheza surge de uma situação em que o olho daquele que olha aparece na cena. O objeto é duplicado no lugar da falta, resultando em nada mais que a reafirmação da própria falta. Isso faz aparecer o elemento de origem inconsciente que deveria permanecer escondido, porém veio à luz: a castração.
A angústia, segundo Lacan (1962-1963/2005), é o afeto que sinaliza o desejo na medida em que este está articulado no lugar da falta. Se a análise causa angústia é por descentrar a fantasia que reveste o real, desestabilizando a estrutura narcísica do Eu. Lacan aposta que a verdade do inconsciente se localiza na escansão significante que remete ao real e que a fantasia tenta velar: "é em relação ao real que funciona o plano da fantasia", ou seja, "o real suporta a fantasia, e a fantasia protege o real" (p. 47). Por isso ele diz que "nenhuma práxis, mais do que a análise, é orientada para aquilo que, no coração da experiência, é o núcleo do real" (p. 58).
Estética do real: o corpo na performance
Tal como na clínica da psicanálise, na performance prevalece o descentramento do ideal de Eu (ideal da imagem do corpo) e no lugar dos afetos que tendem a compor uma identidade com a obra - ou a partir dela - surge o elemento do estranho. A respeito da arte contemporânea, o filósofo Theodor Adorno (2006) comenta: "a identidade estética deve defender o não-idêntico que a compulsão à identidade oprime na realidade" (p. 15).
Vladimir Safatle, a partir da leitura de Adorno, argumenta que a obra de arte pode ser vista como objeto da pulsão, o que a torna irredutível ao campo do sentido. O objeto estético é refratário à totalização pretendida pelo discurso conceitual. Estando o objeto estético em sintonia com o objeto da pulsão, "a arte pode aparecer como modo de formalização da irredutibilidade do não-conceitual, como pensamento da opacidade" (Safatle, 2004, p. 117).
Guilherme Rocha (2008), em seu Olho clínico: ensaios e estudos sobre arte e psicanálise, defende que o artista decompõe o conceito, desestabilizando a relação do objeto com seu lugar-comum e provocando assim a clivagem do par significante-significado. O resultado disso é que o sujeito é efeito da obra de arte, e não o contrário. O objeto é convocado a dividir o sujeito. "A experiência estética se realiza, então, a partir daquilo que a obra de arte causa no advento do sujeito" (p. 224). Especificamente a arte contemporânea, em seu apelo ao informe, dá acesso à figura do desejo conforme Freud a expõe, desejo este encoberto por um véu, inatingível, dissimulado. Seu caráter inapreensível admite um "saber em fracasso" (p. 225), a demissão do conceito em sua paixão pela significação, o que realça a negatividade irredutível daquilo sobre o qual ele se tece. Assim:
O discurso estético que elucida as formas e procedimentos peculiares às artes contemporâneas tem por horizonte a negatividade da obra, a apreensão da subtração induzida na consistência dos semblants, sejam esses constituídos pelas figuras típicas dos protocolos artísticos, sejam aqueles demais estereótipos e arranjos personalísticos, em que a cultura se arvora, e que a arte interroga. Arte marcada, então, por um saber programaticamente discernido pelo real e submetido à desfiguração, à hiância, aos arranjos imprevistos, aos não-lugares. Saber que se funda do real e que é por ele nutrido, tratado. (Rocha, 2008, p. 225-226)
A performance artística de Marina Abramovic, como apresentada no início deste artigo, pode ser pensada nessa mesma direção. As obras subvertem a tentativa de absorção de sua estética pelo sentido. Elas parecem estar mais próximas do registro do sublime, do informe, do estranho, do que propriamente do belo, daquilo que condiz com a forma harmonizada de seus elementos.
O crítico de arte norte-americano Hal Foster (1996/2014), em O retorno do real, diz que a arte contemporânea recusa a diretiva de pacificar o olhar e de unir imaginário e simbólico contra o real. "É como se essa arte quisesse que o olhar brilhasse, que o objeto se sustentasse, que o real existisse, em toda a glória (ou horror) de seu desejo pulsátil, ou ao menos evocar essa condição sublime" (p. 136). Utilizando os termos tiquê e autômaton, o autor tece uma comparação interessante da arte com o paradoxo da repetição presente na clínica psicanalítica. Ele diz que a repetição dos signos, tal como ocorre no sintoma e por isso da ordem do autômaton, ao mesmo tempo em que serve de proteção ao aparecimento do trauma, acaba por produzi-lo (assim como o sintoma obsessivo, como vimos com Freud). A produção desse traumatismo pega o sujeito de surpresa, já que se inscreve na dimensão da tiquê, da causalidade acidental.
Assim, na arte contemporânea a repetição de imagens (e, podemos acrescentar a partir da performance, a repetição de movimentos) evoca esse elemento do traumatismo quando algo surge por acaso - a queda, o corpo ensanguentado, o cabelo desfigurado. É isso que Foster chama de "realismo traumático" (Foster, 1996/2014, p. 126), categoria que não exclui a dimensão dos referenciais e simulacros - ou dos significados e semblantes - porém flerta com esses elementos numa esfera em que aparece "um sujeito em estado de choque, que assume a natureza daquilo que o choca como defesa mimética contra esse choque" (Foster, 1996/2014, p. 126).
Impossível de ser representado, o trauma só pode ser repetido. Consequentemente, as repetições acabam por despertar a sensação de estranheza que dá à angústia seu caráter fundamental. Forma-se, pois, um ciclo vicioso: "repetições que se fixam no real traumático, que o encobrem, que o produzem" (Foster, 1996/2014, p. 131).
Gilson Iannini (2004), nessa mesma direção, sugere que a arte contemporânea aparece como "figura de um certo excesso de real - que desnuda a precariedade do simbólico - espécie de ruína, espécie de catástrofe das imagens de reconciliação" (p. 84). Nesse sentido, ela rompe com a adequação não apenas a uma tessitura simbólica, mas também com a tendência do Eu a uma totalização imaginária ou à unificação em torno de uma Gestalt.
