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Journal of Human Growth and Development
versão impressa ISSN 0104-1282versão On-line ISSN 2175-3598
Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. v.16 n.1 São Paulo abr. 2006
PESQUISA ORIGINALRESEARCH ORIGINAL
Os significados da maternidade para mulheres cardiopatas e diabéticas com gravidez de risco+
The meanings of maternity to high-risk pregnant women with valvar heart disease and diabetes
Michele Peixoto QuevedoI; Ceci Mendes Carvalho LopesII; Fernando LefèvreIII
IDoutoranda do programa de Pós-graduação em Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Endereço para correspondência - Rua Castro Alves, 301, apt. 66 - CEP-01532-000 - Aclimação - São Paulo - SP - fone- (011) 96447686. mquev@hotmail.com
IIProfessora assistente doutora da clínica ginecológica -ICHC - Instituto Central do Hospital das Clínicas - FMUSP
IIIProf. Titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e chefe do Departamento de Práticas de Saúde Pública
RESUMO
O presente trabalho teve como objetivo identificar as representações sociais da maternidade em mulheres cardiopatas e diabéticas que, experienciavam uma gravidez de risco e que se encontravam hospitalizadas em um período da gravidez para monitoração da sua saúde e a do bebê. Os instrumentos da coleta de dados foram entrevistas semi-estruturadas, com roteiros previamente testados. Entrevistaram-se 20 gestantes, sendo 11 cardiopatas valvares e 09 gestantes com Diabetes mellitus tipo I e II, que se encontravam hospitalizadas no terceiro trimestre de gestação. Optou-se pelo estudo de corte qualitativo. O delineamento foi feito através da análise de discurso no qual o fator de interesse girou em torno dos aspectos da relação da gestante com a sua saúde, expectativas e significados da maternidade, bem como do filho, sentimentos em relação à gestação e ao bebê, e enfrentamento da hospitalização. Para a análise dos discursos, utilizou-se um instrumento de tabulação de dados qualitativos, com as seguintes figuras metodológicas: a Idéia Central, a Expressão-Chave e o Discurso do Sujeito Coletivo (DSC). Os resultados revelaram temas relacionados à forma como mulheres cardiopatas e diabéticas conviviam com doenças crônicas, aos significados da gravidez de alto risco em gestantes cardiopata e diabéticas e à experiência da gravidez de risco, incluindo a hospitalização e os medos das gestantes. Pode-se concluir que as representações surgidas em relação à maternidade e ao filho estão relacionadas ao imaginário feminino, mas que a presença de uma doença crônica pode influenciar também no significado da maternidade para esse grupo de mulheres.
Palavras-chave: Gravidez de alto risco. Cardiopatias valvares. Diabettes mellitus. Representação social. Doenças crônicas e gestação. Saúde da mulher.
ABSTRACT
The objective of the present work was to identify the social representations of maternity in women with Diabetes mellitus or valvar heart disease, who had high-risk pregnancy and were hospitalized during a period of the pregnancy for fetal and maternal monitoring. The instruments of data collection were semi-structured interviews whose scripts had been previously piloted. Twenty pregnant women were interviewed; 11 of them had valvar heart disease and 9 had Diabetes mellitus type I and II. All of them were hospitalized in the third trimester of gestation. The Discourse of Collective Subject methodology of analysis was adopted. The topics used to analyze the subjects' discourse were: aspects of the pregnant women's relationship to their health, expectations and meanings regarding maternity and the baby, feelings in relation to the gestation and the baby, and the ways they dealt with hospitalization. The results showed categories related to the way in which women with valvar heart disease or Diabetes mellitus lived with chronic illnesses; to the meanings of high-risk pregnancy for pregnant diabetic women and pregnant women suffering from valvar heart disease; to the experience of high-risk pregnancy, including hospitalization and the pregnant women's fears in relation to themselves and to their babies. It can be concluded that the representations that emerged in relation to maternity and the child were related to the feminine imagery, but that the presence of a chronic disease can also influence the meaning of maternity in this group of women.
