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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.32 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2020

https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0032n01A03 

SEÇÃO TEMÁTICA - CLÍNICA DA CRIANÇA

 

Os efeitos de subjetivação produzidos na experiência da refeição compartilhada nos grupos terapêuticos do CPPL

 

The subjectivation effects produced by meal sharing experience in therapeutic groups in CPPL

 

Los efectos de subjetivación producidos en la experiencia de la comida compartida en los grupos terapéuticos del CPPL

 

 

Maysa Marianne Silva Bezerra

Psicóloga pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Sócia do Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem (CPPL), Recife, PE, Brasil. email: maysa_marianne@hotmail.com

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar o dispositivo de refeições nos grupos terapêuticos do CPPL como produtor de efeitos de subjetivação, pois apresenta um sentido social e clínico em seu formato. Para isso, é utilizado como referência o lugar do comer juntos no campo da história, em particular o período da Grécia antiga. Em seguida, tal aspecto é comparado com a forma pela qual o elemento da comida se manifesta no campo da saúde mental, o que é possibilitado pelo exame de como o alimento era tratado no cotidiano dos hospitais psiquiátricos, utilizando como exemplo o Colônia, situado na cidade de Barbacena. Articulando-se aos parâmetros apresentados, o campo da psicanálise é desenvolvido pelo embasamento em contribuições de autores como Freud e Winnicott para investigar as transformações no psiquismo que esse espaço oferece. Por fim, para ilustrar e compor todas as contribuições dos autores das distintas áreas de conhecimento elucidadas ao longo do texto, apresenta-se um recorte clínico.

Palavras-chave: grupo; refeição compartilhada; saúde mental; psicanálise; recorte clínico.


ABSTRACT

This article aims to analyze the device of meals in therapeutic groups at CPPL as eliciting effects of subjectivation, because it presents a clinical and social meaning in its format. To this end, the reference used is the place of eating together in history, particularly in ancient Greece. Then, this aspect is compared with how that food element manifests itself within mental health, by examining the way food was treated in the daily life of psychiatric hospitals, as exemplified by Colônia, in the city of Barbacena. Associated with these parameters, the psychoanalytical aspect is developed based on contributions by authors such as Freud and Winnicott to investigate the psychic transformations offered by this space. Finally, to illustrate and assemble all the contributions of the authors of the different areas of knowledge presented throughout the text, a clinical study will be presented.

Keywords: group; shared meal; mental health; psychoanalysis; clinical study.


RESUMEN

El objetivo de este artículo es analizar el dispositivo de comidas en los grupos terapéuticos del CPPL como productor de efectos de subjetivación, pues presenta un sentido social y clínico en su formato. Para ello, se utiliza como referencia el lugar del comer juntos en el campo de la historia, en particular el período de la Grecia antigua. A continuación, este aspecto se compara con la forma en que el elemento de la comida se manifiesta en el campo de la salud mental, lo que es posible al examinar cómo el alimento era tratado en el cotidiano de los hospitales psiquiátricos, utilizando como ejemplo el Colonia, situado en la ciudad de Barbacena. Articulándose a los parámetros presentados, el campo del psicoanálisis se desarrolla a través del basamento en contribuciones de autores como Freud y Winnicott para investigar las transformaciones en el psiquismo que ese espacio ofrece. Por último, para ilustrar y componer todas las contribuciones de los autores de las distintas áreas de conocimiento elucidadas a lo largo del texto, será presentado un recorte clínico.

Palabras clave: grupo; comida compartida; salud mental; psicoanálisis; recorte clínico.


 

 

Introdução

Quando se pensa de modo pormenorizado sobre o tema da alimentação entre pares, buscando na literatura referências que possibilitem um olhar minucioso sobre o assunto, compreende-se que, em relação ao sentido funcional e fisiológico dos alimentos, há uma complexidade de características que podem ser construídas na mediação da comida com as relações humanas. Cascudo (1967/2004) destaca que "Não é o alimento em si, na potência intrínseca de sua substância, a fonte isolada da força vital. São os elementos psicológicos decorrentes da refeição" (p. 350), isto é, os desdobramentos existentes na partilha de alimentos, para os indivíduos que desse momento participam, causam efeitos que fogem e, ao mesmo tempo, são tão significativos quanto seu campo prático e orgânico.

Comer juntos não permite apenas a partilha de alimentos, mas também, partilhas de experiências na via das interações sociais, por ser um espaço de sociabilidade (Borges, 2010). Morin, 1973 (citado por Poulain & Proença, 2003), afirma que, além do fundamento nutricional, o ato de se alimentar em conjunto torna-se um sistema bio-psico-sócio-cultural1, pois carrega em si dimensões biológicas, subjetivas, interpessoais e coletivas. Existe um acervo bibliográfico no campo acadêmico que se dedica a essas quatro dimensões sistêmicas. No entanto, esse tema ainda não dispôs de um destrinchamento teórico em uma concepção que o tome enquanto dispositivo clínico na área da psicologia ou psicanálise. Considerando o ato de comer juntos uma ferramenta terapêutica que é utilizada no CPPL2 e tendo percebido seus efeitos na prática, o intuito deste trabalho é de legitimá-la a partir de uma articulação teórico-clínica com campos do conhecimento, particularmente psicanálise e história, relevantes para a discussão e construção de um arcabouço consistente do seu conteúdo.

