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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.31 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2019

https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0031n03A05 

SEÇÃO LIVRE

 

Tempo de espera: narrativas de casais que aguardam pelo primeiro filho adotivo

 

Pending time: narratives of couples who are waiting for their first adoptive child

 

Tiempo de espera: narraciones de parejas que esperan por el primero hijo adoptivo

 

 

Vivian Mazzini PeknyI; Tania Mara Marques GranatoII

IMestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP, Brasil. vimp_2005@hotmail.com
IIDocente e Orientadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP, Brasil. taniagranato@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Os diversos sentidos que foram atribuídos à adoção, ao longo dos anos, assim como as mudanças na legislação que regula esse processo, repercutem no imaginário da sociedade e dos futuros pais adotivos, participando da construção da própria parentalidade. Por essa razão, o objetivo deste estudo qualitativo de orientação psicanalítica foi compreender os sentidos afetivo-emocionais sobre a adoção e a família adotiva para casais que estão passando pelo processo de adoção pela primeira vez. Participaram dessa pesquisa cinco casais, convidados pela pesquisadora em grupos de apoio à adoção. As entrevistas foram realizadas na residência de cada casal, iniciadas pela apresentação de uma narrativa interativa como instrumento de acesso à experiência emocional, de acordo com a perspectiva psicanalítica. A análise interpretativa do material narrativo reunido permitiu a configuração de três campos de sentidos afetivo-emocionais que integram a experiência vivida pelos participantes do estudo: a gestação eterna; o peso da responsabilidade; processo de adoção: preparação ou treinamento? Conclui-se que o processo de adoção revela conflitos, fantasias e expectativas parentais, cuja contraparte é o sofrimento parental engendrado pelo próprio processo de adoção.

Palavras-chave: adoção; parentalidade; psicanálise; narrativa interativa.


ABSTRACT

The many senses attributed to adoption throughout the years, as well as changes in legislation that regulates these proceedings, affect society and would-be adoptive parents' imagination, aiding in the building of their own parenthood. In this way, the objective of this qualitative and psychoanalytically oriented study was to understand the affective-emotional senses about adoption and adoptive families for couples that undergo the process of adoption for the first time. Five couples took part in this research, having been invited by the researcher from adoption support groups they attended. The interviews were held in each couple's residence, starting with a presentation of an interactive narrative as an instrument to reach the emotional experience, according to the psychoanalytic perspective. The interpretative analyses of the narrative material collected allowed the configuration of three fields of affective-emotional meanings that make up the emotional experiences shared by the participants in the study: endless pregnancy; the weight of responsibility; adoption process: preparation or training? This study concludes that the adoption process reveals conflicts, fantasies and parental expectations, besides the parental suffering that is engendered by the process itself.

Keywords: adoption; parenthood; psychoanalysis; interactive narrative.


RESUMEN

Los diversos sentidos asignados a la adopción a lo largo de los años, así como las variaciones en la legislación, repercuten en el imaginario de la sociedad y de los futuros padres adoptivos, participando de la percepción de esos padres sobre su papel parental. Por lo tanto, el objetivo de este estudio cualitativo de orientación psicoanalítica fue comprender los sentidos afectivos-emocionales sobre la adopción y la familia adoptiva para las parejas que están pasando por el proceso de adopción por la primera vez. Participaron en esta investigación cinco parejas, invitados por la investigadora en grupos de apoyo a la adopción. Las entrevistas se realizaron en la residencia de cada pareja, y se iniciaron por la presentación de una narrativa interactiva como instrumento de acceso a la experiencia emocional de acuerdo con la perspectiva psicoanalítica. El análisis interpretativo del material narrativo conjunto permitió la configuración de tres campos de sentidos afectivo-emocionales que integran la experiencia vivida por los participantes del estudio: la gestación eterna; el peso de la responsabilidad; proceso de adopción: ¿preparación o entrenamiento? Se concluye que el proceso de adopción revela conflictos, fantasías y expectativas parentales, cuya contraparte es el sufrimiento parental que el propio proceso engendra.

Palabras clave: adopción; parentalidad; psicoanálisis; narrativa interactiva.


 

 

Introdução

A prática da adoção no Brasil e no mundo assumiu diferentes significados ao longo de sua história. Durante muitos anos, a principal intenção ao se adotar um filho era que pessoas inférteis pudessem deixar seu legado, como os pais biológicos o faziam. Dessa maneira, o imaginário social sobre a adoção é ainda alimentado pela ideia de infertilidade, e é pontuado por representações de dor, frustração e piedade associadas às famílias adotivas (Maux & Dutra, 2010).

Durante a colonização brasileira, como explicam Maux e Dutra (2010), quando as famílias abastadas recebiam crianças em suas casas para que trabalhassem em troca de um lar, educação e comida, os principais significados que emergiam quanto à adoção dessas crianças eram os ligados à caridade, compaixão e bondade. Já a criação da roda dos enjeitados e a prática das "adoções à brasileira", nas quais tentava-se proteger a identidade da mãe biológica e registrar um filho adotivo como se fosse biológico, acabaram por estimular sentimentos de vergonha e humilhação, erigindo segredos e tabus em torno do tema adoção, uma vez que ela era ocultada da sociedade.