Key Words: High-risk pregnancy; Valvar heart disease; Diabettes mellitus; Social representation; Chronic illness and pregnancy; Woman's health.
INTRODUÇÃO
A gravidez é um processo biológico que tem repercussões sociais, econômicas, emocionais, psicológicas e sexuais para a mulher. Gerar um filho é uma das tentativas humanas de superar uma existência efêmera, podendo também significar a busca da imortalização; sendo assim, ter um filho pode ser visto como a mais clara recusa da morte1.
Por definição uma gravidez é considerada de alto risco quando o risco de doença ou de morte antes ou após o parto é maior que o habitual tanto para o concepto quanto para a mãe. A classificação dos fatores de risco são determinados de acordo com o grau de risco. O médico deve realizar um avaliação para determinar se a gestante apresenta condições ou características que a tornam (ou seu feto) mais propensa a adoecer ou morrer durante a gestação2.
A mulher identificada como grávida de alto risco apresenta dificuldades para as adaptações emocionais exigidas pelo novo papel, acrescendo-se várias outras emoções. Em decorrência do fator de risco, surge o medo real em relação a si própria e ao seu filho, ao que está ocorrendo com seu corpo, ou ao temor de que seu filho nasça com anormalidades. Soma-se a todos esses fatores a perda de controle em relação à gravidez e a si mesma3.
A gravidez de alto risco associada à hospitalização prolongada é considerada um estressor psicossocial. A internação constitui trauma importante para a gestante e sua família. Grande parte das angústias destas gestantes se refere aos outros filhos e os cuidados de sua casa. Há também, apesar de a lei protegê-las, o medo de perder o emprego, o trabalho que muitas vezes sustenta a família 3,4,5
Segundo Almeida6, doença crônica foi definida na PNAD como uma afecção de saúde que acompanha o indivíduo por longo período de tempo, podendo apresentar momentos de piora ou melhora sensível.
A doença crônica pode representar uma ameaça aos projetos de vida das pessoas portadoras das mesmas. Os indivíduos com este tipo de doença são forçados a manter controle rigoroso no seu estilo de vida, além da vigilância constante sobre os sinais e sintomas que, se não controlados, podem levar a situações graves e até à morte7
Dentre as doenças crônicas que aumentam a probabilidade de risco durante a gestação estão a cardiopatia e o Diabetes mellitus, onde há a necessidade da hospitalização para a manutenção da saúde da mãe e do feto.
São muitos os tipos de doenças valvares ou valvopatias. Suas causas e conseqüências são variáveis em função do grau de lesão anatômica, do tipo de valva comprometida, do predomínio da disfunção e da intensidade de fatores associados, tais como disfunção miocárdica e a hipertensão arterial pulmonar. A valvopatia pode evoluir clinicamente de forma assintomática ou oligossintomática por longo período de tempo, podendo também manifestar precoce e significativa sintomatologia ou exibir progressão dos sintomas em período variável de tempo. Os sintomas mais observados nas disfunções valvares são: cansaço, tonturas, palpitações, irregularidades nos batimentos cardíacos e precordialgias8.
Do ponto de vista emocional, o coração é um órgão mitificado pela sociedade, sendo representado socialmente como fonte de vida. O conhecimento de estar enfermo do coração traz implícito o medo de "morrer de repente", o que altera profundamente a atitude e os planos de vida do indivíduo9,10.
A valvopatia é considerada uma doença crônica, na qual os pacientes têm de renunciar às suas atividades rotineiras e, algumas vezes, a certos tipos de trabalho, além de necessitarem de cuidados constantes e restrições11.
A mulher cardiopata que engravida possui uma vontade de lutar pela vida e de superar obstáculos através da busca do filho, mesmo em circunstâncias que envolvam perigo para a própria saúde12.
