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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.33 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2021

https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0033n02A05 

SEÇÃO TEMÁTICA - MATERNIDADE, VICISSITUDES DO DESENVOLVIMENTO INFANTIL E REDES DE APOIO

 

Vivência materna frente à surdez do filho sob a perspectiva do narcisismo na teoria psicanalítica

 

Maternal experience regarding the deafness of the child under the perspective of narcissism in psychoanalytic theory

 

Vivencia materna frente a la sordera del hijo bajo la perspectiva del narcisismo en la teoría psicoanalítica

 

 

Patrícia Cristine de Farias Guedes WanderleyI; Ana Rodrigues FalboII; Clarissa Maria Dubeux Lopes BarrosIII

IPsicóloga. Mestra em Psicologia da Saúde e Especialista em Psicologia Clínica-Hospitalar pela Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS). Psicóloga do Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (IMIP), Psicóloga do Hospital da Mulher do Recife (HMR) e Docente da Graduação de Psicologia da Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS), Recife, PE, Brasil. patriciaguedesw@hotmail.com
IIMédica. Doutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz). Coordenadora do Comitê de Capacitação Docente e do Programa de Iniciação Científica da Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS), e pesquisadora da Diretoria de Pesquisa do Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (IMIP), Recife, PE, Brasil. anarfalbo@gmail.com
IIIPsicóloga. Doutora em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Professora de Graduação em Psicologia e do Mestrado em Psicologia da Saúde da Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS), Recife, PE, Brasil. claramabarros@gmail.com

 

 


RESUMO

A deficiência auditiva é considerada uma das mais incapacitantes. A família de crianças deficientes enfrenta dificuldades inerentes à comunicação, aos conflitos, à afetividade e à integração infantil. Neste estudo, objetiva-se compreender como as mães vivenciaram a maternidade frente à surdez do filho, sob a perspectiva do narcisismo na teoria psicanalítica, num estudo qualitativo. Participaram deste estudo mães de crianças com surdez, em tratamento num serviço de implante coclear de um hospital de referência do Recife. Ao ser recebido pelas mães, o diagnóstico veio acompanhado de sofrimento emocional, impacto e fragilidade, afetando o narcisismo materno. Ainda assim, percebeu-se que as mães ficaram jubilosas ao apontarem a aquisição auditiva dos filhos possibilitada pelo implante coclear, indicando que este dispositivo pôde alinhavar o narcisismo materno, o qual, imaginariamente, recompõe o corpo. Enfatizamos que os profissionais de saúde precisarão respeitar o tempo lógico de elaboração pelo qual as mães passarão frente à surdez do filho.

Palavras-chave: surdez; narcisismo; psicanálise; maternidade; implante coclear.


ABSTRACT

Hearing deficiency is considered one of the most disabling. The family of disabled children faces inherent difficulties in communication, conflicts, affectivity, and child integration. The aim of this study was to understand how mothers experienced motherhood in the face of the deafness of the child, from the perspective of narcissism in psychoanalytic theory, in a qualitative study. The participants were mothers of deaf children undergoing treatment at a cochlear implant service at a reference hospital in Recife. The diagnosis was received by mothers with emotional suffering, impact and fragility affecting maternal narcissism. However, it was noticed that the mothers were jubilant to point to the children's auditory acquisition made possible by the cochlear implant, indicating that this device could nourish the maternal narcissism, which imaginatively recomposes the body. The health professionals will have to respect the logical time of elaboration, that mothers go through when facing the deafness of the child.

Keywords: deafness; narcissism; psychoanalysis; motherhood; cochlear implant.


RESUMEN

La deficiencia auditiva es considerada una de las más incapacitantes. La familia de niños discapacitados enfrentan dificultades inherentes a la comunicación, conflictos, afectividad, y la integración infantil. En este estudio se tiene como objetivo comprender como las madres tuvieron una vivencia de la maternidad frente a la sordera del hijo, bajo la perspectiva del narcisismo en la teoría psicoanalítica, en un estudio cualitativo. Participaron madres de niños con sordera en tratamiento, en un servicio de implante coclear de un hospital referido de Recife. El diagnóstico fue recibido por las madres con sufrimiento emocional, impacto y fragilidades afectando en el narcisismo materno. Todavía así, se percibió que las madres quedaron contentas al referirse a la adquisición auditiva de los hijos posibilitada por el implante coclear, indicando que este dispositivo podría tratar el narcisismo materno, el cual imaginariamente recompone el cuerpo. Los profesionales de la salud necesitaran respetar el tiempo lógico de elaboración que las madres pasarán frente a la sordera del hijo.

Palabras clave: sordera; narcisismo; psicoanálisis; maternidad; implante coclear.


 

 

Introdução

No mundo, estima-se que mais de 360 milhões de pessoas têm uma perda auditiva incapacitante. Desta população mundial, 32 milhões são crianças com menos de 15 anos (WHO, 2013). O Brasil tem 9,7 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência auditiva, segundo o censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2012). Para pessoas com deficiência do tipo severa ou profunda, pode-se recomendar o uso do implante coclear (IC), que é um dispositivo eletrônico que melhora a percepção dos sons e a compreensão da fala (Pinto, 2013; Bento et al., 2014; Momensohn-Santos et al., 2011).