Como se pode perceber a partir dos trechos da obra de Marina Abramovic, o que aparece em cena não é um corpo ideal, belo, intacto e de formas perfeitas, e sim a dimensão de um corpo fragmentado, sempre passível de sofrer o atravessamento de algum ato que o desfigure e que venha denunciar sua finitude. O corpo com o qual se joga na performance, longe de ser aquele de nossa fantasia, aproxima-se da dimensão do real - corpo que ficou fora do espelho, impossível de ser refletido, aquele resto de objeto que não faz imagem - corpo do objeto a, objeto da angústia.
Tânia Rivera (2006) comenta as performances artísticas na perspectiva do unheimlich. O estranho aparece no jogo especular que produz duplicações do eu, num movimento de ocultamento e mostração: "o Estranho aponta para um ato que chacoalha a cena da fantasia, pondo em questão seu estatuto de cena, ou seja, de agenciamento entre o sujeito e o objeto no campo do olhar" (p. 130). Ou seja, o estranho é aquilo que denuncia a fragilidade da fantasia ao trazer para a cena um inesperado ato de fragmentação, evidenciando o fator pulsional que constitui o sujeito.
Em outro texto, a autora propõe que a performance apresenta mais uma ausência do que uma presença "mais ou menos espetacular do corpo" (Rivera, 2013, p. 20). O corpo na performance denuncia, "para além de qualquer reafirmação de sua existência individual, a sua fugacidade, a condição mortal, passageira, do homem" (Rivera, 2013, p. 19-20). Por isso ela atualiza algo da cena traumática que diz respeito à finitude, à castração, ao desamparo humano.
Trata-se do real léxico de Lacan, aquele que é uma espécie de fundo último das coisas, destacado da imagem, e que se trata sempre de tentar representar, sem que tal operação jamais se cumpra de forma definitiva. Real traumático, terrível, com o qual o sujeito se depara repetida e violentamente. (p. 21)
Nesse sentido, a performance provoca o efeito de desestabilizar não apenas o espaço da representação, mas também o Eu como imagem. Esse efeito Rivera (2013) denomina de "verdadeiro retorno do sujeito" (p. 20), já que, em vez de servir de ponto de partida para a criação artística, advém de fora do espaço da representação. Esse sujeito não se exerce na representação da realidade sob um olhar fixo; ele retorna como sujeito "descentrado", como "corpo real" (p. 21), portanto, mais próximo à dimensão de objeto, uma vez que seu corpo se coloca a serviço do gozo do Outro, entregue àquele que o olha e o modifica com seu olhar.
Isso se dá pela reconfiguração do corpo como arte e, ao mesmo tempo, do sujeito como corpo. Pela via do corpo, o artista sai do domínio sobre a obra e a interação com o espectador provoca efeitos em ambos - efeitos da ordem da contingência. Entregue como objeto ao olhar do Outro, um deslocamento é provocado. Quem é sujeito agora? Quem é objeto? Nesse lugar onde tanto artista quanto público são lançados, sem o véu da fantasia que lhes garante a proteção narcísica, encontra-se uma certa dimensão do corpo vazio. Não sendo da ordem do ideal, do belo, o corpo do performer deixa aparecer o informe, a queda, o acidente, o estranho.
No seu livro mais recente, Safatle (2015) comenta, a respeito da performance de Yves Klein (Leap into the Void, 1960) em que o artista se lança do parapeito de uma casa em direção ao chão: "como quem diz: mas é para isto que a arte existe em sua força política, para deixar os corpos se quebrarem" (p. 44). Como se a arte se sustentasse sobre a possibilidade de quebra dos corpos. Ou talvez na mostração de um corpo que não está na integridade da imagem, e sim na fragmentação causada pela pulsão.
Há momentos em que os corpos precisam se quebrar, se decompor, ser despossuídos para que novos circuitos de afetos apareçam. Fixados na integridade de nosso corpo próprio, não deixamos o próprio se quebrar, se desamparar de sua forma atual para que seja às vezes recomposto de maneira inesperada (Safatle, 2015, p. 44).
Pode-se concluir, então, que a arte da performance remete cada um que a vivencia a uma experiência de descentramento do corpo. Na impossibilidade de generalizar, já que o encontro com a arte é subjetivo (assim como a clínica é do um a um), cabe apenas observar que, tanto na arte contemporânea quanto na clínica, o desamparo tem seu lugar central.
A partir do desamparo, talvez seja possível encontrar saídas menos adoecedoras para a repetição simbólica que compõe os sintomas, mas também o mundo em que vivemos, dominado por uma certa insistência nos símbolos (símbolos do mercado, da mídia, da indústria farmacêutica, dos manuais psiquiátricos etc.). Quando o autômaton é atravessado pelo acontecimento de tiquê, seja na arte ou na clínica, subverte-se o modo habitual de compreender o mundo e os corpos. O próprio olhar - que em geral se estabiliza sobre formas imaginárias - é invadido por uma certa estranheza.
Na performance, como também na psicanálise, deixar aparecer esse corpo estranho é possibilitar uma identificação menos atrelada ao ideal de Eu e mais próxima ao objeto que Lacan chama de objeto a: o que não tem formas fixas e que se refere à causa do desejo. Objeto da angústia, afeto que sinaliza o real. É por essa via que se torna possível sair da repetição de signos e fazer falar o sujeito do desejo.
Referências
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Stiles, K.; Biesenbach, K.; Iles, C. (2008). Marina Abramovic. London: Phaidon. [ Links ]
Recebido em 14 de janeiro de 2018
Aceito para publicação em 09 de maio de 2018
* Este artigo é resultado da pesquisa de mestrado intitulada "A experiência da angústia na clínica psicanalítica e na arte da performance", financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), apresentada em fevereiro de 2016 na Universidade Federal de Minas Gerais.
1 Ciclo de palestras ministradas pela artista durante a exposição Terra Comunal, entre os dias 11 de março e 30 de abril, no Sesc Pompeia, em São Paulo. Disponível em: http://terracomunal.sescsp.org.br/7-conversas. A título de curiosidade, o centro cultural Sesc Pompeia foi onde ocorreu o primeiro festival de performances realizado no Brasil, segundo Cohen (2013).