Ser mãe pode ser a melhor oportunidade para exercer um papel social altamente valorizado. A gravidez em mulheres cardiopatas é o eixo determinante capaz de sustentar e consolidar a identidade feminina e cumprir um papel social feminino no qual se baseia a maternidade. O não cumprimento desta realização acarreta frustração dos sonhos e das fantasias femininas13.
Os aspectos psicológicos mais encontrados no binômio cardiopatia e gravidez são o medo de intercorrência, tais como: medo de não agüentar a gestação, medo do coração não agüentar o trabalho de parto e medo de morrer. Para a mulher cardiopata, a possibilidade de morte está mais próxima em face do significado que o coração possui. A ansiedade é também um outro aspecto psicológico observado na mulher cardiopata que engravida. Esta se torna mais vulnerável e mais dependente, sem falar na angústia de separação devido às constantes internações para monitoração da gestação. A preocupação com que o filho possa nascer cardiopata também aparece com bastante freqüência, pois a mulher apresenta fantasias a respeito da possibilidade de transmitir sua cardiopatia ao bebê14.
O Diabetes mellitus é considerado uma doença crônica degenerativa universal que acomete 39 milhões de indivíduos nas Américas, atingindo os índices de 7,6% da população adulta brasileira. Esta patologia caracteriza-se pela presença de hiperglicemia causada pela redução da produção ou atividade da insulina e, como conseqüência, a glicose proveniente da alimentação ou da produção hepática não é metabolizada adequadamente e se acumula nos tecidos do organismo15.
Em relação aos fatores psicológicos possivelmente envolvidos no Diabetes melittus, destaca-se o estresse.
Na grande maioria dos pacientes diabéticos, o receio da hipoglicemia é muito comum, e pode se transformar numa fobia. A propósito de fobias, pode-se destacar também a fobia por agulhas. Outros aspectos psicológicos relacionados ao Diabetes melittus dizem respeito à auto-imagem e à auto-estima. Entre os pacientes diabéticos foram identificados níveis mais baixos de estruturação egóica do que em pessoas sadias, e escores para depressão, ansiedade, auto-imagem e baixa auto-estima mais elevados16.
A associação entre diabetes e gravidez é considerada condição de risco. Trata-se de doença com início insidioso, difícil controle glicêmico e que pode repercutir negativamente sobre a saúde materna e do feto. Contudo, a disponibilidade de insulina exógena vem mudando o prognóstico materno e perinatal: a mortalidade perinatal caiu de 65% (em 1920) para os atuais 2 a 4%, na maioria dos centros terciários17.
Observa-se freqüentemente que a auto-estima das gestantes diabéticas encontra-se abalada. Trata-se de um importante golpe narcísico para as mães saberem que seus problemas de saúde podem comprometer seus bebês18.
Pela escassez de estudos nacionais relacionados ao tema e à população pesquisada, e tendo em vista a importância destes conhecimentos para a área da saúde pública, investigou-se no presente trabalho a representação da maternidade em mulheres cardiopatas e dibéticas.
MÉTODO
O estudo realizado foi do tipo exploratório e descritivo de corte qualitativo. A população de estudo foi formada por gestantes cardiopatas e diabéticas hospitalizadas na enfermaria de gravidez de alto risco para monitoração da gravidez. A amostra selecionada foi formada por 20 gestantes (11 cardiopatas e 9 diabéticas). O critério para a seleção foi que as mesmas tivessem entre 19 e 39 anos, que a doença não tivesse sido diagnosticada nesta gestação, ou seja, que fosse anterior a esta e que a gestante não tivesse sido hospitalizadas nas gestações anteriores (no caso de gestantes multíparas). Em relação às gestantes diabéticas, as mesmas deveriam ser portadoras de Diabetes mellitus tipo I ou II ( excluíram-se as gestantes com Diabetes gestacional). As gestantes cardiopatas selecionadas tinham de possuir o diagnóstico de cardiopatia valvar (adquirida), excluindo-se as congênitas e os outros tipos de cardiopatia.