Dentre todos os familiares envolvidos com a surdez, é a mãe que, em geral, se encarrega dos cuidados com seus filhos (Negrelli & Marcon, 2006). A temática da maternidade se apresenta nessa discussão, e é com ela que se pode perceber o percurso do tornar-se mãe, vindo de uma visão de que há um processo de constituição de uma nova identidade para a mulher que deseja a maternidade. Grandes mudanças fazem parte desse processo constitutivo da maternidade, além das inúmeras transformações biológicas (Ferrari & Donelli, 2010).

A partir do momento em que a mulher se percebe grávida, coexistem sentimentos ambivalentes a respeito da gestação, os quais incidem na mudança subjetiva da mulher/filha para a mulher/mãe (Rodrigues et al., 2013).

Tornar-se mãe é um processo que tem como origem a infância da mulher. Nesse processo, há um retorno inconsciente às etapas vivenciadas com sua mãe, desabrochando as fantasias e expectativas gratificantes ou frustrantes com relação à gravidez, ao parto, ao receber o bebê e a todo o seu desenvolvimento. De certo modo, um filho, como objeto de devoção e de amor, viria reparar a ferida narcísica dos pais naquilo que não foi possível de se realizar (Coelho & Wollmann, 2017; Escobar, 2012).

A mulher, ao se tornar mãe, fornece um contorno imaginário ao bebê a partir dos sentimentos e impressões que ela concede aos movimentos fetais (Ferrari et al., 2007). A gestante atribui características de personalidade ao bebê imaginário, as quais poderão ser facilitadoras na interação com ele, tornando-o alguém familiar. Essa capacidade ou habilidade materna é de fundamental importância para a constituição do eu da criança, que recebe um destino do Outro veiculado no dizer materno (Ferrari et al., 2007; Fleck & Piccinini, 2013).

Após a espera de um bebê que foi idealizado, os pais recebem em seguida ao parto um bebê real, que não é exatamente o representante da imagem sonhada, mesmo que seja saudável. Haverá um luto pelo bebê imaginário a ser vivenciado para que o bebê real possa ter seu lugar. Esse bebê que surge após o parto, inicialmente confrontado, desconstrói o bebê idealizado, por ser desconhecido. O laço entre o bebê e sua mãe será estabelecido se ela conseguir vivenciar o luto pelo bebê imaginado e elaborar sua perda. Gradualmente, a genitora se reestrutura psiquicamente e consegue investir no novo bebê (Lebovici, 1987; Ferrari et al., 2007).

Há na mulher gestante um renascimento narcísico do que ela foi para sua mãe e do que sua mãe foi para ela, como dupla identificação. Dito de outro modo, há uma revivência do amor de si, ou seja, de como foi recebido o investimento da sua própria mãe, e no momento da maternidade é esperado que esse investimento se volte ao seu bebê. O narcisismo é um conceito freudiano importante a ser conhecido e considerado no desenvolvimento psíquico de um indivíduo. Consiste numa etapa fundamental do processo de constituição do eu e implica em sintetizar em uma unidade (o eu) as pulsões sexuais, por meio de atividade autoerótica. (Freud, 1914/1974; Ferrari et al., 2006).

Diante de um filho com surdez os pais têm seus sonhos fragmentados, expectativas frustradas e incertezas quanto ao futuro, o que pode trazer impacto para a estrutura familiar e graves desorganizações psicológicas, contribuindo para que o desempenho de suas funções parentais se realize com alto nível de tensão. A depender dos recursos emocionais de enfrentamento, dos significados prévios acerca da surdez e do manejo com o diagnóstico pela equipe de saúde, os pais poderão ou não conseguir elaborar a nova realidade com o filho surdo (Vieira et al., 2012).

Existe resistência na procura por atendimento especializado quando há suspeita de deficiência auditiva, assim como negação, reverberando no atraso do alcance da avaliação e tratamento. Dessa forma, a intervenção adequada pela equipe de saúde multidisciplinar pode contribuir para um melhor enfrentamento dos diversos desafios colocados para o indivíduo surdo e seus pais (Cardoso & Vivian, 2017; Oliveira et al., 2013).

Caracterizado como uma prótese auditiva, que substitui o órgão sensorial de audição, o implante coclear tem sido indicado para casos de perda auditiva severa e profunda e onde o recurso de amplificação sonora individual apresentou-se limitado. Estudos retratam o uso do implante como um artifício fundamental nas condições de vida diária, com a melhoria na comunicação, independência e autoconfiança das crianças, bem como na dimensão afetiva, como melhora do estado de ânimo e vínculos positivos em relação ao outro (Yamada & Bevilacqua, 2012; Buarque et al., 2014). Há uma boa associação entre o uso do implante e o progresso do desempenho escolar, especificamente quanto ao resultado do teste de vocabulário (Colalto et al., 2017).