SEÇÃO LIVRE
Psicoterapia cognitivo-comportamental para mulheres em situação de violência doméstica: revisão sistemática
Cognitive behavioral therapy for women in domestic violence situation: systematic review
Psicoterapia cognitivo-conductual para mujeres en situación de violencia doméstica: revisión sistemática
Mariana Gomes Ferreira PetersenI; Júlia Carvalho ZamoraII; Ilana Luiz FermannIII; Pâmela Letícia CrestaniIV; Luísa Fernanda HabigzangV
IMestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Porto Alegre, Brasil. mariana@sgferreira.com.br
IIMestranda em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Porto Alegre, Brasil. juliaczamora@hotmail.com
IIIMestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Porto Alegre, Brasil. ilana.fermann@gmail.com
IVGraduanda em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Porto Alegre, Brasil. pamelacrestanii@gmail.com
VDoutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Porto Alegre, Brasil. habigzang.luisa@gmail.com
RESUMO
Este artigo teve como objetivo realizar uma revisão sistemática da literatura sobre protocolos de terapia cognitivo-comportamental (TCC) para tratamento psicológico de mulheres em situações de violência doméstica.
MÉTODO: Uma busca foi realizada nas bases Scielo, Pepsic, PubMed, PsycINFO, Scopus e Web of Science com os seguintes descritores: "clinical trial" ou "therapy" ou "psychotherapy" ou "psychological treatment" E "violence" ou "mistreatment" ou "domestic violence" ou "conjugal violence" E "women". Foram identificados 1.329 artigos e, após aplicação de critérios de inclusão e exclusão, restaram 11 artigos. Estes foram analisados a partir de aspectos metodológicos, elementos de intervenção e resultados alcançados.
RESULTADOS: Nove artigos relataram estudos clínicos randomizados. As intervenções tiveram como foco sintomas de trauma, ansiedade e depressão.
CONCLUSÕES: Os artigos destacaram a avaliação de resultado. Identificou-se a necessidade de estudos que detalhem o processo psicoterapêutico, principalmente no contexto brasileiro, para qualificar as redes de atendimento com práticas baseadas em evidências.
Palavras-chave: violência doméstica; gênero; terapia cognitivo-comportamental; prática baseada em evidências.
ABSTRACT
This article aimed to carry out a systematic review of the literature about cognitive behavioral therapy protocols (CBT) for psychological treatment of women in situations of domestic violence.
METHOD: A search was conducted on the databases Scielo, Pepsic, PubMed, PsycINFO, Scopus and Web of Science with the following descriptors: "clinical trial" or "therapy" or "psychotherapy" or "psychological treatment" AND "violence" or "mistreatment" or "domestic violence" or "conjugal violence" AND "women". A total of 1.329 articles were identified and, after application of inclusion and exclusion criteria, 11 remained. These were analyzed from methodological aspects, intervention elements and results achieved.
RESULTS: Nine articles reported randomized clinical trials. The interventions focused on symptoms of trauma, anxiety and depression.
CONCLUSIONS: The articles stressed the assessment of results. The need was manifest for studies to detail the psychotherapeutic process, mainly in the Brazilian context, to qualify the service networks with evidence-based practices.
Keywords: domestic violence; gender; cognitive-behavioral therapy; evidence-based practice.
RESUMEN
Este artículo ha tenido como objetivo realizar una revisión sistemática de la literatura sobre los protocolos de terapia cognitivo-conductual (TCC) para el tratamiento psicológico de las mujeres en situaciones de violencia doméstica.
MÉTODO: Se realizó una búsqueda en las bases Scielo, Pepsic, PubMed, PsycINFO, Scopus y Web of Science con los siguientes descriptores: "clinical trial" o "therapy" o "psychotherapy" o "psychological treatment" Y "violence" o "mistreatment" o "domestic violence" o "conjugal violence" Y "women". Se identificaron 1.329 artículos y después de la aplicación de criterios de inclusión y exclusión, se mantuvieron 11 artículos. Estos fueron analizados a partir de aspectos metodológicos, elementos de intervención y los resultados obtenidos.
RESULTADOS: Nueve artículos eran ensayos clínicos randomizados. Las intervenciones se han centrado en los síntomas de trauma, ansiedad y depresión.
CONCLUSIONES: Los artículos fueran centrados en el resultado de la evaluación. Se identifica la necesidad de estudios que detallen el proceso psicoterapéutico, especialmente en el contexto brasileño, para mejorar las redes de servicios a partir de prácticas basadas en evidencias.
Palabras clave: violencia doméstica; género; terapia cognitivo-conductual; práctica basada en evidencia.
Introdução
A Organização Mundial da Saúde (OMS, 2002) define violência como o uso intencional de força ou poder como forma de ameaça ou efetivamente, contra si mesmo, outras pessoas, grupo ou comunidade, que ocasiona ou tem grandes probabilidades de ocasionar lesão, morte, dano psíquico, alterações do desenvolvimento ou privações. A violência contra a mulher é um problema de proporções mundiais, que pode ser entendido como qualquer ato violento baseado na desigualdade de gênero, que resulte ou possa resultar em dano físico, psicológico, sexual ou patrimonial para a mulher (Silva & Oliveira, 2015). Este fenômeno independe da idade, do nível socioeconômico, da religião, da cultura e da raça/etnia, e pode gerar consequências negativas para a saúde física e mental das mulheres (Correia et al., 2014; Miranda, Paula & Bordin, 2010; WHO, 2013). A violência contra a mulher se manifesta de múltiplas formas e sua compreensão requer a análise de relações entre gênero e violência.
Gênero diz respeito às concepções socialmente dominantes de feminilidade e masculinidade e os papéis que estas ocupam nos espaços públicos e privados (Bandeira, 2014). Na violência de gênero compreende-se que mulheres e homens estão implicados em relações de poder assimétricas que originam ações violentas (Bandeira, 2014; Deeke, Boing, Oliveira & Coelho, 2009). Os estudos sobre gênero apontam as diversas desigualdades existentes entre os sexos, evidenciando a submissão feminina em detrimento da dominação masculina. A violência de gênero não é única explicação para se entender o fenômeno da violência contra a mulher, mas é um de seus principais pilares. É necessária também, a análise de componentes como classe, raça, idade, dentre outros marcadores sociais que podem favorecer a posição de subjugação de uma pessoa em relação a outra. A utilização da expressão violência de gênero assume um posicionamento político alusivo aos movimentos feministas e à tentativa recorrente de desconstrução da ordem patriarcal familiar hegemônica, que possibilita uma melhor estruturação de políticas públicas e fortalece o combate à violência contra a mulher (Bandeira, 2014).
