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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282versão On-line ISSN 2175-3598

Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. v.19 n.2 São Paulo ago. 2009

 

PESQUISA ORIGINAL ORIGINAL RESEARCH

 

Gênero, saúde materna e o paradoxo perinatal

 

Gender, maternal health and the perinatal paradox

 

 

Simone Grilo Diniz

Departamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo

 

 


RESUMO

Nos últimos 20 anos, houve uma melhoria de praticamente todos os indicadores da saúde materna no Brasil, assim como grande ampliação do acesso aos serviços de saúde. Paradoxalmente, não há qualquer evidência de melhoria na mortalidade materna. Este texto tem como objetivo trazer elementos para a compreensão deste paradoxo, através do exame dos modelos típicos de assistência ao parto, no SUS e no setor privado. Analisaremos as propostas de mudança para uma assistência mais baseada em evidências sobre a segurança destes modelos, sua relação com os direitos das mulheres, e com os conflitos de interesse e resistências à mudança dos modelos. Examinamos os pressupostos de gênero que modulam a assistência e os vieses de gênero na pesquisa neste campo, expressos na superestimação dos benefícios da tecnologia, e na subestimação ou na negação dos desconfortos e efeitos adversos das intervenções. Crenças da cultura sexual não raro são tidas como explicações 'científicas' sobre o corpo, a parturição e a sexualidade, e se refletem na imposição de sofrimentos e riscos desnecessários, nas intervenções danosas à integridade genital, e na negação do direito a acompanhantes. Esta 'pessimização do parto' é instrumental para favorecer, por comparação, o modelo da cesárea de rotina. Por fim, discutimos como o uso da categoria gênero pode contribuir para promover direitos e mudanças institucionais, como no caso dos acompanhantes no parto.

Palavras-chave: gênero; saúde sexual e reprodutiva; cuidado baseado em evidências; SUS; saúde materna; humanização.


ABSTRACT

In the last 20 years there was an improvement in access to services and in almost all maternal health indicators in Brazil. Paradoxically, there is no evidence of improvement in maternal mortality. This paper aims to help to understand this paradox, by analyzing the typical models of care in childbirth in public (SUS) and private sectors; the proposals for change based on evidence and on women's rights; and the conflicts of interest and resistance to change. We review the gender biases in research and in programming, especially the overestimation of the benefits of technology, and the underestimation, or the denial, of adverse effects and discomforts of interventions. Beliefs based in sexual culture are often accepted as 'scientific' explanations of the body, sexuality and the birth physiology, and are reflected in the imposition of unnecessary risk and suffering, in practices that are harmful for genital integrity, and in the denial of the right to companions in delivery. This 'pessimization of birth' is instrumental to promote, comparatively, the model of routine section. Finally we describe how the use of gender as analytical category can contribute to promote rights and cultural changes, as in the case of companions in childbirth.

Keywords: gender; sexual and reproductive health; evidence-based care; SUS; maternal health; humanization.


 

 

INTRODUÇÃO

A gravidez e o parto estão ficando mais seguros?

No Brasil, os dados mais recentes sobre mortalidade materna disponíveis no DATASUS indicam uma razão de 74.68 mortes por 100.000 nascidos vivos (nv) em 20051, já incluindo o fator de ajuste estimado em 1.4, calculado em 2002 para corrigir o subnotificação de mortes maternas entre as mortes das mulheres da idade reprodutiva (10-49 anos)2.

A morte materna é um evento raro, e mesmo em locais com taxas elevadas, sua medida pode ser difícil e complexa. Uma vez que os números são pequenos, não é simples detectar tendências da melhoria ou da deterioração3. Mas se nos perguntarmos "A gravidez e o parto estão ficando mais seguros para as mulheres no Brasil?" a resposta seria, independentemente da metodologia utilizada, que não há nenhuma evidência da melhora.