Freud (1910/1996a) defende que o desenvolvimento psíquico do indivíduo (ontogênese) repete de forma reduzida a evolução da humanidade (filogênese). O autor reconhece como a primeira exerce reflexo sobre a segunda, apresentando a história e cultura da humanidade como fatores relevantes que incidem sobre a organização e funcionamento psicológico de cada um. Filogeneticamente, a alimentação entre pares serviu tanto para a ascensão e valorização do ser humano - no prisma da tradição grega e freudiana - quanto para ser um mecanismo de violência e depreciação, expresso na cultura dos hospitais psiquiátricos. Essa ótica permite conjecturar que a revisitação e o resgate de determinadas práticas históricas servem para que experiências positivas da filogênese possam ser reproduzidas e readaptadas no aparato clínico para a construção de dispositivos, na atualidade, que incidam e ressignifiquem a ontogenia dos sujeitos. Sintetizando essa ideia, utilizo a frase do historiador grego Heródoto (484 a.C. - 425 a.C.) que declara a importância de "pensar o passado para compreender o presente e idealizar o futuro".

Refletindo sob esse prisma, Winnicott (1987/2006) teoriza que a alimentação nos primórdios da ontogênese - a amamentação que se dá entre o par mãe-bebê - é uma experiência profusamente rica, pois comporta aspectos que apresentam uma interdependência nutritiva e psíquica. O autor afirma que o processo de alimentação tem uma dupla dimensão, já que, nesse ato, o indivíduo forma um si mesmo - com elementos que dão base para unificar sua personalidade - e constrói um modelo de relacionamento humano que se desdobra na forma em que ele se vinculará aos objetos e ao mundo.

Dessa forma, este trabalho considera que a reflexão sobre a clínica contemporânea, especificamente sobre o dispositivo da refeição entre pares, deve ser fomentada por conceitos psicanalíticos e também pelo ato de se debruçar constantemente sobre a memória e o passado, seja ele individual ou coletivo, de modo que esse dispositivo se apresente como uma prática de cuidado que produz efeitos de subjetivação no campo da saúde mental.

 

Discussão

O campo da história

A Grécia, tanto com sua história quanto com sua mitologia, também traz elementos ligados ao tema da refeição entre pares. O mito de Erisícton3 é um exemplo disso. Na descrição do mito, realizado por Sears (2015), é possível perceber que os ritos gregos que envolvem refeições em grupo acabam sendo reflexos do lugar social de cada indivíduo. Erisícton ocupava um lugar privilegiado na pólis, como príncipe de Dotion e, consequentemente, sua posição nos banquetes era de grande valor. Porém, ao ser castigado pela deusa Deméter e ter o seu lugar nas refeições em comum abolido, sua ligação com o divino, político e social como cidadão grego também o foi. Pantel (1994/1998) a seguir discorre sobre a origem e a representação dos banquetes na Grécia:

O surgimento de refeições em comum está, na verdade, nos textos dos autores gregos, ligado à instituição de regras que dão uma real coesão à comunidade, como no tempo do rei Minos em Creta (...). A invenção dos banquetes é paralela ao domínio do sacrifício cruento alimentar, e as refeições são, desde então, apresentadas como uma estrutura básica do grupo social e como o fermento da sociabilidade. É o que afirmam muitos textos de Platão, Aristóteles, Teofrasto, entre outros, nos séculos IV e III. (p. 122)

Para a autora, os banquetes na Grécia podiam conferir três condições diferentes ao homem: a condição de humano, de civilizado e de cidadão. A primeira é expressa pelo mito de que havia uma harmoniosa relação entre deuses e homens na partilha dos alimentos, mas um conflito entre Zeus e Prometeu provocou uma ruptura: os deuses, então, poderiam participar dos banquetes dos humanos, entretanto nunca mais sentariam ao lado dos demais deuses para dividir alimentos. Com isso, a condição de humano se dava a partir do lugar que se ocupava nas refeições em conjunto e com quem se partilhava esse ritual.

A segunda, a condição de homem civilizado, vai surgir da perspectiva de que, mesmo com a distinção entre humanos e deuses no ato de comer nos banquetes, nem todos os homens participavam desta cerimônia. Para os gregos, a prática de uma alimentação apenas para sobreviver, individualizada e sem regras, conferia um caráter bárbaro e selvagem aos indivíduos. Assim, os que não mantinham a tradição dos banquetes eram desvalidos de uma vida em comum e da divisão e compartilhamento com as pessoas da própria comunidade.

A terceira condição aponta que, para se alcançar o privilégio de receber e conservar a condição de cidadão, era necessário que os indivíduos cumprissem obrigações e participassem do momento de educação e transmissão de saber sobre a cidade, no qual os mais jovens - que não se sentavam à mesa - escutavam os homens adultos falarem sobre a pólis e a política. Além disso, os banquetes criavam um sentido de cidadania, pois o homem se reconhecia e era reconhecido pela comunidade, participando ativamente das decisões políticas da pólis. Com isso, uma identidade cultural, política e de pertencimento ligada à cidade também passou a ser construída por meio do ato de comer entre pares. Pantel (1994/1998) descreve:

Nos dois casos, a presença cotidiana na refeição comum - o andreion em Creta, o syssition em Esparta - faz parte das obrigações que se exigem para ascender à cidadania e conservá-la. Esse privilégio, que também é um encargo (é preciso ser capaz de levar sua contribuição sob forma de mercadorias à refeição), é reservado a um número muito pequeno de homens adultos. Comer no syssition ou no andreion é o sinal para o jovem rapaz, filho de cidadão, de sua integração no grupo de cidadãos, como demonstram simbolicamente os presentes que recebe o jovem cretense ao sair da adolescência: junto com uma panóplia que confirma sua nova condição de defensor da polis, um boi e uma taça consagram-no como banqueteador. (p. 124)

Os banquetes estavam sob o domínio público e coletivo, de modo que as autoridades e a população grega os tinham como reflexo das normas e códigos sociais da pólis, devido a todo sentido e representação que eles carregavam. Assim, para ser considerado humano, civilizado e cidadão, era preciso estar ocupando o espaço público e uma das ferramentas possíveis para alcançar tais privilégios seria realizar as refeições em conjunto.

