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Psicologia Clínica
versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.32 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2020
https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0032n01A05
SEÇÃO TEMÁTICA - CLÍNICA DA CRIANÇA
Abuso sexual infantil masculino: sintomas, notificação e denúncia no restabelecimento da proteção
Male child sexual abuse: symptoms, notification and reporting on restoration of protection
Abuso sexual infantil masculino: síntomas, notificación y denuncia en el restablecimiento de la protección
Maria Inês Gandolfo ConceiçãoI; Liana Fortunato CostaII; Maria Aparecida PensoIII; Lucia Cavalcanti de Albuquerque WilliamsIV
IPsicóloga, Doutora em Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil. email: inesgandolfo@gmail.com
IIPsicóloga, Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil. email: lianaf@terra.com.br
IIIPsicóloga, Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Católica de Brasília (UCB), Brasília, DF, Brasil. email: mariaaparecidapenso@gmail.com
IVPsicóloga, Professora Titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, SP, Brasil. email: luciacawilliams@gmail.com
RESUMO
Na proteção à criança vítima de abuso sexual são necessárias três etapas: revelação, notificação e denúncia da violência. A etapa de revelação está ligada ao surgimento de sintomas que acabam por apontar a existência de problemas; a etapa da notificação consiste na publicização da ocorrência da violência; e a etapa da denúncia compreende a instauração de processo judicial para responsabilização do agressor. Trata-se de pesquisa documental em prontuários de 35 meninos vítimas de abuso sexual atendidos em instituição pública de saúde. O objetivo foi identificar o processo de restabelecimento da proteção à criança vitimizada. Os resultados apontam 64 diferentes manifestações de sintomas apresentados pelas vítimas meninos, denotando o sofrimento inerente à situação. Foram onze as instituições envolvidas no processo de notificação. Aquela com o maior número de casos (45,7%) foi o Conselho Tutelar, seguido da escola (28,6%). A notificação foi realizada em 51,2% dos casos e a denúncia em apenas dois casos, o que configura uma questão grave no processo de comunicação da violação de direitos dos meninos abusados. Para garantir a proteção da criança é preciso valorizar a presença dos dispositivos de proteção disponíveis na sociedade, e dar apoio às iniciativas de qualificação do pessoal integrante das instituições.
Palavras-chave: abuso sexual; violência sexual contra meninos; notificação.
ABSTRACT
To protect children victims of sexual abuse three steps are required: disclosure, reporting and notification of violence. This documentary research examined health records of 35 boys victims of sexual abuse assisted in a Brazilian public institution. The aim of the study was to trace the process of restoring protection to the child victim. Results showed 64 different types of symptoms triggering the disclosure, denoting much suffering by the children. There were eleven institutions involved in the reporting of violence. The one with most cases was the Child Protection Agency (45.7%), followed by the school (28.6%). Notification was carried out in 51.2% of the cases, showing a lack of preparation of the institutions to report the violation of rights. To ensure child protection it is necessary to enhance the presence of protective devices available in society, and to support initiatives to improve institutional staff training.
Keywords: sexual abuse; sexual violence against boys; notification.
RESUMEN
En la protección al niño víctima de abuso sexual son necesarias tres etapas: revelación, notificación y denuncia de la violencia. La etapa de revelación está ligada al surgimiento de síntomas que acaban por apuntar la existencia de problemas; la etapa de notificación consiste en la publicidad de la ocurrencia de la violencia; y la etapa de denuncia corresponde a la instauración del proceso judicial por la responsabilización del agresor. Este estudio es una investigación documental en prontuarios de 35 niños víctimas de abuso sexual atendidos en una institución pública de salud. El objetivo fue identificar el proceso de restablecimiento de la protección al niño victimizado. Los resultados apuntan a 64 diferentes manifestaciones de síntomas presentados por las víctimas niños, denotando el sufrimiento inherente a la situación. Las instituciones involucradas en el proceso de notificación fueron once. Aquella con mayor número de casos (45,7%) fue el Consejo Tutelar, seguido de la escuela (28,6%). La notificación se realizó en el 51,2% de los casos y la denuncia en apenas dos casos. Esta información constituye una cuestión grave en el proceso de comunicación de la violación de los derechos de los niños abusados. Para garantizar la protección del niño es necesario valorar la presencia de los dispositivos de protección presentes en la sociedad, y apoyo a las iniciativas de calificación del personal integrante de las instituciones.
Palabras clave: abuso sexual; violencia sexual contra niños; notificación.