Para enfrentar o desafio de promover a maternidade segura, o governo brasileiro lançou um Pacto Nacional Para a Redução da Mortalidade Materna e Neonatal em 2004, com o objetivo de atingir a Meta do Milênio 5, uma redução a 75% na mortalidade materna e neonatal em 2015 em comparação com 1990. O pacto integra estratégias nacionais, incluindo o cuidado profissional durante a gravidez, o parto e o pós-aborto para todas as mulheres; treinamento dos profissionais de saúde em Seminários de Práticas Obstétricas Humanizadas e Baseadas em Evidências em todos os estados; referência garantida dos cuidados médicos e do hospital para casos de alto risco; direito ao alojamento conjunto para as mulheres e os bebês; e o direito a um acompanhante da escolha durante o trabalho de parto e o nascimento4. Infelizmente, estas iniciativas não estão sendo suficientes para mudar o quadro da mortalidade materna. Uma análise preliminar dos dados de 2004 a 2006 ficou longe da redução prevista de 15% em mortes maternas, e as expectativas de alcançar 75% de redução em 2015 não parecem ser realistas no ritmo atual da mudança5. Mas porque o investimento na ampliação do acesso a serviços não tem impactado a mortalidade materna?

Este texto tem como objetivo trazer alguns elementos para responder a esta pergunta, examinando os modelos típicos de assistência ao parto no SUS e no setor privado, as propostas de mudança voltadas à adoção de um cuidado mais baseado no respeito às evidências científicas e aos direitos das mulheres, e os conflitos de interesse e resistências à mudança. São examinados os pressupostos de gênero que modulam a assistência à saúde materna e os vieses de gênero na pesquisa neste campo, entre eles; a superestimação dos benefícios da tecnologia, e a subestimação ou invisibilidade dos efeitos adversos das intervenções. Por fim, discutimos uma agenda voltada à implementação da mudança de modelos, e o potencial de iniciativas como as campanhas pelo direito a acompanhantes no parto.

O paradoxo perinatal: Mais acesso e mais tecnologia, com resultados inferiores

Paradoxalmente, apesar de não termos evidências de melhora nas taxas de mortalidade materna, nos últimos 20 anos, melhoraram quase todos os outros indicadores da saúde materna e das mulheres, assim como o acesso aos serviços de saúde. As mulheres têm melhor nutrição, fumam menos, têm menor número de filhos, com intervalos mais longos entre os partos, fazem maior número de consultas de pré-natal, iniciam o pré-natal mais cedo, têm melhor imunização, melhor rastreamento para o diagnóstico de infecções e maior número de consultas no pós-parto6,7.

De acordo com a última PNDS (2006)6, o acesso à assistência pré-natal pode ser considerado universal. Nos cinco anos anteriores às duas pesquisas (1996 e 2006), a porcentagem de mulheres que não realizou nenhuma consulta durante sua última gravidez caiu de 14% para 1%, redução que ocorreu tanto na área urbana quanto rural.  A PNDS 2006 mostrou que 77% das mulheres fizeram no mínimo seis consultas de pré-natal. O percentual de mulheres que compareceu a 7 ou mais consultas de pré-natal  no país cresceu de 47%, em 1996, para 61% em 2006, crescimento que foi ainda mais acentuado na área rural6.

Entre 1996 e 2006, a cobertura do parto hospitalar cresceu de 91% para 98%, e do parto assistido por profissionais qualificados (médico e/ou enfermeiro), subiu de 87% para 98%. Este crescimento foi mais acentuado na área rural, onde estes percentuais se elevaram de 78% em 1996 para 96% em 2006 para o parto hospitalar, e de 73% para 94% no parto assistido por profissional treinado. Esta ampliação da assistência nas áreas rurais foi acompanhada de um salto de 75% nas taxas de cesárea (de 20% em 1996 para 35% em 2006), enquanto nas áreas urbanas essa taxa, já muito alta, sofreu menor ascensão (de 42% para 46%). Conseqüentemente, a taxa nacional de cesáreas aumentou de 36% para 44%6, com forte peso do processo da cirurgificação reprodutiva8 na área rural.