Mas como tal questão histórica e cultural pode ter inspirado autores da psicanálise a pensar sobre a significação e os desdobramentos psíquicos da alimentação entre pares?

O campo da psicanálise freudiana

Freud (1913-1914/1996b) narra a representação do comer e beber juntos como um ato civilizatório quando trata das questões ligadas à refeição totêmica - em alusão ao parricídio ocorrido na horda primeva - caracterizando-a como o mais antigo festival da humanidade, inaugurando questões que tratam da organização social, restrições morais e religião. Posteriormente, o autor relata que essas refeições se repetiam sob a forma de sacrifício de animais, que consistia na morte de um animal e oferecimento de suas partes a um deus que, por sua vez, partilhava essa oferta com os homens que o adoravam. O autor descreve que:

A força ética da refeição sacrificatória pública repousava em ideias muito antigas da significação de comer e beber juntos. Comer e beber com um homem constituía um símbolo e uma confirmação de companheirismo e obrigações sociais mútuas (...). Qualquer pessoa que tenha comido o menor pedaço de alimento com um desses beduínos ou tomado um gole de leite não mais precisa temê-lo como inimigo, mas pode sentir-se seguro de sua proteção e auxílio. (p. 97-98)

Afirma, assim, que a prática de comer e beber juntos é uma maneira de se tecer, manter e reforçar novas vinculações sociais, além de retratar a particularidade das relações com os envolvidos nesse ato. Os indivíduos, no momento da refeição, simbolicamente passam a ser de um mesmo clã, partilhando relações de familiaridade e corresponsabilidade uns com os outros.

Existem aproximações possíveis a serem feitas entre o que o pai da psicanálise e a tradição grega estabeleceram em relação ao comer entre pares. A primeira é que ambos afirmam que se alimentar em conjunto é uma via de ascensão e legitimação da civilidade, tomando-a como o contraponto da prática alimentar selvagem. Em segundo lugar, julgam tal ato como fundamental para a sociabilidade, retratando como o grupo social se vincula, se organiza e se mantém integrado, sendo essa sociabilidade mediada, nesse caso específico, pelo elemento da comida. E, terceiramente, é possível aproximá-los por considerarem a prática mencionada uma forma de se vincular às divindades, como um instrumento de ligação entre o humano e o sagrado.

No entanto, há distanciamentos entre essas duas perspectivas quando o autor destaca os efeitos no psiquismo provocados pelos afetos que a prática de comer entre pares produz (solidariedade, companheirismo, obrigações mútuas, segurança, proteção, auxílio). Nesse aspecto, o autor difere dos gregos que apontam a dimensão política, a partir da cidadania, como importante desdobramento da mesma. Explicita ainda:

Mas por que essa força de união é atribuída ao comer e beber juntos? Nas sociedades primitivas havia apenas uma espécie de laço que era absoluto e inviolável: o do parentesco. A solidariedade desse companheirismo era completa. (...). O parentesco implica a participação numa substância comum. Desse modo, é natural que não se baseie simplesmente no ato de um homem ser uma parte da substância de sua mãe, tendo nascido dela e sido nutrido com o seu leite, mas que possa ser adquirido e fortalecido pela comida que um homem ingere mais tarde e com a qual seu corpo se renova. Se um homem partilhava uma refeição com seu deus, estava expressando a convicção de que eram feitos de uma só substância; e nunca a partilharia com quem considerasse um estranho. (p. 98)

Freud (1913-1914/1996b) narra que a potência de criação de laços sociais e de união entre pares, possibilitada pelas refeições em conjunto, advém do desdobramento que esta passou a ter com as relações de parentesco, pois em ambas existe a comunhão de um elemento. No parentesco, seria a consanguinidade e na alimentação entre pares, a comida. Em conformidade, Borges (2010) destaca que a prática de comer juntos promove relações e atualiza a coesão do grupo. Aponta também que a palavra companheiro vem do latim cum panis, que significa "aquele com quem se partilha o pão" (p. 3). Ou seja, a refeição em conjunto se tornou uma metáfora do parentesco, carregando toda significação que esta possui mítica e historicamente.

Como podemos ver, tanto na história grega quanto para Freud o ato de comer entre pares tem um lugar significativo de poder e valor social e subjetivo. E na construção do campo da saúde mental, qual é o lugar destinado à prática da alimentação?

O campo da saúde mental

Foucault (2001/2010) afirma que, principalmente no séc. XIX, a psiquiatria passou a ter a garantia de internar em hospitais psiquiátricos aqueles que comprometessem a ordem e a segurança pública, praticando uma suposta proteção social de forma institucionalizada em suas práticas e discursos. Mesmo não tendo um transtorno psíquico de fato, o sujeito que era visto como perigo social forçadamente era despejado nesses locais, que realizavam a manutenção da segregação dos ditos "loucos". A psiquiatria não mais era "como uma especialização do saber ou da teoria médica, mas antes como um ramo especializado da higiene pública" (p. 100).