Tais sentidos recaem sobre o imaginário dos pais adotivos, trazendo-lhes insegurança quanto aos laços afetivos que venham a construir com os filhos adotivos (Levinzon, 2006, 2015; Maux & Dutra, 2010; Schettini, Amazonas & Dias, 2006). O momento em que revelarão ao filho sua condição de adotado passa a ser imaginado com intensa angústia pelos pais, pois acreditam que o filho poderá deixar de amá-los quando souber a verdade, ou ainda, questionar a posição dos pais. Esses receios podem comprometer a colocação de limites na educação do filho e, assim, formar crianças rebeldes e transgressoras (Maux & Dutra, 2010), o que contribui para uma crença social generalizada de que as crianças adotadas geram mais conflitos, tanto nas relações familiares quanto em seu próprio desenvolvimento emocional. É possível perceber que o que gera conflitos é a insegurança dos pais quanto à legitimidade do vínculo com o filho e não a adoção em si (Huber & Siqueira, 2010; Levinzon, 2006, 2015; Maux & Dutra, 2010).

Outro medo referido por muitos casais que esperam pelo filho adotivo é o de que a criança seja portadora de genes transmissores de doenças, da tendência ao uso de drogas, alcoolismo, criminalidade e prostituição, que possam macular sua personalidade, ou que a história pregressa da criança lhe traga traumas irreparáveis decorrentes de uma possível rejeição dos pais biológicos e das dificuldades enfrentadas após essa separação. Associado a esse medo, surge o sentimento de culpa por querer a criança perfeita, na medida em que são solicitados a escolher o perfil do futuro filho (Andrade, Costa & Rossetti-Ferreira, 2006; Huber & Siqueira, 2010; Levinzon, 2015; Maux & Dutra, 2010; Schettini, Amazonas & Dias, 2006; Sequeira & Stella, 2014).

Grande parte dos pais candidatos à adoção escolhem bebês e crianças que a eles se assemelhem fisicamente. Diversos autores (Andrade, Costa & Rossetti-Ferreira, 2006; Huber & Siqueira, 2010; Maux & Dutra, 2010; Morelli, Scorsolini-Comin & Santeiro, 2015; Rosa, 2008) interpretam essas escolhas como uma tentativa de reproduzir o modelo de família biológica, considerada verdadeira e legítima, realizando o desejo inconsciente de ocultar da criança, da sociedade e de si mesmos o elo por adoção, ainda que conscientemente revelado.

Nesse contexto em que pais e filhos sofrem ao longo do processo de adoção e da constituição de uma nova família, foram criados os grupos de apoio à adoção (GAA) com o objetivo de auxiliar os pais adotivos a conceber as particularidades de sua parentalidade, construir sua identidade parental e criar um espaço psíquico para receber o filho adotivo, apesar de suas diferenças (Huber & Siqueira, 2010; Maux & Dutra, 2010; Morelli, Scorsolini-Comin & Santeiro, 2015; Rosa, 2008; Schetini, Amazonas & Dias, 2006; Sequeira & Stella, 2014).

Nos GAA, os casais têm a possibilidade de compartilhar suas angústias e experiências com outras pessoas que os entendem, por viverem situação semelhante, e assim, deixam de se sentir sozinhos ou como os únicos a carregar aqueles sofrimentos, ao mesmo tempo em que resgatam a esperança e confiança em todo o processo (Gondim et al., 2008; Huber & Siqueira, 2010; Morelli, Scorsolini-Comin & Santeiro, 2015). Entretanto, existem grupos que focalizam a informação e o cognitivo sobre a adoção e seu desenrolar, sem trabalhar entre os futuros pais os sentidos daquela experiência e o compartilhar simbólico (Ferreira-Teixeira, 2006).

Outro objetivo dos GAA é divulgar a Nova Lei da Adoção de 2009, que se fundamenta sobre a noção de que a adoção é realizada para o bem da criança, reconhecendo seu direito à convivência familiar para a formação da identidade pessoal. Assim, são estimuladas a adoção tardia, a adoção de crianças com necessidades especiais, grupos de irmãos, crianças portadoras do vírus HIV e adoções interraciais (Costa & Rossetti-Ferreira, 2007; Machado, Ferreira & Seron, 2015).

Dada a complexidade de situações e vivências que caracterizam o processo de adoção e o sofrimento emocional que dele resulta, apesar de seus inegáveis benefícios, tencionamos compreender os sentidos afetivo-emocionais da adoção para casais que aguardam pelo primeiro filho adotivo.

 

Metodologia

Participantes

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, psicanaliticamente orientada, de caráter transversal, a qual contou com a participação de cinco casais candidatos à adoção e que frequentam GAAs, os quais se localizam em três cidades do interior do Estado de São Paulo. Dois desses casais são homossexuais e três são heterossexuais. A faixa etária dos participantes variou de 30 a 43 anos, a escolaridade desde o segundo grau completo à pós-graduação completa e a renda mensal de três salários mínimos até uma renda superior a 15 salários mínimos.

Instrumentos

Utilizou-se como instrumento uma Narrativa Interativa (NI), a qual consiste em uma história fictícia, elaborada pelo pesquisador, em torno de uma situação ou conflito emocional, cuja função é desencadear a associação livre do participante. A NI, cuja trama se interrompe em um momento de clímax, convoca o participante a se identificar com os personagens e, dessa forma, dar um sentido e um desfecho para aquela história, situação ou conflito (Granato, Corbett & Aiello-Vaisberg, 2011; Granato, Tachibana & Aiello-Vaisberg, 2011).