No cenário da surdez de um filho, um percurso se apresenta, desde a percepção de que seu filho não escuta, até a confirmação do diagnóstico. Considerando a causalidade psíquica como formada por dimensões inconscientes, os tempos e os modos de constatação de que a criança possui algum problema é muito singular a cada mãe. Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa que abordou aspectos psíquicos da mãe com base na teoria psicanalítica, relacionados com a questão do narcisismo materno possivelmente vinculados à surdez do filho. O interesse pelo tema adveio da prática e do envolvimento de uma das autoras com crianças surdas e seus pais. A experiência durante os atendimentos psicológicos e o confronto rotineiro com as dificuldades enfrentadas pela criança e sua família geraram questionamentos no sentido de buscar melhor compreender essas dificuldades, sobretudo a partir da vivência das mães, visando à prevenção de distúrbios psíquicos na criança.

 

Método

Foi realizado um estudo de natureza qualitativa, no qual se ofereceu um espaço diferenciado de escuta para as mães, procurando-se compreender os significados por elas atribuídos à vivência com a surdez de seus filhos. A pesquisa, apoiada na psicanálise, foi realizada em hospital escola na Região Metropolitana central do Recife, em um serviço direcionado ao implante coclear.

Participaram do estudo oito mães de crianças com surdez congênita, que eram convidadas a participar da pesquisa no momento em que levavam seus filhos para suas consultas regulares. As crianças deviam estar no momento do estudo com idade de até 9 anos e 11 meses, faixa etária estabelecida pela OMS para o conceito de criança. O fechamento amostral ocorreu pela saturação (Minayo, 2014).

Para a análise de dados foi utilizado o aporte teórico da análise de conteúdo em sua modalidade temática (Minayo, 2014).

 

Resultados e discussão

No quadro abaixo estão apresentados alguns dados referentes às mães participantes da pesquisa e às crianças implantadas.

 

 

A pesquisa envolveu 8 mães de crianças com surdez e que estavam em tratamento num serviço de implante coclear de um hospital do Recife. As participantes têm entre 27 e 39 anos, são moradoras do estado de Pernambuco, variando entre Recife, região metropolitana e interior do estado. Duas das participantes não tinham outros filhos, uma das quais estava grávida do segundo filho no momento da entrevista.

O estudo procurou desvelar as narrativas atribuídas pelas mães às suas vivências com seus filhos com surdez, procurando apreender seus sentimentos em relação às seguintes categorias: desejo/não desejo da maternidade e a surdez do filho; suspeita ou diagnóstico da surdez; confronto entre o bebê imaginário e o bebê real; sentimento de fracasso com o nascimento de um filho com deficiência; investimento libidinal transformador do corpo orgânico do bebê em corpo sexuado; suporte psicossocial entre pares e equipe de saúde e repercussão após o tratamento com implante coclear. O conteúdo será exposto por categoria e a partir de cada uma delas os recortes de fala, a reflexão dos autores e a articulação com o aporte teórico da psicanálise serão apresentadas.

Desejo/não desejo de maternidade e a surdez do filho

As narrativas maternas a respeito da concepção do seu filho surdo, para a maioria das participantes, foram marcadas por difíceis histórias de conflitos, no que toca às relações amorosas e familiares.

A participante Melodia falou com muita emoção sobre sua história, que, consequentemente, marca a existência de seu filho.

"[] mas assim, eu não conseguia imaginar ele não. Eu não parava pra pensar como ia ser, como ele ia ser eu não Eu queria, assim, eu não tive tempo porque nesse meio tempo [], então eu não curti a minha gravidez. [] E eu fiquei mais com ele assim, por curiosidade e por vingança, sabe, porque eu sabia que o outro, meu ex não gostava dele, tá entendendo [] Porque foi muito sofrida assim, eu na casa dos outros, oprimida, sem conhecer praticamente também o próprio pai do meu filho. []. Então eu não Eu amava o meu filho, mas eu não tive assim [] Eu acredito que também pode ter sido isso, que tenha acontecido pra ele poder nascer dessa forma, eu não sei Aí eu não sei se pode ter sido isso também, né, a ocasião de ter nascido dessa forma. Não sei." (Melodia)

Essa participante engravidou por conta de uma decepção amorosa e, por isso, passou também por problemas na relação com seus pais. Seu pai colocou-a "para fora de casa" apesar do apoio de sua mãe, o que fez Melodia decidir não resistir à expulsão, para não colocar o casamento dos pais em risco. Passou por problemas com a sogra depois de morar na casa dela, onde sentia-se "oprimida". Melodia, em seu relato livre e associativo da experiência dolorosa, faz um tropeço de fala, nos possibilitando pensar se deixou entrever uma revelação de falta do amor. "Então eu não Eu amava o meu filho". Outra constatação encontrada no discurso de Melodia foi a repetição do significante "não". Melodia indagou-se acerca de todo esse conflito vivido como interferência na origem da surdez do seu filho.

Seguimos com mais outro relato de sofrimento, uma história de concepção e existência no mundo bastante difícil. A participante Valsa descobriu a gravidez no momento em que decidiu separar-se de uma relação amorosa conflituosa, em seguida a desconfiança da paternidade e um pedido de aborto por parte de sua mãe, de quem recebia o sustento financeiro. Tem marcado em seu relato o abandono materno, sofrimento vivido diante de sua mãe e da ordem de aborto. Esse feto estava quase sem filiação, sem pertencer a uma linhagem, negado tanto pelo pai quanto pela avó materna. Valsa se ressentiu com sua mãe e se sentiu humilhada pelo pai da criança.