Enquanto a cultura oferece mecanismos de ascensão e visibilidade na sociedade, como as refeições entre pares, há outros que servem para exclusão social, política e subjetiva de determinados grupos. A partir disso, se fazem presentes os dispositivos dos manicômios, lugares distanciados dos centros ou das "pólis", que serviam para realizar a eugenia daqueles considerados loucos. A forma de alimentação dos sujeitos incluídos nesses espaços denunciava o aspecto violento e bárbaro que era institucionalizado nesses locais, em que todos os componentes de valorização citados anteriormente sobre a alimentação em conjunto eram negados.

A jornalista Arbex (2013) descreve como era o cotidiano de alimentação no Colônia, maior hospício do Brasil, situado na cidade de Barbacena. Ela menciona que os internos bebiam água do esgoto que cortavam os pavilhões do hospital e que as carnes oferecidas pelos funcionários eram cortadas no chão. A autora manifesta com veemência a seguinte fala de um entrevistado:

Os alimentos são jogados em cochos, e os doidos avançam para comer. O que acontece no Colônia é a desumanidade, a crueldade planejada. No hospício, tira-se o caráter humano de uma pessoa, e ela deixa de ser gente. É permitido andar nu e comer bosta, mas é proibido o protesto qualquer que seja a sua forma. (p. 200)

No livro, entre outros relatos, há um em que um visitante do hospital confundiu a refeição dos pacientes com alimentos que seriam servidos para porcos, por conta do aspecto repugnante da comida. Em outro trecho, há a descrição de uma experiência vivida por uma das pacientes do Colônia: "Para fugir das agressões impostas por funcionários, ela chegou a passar uma semana escondida no porão do hospital (...). Ela acabava passando muita fome. Assim, nessa condição subumana, alimentou-se de ratos" (Arbex, 2013, p. 125). Essa mesma interna afirmou, em determinado momento, estar tão faminta que na presença de outras pessoas, estraçalhou uma pomba e comeu, proclamando que aquela era a única comida que havia disponível para ela. A autora recolhe mais detalhes sobre o tratamento da comida e a maneira que os internos se alimentavam no Colônia:

Por dia, a cozinha gastava 120 quilos de arroz e apenas sessenta quilos de feijão para alimentar um exército de 4.800 pessoas. Como a quantidade não dava, o jeito era engrossar a água preta com farinha de mandioca na tentativa de encorpar o caldo e fazer a comida render. Além de aguada, a comida era insossa, pois quase não levava tempero. À época da colheita de milho, todas as refeições eram provenientes dos grãos da espiga, sendo comum diarreia provocada pelo excesso de amido. Quando havia carne, ela era triturada e misturada às refeições, já que faca e garfo eram proibidos. (p. 42-43)

A autora descreve que saciar a fome ou sede era um desafio para os internos. O intervalo entre as refeições chegava a ser de até 5h e nesse período não se comia nada. O leite, por exemplo, era um alimento escasso e era concedido apenas uma vez por semana. Quando servido, bebiam até vomitar e o que sobrava era jogado pelos ralos, pois havia punição para os funcionários se restasse algo. Tanto a privação quanto a abundância de alimentos vivida pelos internos se expressavam pela forma de um completo descaso. Uma das pacientes retratou, em forma de música, o cotidiano do hospital, protestando contra a forma de alimentação desumana que existia nesse espaço:

Ô seu Manoel, tenha compaixão
Tira nós tudo desta prisão
Estamos todos de azulão
Lavando o pátio de pé no chão
Lá vem a boia do pessoal
Arroz cru e feijão sem sal
E mais atrás vem o macarrão
Parece cola de colar bolão
Depois vem a sobremesa
Banana podre em cima da mesa
E logo atrás vêm as funcionárias
Que são umas putas mais ordinárias (p. 126)

O que se come, a forma como se come, com quem se come e onde se come são formas de expressar o lugar e valor social que os sujeitos ocupam coletivamente. Comer um alimento é incorporar um repertório de símbolos e significações culturais (Lima; Neto & Farias, 2015). Para Adami-Lauand e Ribeiro (2011), o alimento, mais do que suprir a criança nutricionalmente, influencia na forma como ela se relaciona consigo e com o mundo. Santos (2008) declara que: "O alimento se diferencia de outras formas de consumo porque ele é literalmente incorporado, atravessando as fronteiras do self" (p. 23). Portanto, se é permitido que o sujeito coma fezes, é permitido que ele ocupe o lugar de dejeto social, incorporando o mesmo significado do alimento. A perda da integração de um si mesmo e possíveis desdobramentos nefastos ao self4, por esse não cuidado do outro, certamente são incalculáveis.

Nos hospícios, todos esses elementos em torno da comida legitimavam o caráter não humano, não civilizado e de não cidadania que esses indivíduos carregavam em si, anulando com isso o poder da sociabilidade pública, da ação, da fala e da presença em espaços coletivos. É possível compreender que estar à mesa, inserido em um espaço público e compartilhando alimentos considerados socialmente apropriados para o consumo, são representações e marcas de que o sujeito possui o mínimo de dignidade civil e humana.

A partir do lugar de valor da alimentação referenciado pelo campo da história e da psicanálise Freudiana e o de desvalor promovido pelos manicômios, como refletir teoricamente sobre a refeição entre pares como ferramenta na clínica psicanalítica?