Para investigar os sentidos afetivo-emocionais que a adoção pode tomar para os casais participantes que aguardam seu primeiro filho adotivo, foi construída a seguinte NI:

Felipe e Clara olhavam para aquela criança que dormia tranquila, sem imaginar que foi tão desejada, tão esperada. Depois de tanto tempo na fila de espera para adoção, preenchendo papéis e recebendo visitas de assistentes sociais, dividindo medos, angústias e expectativas com outros casais que também aguardavam para realizar o sonho de ter filhos, ela finalmente chegou.

Clara disse para Felipe:

- Parece que foi ontem! Depois de tudo o que passamos para ter essa criança aqui conosco... Conseguimos, mas ainda tenho alguns medos...

Felipe abraçou Clara e respondeu:

- Eu também. Ela mudou nossa vida para sempre... Agora não tem mais volta...

Percebendo a dúvida do marido, Clara sorriu e disse:

- A gente luta tanto pra chegar aqui que até esquece da gente. De repente somos pais e não sabemos o que esperar, o que fazer, o que sentir.

- É verdade! Hoje me peguei pensando em como ele seria daqui cinco, dez ou vinte anos!

Clara ficou feliz de poder partilhar suas dúvidas com o marido, mas ficou curiosa e perguntou:

- Mas o que você imaginou pra daqui cinco, dez ou vinte anos?

Felipe ficou sem graça, mas fez Clara prometer que também contaria o que a preocupava tanto:

- Tudo bem, eu conto primeiro. Imaginei que...

Procedimentos de coleta de dados

Após entrar em contato com o primeiro GAA e explicar o objetivo, o método e os procedimentos desta pesquisa para os profissionais responsáveis por esse serviço, a pesquisadora fez o convite aos casais para participação voluntária na pesquisa em uma das reuniões do referido grupo. Tendo sido convidados, os casais que se manifestassem favoráveis à sua inclusão como participante forneceriam seu contato para que, em um segundo momento, a pesquisadora agendasse a entrevista. O encontro com os participantes, que poderia ser realizado em grupos de casais ou por casal, acabou assumindo este segundo formato, em função da baixa adesão de participantes.

Como foram entrevistados apenas dois casais do primeiro grupo, foram contatados dois outros GAAs. No segundo GAA, os profissionais preferiram encaminhar os casais e, assim, mais dois casais participaram. Por fim, do terceiro GAA, no qual o convite também foi realizado em um encontro do grupo, apenas um casal teve disposição para participar da pesquisa.

Foram agendados dia, local e horário da preferência de cada casal para o encontro com a pesquisadora. Todos os casais preferiram que a entrevista fosse realizada em suas residências. Após a apresentação da NI, ficavam livres para completá-la em dupla ou individualmente e, uma vez terminada a NI, uma das autoras os convidou a refletir sobre a experiência da escrita da NI e sobre sua experiência ao longo do processo de adoção.

Cada um dos encontros foi registrado pela pesquisadora responsável sob a forma de uma narrativa, a qual foi tomada como objeto de análise, juntamente com as NIs dos participantes.

Procedimento de análise de dados

A análise das narrativas foi realizada com base na literatura científica contemporânea sobre o tema da adoção e na teorização winnicottiana sobre o desenvolvimento emocional.

A análise interpretativa foi realizada com base na teoria dos Campos de Fábio Herrmann (2001), segundo a qual a noção de inconsciente é formulada em termos de inconscientes relativos ou Campos. Cada Campo tem seu funcionamento próprio, com suas regras, dinâmicas e movimentos, o qual fornece uma estrutura lógico-emocional sobre a qual se desenvolvem as relações afetivas de uma pessoa, o que pode se dar de modo flexível, quando os campos de movimentam, ou fixa, limitando as possibilidades de ação do indivíduo (Herrmann, 2001).

Procedimentos éticos

Este artigo é resultado da pesquisa de mestrado de uma das autoras. A pesquisa está de acordo com o protocolo exigido pela Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), o qual regulamenta as normas para a realização de pesquisas com seres humanos, tendo sido aprovado pelo Conselho Nacional de Ética em Pesquisa com seres humanos da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, sob o parecer nº 1.915.714.

Antes de dar início ao procedimento investigativo, a pesquisadora explicou os objetivos e a metodologia da pesquisa, o destino das produções narrativas, além da preservação do sigilo e anonimato. A apresentação da NI se deu após o esclarecimento de todas as dúvidas e direitos dos participantes. Foram assinados os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) por todos os participantes. Para preservar o sigilo dos participantes foram atribuídos nomes fictícios a eles.

 

Resultados

Dada a limitação de espaço para esta publicação, será apresentada uma breve descrição da situação de cada casal participante da pesquisa, assim como suas NI, ficando excluído o restante da entrevista com o material reflexivo sobre a experiência pessoal de cada um ao longo do processo de adoção. Entretanto, vale ressaltar que todo o material narrativo (NI e reflexão conjunta com o casal) foi objeto de análise e discussão para este artigo.

