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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.43 no.78 São Paulo jun. 2010
EDITORIAL
Ao introduzir a noção de espaço potencial, Winnicott revoluciona os paradigmas da psicanálise expandindo a própria concepção do trabalho psicanalítico. Seus conceitos de fenômenos transicionais e objetos transicionais, amplamente aceitos nas mais variadas correntes do pensamento psicanalítico, podem ser considerados as suas contribuições mais originais. Ao propor a noção de transicionalidade, a questão do paradoxo, da elaboração imaginativa da experiência corporal e, mais do que tudo, a ideia de que a criatividade é indissociada do “SER”, Winnicott oferece importantes aberturas para pensar a clínica psicanalítica contemporânea.
A sua concepção de criatividade está entranhada na origem do sujeito psíquico. O objeto transicional é o fundamento da contribuição de Winnicott para a experiência estética e cultural. É o primeiro uso do símbolo, a porta de entrada na cultura, a partir da qual toda atividade cultural subsequente se baseia. Os objetos culturais abrem possibilidades do ser, ampliando as representações que tecerão a identidade. Uma análise bem conduzida pode facilitar o encontro com esses objetos. Não basta estarem no mundo; é preciso um olhar que vê e que intui universos. Sem a experiência de ilusão, perde-se a condição para o gesto, para a busca, para o olhar apaixonado.
Ainda que existam controvérsias sobre o caráter inovador das ideias de Winnicott, certo é que uma psicanálise viva não pode prescindir de um aprofundamento reflexivo de suas contribuições.
Na Entrevista que abre este número do Jornal de Psicanálise temos o privilégio de levar aos nossos leitores a conversa com o dr. René Roussillon – reconhecido psicanalista e pensador francês – estudioso das ideias de Winnicott, que nos oferece esclarecimentos sobre seu conceito de transferência paradoxal e propõe variações na técnica psicanalítica no trabalho com determinados pacientes de difícil acesso. Ressalta uma escuta polifônica e polimorfa no fazer psicanalítico, que se abre também para a narração do corpo, daquilo que não pode ser dito. Reafirma a noção de uso do objeto em Winnicott e o valor de articular a resposta do objeto à compreensão dos processos do sujeito. Apresenta um interessante material clínico de uma paciente anoréxica, sugerindo uma analogia com o mito de Narciso e Eco, personagens de Ovídio. Expõe as diferentes leituras de Winnicott que ocorrem no contexto da psicanálise inglesa e francesa, destacando as controvérsias em torno dos conceitos de pulsão de morte e compulsão à repetição.
Em um artigo publicado na revista Trieb (2000), sobre a atualidade do pensamento e do projeto de Winnicott, diz Roussillon:
seu projeto implícito coloca sua reflexão no âmago dos esforços da epistemologia atual que procura pensar o vivente no processo de sua própria vida. Trata-se, com certeza, do ponto umbilical da iniciativa científica, do ponto limite desta, aquele que requer aceitar mover-se num pensamento paradoxal, aquele que requer uma extrema tolerância aos paradoxos inerentes a essa tentativa.
Ainda com referência ao transicional, afirma Roussillon em seu livro Le transitionnel, le sexuel et la réflexité (2008):
A transicionalidade não define uma nova qualidade estrutural, nem uma nova modalidade organizacional, ela abarca uma posição subjetiva e modalidades inter-subjetivas que tornam possível ou facilitam a introjeção da experiência subjetiva e das moções pulsionais que ela abriga. Os paradoxos que a constituem não são figuras da contradição nem formas de conflitualidade psíquica, eles representam as condições que todo sujeito deve aceitar para descobrir e apreender o universo da simbolização e as questões do desejo humano.
(tradução livre)
No Debate, os colegas Ester Sandler, João Frayze-Pereira e Reinaldo Lobo puderam mostrar de maneira viva como utilizam o conceito de criatividade na clínica e a maneira própria com que cada um articula os conceitos de Winnicott na sua identidade psicanalítica. Especial atenção foi dada à questão da criatividade na instituição e na formação do psicanalista. Foi possível também dialogar sobre as sutilezas envolvidas nas relações entre Psicanálise, Arte e Ciência.
Sabe-se que o instrumento básico de trabalho de todo analista é seu próprio psiquismo, que necessita de contínuo aprimoramento, de nutrientes para o desenvolvimento da sua função alfa, de sua capacidade de rêverie. Antonio Sapienza é um dos colegas da SBPSP que sempre nos alerta para o afinamento desse precioso instrumento. Diz Sapienza (2008):
Visando manutenção e favorecimento da geração de vida produtiva simbólica, também para o paciente poder pensar sua vida e angústias, sugere-se a frequência assídua dos analistas na leitura de poesia. Este hábito mental facilitará o encontro de linguagem metafórica como auxiliar valioso na função de desintoxicar nossos terrores talâmicos e subtalâmicos para assim colaborar no desfazimento de bloqueios mentais e encapsulamentos autísticos.
Sapienza cita Bion (1980): “A função alfa é semelhante à oferta de um ninho para que os pássaros que buscam significado consigam repouso restaurador”.
Tomamos essas ideias do colega Sapienza, e sabendo que Bion intencionava organizar uma antologia de poesias para psicanalistas, convidamos Paulo Sandler, estudioso e conhecedor profundo do pensamento de Bion, a resgatar as relações desse autor com a poesia e a literatura. O resultado é um texto rico e estimulante, quem sabe um estímulo para que cada analista possa fazer sua própria antologia.
Como analistas em constante “vir-a-ser”, estamos sempre envolvidos com a manutenção de uma prática viva e criativa em nossos consultórios e de uma relação de troca saudável com a instituição. Pensamos que é um bom momento para (re)considerarmos as condições que possibilitem o exercício criativo da psicanálise. Como seriam os espaços transicionais nas nossas sociedades? Que fatores favoreceriam a criatividade?
A conquista de “ser o que se é”, de encontrar um modo próprio e único de fazer psicanálise demanda um longo caminho, que envolve percorrer o pensamento dos autores psicanalíticos, já que “em nenhum campo cultural é possível ser original, exceto numa base de tradição. (Winnicott, 1975)
Convidamos os colegas a se aventurarem na leitura desses textos que oferecem significativas contribuições, nascidas do diálogo fértil da psicanálise com os variados produtos culturais: artes plásticas, poesia, música erudita e contemporânea… sem perder de vista nosso foco principal, a formação do psicanalista e o exercício pleno da clínica.
Apresentamos, a seguir, um esboço de uma pequena antologia que o corpo editorial vem desenvolvendo “para o sonhar, ou despertar, daqueles que cuidarão das narrativas, próprias e de outros”. (Roland Barthes)
A linguagem é uma pele, esfrego minha linguagem no outro… é como se eu tivesse palavras em vez de dedos, ou dedos na ponta das palavras.
Roland BarthesNinguém compreende o outro. Somos, como disse o poeta, ilhas no mar da vida; corre entre nós o mar que nos define e separa. Por mais que uma alma se esforce por saber o que é a outra alma, não saberá senão o que lhe diga uma palavra – sombra disforme no chão do seu entendimento.
Fernando PessoaMi mano acaricia tu sueño,
Y para mejor acariciarlo
Se convierte ella también en sueño.Pero entonces tu sueño
Se convierte en una mano,
Para poder corresponder a esa caricia.¿El amor será siempre
el cruce de una mano que va
y otra mano que vuelve?¿O será solamente
el paso de dos sueños que se cruzan?
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