A coleta de dados ocorreu mediante a técnica da entrevista semi-estruturada, com as alterações realizadas após o pré-teste. Os discursos das entrevistas foram registrados por meio de um microgravador com fitas magnéticas. As entrevistas foram desenvolvidas no período de agosto a dezembro de 1999 (período previamente delimitado por orientador e orientanda da dissertação), e todas as gestantes que deram entrada no Hospital Auxiliar de Cotoxó neste período e que se adequavam ao estudo foram selecionadas.
A entrevista foi formada por seis perguntas. Os temas em torno dos quais giraram as entrevistas foram: saúde da mulher cardiopata e diabética; experiências com a gravidez de risco; significados da maternidade e do filho e preocupações da gestante de alto risco em relação a si mesma e em relação ao bebê que está esperando.
Para o tratamento dos dados, empregou-se a técnica de análise temática de discurso. Foram utilizadas três figuras metodológicas: a Idéia Central, as Expressões-Chave e o Discurso do Sujeito Coletivo.
Segundo os criadores desta metodologia19, a Idéia Central pode ser entendida como a síntese do conteúdo discursivo explicitado pelos sujeitos, estando presentes nas afirmações, negações e nos juízos de valor a respeito da realidade institucional bem como do contexto social no qual os sujeitos estão envolvidos.
Os trechos selecionados dos discursos que servem para ilustrar as Idéias Centrais são definidos como Expressões-chave. A literalidade do depoimento deve ser aqui resgatada, sendo as mesmas consideradas uma espécie de "prova discursivo-empírica" da "verdade" das Idéias Centrais.
O Discurso do Sujeito Coletivo (DSC) é uma estratégia metodológica que objetiva tornar mais clara uma dada representação social. É uma forma discursiva de apresentação e de tratamento dos depoimentos que compõem o substrato de uma representação social. Em síntese, o DSC é como se o discurso de todos fosse o discurso de um só20,21.
Os procedimentos para a organização dos discursos foram os seguintes: com os discursos gravados em fitas, procedeu-se à transcrição literal dos mesmos. A transcrição e organização dos discursos foram feitos na mesma ordem em que foram realizadas as entrevistas. Na segunda etapa, com os discursos já transcritos, selecionou-se em cada uma das respostas das entrevistas as partes mais importantes (grifando-as) e colocando-se ao lado das mesmas o que se chamou de Idéia Central provisória. Após esta etapa, transcreveram-se estas Idéias Centrais provisórias com suas respectivas Expressões-Chave referentes a cada entrevista de cada um dos sujeitos participantes. Na terceira etapa, as Idéias Centrais provisórias foram agrupadas em torno de um mesmo tema ainda provisório, e após mais algumas leituras, foram criadas as Idéias Centrais permanentes, originando estas, por fim, os grandes temas. O passo seguinte consistiu na transformação e redução da listagem de várias Idéias Centrais e de várias Expressões-Chave numa só, num discurso encadeado, como se houvesse apenas um indivíduo falando que fosse portador de um discurso-síntese de todos os indivíduos que compõem um dado sujeito coletivo.
RESULTADOS
Para a apresentação dos resultados, foi criado um quadro-síntese formado pelas Idéias Centrais, que por sua vez deram origem aos principais temas desta pesquisa. Segue abaixo estes quadros:
Para ilustrar e exemplificar a forma como se chega ao DSC, vamos utilizar o tema 2 - relação entre saúde e gravidez:
Tema 2 - relação entre saúde e gravidez.
Idéia central 1 - felicidade em estar grávida melhorou os problemas de saúde.
Expressão - chave utilizada
A5 - "... Mas também por causa da minha gravidez, eu tô muito feliz! Eu acho que todos os meu poblema sumiram com isso, então, melhorou bastante né!. Minha gravidez né, eu fiquei muito feliz né, e aí como que meus poblema sumiram, sumiram tudo de vez, né?!."