Casal A: Artur tem 33 anos, segundo grau completo e trabalha como cabeleireiro. André tem 36 anos, ensino superior em formação e trabalha como enfermeiro. Estão juntos há cinco anos e esperam pelo filho adotivo há três anos. Aguardam uma menina de 0 a 5 anos, sem distinção de etnia. Aceitam que a menina tenha uma doença, desde que seja tratável. Aceitam um irmão se for condição para adotar uma menina. O casal A preferiu não completar a NI, solicitando à pesquisadora que apenas conversassem, o que foi atendido. Justificaram essa escolha dizendo que se fossem escrever sobre a futura filha descreveriam "uma criança totalmente idealizada" (sic).

Casal B: Bruno tem 36 anos, ensino superior completo e trabalha como comerciante. Bárbara tem 34 anos, ensino superior completo e atua como psicóloga. Estão juntos há três anos e esperam pelas crianças há sete meses. Aguardam uma criança de 2 a 6 anos, sem distinção de sexo e etnia. Aceitam que a criança tenha alguma deficiência física e aceitam seus irmãos. Bruno e Bárbara têm, cada um deles, uma deficiência física. Bruno manifestou o desejo de completar a NI em parceria com a esposa, mas Bárbara propôs que escrevessem cada um a sua história. Bruno se mostrou constrangido com a proposta e acabou não completando a NI, enquanto Bárbara elaborou o seguinte desfecho:

Daqui a 5 anos nós já estaríamos com os filhos, vivendo outra rotina, tudo mudado! Daqui a 10 anos, os filhos estarão na adolescência, novas mudanças, novos desafios... Em 20 anos, faculdade, gastos, e nos preparando para eles iniciarem suas vidas independentes.

Casal C: Carlos tem 30 anos, ensino superior completo e atua como engenheiro civil. Carolina tem 41 anos, ensino superior completo e, assim como o marido, trabalha como engenheira civil. Estão juntos há sete anos e esperam pelo filho há um ano. Desejam uma criança de 1 a 4 anos, sem distinção de sexo e etnia. Carlos e Carolina resolveram completar juntos a NI. Conversaram sobre o que cada um imaginava e escreveram uma primeira parte:

Que nossa família possa fazer as atividades juntos, como fazer tarefas de escola, viajar, passear no shopping, ir na igreja. Que se tornem pessoas felizes e realizadas, que sejam pessoas boas.

Enquanto Carolina terminava de escrever sobre o que haviam conversado, Carlos releu a história e disse para a esposa que precisavam escrever também sobre os medos. Assim, Carlos e Carolina acrescentaram o seguinte trecho à sua história:

Quanto aos medos que ainda tenho, receio contar para nossos filhos, sempre respeitando a família biológica, e falar sempre a verdade, qual será o comportamento de nossos filhos. Receio que nossos filhos queiram ir atrás de suas origens e sofram novamente mágoas do passado.

Casal D: Daniel tem 33 anos, ensino superior completo e trabalha em uma farmácia. Douglas tem 30 anos, ensino superior completo e atua como assistente administrativo. Estão juntos há quatro anos e esperam por um filho há oito meses. Aguardam um menino de 7 a 13 anos, sem distinção de etnia. Daniel e Douglas decidiram escrever juntos a história. No entanto, Daniel assumiu a escrita, após o primeiro parágrafo, enquanto Douglas contava a sua história pessoal para uma das autoras, resultando no seguinte desfecho:

Daqui a 5 anos, ela terá 12 anos, que já tenha nos reconhecido como pais, que os medos iniciais tenham sido abrandados ou até desaparecido. E que nós tenhamos aprendido a lidar com ele como pais. Com 17 anos, que tenha aspirações para o futuro e os valores essenciais para o convívio em sociedade estejam bem introjetados, que estes valores tenham sido passados. Que suas escolhas na vida já tenham sido desenhadas, que nós como pais possamos apoiá-lo e possamos ajudá-lo no processo como um todo.

Com 27 anos, que esteja com objetivos de formar sua família, que possamos ser uma referência de valores familiares, que o amor seja passado através dos anos de convivência. Que suas escolhas na vida possamos apoiá-lo em todas as esferas. Porém, as expectativas não correspondem à realidade, mas acreditamos que possamos passar a importância de uma família, seja esta idealizada ou não.

Após terminar a NI, Daniel a mostrou ao companheiro, obtendo sua aprovação.

Casal E: Eduardo tem 38 anos, pós-graduação e trabalha como biomédico. Érica tem 43 anos, nível técnico e trabalha como técnica de enfermagem. Estão juntos há oito anos e esperam pelo filho adotivo há oito meses. Érica tem dois filhos biológicos de um primeiro casamento e Eduardo não tem filhos, mas considera os filhos da esposa como seus filhos adotivos. Esperam por uma criança entre 0 a 5 anos, sem distinção de sexo ou etnia. Tiveram um aborto anteriormente. Embora Eduardo e Érica tenham afirmado que gostavam de fazer juntos tudo o que se referisse à adoção, decidiram completar individualmente a NI. Durante a escrita, enquanto um conversava com a pesquisadora sobre o processo de adoção, o outro completava sua NI. Eduardo finalizou a sua NI:

Nossa caminhada da paternidade será um tanto desafiadora. Às vezes, me preocupo em como conseguir transmitir os valores familiares, pessoais, profissionais e principalmente, como trabalhar nosso filho nestas questões. Às vezes, fico tentando imaginar como será o primeiro dia de aula. Como será tirar o primeiro dentinho, como será a saúde dele(a). Como será nosso entendimento, nossa amizade. Nossos netos serão lindos. Muitas conversas difíceis acontecerão. Mas muitos momentos de alegria, felicidade. E o que eu não tiver como fazer tudo isso, Deus fará.