"Eu não esperei, aconteceu, eu sofri muito, fui muito humilhada, pelo pai dele que disse que não era filho dele, minha mãe também não aceitava, vivia com minha mãe, não aceitava. [] Foi bem conturbada mesmo minha gravidez, sabe aquela mãe maluca, que não pensava em nada, nada? Mas em nenhum momento pensei em tirar meu filho não. [] O que eu esperava da minha mãe não recebi." (Valsa)

O que pode representar a imperceptibilidade da sua própria gestação, já contando cinco meses, tempo suficiente para que haja mudanças corporais e aparecimento de movimentos fetais? A negação, o não desejo? Essa foi a história da participante Acústica, surpreendida com a notícia de ter virado mãe após três dias de um parto e de uma gestação que nem sabia que tinham existido. Foi confrontada por ter tido uma filha prematura de cinco meses.

Acústica foi internada sem saber o real motivo da perda de visão. Já havia procurado médicos, que também não se questionaram sobre uma possível gestação. A criança não foi notada por ninguém, até o momento crucial em que Acústica cegou temporariamente e um médico pôde assim fazer essa descoberta. No entanto, a vida do bebê foi negada novamente, e os médicos supuseram a morte do bebê. Indagada sobre seu desejo de tornar-se mãe, ela respondeu:

"Não. Foi um acaso, mas que, foi um acaso muito bom, porque eu não me vejo sem ela. [] Assim, no início foi difícil, porque, era como se eu dormi, acordei e ela tava lá. Aí no início quando eu acordei normal, que ela tava lá, eu não sabia nem se era minha, mainha falava, 'Acústica, tu teve uma filha', aí eu disse então eu quero ver. Aí pra me poder aceitar, eu tive que passar uma semana indo lá na UTI ver ela." (Acústica)

Podemos supor que a gestação dessa criança, no imaginário materno de Acústica, se deu durante suas visitas à UTI, circunstância ainda sob o clima de morte.

Experiências de desamparo e sentimentos que deslocam o sujeito de seu equilíbrio emocional podem reverberar na impossibilidade de mergulhar na gestação. No caso de Acústica, os investimentos para a constituição subjetiva da maternidade e do bebê como sujeito do desejo materno não existiram durante a gestação no corpo. Supomos que os investimentos maternos aconteceram enquanto a bebê estava na UTI, na incubadora, nascida aos 5 meses. Assim ela pode continuar a "gestação" por esta via, e se não tivesse ocorrido dessa forma seria deveras preocupante, pois como afirmaram Ferrari e Donelli (2010), "é de onde funcionam como matriz para o vínculo mãe-bebê ser construído, a relação face a face e o reconhecimento das demandas ser possibilitado". Essa discussão faz lembrar o que Dolto (1988) reconhece que o sujeito existe desde que o ser humano é fecundado, quando diz que há presente também um sujeito que se manifesta por desejos, escolhendo então sua própria vida. Esse sujeito psíquico não é aquele que emerge após o recalque, mas seria um proto-sujeito.

Segundo Aroux (1990), citado em Queiroz (2005), as percepções relativas a cada sistema das estruturas dos órgãos de sentido tanto dependem das estruturas genéticas, quanto da estimulação com o meio. Acrescenta Queiroz (2005) que o funcionamento das estruturas é submetido às leis fisiológicas e significantes. Segundo Laznik-Penot (1997), as capacidades sensoriais e perceptivas do feto e do recém-nascido pertencem às percepções que são também consideradas como traços mnésicos e, portanto, significantes. Desse modo, os significantes maternos, como substratos para os significantes do bebê, aproximam-se à máxima lacaniana de que o desejo é o desejo do Outro (Lacan, 1966/1998).

Suspeita ou diagnóstico da surdez

A suspeita e o diagnóstico da surdez do filho foram vivenciados como algo intenso e difícil de ser experienciado. São dois momentos diferentes, o tempo da suspeita e o da constatação da surdez. Se por um lado a intensidade da situação remete ao impacto, ao choque, à quebra do esperado, por outro, pode chegar à paralisia e negação, como expressam as falas de Música, Partitura e Harmonia:

"Foi difícil, foi um choque muito grande. [] Ele tinha cinco a seis meses, minha família já dizia que ele não ouvia. Mas eu não acreditava, por conta que ele era pequeno, aí quando foi com oito, nove, dez meses, um ano, foi que eu, veio cair por si e ver que ele não ouvia mesmo." (Música)

"Logo quando eu descobri, eu me senti procurei chão e não encontrei, mas [] quando eu fiz o BERA, aí confirmou. Mesmo assim, ainda não quis acreditar, eu ainda eu procurei outra opinião médica [] então eu firmei meus pés no chão e comecei a fazer o tratamento [] mas não foi fácil não [] Mas não pela rejeição, mas assim, é um caso que assim que a gente nunca espera, né, eu não esperava []." (Partitura)