Introdução
A violência sexual contra crianças do sexo masculino é menos conhecida do que a violência sexual contra crianças do sexo feminino, tanto no âmbito internacional (Easton, Coohey, Rhodes & Moorthy, 2013; González, Orgaz & López, 2012; Hershkowitz, 2014; Stoltenborgh, IJzendoorn, Euser & Bakermans-Kranenburg, 2011; Weiss, 2010), como no nacional (Baptista, Franca, Costa & Brito, 2008; Guimarães & Vilela, 2011; Hohendorff, Habigzang & Koller, 2013; Mascarenhas et al., 2010; Oliveira et al., 2014; Pincolini & Hutz, 2014; Serafim, Saffi, Achá & Barros, 2011). No entanto, há atualmente um reconhecimento de que o abuso sexual na infância, independente do gênero da vítima, pode influenciar comportamentos sexuais agressivos mais adiante na vida (Blom, Högberg, Olofsson & Danielsson, 2014). Uma pesquisa realizada com ofensores sexuais encarcerados (Nunes, Hermann, Malcom & Lavoie, 2013) mostrou que aqueles que foram abusados sexualmente antes dos 16 anos de idade, por adultos do sexo masculino, apresentaram interesse maior por atividade sexual com crianças, e aqueles que tiveram uma "relação com a vítima" apresentaram também maior incidência de recidiva do ato violento. A expressão "relação com a vítima" diz respeito a uma situação de abuso sexual mantido por período mais extenso e permanente, no qual uma "pseudo" relação entre a vítima e o ofensor se estabeleceu, constituindo-se em um fator de maior risco para a reprodução da violência (Nunes et al., 2013).
O abuso sexual de meninos é pouco divulgado em função de ideias preconcebidas sobre a inevitabilidade do aparecimento na vítima de comportamentos homossexuais no futuro (Lambie & Johnston, 2015; Scrandis & Watt, 2014; Sigurdardottir, Halldorsdottir & Bender, 2012; Valente, 2005). No Brasil, o desconhecimento sobre essa realidade é grande, tanto sobre a prevalência de abuso sexual de meninos quanto sobre as características do ofensor sexual (Costa, Penso, Conceição, Rocha & Williams, 2018; Hohendorff et al., 2013; Pincolini & Hutz, 2014).
A intensidade ou permanência da relação violenta da vítima com o ofensor pode predizer um potencial de polivitimização, o que intensifica as consequências nefastas do abuso sexual (Turner, Shattuck, Finkelhor & Hamby, 2015), na medida em que essa relação se prolonga e se torna mais complexa, com o surgimento de uma escalada de outros tipos de violência. A polivitimização é um fenômeno que foi assim denominado por Finkelhor, Ormrod, Turner e Hamby em 2005, e refere-se à vivência de mais de um tipo de violência perpetrada, constituindo-se em uma vitimização multifacetada. Difere do fenômeno denominado revitimização, pois enquanto neste ocorre mais de um episódio do mesmo tipo de violência, na polivitimização são diferentes tipos de violência ocorrendo com a mesma vítima. Adicionalmente, há ainda a influência da família, da comunidade e das condições de pobreza, que estão presentes na vitimização sexual e se vinculam à violência sofrida e à reincidência do ato ofensor (Rodgers & McGuire, 2012; Turner, Shattuck, Hamby & Finkelhor, 2013).
Para garantir a proteção da criança vítima de abuso sexual é preciso que ocorram necessariamente as três etapas: revelação, notificação e denúncia da violência sofrida. É importante ter em mente que a revelação muitas vezes se dá a partir de certos sintomas apresentados pelas vítimas, apontando para a necessidade de que membros da família, cuidadores ou profissionais com os quais as vítimas estão em contato (por exemplo, na escola) saibam reconhecer tais sinais. A revelação sobre a vitimização de violência sexual ocorre a partir do momento em que a vítima relata o ocorrido para uma terceira pessoa, o que deve ter como consequência a notificação que trata do momento em que essa revelação alcança uma condição de publicização, envolvendo uma das instituições do sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes (Conselho Tutelar, delegacia especializada, serviços de ajuda como SOS Criança ou Disque Denúncia) (Hohendorff, Santos & Dell'Aglio, 2015).
A notificação compulsória dos casos de violência é um instrumento capaz de mobilizar a rede de proteção às crianças e adolescentes e que compõe o sistema de informação, visando ao planejamento de políticas públicas para seu enfrentamento (Lima & Deslandes, 2011). Notificação é um termo que pode ser usado em várias situações. Por exemplo, o Conselho Tutelar (CT) notifica o Ministério Público (MP) sobre o conhecimento de um crime, de uma situação de risco ou vulnerabilidade de uma criança.
A denúncia é o ato privativo do MP nas ações penais públicas que dá início ao processo penal, em face de alguém que praticou um crime. A denúncia deve conter a descrição dos atos praticados pelo denunciado, o local, a data, e todos os dados que individualizem o denunciado. A denúncia pode ser baseada em um inquérito policial, ou também ser resultado de uma investigação feita diretamente pelo MP (Brasil, 1940), e é extremamente importante, pois se constitui no mecanismo de responsabilização do agressor.