Violência de gênero, portanto, é um termo mais abrangente que se refere às disparidades construídas socialmente entre os sexos e que pode ser utilizada como um sinônimo de violência contra a mulher, pois esta é constantemente violentada de diversas formas por conta de sua condição feminina (Bandeira, 2014). A violência contra a mulher tem múltiplas facetas e está caracterizada como violência interpessoal. Comumente a violência é perpetrada por alguém que tem algum grau de intimidade e/ou parentesco com a mulher, configurando essa violência como intrafamiliar ou doméstica. A violência intrafamiliar compreende as situações de violência que ocorrem por parte de qualquer integrante da família, que resida ou não com a pessoa que sofre as agressões. Já a violência doméstica ocorre quando a violência é exercida por indivíduos, familiares ou não, que compartilham a mesma residência com a pessoa agredida (Brasil, 2006). A violência conjugal geralmente se manifesta por atos violentos dos homens contra as mulheres no contexto doméstico, sendo respaldada na percepção social da identidade feminina como frágil, inferior, submissa e dependente. Relações conjugais violentas estão por vezes tão enraizadas que se tornam invisíveis e podem ser entendidas como práticas pertencentes ao modo de funcionamento daquelas pessoas (Bandeira, 2014; Cunha & Pinho, 2011; Ortiz, Encinas, Mantilla & Ortiz, 2011; Sacramento & Rezende, 2006).
Dados do Mapa da Violência de 2015 apontaram que a violência contra mulheres é muito prevalente no país (Waiselfisz, 2015). As estatísticas indicaram que no Brasil pelo menos 13 milhões de mulheres acima de 16 anos de idade já vivenciaram situações de violência doméstica Destas, pelo menos 700 mil continuam a conviver com o agressor, o que aumenta os riscos de revitimização. Ainda em relação aos resultados dessa pesquisa, o Mapa analisou as notificações de situações de violência realizadas pelos serviços de saúde, e em todas as faixas etárias os atendimentos femininos por agressão foram os mais frequentes. Na idade adulta, a procura por serviços de saúde por conta de situações de agressão foi predominantemente de mulheres, totalizando 71% dos atendimentos. Para mulheres entre 18 e 59 anos, o principal perpetrador da agressão é o atual ou ex-companheiro e o ambiente doméstico é o local de maior ocorrência das violências (Waiselfisz, 2015). Somente no ano de 2014, 405 mulheres foram diariamente atendidas no país por terem sido vítimas de algum tipo de violência. O Brasil ocupa a quinta posição no índice de feminicídios em uma comparação com 83 países (Waiselfisz, 2015).
Considerando a alta prevalência de situações de violência contra a mulher, foi sancionada no Brasil em 2006 a Lei nº 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha. Esta lei criou recursos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra mulheres, e tem seu respaldo em medidas de assistência e proteção específicas para essa população. A legislação aplica-se a todas as mulheres em território brasileiro, independentemente de classe, orientação sexual, raça, etnia, escolaridade, idade e religião. A lei também definiu os tipos de violência contra a mulher: violência física, sexual, patrimonial, moral e psicológica. A violência física é qualquer ato com o objetivo de ferir ou de machucar o corpo da vítima. A violência sexual é definida por situações em que o agressor obriga a vítima a manter, presenciar ou participar de relações sexuais não desejadas. A violência patrimonial define-se por destruição ou obstrução de patrimônio, bens, objetos e documentos da vítima. A violência moral é entendida como qualquer comportamento que caracterize calúnia, injúria ou difamação. Por fim, a violência psicológica é caracterizada por condutas que gerem danos emocionais na vítima, como humilhação, ameaças, jogos de poder, xingamentos, desprezo, entre outros (Brasil, 2006).
Uma revisão sistemática da literatura apontou que indivíduos que são vítimas de violência doméstica apresentam maior probabilidade de desenvolver qualquer tipo de doença mental quando comparados a indivíduos que não passam por situações de violência. Essa pesquisa foi realizada em mais de 18 bases de dados e, ao todo, foram incluídos 41 estudos. Os critérios de inclusão foram pesquisas observacionais e de intervenção, relatando a prevalência da violência doméstica em mulheres e homens acima de 16 anos de idade (Trevillion, Oram, Feder & Howard, 2012). Os resultados apontaram o desenvolvimento ou agravamento de transtornos de humor, transtornos de ansiedade, transtornos relacionados ao estresse, transtorno por uso de substâncias, transtornos do espectro obsessivo-compulsivo, comportamentos e pensamentos autodestrutivos, bem como um estado de choque que pode durar horas ou dias após a agressão. A exposição à violência pode prejudicar a autonomia e ocasionar sentimentos de incompetência, insegurança, perda do valor próprio e isolamento social (Brasil, 2011; Gomes & Diniz, 2008; Ribeiro, Andreoli, Ferri, Prince & Mari, 2009). Além das consequências psicológicas, a violência pode gerar danos físicos, tais como distúrbios relacionados ao sono, cansaço, dores crônicas, aumento da pressão arterial, alimentação inadequada, hematomas, escoriações, doenças sexualmente transmissíveis e deficiências físicas (Netto, Queiroz, Tyrell & Bravo, 2014). A violência doméstica contra a mulher também pode trazer prejuízos aos filhos do casal. As crianças que testemunham situações de violência podem desenvolver comportamentos externalizantes de raiva, ansiedade, depressão, problemas escolares e problemas no desenvolvimento cognitivo (Bermann & Graff, 2015; D'Affonseca & Williams, 2011).
Em função das consequências da violência contra a mulher, esta é entendida como um sério problema de saúde pública (OMS, 2011). Devido ao impacto social e de saúde, este fenômeno tem sido foco de políticas públicas, impulsionando trabalhadores da área de saúde a encontrarem soluções de prevenção e tratamento para essa população que se encontra vulnerável. Em relação ao âmbito jurídico, a Lei Maria da Penha (Brasil, 2006) também foi criada para garantir o direito de defesa às mulheres. Nesse contexto, é dever do Estado fazer cumprir as disposições previstas na lei, promovendo medidas de proteção às vítimas, apurando, instruindo e encaminhando a atendimento essas mulheres (Cavalcanti, 2008). É nesse espaço de tratamento e prevenção que a Psicologia assume um papel importante para o enfrentamento à violência (Crespo & Arinero, 2010).