"No começo quando eu descobri, é como se meu mundo tivesse desabado. É difícil, né. Porque você planeja que ter um filho, espera que ele venha perfeito. Não que meus filhos não sejam perfeitos, foi um choque para mim e para o pai. E eu não queria aceitar, né, não queria aceitar de maneira nenhuma. [] Com 2 anos e 6 meses percebi a surdez. Minha sogra falou que o pai falou tarde. Tava esperando ele falar. Minha mãe que disse que não escutava. Não suspeitava e mesmo se eu suspeitasse não queria aceitar." (Harmonia)

Os estudos apontam para o grande impacto que o momento do diagnóstico da surdez provoca na família, reverberando em desorganização, choque e sentimentos intensos sofridos. A família passa pela negação do diagnóstico e ambivalência entre a frustração e a felicidade, desespero e busca de tratamento (Asano et al., 2010; Momensohn-Santos et al., 2011; Negrelli & Marcon, 2006; Lebedeff, 2012; Yamanaka et al., 2010; Oliveira et al., 2013).

As mães estavam, na maioria dos casos, envolvidas no tratamento das crianças, mas, anteriormente ou paralelamente, precisam lidar com a frustração de suas expectativas e narcisismo frustrado ou ferido. Gestar um filho pode significar desejar ter um bebê perfeito, que os próprios pais imaginaram ter sido (Asano et al., 2010). A negação da percepção da surdez nos primeiros meses ou anos do filho e a dificuldade de aceitação do diagnóstico médico podem estar relacionados à dificuldade de aceitação da incompletude, da castração e da identificação. A sensação dos pais em gerarem seres incompletos pode remeter à sua própria incompletude.

Indaga-se que a negação encontrada nas narrativas na maioria das mães pode ter funcionado como película protetora, dando mais tempo às mães para possibilitar o investimento libidinal no filho, tão necessário para a constituição psíquica do bebê. Dito de outro modo, não saber de modo consciente sobre o diagnóstico levou as mães a apostarem na criança como sujeito, vívido por aprender e interagir sem muito empecilho. O tempo em que as mães não concluíram o diagnóstico pode ter sido exatamente o tempo de aproximação com a criança, e com o frescor de seu próprio narcisismo em um mecanismo de retroalimentação.

Em que medida a percepção do diagnóstico na fase inicial do bebê poderia ter ocasionado a afetação do narcisismo materno? Esse fato foi apontado no estudo de Asano et al. (2010), que considerou que o diagnóstico de deficiência auditiva em um filho constituiria uma situação de crise e a possível dificuldade no narcisismo parental. Em síntese, uma das saídas possíveis verificadas para que o narcisismo materno alimentasse a relação de investimento libidinal residiu no adiamento da confirmação do diagnóstico, bem como de sua negação.

Confronto entre o bebê imaginário e o bebê real

Como parte do processo da maternidade, toma-se a construção do bebê imaginário carregado de idealizações narcísicas para os pais, bem como alicerce para a necessária constituição psíquica do bebê e da nova subjetividade que aparece na maternidade. O bebê real permite desfazer essa idealização (Ferrari et al., 2007). No tocante à questão da deficiência, pergunta-se sobre o que pode acontecer nesse processo entre o bebê imaginário e o real, quando os bebês nascem com deficiência auditiva.

Apresentam-se abaixo fragmentos de falas de algumas mães:

"Até então o meu marido dizia - 'aí tu não tá aceitando a criança'. Eu dizia que não é a criança, é o problema, a deficiência. Não é ela uma pessoa surda é muitas vezes ela é isolada, por eu ter conhecimento no interior que as crianças não estudavam, que vivia fechada, muitas vezes era até trancada dentro de casa. E eu não queria isso." (Sinfonia)

"Aí quando foi com oito, nove, dez meses, um ano, foi que eu, veio cair por si, e ver que ele não ouvia mesmo. () Imaginava que ele ia ser perfeito. Igual toda criança." (Música)

"A diferença porque assim, você faz uma programação assim, tem uma gestação, né, aí você, não imagina se encontrar com uma criança deficiente, né, que tenha uma deficiência, não sei, seja qual a deficiência, né, porque você faz a programação todinha." (Partitura)

Percebe-se que Sinfonia tentou descolar a deficiência da criança, verbalizando claramente que não aceitava o problema e sim sua filha. Música mostrou ainda uma negação muito marcante para perceber a deficiência do filho, uma vez que o esperava "perfeito", tendo a perfeição ligada ao seu próprio narcisismo. Na fala da participante Partitura, ficou evidente o quanto esse encontro é emocionalmente desorganizador e requer um trabalho psíquico ainda maior para elaboração desse novo bebê.

Podemos resgatar com essas falas Mannoni (1999), quando diz que as mães são muito sensíveis a qualquer fato concernente à vida que saiu dela, de modo tal que buscam reivindicar a saúde do filho. Tal reivindicação pode vir primeiramente em torno de uma queixa, de não aceitação, junto à solidão que pode acompanhar esse percurso materno. Representações maternas são constituídas na gestação e transformadas a partir do nascimento do bebê. Nesse tempo ocorre uma produção de fantasias, impressões e sentimentos acerca do bebê enquanto feto e transformadas a partir do nascimento.