A refeição compartilhada como dispositivo clínico

Antes de introduzir os conceitos psicanalíticos na perspectiva clínica, é importante ressaltar que as refeições entre pares, como ferramenta na clínica psicanalítica do CPPL, pertencem ao formato de psicoterapia em grupo, que pode estar incluído no setor da clínica institucional, composto por casos de transtornos graves, como a psicose e o autismo. Como parte desse instrumento, pode existir o componente do dispositivo de refeições, que foi idealizado pela instituição, principalmente, como um momento de socialização e uma ferramenta de intervenção clínica para pacientes com transtornos alimentares.

Sobre o tema da alimentação, Winnicott (1987/2006) considera que a amamentação é um ato social, pois produz uma dinâmica de matriz relacional que tem como base a constituição de vínculo e comunicação entre humanos. Pereira (2014) declara que "enquanto mama o bebê incorpora a qualidade da relação que se estabelece entre ele a mãe e tudo isso passa a constituir a realidade psíquica pessoal dele" (p. 62). Assim, comer é se relacionar e por isso o bebê não se alimenta apenas do leite que é ingerido, mas também da relação constituída com a mãe, em que esta se torna um alimento simbólico.

Machado (2012) analisa a relação que é estabelecida entre os envolvidos durante a amamentação e a comunicação e mutualidade que são construídas como desdobramento desse momento. Quando o bebê é alimentado pela mãe, pode apresentar um comportamento, em torno das suas doze semanas, que traduz uma grande capacidade identificatória. Ao ser alimentado, o bebê imita a mãe e igualmente a alimenta em uma dimensão simbólica, colocando a mão e/ou os dedos na sua boca. Aos três meses, o bebê, já mais amadurecido egoicamente, percebe a mãe como alguém que, assim como ele, se alimenta e sente prazer nessa experiência. Ou seja, nessa situação alimentar, o bebê já inicia a construção da capacidade de empatia, de se colocar no lugar do outro.

Isto posto, compreende-se que se alimentar na presença e junto com o outro tem efeitos de subjetivação na medida em que o contato humano dessa experiência modifica internamente o ego do sujeito e seu processo de amadurecimento, desenvolvendo a capacidade de exercer sua autonomia e criatividade. Essa prática, em sua perspectiva relacional, permite o desenvolvimento psíquico e emocional do sujeito por meio da relação construída com o outro e com o mundo, produzindo uma capacidade identificatória e de comunicação com os que partilham o alimento.

Pensar no dispositivo clínico de refeição em grupo do CPPL, tomando como referência Winnicott e o seu conceito de espaço potencial, é considerar primordialmente que esse é um instrumento clínico no qual se cria uma área vital da experiência (Polity, 2002). Segundo Gregório e Amparo (2018), "O espaço potencial é o lugar onde se dá não somente o jogo criativo dos primórdios da existência, mas também o uso de símbolos, a mediação pela linguagem e tudo o que constitui a vida cultural" (p. 73-74). Nessa mesma perspectiva, Polity (2002) afirma que:

É no espaço potencial que o sujeito pode completar o processo de construção de seu self. À medida que interage com o outro - a mãe, primeiramente; mais tarde, o analista, o professor, o amigo - pode entrar em contato com diversas subjetividades por meio de manifestações culturais como a música, o texto, o diálogo, enfim, a presença humana, que enriquece e complementa. (p. 23-24)

O espaço potencial (transicional) define que, para se construir um si mesmo, é imprescindível que exista também um outro, ou seja, agir em conjunto é se subjetivar. A confiança no ambiente resulta em um viver criativo, onde cada sujeito, que carrega particularidades em sua construção subjetiva, pode enriquecer seu mundo interno ao estar com outros em um espaço que permite trocas espontâneas.

Nos grupos terapêuticos, cada um oferece a existência de diferentes trocas afetivas e culturais carregadas de representações e sentidos. O dispositivo de refeições nos grupos favorece distintas vinculações pela experiência de estar com o outro - em suas diferenças e semelhanças - e tudo aquilo que é suscitado com isso, mobilizando identificações, rivalidades, inveja, estranhamentos, encantamentos e demais afetos. Essas implicações subjetivas são causadas tanto pelo desdobramento que o elemento da comida provoca quanto pelo fato de essa experiência acontecer em um espaço coletivo onde se divide uma refeição, em que um componente existe e se relaciona com o outro concomitantemente para que as afetações citadas existam.

Winnicott (1979/2007), quando narra as etapas de desenvolvimento emocional do indivíduo, descreve que, no período da dependência absoluta, não há qualquer reconhecimento do outro como alteridade e nem da dependência que se tem daquele que cuida, tempo marcado pelo estado da natureza (fusão mãe-bebê). Já a dependência relativa é um momento de diferenciação progressiva entre o eu e o outro e de início do reconhecimento de sua dependência das figuras de cuidado. E quando se está na fase rumo à independência, há esse reconhecimento, instituindo, assim, uma abertura para o território da cultura e uma relação de preocupação com as pessoas. O caminho por essas etapas só é possível se existir um sentimento de continuidade pela provisão do ambiente às necessidades do sujeito.

Nos dispositivos de alimentação entre pares no CPPL, caso os terapeutas realizem uma intervenção sobre a construção dos modos à mesa, o que se dará não é uma terapia pedagógica que ensina regras de etiqueta, mas sim o favorecimento de que o sujeito saia do estado de não preocupação para que se reconheça e respeite o lugar do próximo enquanto alteridade. Pelas regras de partilha, o sujeito constrói um si mesmo ao se diferenciar dos outros, e, por essa razão, concebe os limites do público e privado, além de interiorizar os valores e normas da sua cultura (Poulain & Proença, 2003). Isso permite que o sujeito consiga construir um amadurecimento do self para mover-se continuamente entre os tempos necessários para seu desenvolvimento emocional.