Em seguida, Érica entregou a sua versão:

Clara: me preocupo se vamos conseguir juntos tornar essa criança em um adulto, responsável, de caráter, princípios, de bom coração, uma pessoa que respeita a todos, distinguindo raça, cor, posição financeira. Colocar para essa criança sempre a verdade, para crescer uma pessoa de pé no chão, que tenha maturidade.

Felipe: minhas preocupações são as mesmas, mas nós dois sabemos que vamos conseguir, vamos fazer dessa criança uma pessoa apaixonada por nós e nós por ela. E quando forem chegando os problemas, dúvidas, perguntas, Deus vai nos capacitar e dar forças para vencer, vamos caminhar todos juntos. Vai dar certo!!!

 

Discussão

Como resultado da análise interpretativa do material narrativo reunido, chegamos a três campos de sentido afetivo-emocionais que integram os sentidos atribuídos pelos casais participantes conforme a dramática que está nos sendo comunicada. De modo diverso da elaboração de categorias, os campos visam a transmitir uma leitura psicanalítica da experiência vivida pelos participantes.

A gestação eterna

A espera pelo filho adotivo, referida como gestação simbólica (Huber & Siqueira, 2010), envolve um longo período de preparação para a futura parentalidade, desenrolando-se desde a decisão de adotar até o encontro com a criança. Os participantes Douglas e Daniel pensam que esse tempo de espera é necessário, argumentando que, no momento em que se decide adotar, as pessoas não estão realmente preparadas. Conforme Levy, Diuana e Pinho (2009), esse período que separa a decisão da concretização da adoção é usado para que as pessoas se aproximem de questões relacionadas a esse novo plano familiar e elaborem sentimentos e medos em relação ao desconhecido.

Para alguns, o tempo de espera é experimentado como oportunidade para receber a sustentação emocional necessária para elaborar a gestação adotiva, sentindo-se mais seguros para significar a experiência, vivenciando-a de maneira verdadeira, espontânea e criativa (Abram, 2000). Entretanto, alerta Winnicott (1960/1983), a espera prolongada pode potencializar a vivência de angústias impensáveis, dado o seu caráter de imprevisibilidade, interrompendo a continuidade de ser e levando o indivíduo a reagir a essa experiência que, dessa forma, torna-se traumática.

André confessa ter ficado muito ansioso com a entrevista que teríamos para esta pesquisa imaginando que uma de nós fosse a psicóloga do Fórum que os informaria sobre a chegada da filha. André e Artur referiram-se ao grupo de apoio que frequentam e falaram da ansiedade que acompanha o demorado processo de adoção. Artur demonstrou certa desconfiança, associando a lentidão do processo ao fato de formarem um casal homossexual.

Pereira, Torres, Falcão e Pereira (2013) salientam o papel das representações sociais acerca da homossexualidade na oposição ao casamento e à adoção de crianças por homossexuais, o que não passa despercebido por Artur e André, embora não se possa afirmar que a demora esteja associada a uma hesitação dos profissionais envolvidos em conferir o cuidado de uma criança a um casal homossexual. Seja real ou imaginária, essa suspeita se fortaleceu à medida que o tempo passava e a espera se tornou indeterminada, gerando ansiedades persecutórias (Dias, 2000) e a sensação de estarem sendo enganados pelos profissionais (Huber & Siqueira, 2010).

Bárbara comenta que conhece pessoas que foram ao Fórum para mudar o perfil da criança desejada, na esperança de diminuir o tempo de espera. Já André lembra de casos de adoção ilegal no hospital onde trabalha, além dos pais adotivos terem pagado pela criança. Seu companheiro manifesta sua revolta contra essa ideia, afirmando que denunciaria sem medo, se conhecesse um caso desses, pois não achava justo esperarem tanto tempo enquanto outras pessoas adotam de forma ilegal. O casal confessa ter pensado em adotar uma menina dessa forma ilegal, mas não o fizeram, por medo de que a criança fosse tirada deles. Érica também se refere à adoção ilegal quando conta que, ao falar com amigos e parentes próximos a respeito do desejo que ela e Eduardo têm de adotar, estes lhes sugeriram que fossem à Bahia com dois ou três mil reais para escolher uma criança, que trariam imediatamente para casa.

Assim, a lei e o processo de adoção passam a desempenhar, no imaginário dos casais, um papel oposto ao de sua função primária. Se antes sentiam-se amparados e protegidos para construir sua família adotiva de forma legítima para si e para a sociedade, agora, vivenciando a agonia da espera indeterminada, passam a sentir-se desamparados pela legislação. Dessa forma, nasce, em alguns pais, o desejo de burlar a lei e adotar uma criança de forma ilegal, como alternativa para reencontrar o viver espontâneo, interrompido pela angústia da gestação eterna, a qual deixa de lhes inspirar confiança para ameaçá-los (Winnicott, 1954/1990b).