Imaginar o bebê durante a gestação interfere na habilidade regulatória para a interação com o filho, principalmente durante a interação face a face. Após o nascimento, outro bebê surge para a mãe, aquele que é confrontado com o bebê imaginário, o bebê real, o desconhecido que se apresenta. A mãe precisará elaborar a perda do bebê imaginário para conseguir investir precocemente na relação com o bebê real. Essa reestruturação psíquica é fundamental para a interação mãe-bebê (Fleck & Piccinini, 2013).

O que se observou foi a dificuldade dessas mães em serem confrontadas com a realidade de um bebê deficiente. A mãe pode não reconhecer o filho como seu, devido ao que toca o seu narcisismo, ao abandono dos seus ideais narcísicos. Precisará passar pelo luto do bebê imaginado para encarar o novo bebê com sua nova imagem, dando margem às novas fantasias daí decorrentes.

Sentimento de fracasso materno com o nascimento de um filho com deficiência

Nesta categoria estão contempladas as falas que demonstram o sentimento sobre a incapacidade materna de gerar um filho saudável e o impacto materno frente à deficiência:

"Mas não foi muito legal minha gravidez Eu acredito que também pode ter sido isso, que tenha acontecido pra ele poder nascer dessa forma, eu não sei" (Melodia)

"Aquela angústia, tá entendendo? Aquele desespero! Foi o tempo pior da minha vida, foi esse tempo assim que eu chorava dia e noite, uma coisa que eu não aceitava. Eu perguntava direto, meu Deus o que foi que eu fiz? Por que a menina veio sem ouvir? Por que tá acontecendo isso?" (Sinfonia)

"[] foi um choque para mim e para o pai. E eu não queria aceitar, né, não queria aceitar de maneira nenhuma." (Harmonia)

É possível compreender, com esses relatos, a associação de algum acontecimento ruim com ela própria durante a gravidez que pudesse ter mudado o desenvolvimento do feto, ocasionando a surdez. Na fala de Sinfonia, há um apontamento para a existência de um enigma, incógnita sobre a causa da surdez e a implicação da mãe nesse processo. Por trás da demanda materna de ter um filho ouvinte, há que se perguntar que caminhos, não tão claros ainda nesse momento inicial, poderão ser percorridos quanto ao "uso" pela mãe em sua demanda de amor, em ter um filho com deficiência. Que ganhos poderão existir com esse fracasso?

Nos casos relatados, pode-se perguntar se o desespero e a culpa, apontando para a imperfeição da mãe, leva também para o não desejo de ser mãe e o quanto a genitora identifica-se com o bebê, na transmissão de uma imperfeição, ou seja, "somos todos imperfeitos". O fracasso, nesse sentido, pode ser compreendido a partir do encontro com a deficiência, e pode desorganizar psiquicamente a própria mãe, pois o desconhecido torna-se materializado nas incertezas quanto à relação com um filho surdo, e, sobretudo, quanto à capacidade de gerar uma criança completa que não desorganizasse seus projetos. As mães expressaram angústia, revelando uma tragédia, um drama que perturba o processo de tornar-se mãe. Há que se perguntar que estratégias essas mães buscaram para se recompor nessa sua nova imagem.

Asano et al. (2010) sublinham que há uma quebra do narcisismo materno que advém de uma situação inesperada, a deficiência, nesse caso auditiva, apresentando assim um forte sentimento de fracasso diante dela.

Investimento libidinal transformador do corpo orgânico do bebê em corpo sexuado

Nesta categoria serão demonstradas falas que apontam para o investimento libidinal no corpo do bebê:

"Assim, foi muito lindo, ele mamando, mamando Aí daqui a pouco ele parou de mamar, aí olhou para mim, eu alisando assim a cabecinha dele, ele olhou pra mim, soltou o peito, assim e olhou pra mim, aí quando ele olhou pra mim, os olhos dele brilhou." (Melodia)

"Aí eu disse, que coisa mais linda meu Deus do céu, aí comecei a brincar com ele, aí ele olhou pra mim de novo, aí quando ele olhou pra mim, eu senti algo diferente dentro de mim []" (Melodia)

" sempre falo olhando para ele e ele me entende. Ele é o meu xodó… Ele é diferente assim em questão. Tem algo que ele tem que faz com que eu não desanime para as coisas. Não sei explicar. É diferente. Desde que ele nasceu." (Valsa)

Há nessas falas indícios da reorganização emocional do que foi possível para realizarem investimentos libidinais sobre o seu bebê, apesar de terem vivenciado dificuldades importantes que podiam ter resvalado na impossibilidade de cuidar. No momento da amamentação, Melodia tocava o corpo do seu filho de forma afetuosa e sentia que recebia o retorno do seu bebê, retroalimentando o investimento dela e fortalecendo esse vínculo.