Em uma pesquisa realizada no ano de 2008, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) evidenciou que 81% das(os) psicólogas(os) entrevistadas(os) que atuavam em programas voltados para mulheres em situação de violência o faziam em instituições públicas. A complexidade das situações de violência requer que os profissionais estejam devidamente capacitados para atender às demandas de quem procura auxílio, e com as(os) psicólogas(os) não é diferente. A Psicologia deve pautar-se pela escuta qualificada e pelo acolhimento, visando ao fortalecimento da mulher que passa pela situação de violência. Ademais, o trabalho da Psicologia também pode envolver o homem agressor, de modo que ele se responsabilize por seus atos e consiga compreender de forma ampliada que fatores contribuíram para a perpetuação da violência (CFP, 2012).
O fortalecimento da mulher requer ênfase não apenas em aspectos individuais e intrapsíquicos dela. Identificar fatores sociais e culturais, tais como relações de poder assimétricas entre os gêneros e os ideais imaginários relativos a casamento e religião, tem papel fundamental para a autonomia feminina. Conhecer políticas públicas, leis e decretos e articular o trabalho junto à rede de atendimento à mulher em situação de violência é um recurso útil para a(o) psicóloga(o) no que tange à tentativa de erradicação da violência. Desse modo, tal profissional pode e deve potencializar o auxílio e o fortalecimento da mulher, bem como fomentar o aspecto político e o compromisso social de sua profissão. A(O) psicóloga(o) também pode atuar em práticas de prevenção da violência por meio da coordenação, gestão e planejamento de serviços. O cuidado com a saúde mental da mulher também deve ganhar espaço adequado, um dos quais pode ser a psicoterapia (Bermann & Graff, 2015; CFP, 2012; Ortiz et al., 2011)
Dentre as abordagens para psicoterapia, a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) vem apresentando evidências de eficácia no tratamento de pessoas que vivenciaram situações de violência (Bass et al., 2014; Crespo & Arinero, 2010; Echeburúa, Sarasua & Zubizarreta, 2013; Miller, Howell & Graham-Berhamm, 2014; Ortiz et al., 2011). A TCC tem um potencial consistente para o tratamento dessas pessoas, pois apresenta técnicas focadas na ressignificação de eventos traumáticos e na redução de sintomas de ansiedade, depressão e transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) (Bermann & Graff, 2015; Habigzang, Hatzenberger, Dala Corte, Stroher & Koller, 2006; Ortiz et al., 2011). Além da redução dos sintomas, a TCC visa a diminuir e/ou prevenir futuras revitimizações, trabalhando o funcionamento do ciclo da violência, discutindo e esclarecendo a sintomatologia e o tratamento (Gomes, 2012; Habigzang et al., 2006).
Existem diferenças dentro do escopo das TCCs, historicamente organizadas em ondas. A primeira e segunda ondas seriam pautadas principalmente pela perspectiva clássica desenvolvida por Aaron Beck, que tem como princípio básico a lógica de que os pensamentos interferem diretamente na maneira como as pessoas se sentem e se comportam. Essa perspectiva tem como foco do tratamento a avaliação dos pensamentos distorcidos do paciente, o empirismo colaborativo, o enfoque da vida atual e o estabelecimento de metas para a psicoterapia (Beck, 2007). A terceira onda está relacionada a novos formatos de intervenções, todas as quais têm como base a perspectiva clássica, mas incluem técnicas distintas e voltadas para demandas específicas. Destacam-se na literatura os seguintes tratamentos psicoterápicos: a Terapia Centrada no Trauma (TCT), Terapia Comportamental Dialética (TCD), Terapia Centrada em Modulação Emocional (TCME) e a Terapia Centrada na "Síndrome da Mulher Maltratada" (TCSMM) (Cáceres, 2011). Ainda dentro do âmbito das TCCs, a Cognitive Processing Therapy (CPT) vem se mostrando eficaz para tratamento de mulheres vítimas de violência conjugal. Na CPT, os principais focos são a reestruturação cognitiva e a dessensibilização de memórias traumáticas a partir do relato de experiências (Bermann & Graff, 2015).
Este estudo de revisão sistemática teve como objetivo identificar e analisar estudos que avaliaram o impacto e o processo de protocolos de TCC para mulheres em situação de violência doméstica. Os objetivos específicos desta revisão foram: (1) verificar os delineamentos utilizados para avaliação da intervenção; (2) identificar os sintomas-alvo e os objetivos das intervenções; (3) mapear o tempo da intervenção e elementos centrais que compuseram os protocolos; e (4) analisar os principais resultados alcançados.
Método
Esta revisão sistemática da literatura foi realizada conforme as seguintes etapas: (1) formulação e delimitação da questão de pesquisa; (2) escolha das fontes de dados; (3) eleição das palavras-chave para busca; (4) busca e organização dos resultados; (5) seleção dos artigos por seus resumos, de acordo com os critérios de inclusão e exclusão; (6) extração dos dados dos artigos selecionados; (7) avaliação dos artigos; e (8) síntese e interpretação dos dados (Costa & Zoltowski, 2014). A busca foi realizada nas bases Scielo, Pepsic, PubMed, PsycINFO, Scopus e Web of Science e executada por duas juízas independentes. As palavras-chave utilizadas foram: "clinical trial" or "therapy" or "psychotherapy" or "psychological treatment" AND "violence" or "mistreatment" or "domestic violence" or "conjugal violence" AND "women".