O processo de notificação permitirá que a estatística decorrente desses registros componha um quadro que oriente políticas públicas (Baía, Veloso, Magalhães & Dell'Aglio, 2013; Deslandes et al., 2011; Pietrantonio et al., 2013; Resnick, Ireland & Borowsky, 2004). Ademais, a notificação é obrigatória nas áreas de saúde e educação. Considera-se que essas etapas - revelação, notificação e denúncia - são processuais, e se constituem em momentos distintos com a participação de diferentes atores, que incluem o sistema de proteção e o sistema de garantia. Assim, a criança ou adolescente, e sua família, terão uma resposta sobre a responsabilização do agressor pelo ato violento cometido (Baía, Magalhães & Veloso, 2014; Hohendorff et al., 2015).
Cabe aos profissionais de saúde e educação, conforme dispõe o art. 245 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Brasil, 1990), comunicar, isto é, notificar à autoridade competente os casos de seu conhecimento, suspeitos ou confirmados, de violação de direitos de crianças e adolescentes, na qual se insere o abuso sexual. Notificar significa que a criança ou adolescente e sua família terão apoio de instituições e profissionais competentes para interromper a violência e oferecer tratamento. Além disso, autores consideram que a notificação pode ser considerada como parte do processo de favorecimento da resiliência da vítima, quando a lei determina que tenha início o estágio do restabelecimento da segurança da criança e da interrupção da violência (Dobke, Santos & Dell'Aglio, 2010; Wekerle, 2013).
Em pesquisa regional junto a um Centro de Referência Especializada em Assistência Social (CREAS) no Distrito Federal, Pinho (2012) informa que em 40 famílias com denúncia de abuso sexual, 17 haviam procurado a instituição com pedidos de assistência social e/ou encaminhamentos para instituições diversas, e de 27 famílias na mesma situação, 18 haviam feito outras notificações anteriores, ou simultâneas, de outras formas de violência. Uma primeira procura para se fazer uma notificação se dá no âmbito da polícia (Wekerle, 2013). Informações contidas no site da Vara da Infância e Juventude do Distrito Federal (VIJ/DF, 2009), apontam que a instituição mais procurada para uma notificação da violência é a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente - DPCA (28%), seguida de delegacias (18%), Conselho Tutelar - CT (11%) e Delegacia da Criança - DCA (9,66%). Em relação à revelação, nesse mesmo site aparecem o hospital (11,72%) e a escola (7,59%) como os dois locais onde mais surgem revelações. Dois textos, provenientes de estudos regionalizados de estados do nordeste brasileiro, identificaram as seguintes instituições de proteção acionadas para fins de denúncia: na cidade de Maceió (Guimarães & Vilela, 2011), em uma amostra de 303 crianças e adolescentes vítimas de violência, 6% foram às delegacias, 34,7% à delegacia especializada, e 20,4% dirigiram-se ao Conselho Tutelar (CT). Na cidade de Campina Grande (Serafim, Saffi, Achá & Barros, 2011), 68% das notificações foram feitas ao CT, 20% às delegacias, e 5% à polícia civil.
Portanto, este artigo descreve uma pesquisa documental, em acervo de dados sobre meninos comprovadamente vítimas de abuso sexual, que teve por objetivo conhecer uma parte do processo de restabelecimento da proteção à criança de sexo masculino (que aqui será denominado como "menino") vitimizada sexualmente, com ênfase no surgimento dos sintomas (que levam à revelação), na notificação e na denúncia. Distinguir essas etapas é de suma importância, haja vista a subnotificação de casos, o que de imediato remete à suspeita de que podem estar ocorrendo: (1) casos em que os sintomas surgem, mas não há revelação; (2) casos de revelação sem notificação; ou ainda, (3) casos de denúncia sem notificação (Deslandes, Mendes, Lima & Campos, 2011). Nas ações de ajuda às vítimas de violência sexual, o mapeamento da ocorrência ou não dessas etapas também é fundamental para a adoção de encaminhamentos ou indicação terapêutica. A clínica do atendimento às vítimas de violência sexual (terapias a longo prazo e/ou intervenção psicossocial) não pode prescindir do reconhecimento dos passos desse processo. Assim, este estudo pretende contribuir para a ampliação da identificação da atuação das diferentes instâncias no processo de tornar pública (ou seja, revelar, notificar e denunciar) a violência sexual contra meninos, além de identificar os sintomas apresentados por eles e, a partir daí, dar início ao processo de avaliação da vitimização, da indicação terapêutica e do encaminhamento da responsabilização que garanta proteção a esses meninos.
Método
O contexto da pesquisa foi uma instituição pública da área de saúde na qual foram consultados os prontuários de meninos vítimas de abuso sexual. A instituição faz parte da rede de saúde da Secretaria de Saúde local e integra a rede de proteção a crianças e adolescentes. Essa instituição recebe encaminhamentos provenientes de Conselhos Tutelares (CT); Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA); Vara da Infância e Juventude (VIJ); Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS); organizações não governamentais (ONGs); entidades assistenciais; instituições de acolhimento; e rede de serviços públicos (saúde, educação, entre outros).