DSC 1
Para a formação deste DSC houve a participação de uma gestante cardiopata.
"Mas também por causa da minha gravidez, eu tô muito feliz! Eu acho que todos os meu poblema sumiram com isso, então, melhorou bastante né?!. Minha gravidez né, eu fiquei muito feliz né, e aí como que meus poblema sumiram, sumiram tudo de vez, né?!."
Tema 2 - relação entre saúde e gravidez
Idéia central 2 - gravidez piorou a saúde.
Expressões - chave utilizadas
A8 - "Bom! A minha saúde antes da gestação era uma saúde normal né?!, porque eu num tinha sérios problemas como eu tô tendo agora na gravidez... Antes eu considerava ela um problema normal, porque num é, não é uma doença, é um probleminha, eu considero assim, um problema, então, a diferença é essa agora, na gravidez tá sendo um pouco dificultoso..."
A11 - "É assim, num é nem boa, nem ruim, porque qualquer coisa que eu faço, devido agora eu tô grávida cansa. Se eu ir pra feira eu canso, se eu descer uma ladeira, subir uma escada eu canso, pra fazer as coisa em casa eu canso, e só é ruim por isso porque eu canso muito, dá muita falta de ar, dor no peito. Algumas vez que eu esforço demais, eu tenho hemorragia... Dessa vez que eu precisei ficar internada, porque eu tive hemorragia e a hemorragia veio mais forte..."
A14 - "A minha saúde, até eu num saber que tinha de fazer esses controle, até num ponto antes deu vim pra qui era boa né?!, porque eu comia de tudo, num tinha esses controle..."
A17 - "... E quando eu fiquei grávida, ficou pior..."
A20 - "... Com a gravidez teve uma alteração enorme..."
DSC 2
Para a formação deste DSC houve a participação de três gestantes cardiopatas e 2 gestantes diabéticas.
"A minha saúde, até eu num saber que tinha de fazer esses controle, até num ponto antes deu vim pra qui era boa. Era uma saúde normal, porque eu comia de tudo e, num tinha esses controle.
Antes da gestação eu considerava ela (a doença) um problema normal, porque eu num tinha sérios problemas como eu tô tendo agora na gravidez, então, a diferença é essa, com a gravidez teve uma alteração enorme, porque qualquer coisa que eu faço cansa. Se eu ir pra feira eu canso, pra fazer as coisa eu canso, e só é ruim por isso por que eu canso muito, dá falta de ar, no peito. Algumas vez que eu esforço demais, eu tenho hemorragia, e dessa vez eu precisei ficar internada, porque a hemorragia veio mais forte, então, por causa disso agora, tá sendo um pouco dificultoso."
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Examinando as falas dos sujeitos, extraiu-se dos mesmos as representações sociais acerca da gravidez de alto risco em mulheres cardiopatas e diabéticas hospitalizadas para monitoração da gravidez.
A principal indagação envolvida neste estudo disse respeito a: Por que mulheres portadoras de doenças crônicas, às vezes com risco para a própria vida, desejam e decidem engravidar?
Assim, a orientação básica deste trabalho foi investigar a representação social (o significado) da maternidade para mulheres com doenças crônicas (cardiopatia ou Diabetes mellitus) que experienciavam uma gravidez de risco. Os percursos por elas relatados nos encaminharam a alguns pontos de discussão.
As representações são construídas na interseção entre significados socialmente construídos e os significados pessoais atribuídos à maternidade (neste trabalho, maternidade associada à doença crônica).
Os significados que a doença assume na história de vida de cada uma das gestantes desta pesquisa têm implicações na vida cotidiana das mesmas. Deste modo, foi possível visualizar implicações entre conviver com uma doença crônica (cardiopatia ou Diabetes mellitus) e os comportamentos relativos ao desejo e a escolha da maternidade na presença da doença.