A busca resultou em 1.329 artigos, nas bases Scielo (n=13); Pepsic (n=0); PubMed (n=816); Scopus (n=39); Web of Science (n=453) e PsycINFO (n=8). O período de busca foi de 26/10/2015 até 09/11/2015. O passo seguinte foi a análise de títulos e resumos a partir dos seguintes critérios de inclusão: (1) artigos científicos nas áreas de psicologia e psiquiatria; (2) escritos nos idiomas português, inglês ou espanhol; (3) publicados entre os anos de 2005 e 2015; e (4) que fossem relatos de estudos empíricos com avaliação de resultados de tratamento psicológico para mulheres expostas à violência doméstica. A aplicação dos critérios de inclusão gerou a manutenção de 27 artigos que cumpriram todos os requisitos. A fase seguinte foi excluir artigos repetidos em mais de uma base de dados, livros, teses de doutorado, dissertações de mestrado, resumos e trabalhos publicados em congressos. Um trabalho foi excluído por ser capítulo de livro, dois por serem dissertações de mestrado, cinco artigos por não tratarem de protocolos de TCC para mulheres vítimas de violência e oito por serem repetições em mais de uma base de dados. A etapa de análise dos artigos conforme os critérios de inclusão e exclusão foi realizada por duas juízas independentes. Em casos de discordância, uma terceira juíza foi consultada. Ao final de todo o processo, a amostra foi constituída por 11 artigos (ver Figura 1).
Após o processo de seleção dos artigos, eles foram lidos na íntegra e analisados por duas juízas independentes, com uma terceira juíza consultada em casos de discordância. O conteúdo dos 11 artigos foi analisado segundo os seguintes critérios: (1) número de mulheres participantes do estudo; (2) idade média das mulheres; (3) delineamento; (4) elementos da intervenção; (5) número de sessões; (6) formato de tratamento (individual ou grupal); (7) sintomas avaliados; e (8) principais resultados (ver Tabela 1). Os resultados encontrados nas categorias de análise foram discutidos a partir de três eixos temáticos: aspectos metodológicos (categorias 1, 2 e 3), aspectos técnicos das intervenções (categorias 4, 5, 6 e 7) e principais resultados obtidos (categoria 8). Estas categorias de análise foram definidas pelas pesquisadoras e foi utilizado o software Excel para tabulação dos dados. Em relação aos aspectos metodológicos, foram utilizados os critérios da escala PEDro, baseada na lista de Delphi. Trata-se de um consenso entre peritos para que os pesquisadores possam identificar quais estudos poderão ter validade interna e poderão conter informações estatísticas suficientes para que os resultados possam ser interpretados. A escala é apenas um parâmetro; ela não pode ser utilizada como medida única de validade das conclusões de um estudo (Verhagen, 1988).
Resultados
O número de participantes nos estudos variou entre 35 e 405 mulheres. A idade das pacientes variou entre 18 e 40 anos. Quanto ao delineamento dos estudos, identificou-se que nove artigos (Bass et al., 2014; Bermann & Graff, 2015; Cohen, Field, Campbell & Hien, 2013; Iverson, Gradus, Resick & Smith, 2011a; Iverson, Resick & Suvak, 2011b; Johnson & Zlotnick, 2011; Matud, Fortes & Medina, 2014; Miller et al., 2014; Resick et al., 2008) foram ensaios clínicos randomizados. Todos os artigos incluíram avaliações longitudinais dos sintomas, ou seja, executaram avaliações em pelo menos dois momentos (pré e pós-teste). Além disso, todos os estudos realizaram avaliações de follow-up após o término da intervenção, com o objetivo de verificar se os resultados dos protocolos se mantiveram com o passar do tempo (Tabela 1).
Utilizou-se os critérios estabelecidos na escala PEDro pela lista de Delphi para identificar a qualidade metodológica dos estudos (Verhagen, 1988). Os critérios de avaliação da escala são: (1) identificação dos critérios de elegibilidade; (2) randomização dos sujeitos nos grupos experimental e de controle; (3) alocação secreta dos sujeitos; (4) grupos semelhantes em relação aos indicadores de prognósticos mais importantes; (5) participação cega dos sujeitos no estudo; (6) administração cega dos terapeutas; (7) avaliadores que medem os resultados o fazem de forma cega; (8) mensurações de resultados-chave em mais de 85% dos sujeitos; (9) grupo de controle e grupo experimental receberam o tratamento adequado conforme alocação, e para estudos não randomizados, a análise dos resultados-chave foi realizada de acordo com a intenção de tratamento; (10) os resultados das comparações estatísticas entre os grupos foram descritos para pelo menos um resultado-chave; e (11) o estudo apresenta medidas de precisão e de variabilidade para pelo menos um resultado-chave. Os resultados desta análise estão apresentados na Tabela 2.
Em relação aos elementos da intervenção, identificou-se que todos os protocolos utilizaram a psicoeducação como elemento do tratamento. Três dos 11 artigos foram escritos a partir de um único experimento com protocolo de CPT (Iverson et al., 2011a; Iverson et al., 2011b; Resick et al., 2008). O tratamento incluía diversas técnicas de TCC, dentre elas a técnica do questionamento socrático e sessões de psicoeducação.
Todos os nove artigos que avaliaram sintomas de TEPT (Bass et al., 2014; Cohen et al., 2013; Cort et al., 2014; Iverson et al., 2011a; Iverson et al., 2011b; Johnson & Zlotnick, 2011; Matud et al., 2014; Ortiz et al., 2011; Resick et al., 2008) citaram o uso de técnicas de exposição em seus protocolos, mas apenas os três estudos com o CPT explicaram como a técnica de exposição foi aplicada. Nestes casos, as participantes eram convidadas a escrever suas experiências de violência e precisavam ler e reler o relato durante todo o tratamento até a diminuição da ativação emocional.
Quatro dos 11 artigos citaram a importância de trabalhar aspectos relacionados à autoestima (Cort et al., 2014; Matud et al., 2014; Miller et al., 2014; Ortiz et al., 2011). As intervenções utilizadas para melhorar a autoestima das participantes foram inserção de tarefas agradáveis realizadas pelas mulheres e a discussão e identificação de conquistas alcançadas antes e durante o tratamento.
A técnica Resolução de Problemas foi identificada em quatro dos 11 artigos como estratégia de tratamento e prevenção à recaída (Bermann & Graff, 2015; Cort et al., 2014; Matud et al., 2014; Miller et al., 2014). Um dos artigos citou a inserção do treino em habilidades sociais em seu protocolo, mas não foi explicado o processo da intervenção (Matud et al., 2014). Dois artigos utilizaram a reestruturação cognitiva para a identificação de crenças, modificação de pensamentos e medos sobre violência e maternidade (Bermann & Graff, 2015; Cohen et al., 2013). Três artigos citaram a prevenção à recaída ao final de seus tratamentos (Cort et al., 2014; Johnson & Zlotnick, 2011; Matud et al., 2014).