Foram identificados 51 prontuários de casos de crianças (até 12 anos de idade) do sexo masculino vitimizados sexualmente e notificados. Como critério de inclusão para este estudo, foram selecionados e tabulados por duas pesquisadoras apenas os prontuários que continham a entrevista de acolhimento do menino vítima de abuso sexual. Ao todo, foram analisados 35 prontuários. As entrevistas de acolhimento do serviço são realizadas por psicólogos ou assistentes sociais da instituição que se encontram de plantão e acolhem as famílias que chegam espontaneamente, ou por encaminhamento à instituição. A entrevista é realizada com o responsável pela criança. Cada entrevista tem duração média de uma hora, e segue a orientação contida no prontuário: informações sociodemográficas (nome da criança, data de nascimento, idade, escolaridade, situação financeira da família); informações sobre pai, mãe, irmãos, renda familiar, religião; informações sobre a queixa, sobre a situação de violência ocorrida, sobre o ofensor, sobre a notificação; informações sobre a ocorrência de outras queixas e as consequências da violência sofrida. Considerando o objetivo deste estudo, foram analisados os dados que proporcionassem uma compreensão das etapas que buscam o reestabelecimento da proteção nos casos de violência sexual contra meninos, ou seja, informações sobre as ações que levaram às revelações, denúncias e notificações.
O perfil do menino vitimizado sexualmente nessa instituição (N = 35) corresponde à caracterização construída em Costa et al. (2018): a maior prevalência da vitimização sexual ocorreu aos 6 anos de idade; o tempo médio de intervalo entre a ocorrência da vitimização sexual e a chegada a uma instituição de atendimento foi de dois anos e seis meses; a escolaridade das vítimas, em sua maioria, situava-se no ensino fundamental, entre a primeira e a quarta séries (63%); em 40% dos casos a vítima residia com ambos os pais, e em 48,6% dos casos, havia a presença de irmãos. Com relação à renda, em 24% dos casos a família vivia com renda entre um a cinco salários mínimos, em 23%, com três salários mínimos, e em 53%, com mais de cinco salários mínimos. Finalmente, em 54% dos casos o abuso sexual foi intrafamiliar e em 43%, extrafamiliar.
A análise quantitativa baseou-se em estatística descritiva (frequência, média) visando a caracterizar o contexto da vitimização sexual e as instituições acionadas para o restabelecimento da proteção. As informações consideradas importantes no traçado de um quadro compreensivo foram: (1) Sintomas disparadores da notificação; (2) Instituições envolvidas na notificação; (3) Ocorrência ou não da notificação ao SVS; (4) Sobre a denúncia. O projeto foi encaminhado e aprovado no Comitê de Ética do Instituto de Ciências Humanas da Universidade de Brasília, via Plataforma Brasil, e recebeu o parecer nº 1.009.198, de 27 de março de 2015.
Resultados e Discussão
1 - Sintomas disparadores da notificação
Na Tabela 1 podem ser observadas as descrições e a frequência dos sintomas identificados na vítima que foram responsáveis pela notificação de vitimização sexual e posterior denúncia. O que aqui se denomina como sintoma é, na indicação de Scrandis e Watt (2014), o conjunto de comportamentos problemáticos, indicadores de possível sofrimento, que surgem entre a ocorrência do abuso sexual e a revelação, e têm como função informar que "algo" aconteceu, porque chamam a atenção para as diferenças que surgem na conduta da vítima.
Dos cinco casos em que houve algum problema relacionado ao sono, três se referem a pesadelos e/ou pavor noturno, e dois à enurese. Cabe observar ainda que os comportamentos sexualizados foram, em sua maioria, identificados na escola. Dentre os 19 casos em que foi citado algum problema na escola, em um deles houve evasão escolar, enquanto nos outros 18 foram citadas dificuldades de aprendizagem. Em três casos, a vítima apresentou dificuldades de atenção e em outros três casos, comportamento opositivo. A tentativa ou ameaça de se suicidar também esteve presente em três casos, em um dos quais a criança tentou cortar os pulsos na escola, e nos outros a criança verbalizou sua intenção. Em dois casos, foi informado "mudança de comportamento", mas sem especificação, e em mais dois casos, o comportamento de se vestir com roupas femininas, além de outros comportamentos vistos como sintomas: lapsos de memória, isolamento, querer somente permanecer junto de pessoas mais velhas, e dificuldades na fala. Em dois casos, um familiar presenciou a manipulação do autor da violência com a vítima. Em quatro casos, a vítima revelou a violência para a mãe e/ou o pai.
Foram observadas 64 manifestações de sintomas, uma vez que a mesma vítima pode ter apresentado mais de um sintoma. Tais manifestações foram classificadas em 24 tipos diferentes de sintomas em uma amostra de 33 meninos (em dois casos não havia registro), denotando amplamente a presença de sofrimento nos meninos, todos os quais apresentaram condutas preocupantes, mais ou menos graves, relatadas por seus cuidadores.