O bom desenvolvimento do corpo orgânico do bebê não é suficiente para que haja a constituição do sujeito psíquico. Os adultos próximos ao bebê, aqueles que reconhecem a sua demanda, transformam seu corpo orgânico em um corpo sexuado mediante os investimentos libidinais dirigidos a ele. É por meio dos cuidados maternos que o bebê terá condições de abstrair noções de temporalidade, espaço, de sentir-se pertencente ao mundo. Viverá a ilusão necessária de ter criado objetos que o satisfazem, baseando-se no auxílio de um adulto que seja capaz de dar sentido às suas experiências sensoriais (Ferrari et al., 2006).

Quando um bebê nasce, mesmo que a termo, continua no campo da prematuridade psíquica e física, por depender exclusivamente de um Outro que satisfaça as suas necessidades e demandas expressas através de seu corpo, iniciando uma comunicação simbólica. Um Outro deverá atribuir sentido às suas demandas e interpretar que elas também são dirigidas a ele.

Suporte psicossocial entre pares e equipe de saúde

Nesta pesquisa, as mulheres e mães assumiram a maior parte do cuidado com as crianças, o cotidiano de suas famílias, portanto, as suas relações sociais podem ser alteradas pelo tempo dedicado ao filho deficiente. As mães estavam na função de cuidadoras das crianças. Além de se encontrarem fragilizadas emocionalmente diante do diagnóstico da surdez, com o atravessamento de seu narcisismo materno, estavam diretamente ligadas e imersas no tratamento do filho (Yamanaka et al., 2010).

"Aí isso, sabe eu construí outra família, as meninas que eu encontrei. Temos um grupo chamado 'famílias', o nome do grupo. A gente quando está passando por dificuldade, relacionamento, de família." (Valsa)

Nas falas de Sinfonia e Acústica fica explícito o apoio e o conforto necessários para que elas pudessem se reorganizar, mudar de perspectiva. Elas puderam contar com os profissionais especializados no atendimento ao filho com deficiência, recebendo orientações e informações sobre os cuidados com eles, conformando-se no suporte emocional.

"Aí eu encontrei com Doutora Flor, assim parece que seu problemas é… Deus fecha uma porta e abre uma janela, que as coisas mudam, né. Aí quando a gente conheceu Dra. Flor, Dra. Árvore, a equipe toda é como se confortasse você, desse aquela tranquilidade, 'não, tem jeito!'." (Sinfonia)

"E graças a Deus ele mandou pra o melhor lugar, né, que eu cheguei aqui e resolveu, graças a Deus, tá até hoje. Ela foi muito bem acompanhada, porque, você vê que, a equipe aqui do otorrino eles têm aquele carinho com as crianças. E eu agradeço a Deus todo dia por isso, que, até hoje." (Acústica)

As participantes expressaram como o suporte social da equipe de saúde, dos amigos e de outras mães ou famílias que passavam por situação semelhante, funcionaram como um recurso favorável ao enfrentamento das dificuldades, assim como visto por Barbosa et al. (2009). Foi possível para a participante Valsa reconstruir o significado de família com o encontro do suporte de outras mães. Essa participante foi marcada pela decepção de não ter tido apoio de seus familiares sanguíneos, mas ter encontrado nesses novos pares uma relação de família, antes não encontrada, que perdura até os dias de hoje.

Repercussão após o tratamento com implante coclear

Ao serem abordadas sobre o tratamento com o implante coclear e sua repercussão, as mães deixaram à mostra a mudança do tom da voz, embargada ao suspiro de alívio. Esse assunto surgiu de modo espontâneo em todas as entrevistas, emergindo como categoria empírica. Os benefícios do implante implicam em mudanças na relação da criança com a família e com as pessoas do mundo externo, uma vez que a capacidade de ouvir possibilita a inserção na linguagem oral e na comunicação (Asano et al., 2010; Kumar et al., 2017; Joulaie et al., 2019).

"Ela já fala bastante coisas, né, ela fala frases, tem a questão das frases, palavras curtas ela já consegue ler, então são coisas gratificantes, né, () E é o que eu tô vendo o resultado, só tô vendo resultados positivos." (Partitura)

"Hoje pronto, hoje eu consigo conversar com ela e entender ela normalmente, mas antes não. Mas hoje eu consigo, maioria das partes, grande parte do que ela fala, eu entendo, porque ela já fala agora bem mais explicadinho, né." (Acústica)

"Aí hoje olhe foi a melhor coisa do mundo foi essa cirurgia. Porque você fala e ele escuta. E já tá falando, né. Foi a melhor coisa do mundo." (Música)

"Eu não me sentia segura não. [] O pai dele também, ele dizia, [] 'Vamos deixar ele assim'. Aí eu dizia, é, é melhor deixar ele assim mesmo. [] Mas aí a gente resistiu muito. A gente resistiu mais de um ano. Não quero, não quero Acho que eu fui a mãe que mais foi pra psicóloga, []. Eu não queria, não queria" (Melodia)

"O pai no começo não queria fazer o implante. Se Deus fez ele assim. [] Hoje é uma maravilha eu posso chamar meu filho ele já vem até a mim, consegue falar algumas coisas." (Harmonia)

A maior dificuldade apontada pelas mães quanto à surdez foi a de não ser compreendida e de não poder compreender bem as demandas dos filhos. O estabelecimento de uma melhor comunicação a partir do implante coclear foi motivo de júbilo. Essa demonstração de grande alegria pôde colocar o implante como um elemento que viria a alinhavar o narcisismo materno, o qual tem uma função imaginária de recompor o corpo perfeito, completo, bem como a capacidade de incluir a interação mãe-bebê.