Em relação ao formato do tratamento, cinco aderiram ao formato individual de psicoterapia (Iverson et al., 2011a; Iverson et al., 2011b; Johnson & Zlotnick, 2011; Matud et al., 2014; Resick et al., 2008) e seis ao formato grupal (Bass et al., 2014; Bermann & Graff, 2015; Cohen et al., 2013; Cort et al., 2014; Miller et al., 2014; Ortiz et al., 2011). Acerca do número de sessões, os protocolos variaram entre oito e 20 sessões, com média de 1h30min cada. A respeito dos sintomas alvo das psicoterapias, nove estudos consideraram o tratamento dos sintomas de trauma e de depressão em seus protocolos (Bass et al., 2014; Cohen et al., 2013; Cort et al., 2014; Iverson et al., 2011a; Iverson et al., 2011b; Johnson & Zlotnick, 2011; Resick et al., 2008; Matud et al., 2014; Ortiz et al., 2011). Um dos protocolos abordou a dependência química (Cohen et al., 2013) e outro incluiu o tratamento de crianças que também vivenciaram situações de violência doméstica (Bermann & Graff, 2015).
De acordo com os resultados alcançados pelos protocolos de tratamento, todos os estudos apontaram melhoras significativas nos principais sintomas do foco de intervenção, como por exemplo, ansiedade, depressão, TEPT e revitimização. Dos 11 artigos, sete apresentaram o tamanho de efeito d de Cohen (Bass et al., 2014; Bermann & Graff, 2015; Iverson et al., 2011a; Johnson & Zlotnick, 2011; Matud et al., 2014; Ortiz et al., 2011; Resick et al., 2008). Não houve diferença significativa entre os resultados de impacto da psicoterapia grupal comparados aos do método de psicoterapia individual.
No artigo de Cohen et al. (2013) identificou-se que mulheres que sofreram exposição recente à violência doméstica demoraram mais para se engajar no tratamento, quando comparadas às mulheres sem histórico ou com episódios menos recentes de violência. No estudo de Iverson et al. (2011b) foram encontradas correlações positivas entre TEPT e depressão. Os resultados ainda indicaram que quanto menores os níveis destes sintomas, menor foi o índice de revitimização. Os estudos com o protocolo CPT apresentaram como hipótese inicial que a versão desta abordagem com sessões de exposição seria mais efetiva do que a versão sem exposição. Contudo, a versão sem exposição mostrou-se mais eficaz na redução de sintomas de TEPT e depressão.
Os estudos de Ortiz et al. (2011) e Matud et al. (2014) buscaram avaliar constructos positivos como autoconfiança, sensação de segurança e apoio social, emocional e instrumental, além de avaliar apenas sintomas psicopatológicos. Estes aspectos podem mediar o impacto da violência. Os resultados do estudo de Matud et al. (2014) apontaram que as pacientes obtiveram melhoras em todos esses aspectos, enquanto as participantes do grupo de controle melhoraram apenas sua percepção de apoio social. No follow-up, os efeitos da intervenção se mantiveram. No estudo de Ortiz et al. (2011), além da verificação dos sintomas, foi investigado se a presença de histórico de violência familiar na infância, violência em outros períodos da idade adulta e violência institucional guardava relação com a exposição mais recente à violência doméstica. O histórico dessas formas de violência foi identificado como fator de risco para a exposição recente à violência doméstica. Este mesmo estudo também considerou a combinação de serviços de saúde mental e defesa jurídica no tratamento. O resultado apontou que essa concepção multidisciplinar de tratamento foi eficaz na redução do risco de revitimização.
Discussão
Os artigos selecionados foram discutidos a partir de três eixos principais: (1) aspectos metodológicos; (2) aspectos técnicos das intervenções; e (3) principais resultados encontrados nos estudos. Em relação à qualidade metodológica, os estudos apresentaram boa avaliação por apresentarem em sua maioria um grupo de controle e um experimental, com sujeitos distribuídos aleatoriamente em cada grupo e semelhança em relação ao prognóstico, para obter uma maior validade de resultados. Além disso, os resultados-chave foram avaliados e analisados de acordo com a intenção de tratamento. No que diz respeito às considerações éticas, identifica-se a adequação dos estudos ao atender às normas sobre pesquisas envolvendo seres humanos. Mesmo nos experimentos com grupo de controle, os participantes recebiam algum tipo de intervenção básica (como psicoeducação ou exposição a relatos clínicos, apenas), e estas intervenções apresentaram resultados positivos no pós-teste. Além disso, os estudos com CPT descreveram na discussão a questão de que os resultados refutaram a hipótese da pesquisa, o que também é um fator que denota a adequação ética do experimento (Iverson et al., 2011a; Iverson et al., 2011b; Resick et al., 2008). É por meio destes resultados inesperados que muitas vezes os pesquisadores identificam novos problemas de pesquisa que contribuem para o avanço do conhecimento. Nem todos os critérios da escala PEDro são descritos na metodologia dos artigos, mas os estudos randomizados controlados (Bass et al., 2014; Bermann & Graff, 2015; Cohen et al., 2013; Iverson et al., 2011a; Iverson et al., 2011b; Johnson & Zlotnick, 2011; Matud et al., 2014; Miller et al., 2014; Resick et al., 2008) apresentaram alocação secreta dos sujeitos, os avaliadores mediram resultados de forma cega, e os grupos eram semelhantes em relação ao prognóstico, o que indica uma boa qualidade metodológica nas pesquisas (Verhagen, 1988).