O abuso sexual na infância pode efetivamente influenciar comportamentos sexuais agressivos mais adiante na vida, e atualmente tende a ser visto sempre como um evento causador de sofrimento e problemas posteriores (Blom et al., 2014; Hershkowitz, 2014; Valente, 2005). Os abusos sexuais de meninos constituem-se em fato oculto, muito mais do que em meninas. Isso é sobejamente conhecido e tem grande implicação no desenvolvimento psicossexual posterior do adolescente e do adulto do sexo masculino. A revelação do abuso sexual de menino tem importância crucial na prevenção de suas consequências (Allagia & Mishna, 2014; Baptista et al., 2008; Blom et al., 2014; Easton et al., 2013; Easton, Saltzman & Willis, 2014; Hohendorff et al., 2015; Scrandis & Watt, 2014; Serafim et al., 2011; Valente, 2005; Weiss, 2010).
Outra constatação interessante é que muitos desses sintomas surgiram no âmbito da escola, o que faz com que se aponte a importância dela como contexto de proteção e a necessidade de que o corpo docente e os funcionários administrativos recebam treinamento e qualificação para acolher e interpretar esses sintomas, identificando o sofrimento da vítima (Brino & Williams, 2009), e também que estejam conscientes de sua obrigação em fazer a notificação dos casos de suspeita de violência sexual. Uma pesquisa com estudantes do curso de Pedagogia na Austrália (Goldman, 2007) sobre como eles veem sua condição de efetuar as notificações sobre abuso sexual, aponta que os estudantes reconhecem ter recebido boa formação para o exercício dessa tarefa. No entanto, sentem substancial falta de confiança na identificação e na resposta apropriada para dar prosseguimento à suspeita de abuso sexual e, assim, encaminhar uma notificação.
No Brasil, os órgãos públicos estão atentos para a função de proteção da escola na medida em que está disponível uma cartilha do Ministério da Educação (2004) sobre a percepção dos sinais emitidos pela criança para a identificação do abuso sexual. A escola, como se vê na amostra estudada neste artigo, é um espaço privilegiado para o surgimento de problemas de comportamento que podem ser sintomáticos de abuso sexual (Scrandis & Watt, 2014).
Ainda nessa amostra, foram identificados registros de comportamentos extremamente preocupantes que denotam um sofrimento de maior grau, bem como possível comprometimento psíquico e emocional mais sério, por exemplo, o vestir-se com roupas de mulher. Embora o vestir-se com roupas femininas possa ser visto como uma brincadeira, ressalta-se que este comportamento foi incluído como sintoma por estar assim definido no prontuário.
O preenchimento dos prontuários se deu em entrevista com os responsáveis pelas vítimas, na maior parte dos casos a mãe. Ressalta-se que a anotação vestir-se com roupas de mulher pode indicar também a presença de um preconceito de gênero já mencionado anteriormente (Scrandis & Watt, 2014). Pode-se compreender que a família não interpretou como uma possível brincadeira e sim como comportamento estranho ao habitual da criança, visto que informou à entrevistadora.
Sobre esse comportamento, vários autores indicam o surgimento de comportamentos típicos do gênero feminino, como o vestir-se com roupas de mulher, como um sinal grave e que deve ser observado, pois levantam suspeitas de abuso sexual por período mais longo, bem como pela possível prática da penetração (Lambie & Johnston, 2015; Lauritsen & Carbone-Lopez, 2011; Rodgers & McGuire, 2012; Valente, 2015). Em especial, Lambie e Johnston (2015) apontam para a necessidade de se observar os sinais pós-abuso (masturbação, fantasias, desajustes psicológicos, condutas não habituais) que, combinados, formam um quadro explicativo e preditor de consequências mais danosas. Por outro lado, Scrandis e Watt (2014) indicam que a avaliação do menino vítima de abuso sexual deve incluir uma observação criteriosa de mudanças de conduta na vítima, principalmente comportamentos sexualizados. Além disso, Hohendorff, Habigzang e Koller (2014) elencam como sintoma pós-abuso a expressão de "dúvidas quanto a identidade de gênero e orientação sexual" (p. 58), que pode ser coerente com a informação de vestir-se com roupa de mulher. O que se apresenta como questão importante nesse quesito é que existem diferenças marcantes que dizem respeito à identidade de gênero, que se encontram no rol dos problemas em torno do abuso sexual de meninos.