Na hipótese de um paciente tentar tomar somente para si um alimento e não conseguir esperar que a divisão ocorra entre todos, os terapeutas podem intervir no sentido de reconhecer seu desejo, mas de contrapor a diferença entre desejo e realidade, e quando o primeiro se impõe como ato, há implicações que se dão no mundo externo. Poder esperar e dividir é confiar que o ambiente atenderá às suas necessidades, mas considerando e se adequando aos limites que a realidade externa impõe, criando-se um jogo recíproco entre o dar e o receber de forma igualitária. Esse movimento faz alusão ao conceito de desilusão da onipotência - a desadaptação às necessidades do bebê que se dá gradativamente - teorizado por Winnicott (1971/1975) e que pode ser vivenciado no dispositivo de refeição entre pares de forma terapêutica.

Primeiramente, o autor considera que a fase de ilusão é quando a mãe, na relação com o bebê, se adapta ativamente às suas necessidades, favorecendo que se desenvolva a ilusão de onipotência de que ele criou tudo ao seu redor. Após esse período, entra a fase de desilusão da onipotência, em que, gradativamente, a mãe já não atende mais tão prontamente às necessidades do bebê. O autor destaca:

Imaginem um lactente esperando a alimentação. Vem o tempo em que o lactente pode esperar uns poucos minutos, porque os ruídos na cozinha indicam que a comida está prestes a aparecer. Ao invés de simplesmente ficar excitado pelos ruídos, o lactente usa esses novos itens [relativos ao desenvolvimento atual do lactente] para se capacitar a esperar. (Winnicott, 1979/2007, p. 83)

Começa a se instaurar a dimensão temporal, em que o bebê começa a suportar esperar e integrar um passado-presente-futuro, percebendo que há um mundo externo diferenciado das suas necessidades e desejos. A partir disso, o ego da criança fica mais amadurecido quanto à frustração, conseguindo tolerar situações que denotam uma realidade fora de seu controle e, com isso, instaura-se a progressão do princípio do prazer absoluto para o princípio da realidade.

Winnicott (1979/2007) afirma que um ambiente que possibilita segurança e convicções do que é certo e errado faz com que os processos internos da criança e um superego pessoal evoluam, pois "o código moral adulto se torna necessário porque humaniza o que na criança é desumano" (p. 95). Assim, transmitir o sistema com códigos de regras sociais não é um processo repressivo, mas um cuidado por meio dos limites que o ambiente deve oferecer ao indivíduo. Dar limites é também cuidar. E cuidar é favorecer o processo de integração do self e da criatividade do sujeito.

Pensar as refeições em grupo na lógica da clínica é poder gerar efeitos no paciente a partir de intervenções terapêuticas que se sucedem na via da transferência e, por essa mesma ferramenta, poder trabalhar elementos clínicos possibilitando ressignificações subjetivas. Nesse dispositivo, é possível se experimentar em um lugar no mundo, muitas vezes não vivenciado fora do setting, pela crença do espaço social ampliado em uma incapacidade do sujeito devido ao seu diagnóstico ou condição psíquica. A inadequação à mesa pode surgir porque não há demandas que ofereçam essa vivência, inviabilizando que se aprenda com a experiência e restringido a capacidade de assimilar novas formas de compartilhar e se expandir no mundo. Na contramão dessa visão, essa ferramenta clínica do CPPL é uma forma de reconhecer e apostar que o sujeito, mesmo entre suas dificuldades, possa ser reconhecido para além da mácula da loucura e que possa ter autonomia no momento de comer e a capacidade de dividir a mesa (e a vida) com outros, aumentando a confiança e o investimento dos cuidadores para que tal posição se estenda a outros espaços. Uma das expressões mais importantes de cuidado é poder apresentar o mundo ao indivíduo (Winnicott, 1979/2007), e o dispositivo de refeições, por meio da experiência de estar entre outros e pelas regras sociais estabelecidas, é uma forma de fazê-lo.

A seguir, será apresentado um recorte clínico para ilustrar como se dão os reposicionamentos psíquicos e sociais na prática de comer entre pares no espaço do setting analítico.

Recorte clínico

O grupo de psicoterapia analisado era composto por três crianças: Francisco, José e Pedro5, que tinham entre 6 e 7 anos de idade e possuíam dificuldades muito singulares, com traços autísticos graves, a exemplo de terem a fala e recursos simbólicos muito regredidos. Os lanches terapêuticos ocorriam em todos os atendimentos. Os responsáveis eram encarregados de trazer a comida e um tempo determinado ao final da sessão era destinado para os pacientes se sentarem à mesa e comerem juntos. A instituição disponibilizava uma garrafa de água e utensílios de organização e limpeza, como pratos, copos, talheres, jogo americano e guardanapos para se pôr a mesa. E sempre, antes de se alimentarem, os terapeutas auxiliavam para que todos os pacientes se higienizassem, lavando as mãos antes de comer.