No decorrer da análise das entrevistas, foi possível perceber o quanto a experiência com a doença (cardiopatia ou Diabetes mellitus) é sofrida e difícil de ser suportada pelos sujeitos desta pesquisa, seja pelos sintomas físicos, pelos incômodos causados pelo tratamento, ou pelas limitações na vida social que a doença provoca. Para lidar com este sofrimento, faz-se necessário um grande investimento afetivo e cognitivo. Possivelmente devido a estes investimentos emergiram dos discursos dos sujeitos a multiplicidade de significados para a cardiopatia e o Diabetes mellitus.
No quarto tema da discussão dos resultados - SIGNIFICADO DA MATERNIDADE E DO FILHO - , as representações estão relacionadas ao imaginário feminino, mas a presença de uma doença crônica parece influenciar no significado da maternidade para esse grupo de mulheres.
O imaginário feminino pode ser visto como constituído por imagens sobre a maternidade, imagens que são engendradas por significações psicológicas e sócio-culturais configuradas durante o seu desenvolvimento.
Pode-se observar que, na cardiopata e na diabética, ocorre uma exacerbação dos conflitos relacionados à maternidade e à feminilidade em decorrência dos riscos de uma gravidez associada à doença crônica.
Nem a cardiopatia nem o Diabetes mellitus impediram estas mulheres de engravidarem, mesmo quando havia uma "contra-indicação" médica. Isto parece associar-se à necessidade íntima de se ater ao papel feminino de procriar que, entre essas pacientes, parece integrar-se ao seu modelo de mulher. A gravidez, para elas, cria a impressão de que é possível superar obstáculos.
Pode-se hipotetizar que algumas pacientes negaram a gravidade de sua doença, e por isso engravidaram. O nascimento de um filho parece confirmar serem elas saudáveis e normais.
Por outro lado, também se pode hipotetizar que, apesar de ter existido negação em alguns casos, o fato destas mulheres encontrarem formas positivas de enfrentamento para lidar com a doença, tornem-nas capazes e fortalecidas para enfrentar as dificuldades impostas por uma gestação de risco.
Outros pontos de discussão que merecem destaque são: hospitalização durante a gestação, a experiência da gravidez de risco (em relação à forma como ocorreu a gravidez) e os medos em relação ao bebê e a si mesma.
Pelos resultados observa-se que a gravidez aconteceu tanto de forma acidental como intencional. As gestantes deixam claro o quanto a presença de uma doença crônica pode influenciar em seus sentimentos para com a gestação e o futuro bebê.
Outro ponto a ser destacado diz respeito às dificuldades das gestantes de alto risco em relação à hospitalização. De uma maneira geral, o período de internação foi percebido como muito difícil para as gestantes; porém, mesmo demonstrando intenso sofrimento ante às situações vivenciadas, as gestantes mostraram mecanismos de adaptação ao ambiente hospitalar.
As gestantes revelaram sentimentos como medo, angústia e ansiedade em relação ao bebê que está por nascer. Outros sentimentos em relação ao papel materno e medo da hora do parto também tiveram destaque.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode-se concluir que há uma multiplicidade de significados para a maternidade na mulher portadora de cardiopatia e Diabetes mellitus, mas que dois grandes grupos de significados para a maternidade associada à doença crônica podem ser destacados: a) significados relacionados com o senso comum, com o imaginário feminino e que independem do quadro clínico apresentado pela gestante; b) significados que sofrem influência do quadro clínico e que são comuns às gestações de risco.
Em relação aos primeiros, destacamos as idéias centrais comuns às gestações de risco em mulheres cardiopatas e diabéticas e às gestações sem risco: IC1- A maternidade é uma experiência positiva e de grande responsabilidade; IC2 - A maternidade é a realização de um sonho; IC3- Ser mãe tem dois lados; IC4 - Filho tem um significado especial por ser menino; IC5 - Marinheira de primeira viagem (primeiro filho); IC6 - Filho de mãe solteira (pai não assumiu a criança); IC7 - Esse filho veio ensinar a mãe a ser independente (filho-professor).