Algumas práticas do abuso sexual contra meninos dizem respeito a múltiplos atos sexuais invasivos, penetração anal e oral, exibicionismo, que podem determinar perda da autoestima, desordens psicológicas e comportamentos sexuais posteriores de alto risco (Alaggia & Millington, 2008; Valente, 2005). Hershkowitz (2014) considera que abuso sexual com e sem penetração são questões distintas, porque o menino abusado sexualmente que foi violado (penetrado) por um familiar tem maior probabilidade de se tornar um violador e um ofensor sexual mais adiante. Essa correlação é proveniente de sua pesquisa com adolescentes que foram abusados sexualmente na infância e entrevistados entre os 10 e 14 anos de idade. O autor aponta que seus achados são reveladores do possível trauma causado pela violação: o risco de meninos vitimizados cometerem abuso sexual com penetração é maior no período imediato à revelação do abuso sexual sofrido, e chama a atenção para o papel do suporte familiar na diminuição dos efeitos negativos da penetração sexual para os meninos.
O outro registro de comportamento preocupante, a tentativa de suicídio, evidencia uma grave consequência da violência sexual que pode estar associada à ideação suicida e depressão. Estudos indicam uma forte associação entre abuso sexual e posterior tentativa de suicídio, sintoma que deve ser valorizado e ao qual deve ser dada atenção o mais breve possível (Cashmore & Shackel, 2013). A violência sexual sofrida faz com que os meninos se sintam confusos quanto à sua sexualidade e temam se tornarem homossexuais. Os meninos recentemente vitimizados ou, ainda, os homens adultos que foram vitimizados na infância podem desenvolver comportamentos para afirmar ou reafirmar sua masculinidade, tais como comportamentos destrutivos, desobediência, confronto e hostilidade (Allagia & Millington, 2008). As razões relatadas pelos meninos entre sete e 13 anos para não revelarem a vitimização sexual são, geralmente, o medo da reação de seus pais, o medo de uma possível ruptura familiar, bem como a reação do agressor (Hohendorff et al., 2013; Scrandis & Watt, 2014).
2 - Instituições envolvidas na notificação
As instituições citadas nos registros foram 11. O Conselho Tutelar (CT) foi a instituição que esteve presente em maior número de casos (16 casos - 45,7%), seguida da escola (10 casos - 28,6%). A DPCA (Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente) (sete casos - 20%) e as instituições da saúde, como hospitais, postos de saúde e consultórios médicos (cinco casos - 14,2%) surgiram como contextos de revelação e subsequente denúncia. Em 14 dos 27 casos em que há registro sobre o local do aparecimento dos sintomas, a escola aparece primeiramente. Quando há uma segunda instituição envolvida, a sequência de surgimento de sintomas mais frequente é escola - CT (cinco casos), seguido da sequência escola - hospital ou unidades de saúde (três casos). Também foram encontrados dois casos nos quais a sequência foi escola - DCA - CT. O CT também aparece várias vezes como o primeiro lugar de manifestação dos sintomas (sete casos), e em quatro desses casos não há outras instituições na sequência. Em dois casos a sequência é CT - delegacia e em um caso a sequência é contrária, delegacia - CT.
Foram apontadas ainda instituições da assistência social, como o COSE (Centro de Orientação Sócio Educativo, um caso) e o CRAS (Centro de Centro de Referência de Assistência Social, um caso), e instituições da justiça como a VIJ (Vara da Infância e Juventude - 5,7%, ou dois casos), o MP (Ministério Público, um caso) e o IML (Instituto Médico Legal, um caso). Em cinco casos não havia registro no prontuário da instituição envolvida na denúncia. A relação entre a idade da vítima e a instituição envolvida no processo de denúncia encontra-se na Tabela 2.
Em cada faixa etária, quando existem mais instituições do que o número de vítimas, é porque a mesma vitimização foi notificada em mais de uma instituição. Em relação às instituições que participam do processo de denúncia do abuso sexual, o CT esteve presente como a instituição que mais notificou e disparou o sistema de proteção em todas as idades da amostra (de 1 ano a 13 anos), com exceção da idade de 10 anos. Vale ressaltar que o CT foi a instituição que mais recebeu notificações na idade de 4 anos. As vítimas com idade de 4 anos tiveram o abuso sexual notificado em quatro instituições: CT, DPCA, hospital e centro de saúde, que são do âmbito da justiça e da saúde. Essa constatação aponta que, por serem crianças mais novas, a escola ainda não tem participação no processo de denúncia, e que a saúde atua como uma porta de resgate da proteção bastante importante (Veloso, Magalhães, Dell'Aglio, Cabral & Gomes, 2013). Brino e Williams (2009) já apontaram que o trabalho de esclarecimento com os profissionais da pré-escola é sumamente importante, e pode alterar significativamente o número de notificações nessa faixa etária.