Ressaltamos que o passar do tempo também pode marcar a vida das crianças que crescem em ambientes insuficientes, do ponto de vista material e emocional, influenciando sua forma de ser. Conscientes dessa situação, os pais adotivos sentem o peso da responsabilidade de adotar uma criança e assumir o protagonismo no processo de resgate do viver espontâneo e criativo da criança adotada, o que nos encaminha para o segundo campo.

O peso da responsabilidade

Quando imaginam o futuro com o filho adotivo, os pretendentes são capazes de se colocar em seu lugar, identificando-se com ele e, assim, compreender alguns de seus sofrimentos (Winnicott, 1956/2000). Alguns participantes relataram o medo de aumentar o sofrimento da criança em função da parentalidade adotiva. André demonstra sensibilidade em relação ao sofrimento das crianças abrigadas quando diz que, "na cabecinha delas, sabem que já passou sua época de serem adotadas" e lhes dirige a atenção antes de conhecer os bebês de um abrigo, em busca de amenizar o sofrimento da rejeição. Artur e André pensam que uma menina mais nova sofreria menos com o fato de ter pais homossexuais, na medida em poderia se acostumar aos poucos com essa ideia. Também consideram a possibilidade de adotar irmãos com o objetivo de a menina não se sentir sozinha. Daniel e Douglas também aludem aos diversos tipos de preconceito que o filho pode sofrer, como o fato de ser negro, ter sido adotado e ter pais homossexuais. A adoção homoparental traz consigo o medo de que a criança sofra tanto quanto o casal, por ocasião de sua luta pela aceitação social do vínculo homossexual.

Diante do medo de que a deficiência física de Bárbara e o Bruno choque os filhos, Bárbara imagina que seria mais fácil se as crianças fossem avisadas antes. Como o casal A e o casal D, Bárbara se coloca no lugar da criança, e se refere à necessidade de que os pais sejam também "adotados" pelos filhos. Preocupada, compara o seu privilégio de escolher uma criança, enquanto esta não poderá escolher os futuros pais nem suas características (Winnicott, 1971/1975b).

Há medos que se contrapõem ou se sobrepõem uns aos outros, como o de não ser amado e aceito pelo filho, de não amar ou aceitar a criança incondicionalmente, ou mesmo de não conseguir comunicar esse amor de forma convincente. Carlos cita este como sendo um de seus temores: "como passar para essa criança que eu a amo incondicionalmente? Independente da história dela!" (sic).

Eduardo conhece muitos casais que temiam se dedicar aos filhos e não serem retribuídos, sentindo-se abandonados ou maltratados. Em seguida, reflete: "na verdade, o maior medo da pessoa não é dar isso ou aquilo e não ser retribuído, o maior medo é não ser amado" (sic). Assim, Eduardo revela o jogo de espelhos da parentalidade, na medida em que a contraparte de olhar para a criança como filho é ser visto como pai, para além do sangue ou da legislação (Winnicott, 1962/1983a, 1962/1983b).

Além do receio de não ser reconhecido pela criança como pai, a consciência da responsabilidade de oferecer uma educação baseada em um ambiente de holding, em que são dosadas as limitações da realidade, ao mesmo tempo em que se resgata a capacidade criativa da criança que sofreu privações em seu ambiente de origem, parece gerar nos casais um receio sobre a própria capacidade parental (Winnicott, 1962/1983a, 1962/1983b).

Carolina revela o medo de que a educação e suas limitações à plena realização de desejos, possam passar para o filho adotado a ideia de que não o amam nem o aceitam completamente. Entretanto, Carlos a tranquiliza, argumentando que ambos tiveram uma boa educação. Daniel também comenta sobre a importância da educação do filho, comentando que ele e Douglas concordam sobre o que desejam transmitir ao futuro filho, apesar de terem sido educados de maneiras diferentes. Eduardo também traz a ideia da relação com seus pais como base de sua segurança para agir com o futuro filho, justificando que vê seu pai como um herói.

Dessa forma, o relacionamento com os próprios pais é tomado como referência para a construção da própria parentalidade, tanto em relação aos valores morais como ao relacionamento afetivo, seja para reproduzir o cuidado vivenciado como satisfatório, como Eduardo, seja para elaborá-lo e recriá-lo, como Daniel, que pretende educar seu filho de maneira menos rigorosa do que como foi educado. Machado, Féres-Carneiro e Magalhães (2015) concordam quanto aos futuros pais revisitarem sua infância e a relação que tiveram com os próprios pais quando se tornam pais.

Carlos receia que os filhos desejem conhecer os pais biológicos e que prefiram ficar com eles; explica que teme que vivenciem mais uma rejeição e, dessa forma, venham a sofrer. Já Carolina teme o momento da revelação da adoção para os filhos e Carlos busca tranquilizá-la, sem se dar conta que revela seu próprio medo: "se forem negros será mais fácil, pois eles e as pessoas já irão saber, sem que a gente precise explicar". Escrevem em sua NI: "Medo de contar, sempre respeitando a família biológica".

Conforme Huber e Siqueira (2010) asseveram, um dos maiores medos de pais adotivos é que seus filhos prefiram a família biológica e os abandonem em favor desta, ao lhes ser revelada a adoção. A fantasia infantil de que se pode ser filho de um rei ou de uma rainha, que visa a apaziguar as frustrações da criança em relação aos pais reais (Freud, 1909/2015), parece amplificada pelos pais adotivos, que passam a competir com a família biológica da criança. Mobilizados pelo medo da rejeição e do abandono, a revelação da adoção acaba se tornando um tabu para os pais adotivos (Fonseca, 2012; Huber & Siqueira 2010; Rosa, 2008).