As idéias centrais que representam os significados da maternidade e do filho em gestantes cardiopatas e diabéticas foram: IC8 - Filho vai cuidar dos pais mais tarde; IC9- Filho tem um significado especial por causa das dificuldades que a mãe está passando na gestação; IC10 - Este filho será o último; IC11- Filho especial por ter tido perdas anteriores.
As quatro primeiras idéias centrais (presentes nas respostas do coletivo) apontam para a introjeção e reprodução do modelo cultural em relação ao significado da maternidade e do filho. Estas idéias, bem como seus DSC's explicitam o peso deste modelo para essas mulheres, bem como a intensidade de sua internalização.
A IC5 se refere ao significado das experiências de tornar-se mãe do primeiro filho. Já a representação social do DSC da IC6 aponta para a situação na qual a gestante, ao engravidar, foi abandonada pelo pai da criança. Em relação a IC7, a mesma aponta para a situação na qual o filho tem uma missão na vida da mãe - fazer com que ela amadureça.
Por meio da análise da IC8 percebe-se uma mescla entre disponibilidade e ressentimento pela renúncia às atividades habituais em decorrência da necessidade do repouso gestacional.
A partir da IC9, as gestantes destacam que a experiência com esse filho (por se tratar de uma gestação de risco) está fazendo as mesmas a pensarem na maternidade e no filho por ângulos diferentes.
Pela IC10, percebe-se uma limitação da quantidade de filhos por problemas de saúde apresentados pela mãe, e talvez por esta limitação, este filho torne-se tão especial. Nestes casos, parece que receber o ultimato de que não poderá mais ser mãe, faz com que essas mulheres sejam obrigadas a entrar em contato com mais uma limitação em suas vidas, impostas pela doença - a limitação reprodutiva.
A IC11 traz o significado do filho como sendo algo especial. O sentido da maternidade aponta para a situação na qual houve abortos anteriores, sendo, portanto, esta gestação cercada de muita expectativa.
Percebeu-se que a presença de uma doença crônica pode influenciar os sentimentos de mulheres cardiopatas e diabéticas em relação à gravidez e o futuro bebê. Sentimentos tais como medo, angústia e ansiedade foram observados nas gestantes cardiopatas e diabéticas.
Este estudo apresenta um volume de informações do qual vários ensinamentos, sobre o contigente das gestantes estudadas, podem ser retirados para a investigação de meios que tornem mais eficiente a intervenção de profissionais de saúde nos cuidados às gestantes cardiopatas e diabéticas. Com isso, sugerem-se algumas recomendações direcionadas aos profissionais de saúde que trabalham com gestantes cardiopatas e diabéticas:
√ O manejo da gravidez x doença crônica (cardiopatia ou Diabetes mellitus) demanda a construção de uma assistência que assegure a essas mulheres informações consistentes que possam subsidiar escolhas conscientes no âmbito reprodutivo;
√ Criação de espaços de escuta que acolham e propiciem a elaboração dos significados produzidos por cada mulher para os desejos e riscos implicados nesta gestação;
√ Necessidade de que os profissionais de saúde reflitam sobre seu papel, tentando eliminar a postura paternalista e autoritária;
√ Formação de uma equipe multidisciplinar que trabalhe de forma homogênea e sintonizada, contemplando, assim, a assistência à gestante de alto risco de forma mais integrada.
Acredita-se que este trabalho, apesar das limitações, possa oferecer contribuição àqueles que, dentro da instituição de saúde, pretendam atender a mulher gestante em sua integralidade.
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Recebido em 23/11/2005
Modificado em 20/12/2005
Aprovado em 01/02/2005
+ Artigo baseado na dissertação de mestrado "Entre o sonho e o risco: Os significados da maternidade para mulheres cardiopatas e diabéticas com gravidez de risco", 2001, Faculdade de Saúde Pública da USP.