Em relação às intervenções, os resultados corroboram a literatura no que diz respeito à importância da psicoeducação para que as mulheres possam compreender seu próprio funcionamento, aprender sobre o ciclo da violência, sobre seus direitos e também sobre como podem buscar ajuda nas redes de proteção existentes em cada país (Beck, 2007; Gomes, 2012). Além disso, a psicoeducação assume papel importante no tratamento dos sintomas desencadeados pelas situações de violência, como depressão, ansiedade e estresse. Ainda que a literatura aponte evidências de eficácia nas técnicas de exposição para o tratamento do TEPT, poucos estudos explicam como são feitas as intervenções. O estudo que originou os três artigos sobre a CPT tinha como hipótese que as técnicas de exposição a imagens mentais e a relatos clínicos seriam eficazes para redução dos sintomas de TEPT. No entanto, surpreendentemente, a CPT foi mais eficaz na versão sem relatos clínicos (Iverson et al., 2011a; Iverson et al., 2011b; Resick et al., 2008), o que evidencia uma lacuna existente nos estudos sobre intervenções com foco na exposição. Os pesquisadores entendem que as técnicas de exposição parecem funcionar, e, portanto, é importante que próximas pesquisas possam seguir testando hipóteses para aperfeiçoar intervenções para tratamento de sintomas de estresse.
Dois estudos abrangeram fatores adicionais de avaliação e intervenção, que é o caso da pesquisa com dependência química (Cohen et al., 2013) e do experimento que incluiu crianças (Bermann & Graff, 2015). A literatura descreve a comorbidade da violência com a dependência química. Portanto, é imprescindível que alguns protocolos de tratamento incluam ambos os aspectos como focos de intervenção (Gomes & Diniz, 2008; Ribeiro et al., 2009). Em relação ao tratamento que incluiu crianças, a literatura também aponta a necessidade de que as psicoterapias dirijam um olhar mais contextual para a violência doméstica, já que esse é um tipo de violência que causa impacto em todas as pessoas que compartilham o ambiente familiar. As crianças que participaram dessa pesquisa foram incluídas em um grupo diferente do das mães, e ambos os grupos de psicoterapia ocorriam concomitantemente (Bermann & Graff, 2015).
A questão da revitimização também foi abordada nos estudos, corroborando a literatura que aponta esse fator de risco para as mulheres em situação de violência. Romper o ciclo da violência deve ser um dos objetivos terapêuticos, e o uso da técnica de resolução de problemas se mostrou eficaz. Ainda com este objetivo, quatro estudos apontaram a necessidade de focar aspectos de promoção de saúde das participantes, como por exemplo melhorar a autoestima e a qualidade de vida (Cort et al., 2014; Matud et al., 2014; Miller et al., 2014; Ortiz et al., 2011). Um ponto interessante a ressaltar é que, em um destes experimentos, mesmo as pacientes do grupo de controle melhoraram sua percepção de apoio social (Matud et al., 2014). Uma das hipóteses é que as mulheres conseguem promover melhoras pela própria relação de ajuda estabelecida em um processo de psicoeducação e acolhida.
Em relação aos resultados obtidos, os estudos apresentaram, em sua totalidade, níveis de melhora dos sintomas-alvo. As conclusões apontam que as técnicas de TCC se mostraram eficazes para reduzir sintomas de ansiedade, depressão e estresse (Bass et al., 2014; Miller et al., 2014; Ortiz et al., 2011). Em contrapartida, parece não existir entre os pesquisadores um consenso entre o número de sessões necessárias para redução dos sintomas de TEPT. Além disso, nenhum estudo apresentou o processo completo de suas intervenções, dificultando a replicação dos protocolos pelos clínicos. É importante que os artigos possam apresentar a estrutura do tratamento e das sessões, descrevendo também o processo, além de apresentar os resultados. Percebe-se que o foco dos experimentos são os resultados, e não aspectos relacionados ao processo terapêutico.
Os artigos que preencheram critérios da busca desta revisão sistemática foram em sua totalidade internacionais. No Brasil não se encontrou nenhum estudo empírico atualizado para esta demanda. Isto é um dado preocupante, pois as estatísticas apontam que pelo menos 13 milhões de mulheres já sofreram violência no ambiente doméstico em nosso país, e na maior parte dos casos notificados o agressor é o cônjuge ou ex-cônjuge (CPMI, 2013). A escassez de estudos empíricos brasileiros que avaliem tratamentos para essa população é um dado alarmante, que justifica a necessidade de criação e/ou adaptação de protocolos e estudos que avaliem a eficácia de psicoterapia para mulheres vítimas de violência conjugal.
De forma geral, esta revisão sistemática possibilitou um entendimento do contexto nacional e internacional de estudos que buscam avaliar tratamentos psicológicos em TCC para mulheres vítimas de violência. Identificou-se a necessidade de realização de experimentos brasileiros que possam também avaliar o impacto e o processo de tratamentos que abranjam a temática da violência doméstica, já que a prevalência deste tipo de violência é alta no Brasil. Nos estudos que tenham como foco a avaliação do processo terapêutico, é importante que os autores incluam em seus resultados a descrição passo a passo da intervenção, para que clínicos e pesquisadores possam replicar protocolos com validação empírica. Para que os sintomas comuns às pacientes com histórico de violência conjugal sejam tratados, sugere-se a inclusão de técnicas de regulação emocional associadas às técnicas de exposição gradual às memórias traumáticas. Sugere-se, ainda, que os protocolos de atendimento desenvolvidos tenham como um de seus objetivos a flexibilização de estereótipos de gênero. Um limitador desta pesquisa pode ter sido a exclusão de dissertações e teses, pois muitas vezes trabalhos empíricos de processo e resultados são descritos neste tipo de publicação. Contudo, a exclusão deste material ocorreu porque considerou-se a avaliação cega por pares, utilizada pelas revistas científicas, como indicador da qualidade metodológica dos estudos.
Sabe-se que um experimento de qualidade prevê alguns aspectos metodológicos específicos, como a aleatoriedade da amostra, avaliação cega de resultados e comparação estatística adequada. Os estudos empíricos internacionais que avaliaram protocolos de tratamento de TCC para mulheres vítimas de violência apresentaram qualidade em sua metodologia de pesquisa e, portanto, conferiram validade aos resultados encontrados. No entanto, identifica-se a necessidade de experimentos que exemplifiquem o processo de psicoterapia, permitindo assim a replicação dos protocolos por clínicos e pesquisadores.
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Recebido em 09 de janeiro de 2017
Aceito para publicação em 20 de abril de 2018