Foi unânime neste trabalho o testemunho positivo do tratamento com implante coclear, confirmando assim estudos que versam sobre as expectativas dos pais, demonstrando que, a partir do implante coclear, observou-se maior interação entre a criança e seus pais e aumento do repertório das mães na sua relação com os filhos (Kumar et al., 2017; Joulaie et al., 2019; Grecco et al., 2018).

O implante coclear pôde dar o estímulo ao nervo auditivo através dos eletrodos. Ainda assim, mais do que esse estímulo ao nervo, ressalta-se a grandiosidade do investimento libidinal que esse implante pôde resgatar naquilo que a comunicação transporta: o desejo materno em perceber-se no olhar, na voz e na palavra que carrega a emoção do nome mãe.

Pode parecer contraditório relacionar o júbilo materno ao implante, àquele que é responsável por fazer ouvir, tendo em vista que o ensurdecer pode ter sido uma saída de existência diante das complexas histórias de concepção. No entanto, pode-se ressaltar que a negação da surdez tornou possível a aproximação, o investimento no filho e a elaboração de sua maternidade. Quem sabe, como encontrado em algumas falas, o tempo entre o diagnóstico e a efetivação da implantação tenha revelado uma dificuldade de fazer seu filho ouvir sua própria história. Contudo, as competências comunicacionais que o implante coclear proporcionou foram o grande motivo de júbilo dessas mães. Elas puderam falar deles por meio de um novo alinhavo e reinvestimento narcísico.

Outro aspecto a considerar se refere ao tempo de elaboração psíquica frente ao impacto do diagnóstico de surdez. Garcez e Cohen (2011) nos lembram que Lacan remete a três tempos para conceituar o que é o tempo lógico, a saber: o tempo de ver, o de compreender e o tempo de concluir. Nessa perspectiva, podemos levantar a questão de que, entre o tempo de ver e o de concluir, há o tempo de compreender. Muitas dessas mães podem, num primeiro momento, se utilizar da surdez do filho numa via sintomática para ultrapassar esse tempo e chegarem a outra maneira de se utilizarem dessa surdez. O deslizamento significante "não ouvir" pode remeter o sujeito a outros significantes primordiais.

 

Conclusões

Nesta pesquisa foi possível conhecer a pré-história de cada bebê no que diz respeito à sua concepção, revelando narrativas com grande teor emocional e histórias com entrelaçamento de sentimentos complexos no tornar-se mãe. Revelou-se que as mães, em algum momento, resistiram ou negaram a suspeita da surdez do filho. Quando confrontadas com o diagnóstico médico, confirmando a deficiência auditiva, este foi recebido com muito impacto, sofrimento e desgaste emocional, mostrando como o diagnóstico pode vir a fragilizar o narcisismo materno. As mães esperam ter, imaginariamente, um filho perfeito que a faça reviver o seu próprio narcisismo e preencher a sua própria falta, mas fracassam.

Assim, conjectura-se que a não suspeita consciente da surdez pode mostrar essa dificuldade de aceitar o bebê real e que a negação proporcionou tempo para que a mãe pudesse investir libidinalmente e formar o vínculo com o seu bebê, etapa primordial para a constituição psíquica do sujeito. Quem sabe se coloca aqui uma estratégia inconsciente de recompor sua imagem e poder assim identificar-se com seu filho, aproximando-se dele. O suporte social e o encontro acolhedor com a equipe de saúde funcionaram como sustentação emocional, ajudando a mãe a elaborar o luto do bebê imaginado.

Por fim, apesar de inicialmente resistir à efetivação da cirurgia do implante coclear, que representaria a dificuldade de que seu filho ouça sua difícil história conceptiva, é possível perceber que o júbilo externado pelas mães ao apontar a capacidade que o filho tem de falar, proporcionada pelo implante, sugere que o implante coclear pôde funcionar como um reparo narcísico, talvez o implante tenha funcionado como uma forma de "alinhavar" ou substituir uma carência que vem do corpo, ligada às fantasias e idealizações de poder ter gerado alguém perfeito, como um dia pensou ter sido.

Para a realização de novas pesquisas, é possível vislumbrar a participação de outros sujeitos envolvidos nos cuidados de crianças surdas, assim como a própria criança, tendo em vista sua constituição psíquica e seu desenvolvimento. Considera-se que no âmbito da pessoa com deficiência há um campo complexo de implicações a serem escutadas para que possa ser proporcionado um cuidado mais integral. Há que se considerar que as mães de crianças com deficiência auditiva precisam de um tempo cuidadoso de elaboração do luto do filho perfeito e o reinvestimento libidinal na criança.

 

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Recebido em 13 de dezembro de 2019
Aceito para publicação em 01 de julho de 2020

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