Em determinada sessão do grupo, uma cena começou a se repetir: José passou a pegar, quando menos se esperava, o lanche que estava posto no prato de Francisco. Em alguns momentos, Francisco não se importava, em outros, ficava irritado. Como resposta, começou a mudar a entonação dos sons da boca, resmungando daquela situação. Embora não saísse uma palavra, esse era o modo que ele tinha de registrar o ocorrido e, com isso, uma comunicação se estabelecia entre eles. José ora se intimidava, ora fingia que aquilo não era com ele e voltava a pegar comida do prato de Francisco. A via de intervenção dos terapeutas foi que José não poderia pegar comida do prato das pessoas sem permissão, pois aquilo era um gesto inadequado e seria possível encontrar outras formas de dizer, por exemplo, que não queria comer a própria comida ou que estava achando o lanche do outro mais saboroso e por isso, se fosse o caso, ele poderia pedir um pedaço da comida do colega. No caso de Francisco, foi colocado que ele deveria cuidar do próprio prato e não deixar ninguém pegar nada dele (se assim quisesse), ou eles poderiam fazer novas negociações e trocas dos respectivos lanches. Isto é, era permitido falar do desejo e realizar acordos, mas não praticar uma passagem ao ato6 pela via de uma inadequação dos modos à mesa.

Após algumas sessões em que esse conjunto de elementos se repetiu, iniciou-se algo muito interessante e peculiar. Na hora do lanche, Francisco pegou o suco de José sem ele perceber. Nessa cena, os papéis foram invertidos, já que comumente era o lanche de Francisco que costumava ser furtado pelo colega. José, ao se dar conta que não estava mais com seu suco, reivindicou a posse do seu lanche. Francisco, que estava se deliciando com a bebida, ficou muito irritado quando foi desapossado dela pelo dono. José, mais indignado ainda, e no seu direito, não permitiu mais que ele pegasse o seu refresco. No entanto, houve uma concessão, pois, embora não autorizasse que Francisco pegasse seu suco, José deixou que Francisco tirasse uma fruta do seu prato. Até então, os terapeutas só observavam a negociação que estava sendo feita, mas nesse momento intervieram no sentido de questionar José se não era possível dividir um pouco do suco com Francisco. Nesse momento, José apontou para a garrafa de água (oferecida pelo CPPL), indicando que Francisco, em vez de beber o seu suco, poderia beber a água. Os terapeutas riram diante da situação. Após algum tempo, José ofereceu o suco para Francisco, que o aceitou. Em troca, José pegou um pãozinho que o outro tinha no seu prato. Francisco continuou saboreando a bebida, mas, de repente, foi até José, originalmente dono do suco, e se certificou se ele não desejava mais um pouco, para saber se podia beber o que ainda tinha na garrafa. José mostrou-se satisfeito e recusou, sinalizando que Francisco poderia ficar com o restante. Dessa forma, eles finalizaram o episódio e a sessão foi encerrada por conta do tempo.

Os efeitos no psiquismo, impulsionados pela sociabilidade da prática, geram uma transmissão afetos entre os pares, que podem ser ilustrados pelas trocas que existiram entre os pacientes do grupo, no qual se destacam expressões de reconhecimento, identificação, preocupação, cuidado, empatia e gratidão com o outro. Salientando que esse laço social se deu entre duas crianças consideradas autistas graves na experiência de se alimentarem juntas, todas essas cenas aconteceram sem precisar ser dita uma palavra entre elas. O diálogo se deu por meio de gestos, olhares e sons, de forma completamente espontânea e autônoma, contando, pontualmente, com a mediação dos terapeutas.

Outra perspectiva que é possível acrescentar à correlação com o recorte apresentado é sobre o campo da linguagem. Montanari (1949/2008) destaca que o espaço de convivência propiciado pelo ato de comer juntos faz surgir um sistema linguístico - que vai muito além do texto utilizado na vocalização das palavras - em que gestos e comportamentos são traduzidos como mensagens carregadas de sentido, valor e comunicação. Para Cavalcanti (2006), imaginariamente na sociedade e para alguns profissionais de saúde, sujeitos diagnosticados como autistas não possuem linguagem, mas a autora afirma que se deve considerar "a linguagem enquanto ação, enquanto ato entre interlocutores, que, numa situação contextualizada e de interdependência, ligados afetivamente, constroem juntos um sentido" (p. 137). Se partirmos do pressuposto que a linguagem afeta os sujeitos e cria realidades (Cavalcanti & Rocha, 2001/2007), a refeição feita em conjunto e o alimento, que carregam em si potências de códigos linguísticos, também podem fazer o mesmo, sendo capazes de transformar realidades e enriquecer o lugar do sujeito socialmente.

 

Considerações finais

Tomando como inspiração o lugar da alimentação na história, na psicanálise e na saúde mental, é possível pensar que o dispositivo de refeições em grupo no CPPL é uma ferramenta que retira da margem e resgata para a pólis aqueles excluídos que carregam o peso do estigma e o imaginário da loucura, possibilitando, pelo ato de comer juntos, a vivência da condição de humano, civilizado e cidadão e a produção de laços afetivos e sociais, gerando, com isso, efeitos de subjetivação.

O grupo terapêutico e o seu dispositivo de refeição entre pares no CPPL podem ser tomados como uma versão abreviada do espaço público e político, no qual se tecem e se encenam formas singularidades de se subjetivar diante de uma pluralidade, pois existe a condição da liberdade para se criar a partir da liberdade de agir e falar (Arendt, 1958/2005). Por ter o caráter de um microcosmo de uma realidade mais ampla, o ponto central desse dispositivo é possibilitar ao sujeito estar entre outros partilhando uma vida coletiva e produzindo efeitos subjetivos para a vida pública em toda sua extensão, tornando-se um espaço que assegura o exercício da cidadania de cada um, visto que esse estado é restringido diante das inúmeras dificuldades que aqueles com transtornos psíquicos graves têm quanto à qualidade de ser, existir e se integrar em sociedade. Nessa medida, a refeição em conjunto torna-se um sistema alimentar mergulhado em processos sociais e históricos que transmitem valores, tornando-se um canal de representações que possibilita ricas trocas interpessoais e culturais.