Com o objetivo de auxiliar os pretendentes a se preparar para a futura parentalidade, foram criados os Grupos de Apoio à Adoção, o que nos leva ao terceiro campo de sentidos afetivo-emocionais.

Processo de adoção: preparação ou treinamento?

A Nova Lei da Adoção de 2009 (Lei nº 12.010) preconiza que os pais adotivos passem por um longo processo de seleção, preparo e espera para que o futuro filho adotivo seja recebido de fato em sua família e em suas vidas (Brasil, 2009). André e Artur apresentaram uma pasta onde arquivam os registros das atividades realizadas no GAA que frequentam. Artur brinca: "eu sei tudo sobre adoção, o que você me perguntar sei te responder", como se quisessem mostrar que se prepararam e estão prontos para receber a filha que esperam há três anos.

Bárbara, por conta de sua experiência como psicóloga, conta que entende todos os envolvidos nos processos de adoção: os pais biológicos, crianças, profissionais e, agora, os pais adotivos. Entretanto, ao contrário da proposta lúdica e imaginativa da NI, ela termina a sua narrativa de forma bastante descritiva e racional. Porém, ao final do encontro, quando percebeu que a autora que a entrevistou não faria perguntas que visassem à avaliação do casal, Bárbara verbalizou seu medo de não ser aceita pelo futuro filho em função da deficiência física do casal.

Bruno, Artur e André não completaram a NI, o que não é comum nas pesquisas realizadas por nosso grupo de pesquisa. Para além da resistência, esse movimento foi interpretado como forma de se protegerem de um documento que pudesse comprometê-los, sob pressão da fantasia de estarem sendo avaliados mais uma vez. De acordo com Huber e Siqueira (2010), muitos pretendentes acabam se sentindo ansiosos e culpados devido aos testes e avaliações a que são continuamente submetidos, cujo resultado é um desamparo psicológico, e não o fortalecimento de sua identidade parental.

Para Carlos e Carolina, a escolha das características do futuro filho causou um tal desconforto que Carlos nem conseguia se lembrar das características escolhidas. E Carolina explica: "É horrível, parece que você está escolhendo um objeto".

Eduardo e Érica contam que se sentiram desamparados pelos profissionais quando tinham de escolher as características da criança. Segundo Eduardo, as perguntas parecem ser todas iguais com algumas diferenças muito sutis, o que ele interpreta como uma "pegadinha" (sic) para surpreender os casais que tivessem dúvidas ou estivessem mentindo. Não receberam ajuda dos profissionais para responder algumas das perguntas. Dias depois, receberam uma ligação dizendo que havia contradições em suas respostas. Eduardo respondeu indignado: "mas nós não pedimos para vocês nos ajudarem?"

Ferreira-Teixeira (2006) reconhece os malefícios desse tipo de ambiente hostil e desrespeitoso à espontaneidade dos casais, em que o profissional se dá o direito de julgar as escolhas e os desejos dos pretendentes. Para Winnicott (1963/1994), um ambiente intrusivo pode interromper a continuidade de ser de uma pessoa, e consequentemente o seu viver criativo, ocasião em que um falso self pode ser desenvolvido como estratégia defensiva para proteção do self e evitar seu aniquilamento pelo ambiente.

Ser continuamente avaliado e questionado gera uma angústia nos pretendentes que os deixa em estado de alerta, comprometendo a espontaneidade, a autêntica aceitação e o cuidado suficientemente bom. As recomendações excessivas para ser um bom pai e uma boa mãe acabam por gerar um ideal de perfeição que nem pais nem filhos conseguirão atingir, restando-lhes apenas a frustração e o sentimento de impotência.

A desidealização da criança é um dos assuntos mais citados pelos participantes deste estudo como objetivo principal dos GAA, e parece impedir os futuros pais de elaborar imaginativamente a própria parentalidade, na medida em que são instados a abandonar seus sonhos e fantasias sem qualquer elaboração. Embora o processo de desidealização seja necessário para que os pais consigam aceitar o filho adotivo sem aprisioná-lo em seus ideais (Costa & Kemmelmeier, 2013; Gondim et al., 2008; Levy, Diuana & Pinho, 2009; Maux & Dutra, 2010; Oliveira & Schwartz, 2013; Scorsolini-Comin, Amato & Santos, 2006), levantamos a possibilidade de que o exercício da parentalidade se estabeleça em campo transicional, onde o interno e o externo se articulam em direção à autenticidade (Winnicott, 1960/1983, [1951]1969/1975) e não pela submissão do self.

Para Winnicott (1964/2012), o brincar, tal como os sonhos, nos conduz à autorrevelação. Dessa forma, se a autodescoberta parental é substituída pela reprodução mecânica de orientações e práticas, pode comprometer o próprio cuidado infantil, na medida em que gera defesas, como o falso self (Winnicott, 1960/1983), distanciando pais e filhos de um relacionamento vivo e real.