Guimarães e Vilela (2011), em pesquisa realizada na cidade de Maceió com uma amostra de 113 vítimas de violência, crianças e adolescentes, apontam que 22% dos casos foram denunciados pelos pais, 4% por familiares, 5% por denúncia anônima, 1,3% por instituição da saúde, e 2% por instituição da educação. Costa et al. (2007) também apontam, em pesquisa sobre denúncias de violência contra crianças e adolescentes no contexto do CT em cidade do nordeste, a existência de denúncia anônima em 30% dos casos, em um conjunto de 1.293 registros. Do estudo de Guimarães e Vilela (2011), chama a atenção o fato de os próprios pais fazerem a notificação e a existência de notificações anônimas, observação esta ausente da amostra que se está estudando neste artigo. Infere-se que as localidades apresentam atuações institucionais diferenciadas em função do incentivo de políticas públicas locais. No Distrito Federal (local do estudo), ao longo dos últimos anos, o CT apresentou aumento de sua presença em cada região administrativa. Existem no momento 43 CTs para 33 regiões administrativas, ou seja, há regiões que têm mais de um CT (TJDFT, 2017). A Secretaria da Criança do Governo do Distrito Federal é o órgão que está buscando otimizar o atendimento à população para recebimento de denúncias de violações de direitos de crianças e adolescentes, ao mesmo tempo em que busca ampliar o treinamento dos profissionais para viabilizar o aumento das notificações.
As vítimas de 5 anos tiveram seus abusos denunciados em quatro instituições: CT, DPCA, IML e escola, que são do âmbito da justiça e da educação. Baptista et al. (2008), em pesquisa realizado em um Programa Sentinela em Campina Grande, PB, aponta que 68% das denúncias chegaram ao CT; 20% foram recebidas pelas delegacias e 7% foram realizadas por familiares.
Em pesquisa realizada no interior baiano com profissionais atuantes na Estratégia de Saúde da Família, Lima et al. (2011) encontraram que as notificações mais frequentes (67,9%) ocorreram com vítimas de até 11 anos de idade. Além dos profissionais da saúde, os integrantes do CT foram os profissionais que mais realizaram notificações (45,2%). Esses achados coincidem com os encontrados neste estudo, tanto no que diz respeito à idade, abaixo de 12 anos, com maior frequência de notificação, como à atuação do CT no processo de interrupção da violência, por meio do recebimento da notificação. Uma observação importante dessa pesquisa de Lima et al. (2011) é que os autores indicaram que houve maior facilidade em realizar a notificação da violência sofrida pelos profissionais mais capacitados. O que se depreende dessas informações é que justiça, saúde e escola são as instituições que mais participam do processo de restabelecimento da proteção da vítima (notificação) na faixa etária de até 5 anos, com o CT tendo muita importância nos contextos mais empobrecidos, ou nas situações de vítimas menores de idade.
A partir dos 7 anos de idade, os órgãos de proteção que se encarregaram da notificação foram CRAS, VIJ, MP, ou seja, instituições da assistência social e da justiça. Nessa faixa etária só houve uma denúncia deflagrada por médico. Infere-se que o CRAS seja procurado por auxiliar na intervenção de comportamentos preocupantes e o MP por ser um órgão eminentemente de fiscalização, que pode autorizar o processo investigativo e a consequente responsabilização. A proteção da criança na primeira infância parece ser mais bem efetivada pelo CT, por estar mais próximo à família, ou pelo fato de o conselheiro tutelar ter conhecimentos sobre as famílias da comunidade, pois muitas vezes esses conselheiros residem na mesma região. Acresça-se a essa constatação a natureza autônoma e contínua do CT, que lhe permite acompanhar com independência, e diretamente, os casos de violação da integridade da criança e/ou do adolescente, aproximando a aplicação de uma política pública de proteção ao beneficiário (Quadros, 2014).
Uma pesquisa de Leander (2010), realizada com registros em âmbito policial de 27 crianças abusadas sexualmente, mostra uma disparidade entre a comprovação do abuso sexual a partir de fotografias e vídeos, com o testemunho da criança que nega a ocorrência. Foram estudadas várias entrevistas iniciais de cada vítima e percebeu-se que as crianças evitam relatar o ocorrido, mesmo na situação de um abuso sexual documentado. A primeira entrevista é aquela na qual aparece mais negação, ou evitação, em comparação com as entrevistas subsequentes. Essa pesquisa induz a que se veja o contexto policial com reservas para a realização da notificação. Por outro lado, apesar de o CT ser parte do sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes, talvez as famílias não tenham a percepção de tal função, em face de que conselheiros tutelares, muitas vezes, são moradores da própria comunidade, o que é paradoxal em relação à afirmação anterior.
3 - Ocorrência ou não de notificação ao SVS
Foi possível recolher informação acerca de ter havido ou não notificação em 40 situações dos 35 prontuários consultados, pois houve vítimas com mais de uma notificação. Nesse item a referência à notificação significa a notificação oficial à Secretaria de Vigilância Sanitária (SVS) da Secretaria de Saúde local, órgão que centraliza as notificações e é responsável pelo envio dos dados ao Ministério da Saúde.