As cesáreas bem indicadas, sejam elas de emergência ou eletivas, são um componente essencial do cuidado obstétrico e devem estar devidamente disponíveis para se conseguir baixar as taxas de mortalidade materna e neonatal. Uma porcentagem entre 5% e 15% do total de partos parece conseguir os melhores resultados para a saúde de mulheres e de bebês, visto que uma taxa menor que 1% ou mais alta que 15% parece fazer provocar mais dano do que benefício, o chamado paradoxo da cesárea9. Os grandes estudos observationais sobre cesárea mostram que uma taxa mais elevada está associada com um aumento da morbidade e da mortalidade em mães e em recém-nascidos10. No Brasil, o uso da cesárea é mal regulado nos serviços públicos e não regulado no setor privado, onde alcançou 80,8% dos nascimentos em 20066. Em 2008, várias iniciativas foram lançadas pelo Ministério da Saúde e dirigidas ao setor privado, pela Agência Nacional de saúde Suplementar11 (ANS) e pela Associação Brasileira de Medicina de Grupo12. As várias campanhas destacam o potencial impacto negativo da cesárea por indicações não-médicas sobre os bebês, principalmente a epidemia de nascimentos pré-termo.

O termo "paradoxo perinatal" é atribuído a Rosemblatt13 (1989), em seu texto "O paradoxo perinatal: fazendo mais e conseguindo menos". Naquela época, o autor mostrava como a expansão rápida do cuidado intensivo para bebês cada vez mais prematuros - às vezes com sequelas graves - ganhava muito mais atenção e recursos que a prevenção da prematuridade, dirigida às mulheres grávidas e pobres. Naquele período, após tendência de queda, tanto a prematuridade como o baixo peso ao nascer voltavam a subir nos Estados Unidos, tendência que continua até hoje. Há 20 anos, este autor afirmava que o primeiro passo para analisar este paradoxo seria "entender os fatores que levam aos profissionais a adotar um estilo de prática clínica que não atende necessariamente nem aos melhores interesses dos indivíduos, nem da sociedade". O principal destes fatores seria o uso intensivo da tecnologia sobre a população de baixo risco, "desencadeando intervenções inapropriadas e causando danos iatrogênicos".

Ainda que frequentemente referido apenas aos bebês, este paradoxo "ao redor do parto" se aplica também à saúde materna. O reconhecimento deste paradoxo é muito desconfortável pois, como profissionais, consideramos que se estes procedimentos são realizados por especialistas, devem estar certos, e tendemos ao auto-engano a ponto de não enxergarmos mesmo os danos mais evidentes14.

O paradoxo perinatal e o pior dos dois mundos: O problema da falta e o problema do excesso

Ter um profissional habilitado na assistência ao parto é essencial, mas no caso brasileiro não tem sido suficiente, devido à frequente falta de adesão a protocolos baseados em evidências para o manejo de gravidezes de alto risco. Um estudo mostrou que na cidade de São Paulo, menos de 10% das mulheres que morreram de eclâmpsia (em hospitais e atendidas por médicos) foram tratadas com o sulfato de magnésio, o tratamento mais eficaz e mais barato15, recomendado pelo Ministério de Saúde. No Brasil, na assistência ao parto podemos conviver com o pior dos dois mundos: o adoecimento e a morte por falta de tecnologia apropriada, e o adoecimento e a morte por excesso de tecnologia inapropriada.

Vários autores analisaram os potenciais danos sobre mães e bebês associados ao uso inapropriado de tecnologia no período perinatal no Brasil. Em Pelotas, os resultados de três coortes (1982, 1993 e 2004) mostram que a proporção de nascimentos prematuros aumentou de maneira marcante, de 6,3% em 1982 para 14,7% em 2004. Para os autores, não foi possível explicar esse aumento através de mudanças nas características maternas, já que as mães em 2004 tinham melhores indicadores de saúde que as das coortes anteriores16. O estudo mostra que houve um aumento significativo nas interrupções pré-termo da gravidez, seja por cesariana ou indução. A taxa de cesarianas aumentou de 28% em 1982 para 45% em 2004, e de parto induzido de 2,5% em 1982 para 11,1% em 2004. Para os autores, o aumento nos nascimentos prematuros pode ser explicado parcialmente pelo número crescente de interrupções, mas devem existir outras causas, já que esse aumento foi observado também entre crianças que nasceram de partos vaginais não-induzidos. Consideram que outras causas podem estar envolvidas, tais como as infecções e o stress, especialmente entre as mulheres mais pobres16.