Apesar dos conflitos que costumam acompanhar o processo de adoção, Érica e Eduardo se mostraram à vontade durante a entrevista. Escreveram histórias individuais imaginativas, além de contarem sua própria história no caminho da adoção sem a resistência que observamos nos demais participantes. Érica, inclusive, foi a única participante da pesquisa que realizou um diálogo entre os personagens, adentrando a proposta lúdica da NI como um espaço potencial (Winnicott, 1971/1975a). Este casal estava na fila de espera da adoção há apenas 4 meses, o que pode explicar a espontaneidade que os casais que aguardam há anos já haviam perdido. Salientamos que o tempo de espera somado ao preparo nos GAAs parece potencializar o sofrimento dos casais que já chegam frustrados por não terem filhos.

Artur e André comentaram que teriam imaginado uma criança totalmente idealizada se tivéssemos tido essa conversa anos antes. Justificaram sua negativa a completar a NI pelo risco de idealizarem a filha, tendência que é muito combatida nos GAAs. No entanto, a resistência do casal cedeu ao seu desejo durante o encontro, dando lugar ao compartilhamento dos sonhos construídos em torno da filha. O casal já tinha feito modificações na decoração da casa, comprado inúmeras bonecas para a menina e, inclusive, construído uma piscina para receber a futura filha. Ela já ocupa o psiquismo dos futuros pais, e, dessa forma, compreender e elaborar essas construções imaginativas poderia enriquecer a experiência parental desses pretendentes e, inclusive, ajudá-los a lidar com a filha real.

Após escrever sobre como imagina o futuro com o filho, Daniel finaliza sua NI: "Porém, as expectativas não correspondem à realidade, mas acreditamos que possamos passar a importância de uma família, seja esta idealizada ou não". Dessa forma, parece que a idealização da criança se transforma no tabu que separa os pais aprovados dos desaprovados para a adoção. Por outro lado, Daniel e Douglas valorizam o GAA, onde podem ouvir outras histórias sobre adoção, compartilhar sofrimentos e dúvidas, além de receber orientações e informações (Levy, Diuana & Pinho, 2009; Scorsolini-Comin, Amato & Santos, 2006; Scorsolini-Comin & Santos, 2008). Para esse casal, o GAA fornece o suporte emocional necessário para ampará-los em sua experiência parental (Winnicott, 1954/1990a).

Daniel e Douglas revelam que alguns programas de televisão que contam histórias de adoção de crianças também desempenham essa função de suporte emocional. Convidaram a pesquisadora que os entrevistou para assistir dois episódios, um sobre a adoção de uma menina transgênero e outro sobre liberdade sexual. Daniel comenta, ao final dos programas, que gosta de assisti-los, pois lhe dão força para continuar ao ver que outras pessoas também sofrem, mas persistem e vencem.

Assim, os programas passam a inspirar a resiliência do casal, concedendo-lhes um espaço transicional e potencial oferecido pela cultura, que dá sentido à experiência pessoal. O casal passa a desfrutar desse encontro entre mundo externo e mundo interno de modo a integrá-los em um viver espontâneo e criativo, apesar das invasões de um ambiente que avalia e julga. Daniel e Douglas parecem procurar pelo compartilhar simbólico, mais do que orientações e informações intelectualizadas, reencontrando nesses programas de televisão o sentido para a singularidade de sua experiência parental (Winnicott, [1951]1969/1975).

 

Considerações Finais

Quando nos debruçamos sobre a experiência emocional de casais que aguardam pelo primeiro filho adotivo, foi possível identificar fantasias e preocupações que os tornam inseguros quanto ao vínculo a ser construído com o filho e, principalmente, quanto à própria capacidade parental. Sentem o peso da tarefa de resgatar a criança do luto pela perda da família de origem, oferecer-lhe um cuidado que compense as privações sofridas, estabelecer limites para a sua educação e, finalmente, evitar que a criança experimente nova rejeição. É nesse contexto de altas exigências que o casal parental se move, vivendo ora o desamparo e a crítica social, ora o suporte familiar ou de um GAA.

Entendemos que os procedimentos para a adoção de uma criança visam a protegê-la das múltiplas vulnerabilidades a que já esteve exposta em sua história de vida. Entretanto, o longo e difícil processo de adoção pode reforçar a ideia preconcebida de alguns, de que a família adotiva é menos legítima do que a família consanguínea, enquanto que para se ter um filho biológico não há necessidade de testes e avaliações.

Embora muitos GAA atinjam o propósito de servir de suporte para os futuros pais, alguns focalizam seu trabalho na informação e orientação, em detrimento do gesto espontâneo que singulariza e enriquece a própria experiência parental. Nessa área em que o aspecto emocional da experiência conta tanto quanto o racional, estaremos comprometendo a vinculação autêntica e criativa que caracteriza a relação familiar saudável se continuarmos insistindo no treinamento de pais para que cumpram um protocolo que, na melhor das hipóteses, será abandonado assim que estiverem com seus filhos.

Sabemos das limitações deste estudo, que não pretende uma generalização a partir de cinco casais participantes, reconhecendo, entretanto, a peculiaridade de suas experiências que, de certa forma, refletem as transformações da família contemporânea. Casais homossexuais, casais inférteis, casais que enfrentam algum tipo de deficiência, famílias recompostas, dentre outros arranjos familiares encontram nas histórias de nossos participantes o reconhecimento dos desafios que enfrentam quando decidem adotar uma criança.

 

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Recebido em 29 de maio de 2018
Aceito para publicação em 25 de agosto de 2018

 

 

Este estudo teve financiamento do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

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