Assim, foram 21 notificações realizadas (51,2%), mas em 17 casos não houve notificação (41,4%), em um caso houve notificação e abertura de inquérito (denúncia), em um caso houve somente a abertura de inquérito (denúncia). Ou seja, dos 35 casos, praticamente metade não foi notificado ao SVS. A presença de suspeição ou a percepção dos profissionais das instituições no processo de denúncia da violência sexual tem que ser acompanhada por registros da notificação. Quando uma instituição inicia o registro do ocorrido, nem sempre se encarrega da notificação oficial. Essa constatação nem sempre é visível, e somente está-se aqui fazendo menção porque, nos prontuários pesquisados, havia uma informação específica se naquele caso havia sido feita ou não a notificação, além do local no qual foi registrada. Pode-se inferir que a questão da mobilização da rede é efetuada com a inscrição da criança na instituição, mas somente a notificação oficial pode desencadear o processo de responsabilização do ofensor. A notificação da violência é o passo inicial na constituição da denúncia, a qual dá início a uma investigação. Nos casos de abuso sexual intrafamiliar, na medida em que o ofensor permanece em casa, a situação de vulnerabilidade tem continuidade (Valente, 2005).
Nos dados da pesquisa deste estudo, apesar de se ter um maior número de notificações (51,2%), ainda há uma ausência de notificações ao SVS em praticamente metade dos casos, e isso pode significar falta de preparo da instituição para a execução desse registro. Por outro lado, pode constituir uma dificuldade dos profissionais para aceitarem a tarefa de comunicar oficialmente a violação de direitos envolvendo as vítimas. Isso se dá também em países de primeiro mundo, visto que os profissionais afirmam precisar de segurança e conforto no ato da notificação, além de estarem plenamente convencidos de que houve a violência (Goldman, 2007; Smith, 2010).
4 - Sobre a denúncia
Finalmente, visto que a denúncia é ato privativo do Ministério Público (MP), apenas em dois casos (vide Tabela 2) o conhecimento sobre a violência sexual chegou à esfera do MP, isto é, somente nesses casos houve denúncia e possível investigação. A notificação do abuso sexual é compulsória, e a presença de vítimas não notificadas revela um compromisso frouxamente assumido perante o Sistema de Proteção Integral referenciado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lima & Deslandes, 2011). Excetuando-se as duas denúncias, os demais agressores envolvidos nessas agressões não tiveram a oportunidade de participar de um processo de responsabilização. Está-se, ainda, diante da execução de uma política de proteção integral à infância bastante incipiente, apesar de as instituições contarem com material instrutivo e formador (Ministério da Saúde, 2002, 2011).
Considerações Finais
Os três aspectos envolvidos nas etapas do restabelecimento da proteção nos casos de abuso sexual de meninos - surgimento de sintomas que levam à revelação, notificação e denúncia - formam um quadro que assinala a necessidade de que essas descrições sejam mais conhecidas e exploradas no fluxo de proteção às vítimas. A lista de sintomas apresentados aponta, inequivocamente, para a gravidade das consequências sobre o desenvolvimento psíquico e emocional dos meninos abusados sexualmente, e ainda mais se as vítimas ficam longo tempo sem atenção e atendimento (Blom et al., 2014; Nunes et al., 2013; Turner et al., 2015). A proteção oferecida pelas instituições no sentido de interromperem a violência chama a atenção para a necessidade de que tanto as famílias e a comunidade como os profissionais que atuam nessa área valorizem a presença dos dispositivos de proteção presentes na sociedade, bem como apoiem as iniciativas de qualificação do pessoal integrante das instituições. Faleiros (2008) é bem enfático ao afirmar que se tem que "parar o abuso e desenvolver a proteção" (p. 159).
A discussão contida nesse artigo apresenta contribuições práticas para a clínica da vítima do sexo masculino de violência sexual. A presença de preconceitos, de segredos, de não ditos na família dessas vítimas, bem como nos entornos sociocomunitários, atrasam ou impedem que esses meninos venham a ter vez e voz nos atendimentos clínicos. Ao se debruçar sobre o conhecimento dessas etapas de revelação-notificação-denúncia, o profissional pode ter uma melhor noção relativa ao tempo durante o qual a vítima ficou em compasso de espera (quando ainda não houve a revelação), ou possivelmente vivendo revitimizações sexuais (quando ainda não houve a notificação), ou permanece sem uma garantia de interrupção efetiva da violência (quando ainda não houve a denúncia).
A limitação do estudo permanece na constatação de que se torna muito difícil pesquisar em prontuários, porque eles têm lacunas em seus registros, o que poderia ser sanado com treinamento específico para os profissionais e sistematização de registros com protocolos validados. Em suma, cabe salientar que, para garantir o ciclo de proteção a crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual é de extrema importância que se reconheçam a distinção e relevância de cada uma das etapas do processo e que sejam cumpridas as devidas atribuições e responsabilizações que envolvem os atores da trama. Somente dessa forma será possível visibilizar o sofrimento do menino vitimizado que foi silenciado pelo estigma, ou que foi eventualmente encoberto por erros nos processos de trabalho.
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Recebido em 02 de setembro de 2018
Aceito para publicação em 08 de dezembro de 2018