Retomando Freud (1913-1914/1996b), todos os elementos psíquicos derivados da prática de comer e beber juntos são virtuais, ou seja, os seus efeitos não estão estabelecidos e assegurados por si sós, sendo produzidos apenas enquanto há pessoas disponíveis a partilhar o alimento. Se o ato é desfeito, seus efeitos também o são, por isso é preciso que seja uma prática reatualizada continuamente para que seus desdobramentos sejam incorporados com mais solidez. Em similaridade, Winnicott (1971/1975) relata que o espaço potencial é um espaço potente para o estabelecimento de algo, mas que pode ou não existir e que isso vai depender das pessoas que estão envolvidas para que se crie essa área intermediária, que não faz parte nem apenas da realidade interna e nem somente do mundo externo, mas que é um espaço estabelecido e construído entre pares. Assim como descrito pelos autores, o dispositivo de refeição compartilhada nos grupos terapêuticos do CPPL existe segundo a mesma lógica, pois necessita de pessoas que se concentrem na circunstância de comer juntas constantemente para que sejam produzidos efeitos subjetivos entre si.

Montanari (1949/2008) considera que a mesa é uma metáfora da vida, na medida em que um universo simbólico repleto de significações é criado quando se partilha esse espaço. Em complementaridade, Strong (2002) discorre sobre o convivium romano, que quer dizer "viver em conjunto", reforçando que o fato de ter uma vida compartilhada pode ser representado por dividir uma mesa em comum. A partir dessas colocações, pode-se refletir que há aproximações entre o comer juntos e o viver juntos.

Nesse sentido, simbolicamente, estar fora da mesa é estar fora da vida. Estar à mesa pode ser uma metáfora de se inserir e pertencer a determinados grupos e ser reconhecido socialmente, é poder se identificar e dividir, ser visto, aceito e respeitado em sua singularidade. É ser capaz de aprender e ensinar. De falar e ouvir. De oferecer, receber e trocar. De ter direitos e também deveres, de possibilitar o exercício do cuidado do outro e de si mesmo. Estar à mesa é estar na vida, ou seja, no campo de trabalho, inserido nos estudos, ter relações conjugais, estar ligado aos outros por vínculos de amizade, estar presente em locais coletivos com a família, participar da política como cidadão, usufruir de espaços públicos, entre outras dimensões. A música da banda Titãs (Antunes, Britto & Fromer, 1987) "comida" traz uma reflexão que abarca o que já foi dito:

Você tem sede de quê? Você tem fome de quê? / A gente não quer só comida. A gente quer comida, diversão e arte. A gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte / A gente não quer só comida. A gente quer bebida, diversão, balé. A gente não quer só comida. A gente quer a vida como a vida quer / A gente não quer só comer. A gente quer comer e quer fazer amor. A gente não quer só comer. A gente quer prazer pra aliviar a dor / A gente não quer só dinheiro. A gente quer dinheiro e felicidade. A gente não quer só dinheiro. A gente quer inteiro e não pela metade / Diversão e arte para qualquer parte. Diversão, balé como a vida quer. Desejo, necessidade, vontade (Faixa 2)

Talvez possamos criar uma analogia de que a fome desses sujeitos não seja só de comida e a sede não só de bebida, mas sim, de vida, de afetos, de convívios sociais e culturais, de reconhecimento enquanto sujeitos e de lugar político assegurado. Fome e sede que seriam saciados com um banquete de trocas humanas. Dessa forma, as refeições entre pares nos espaços públicos, como nos grupos terapêuticos, para pessoas com transtornos psíquicos graves, acabam por tornar-se um ato político, podendo ser a alternativa de um dispositivo clínico de promoção de saúde que possibilita o resgate e a reintegração desses sujeitos da margem à pólis.

 

Referências

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Recebido em 27 de junho de 2018
Aceito para publicação em 11 de outubro de 2018

 

 

1 Conceito que considera o homem a partir de uma visão multidisciplinar, no qual este é regido por um sistema integrado em que todas essas dinâmicas o perpassam.
2 CPPL - Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem, instituição que, dentre outros serviços, oferece atendimentos de psicoterapia em grupo. http://www.cppl.com.br/
3 Sears (2015) descreve que, para construir um salão para deliciosos banquetes, Erisícton resolveu invadir as terras dedicadas a Deméter e, violentamente, cortou todas as árvores que havia no local. Deméter foi tomada por uma intensa cólera e impôs um castigo severo a Erisícton. Se ele usurpou seu bosque com a finalidade de construir um espaço para comer, deveria ser punido com uma fome que o importunasse impiedosamente até o fim da vida. Depois de ter gastado toda sua fortuna, e da sua filha ter se vendido como escrava para conseguir comida para o pai, como sua fome era insaciável, acabou por devorar a si mesmo e a dar término a sua própria vida.
4 Winnicott (2007) retrata que o self em sua forma saudável (verdadeiro self) é aquele que, por estar integrado, resulta em uma imagem unificada de si mesmo e do mundo externo, produzindo o sentimento de ser criativo e se sentir real.
5 Todos os nomes de pacientes citados são fictícios.
6 Nesse contexto, utiliza-se a expressão freudiana passagem ao ato (act it out) para significar o cometimento de um ato por um sujeito para furtar-se à expressão de palavras acerca do próprio desejo.

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