Na prática, não é fácil distinguir quais partos são "induzidos" e quais parto são "acelerados". Como a delimitação do início do trabalho de parto é bastante imprecisa17, é possível que outras intervenções hospitalares tais como a amniotomia (rotura das membranas), sejam realizadas sobre mulheres que ainda não estejam em trabalho de parto propriamente, mas com alguma dilatação cervical e contrações (Braxton-Hicks), ainda em uma gravidez pré-termo. Tais procedimentos levam a uma "precipitação do parto", seguida do uso de ocitocina não para induzir o trabalho de parto - mas para acelerá-lo, uma vez que a amniotomia torna o parto inevitável em um certo número de horas, independentemente da mulher estar efetivamente em trabalho de parto ou não18 .

Os desfechos de bebês pré-termos ou pequenos para a idade gestacional são melhores se eles nascem de partos espontâneos do que nos induzidos19. Mesmo nos chamados partos a termo (37 a 41 semanas), o prognóstico é significativamente desfavorável quanto mais cedo a interrupção. Clark et al (2009), comparando os desfechos de partos eletivos (indução ou cesárea, agendados), em 27 hospitais americanos, mostram que a necessidade de admissão em terapia intensiva era de 4,6% dos nascidos em partos eletivos com 39 semanas ou mais, e 17,8% dos nascidos entre 37 e 38 semanas (p<0.001)20. A coorte de cesáreas eletivas entre 37 e 39 semanas em 19 centros acompanhada por Tita et al. (2009) mostra que as taxas de complicações respiratórias, ventilação mecânica, sepsis neonatal, hipoglicemia e internação para cuidados intensivos, aumentam gradativa e significativamente quanto mais precoce o parto, mesmo entre os chamados nascimentos "a termo"21.

Além dos riscos da precipitação do término da gravidez, no Brasil pouca atenção tem sido dada ao potencial iatrogênico do uso de drogas no parto, em especial da ocitocina, usada de forma rotineira e frequentemente abusiva17. O uso liberal da ocitocina para a condução do trabalho de parto foi alvo recente de alertas, quando em 2008 entrou para a lista curta das 12 drogas cujo uso é mais associado a erros médicos graves22. A ocitocina é a droga mais freqüentemente associada a resultados perinatais adversos, e está envolvida em metade dos litígios contra gineco-obsteras no caso norte-americano23. Foram publicadas recomendações propondo o uso seletivo, em dosagens baixas e protocolos bem controlados da droga, a prevenção da necessidade do seu uso e o uso de recursos não-farmacológicos para acelerar o parto26.

No Brasil, vários estudos e iniciativas refletem a preocupação com o potencial iatrogênico dos modelos de assistência. No Rio de Janeiro, pesquisa coordenada por Maria do Carmo Leal no período entre 1996 e 200624, mostra que também no Rio, apesar da melhoria de alguns indicadores de condição de vida e de acesso aos serviços de saúde na área obstétrica, vem ocorrendo aumento da prematuridade e aumento do baixo peso ao nascer.

Em Belo Horizonte foi organizado em 2008 o seminário "Paradoxo perinatal brasileiro: mudando paradigmas para a redução da mortalidade materna e neonatal"25. O seminário ampliou o debate sobre as relações entre os altos índices de cesárea desnecessária e os índices crescentes e elevados de prematuridade, avaliou a prática abusiva de procedimentos sem evidência científica utilizadas de rotina na assistência, e discutiu como enfrentar estes problemas no cotidiano dos serviços.

Muitos serviços do SUS têm se esforçado para melhorar o atendimento oferecido às mulheres, alguns com excelentes resultados. Este processo tem sido facilitado por iniciativas do Ministério da Saúde, como o Programa de Humanização do Parto e Nascimento e pelo Prêmio Galba de Araújo, entre outras18. Apesar disto, o modelo típico de assistência ao parto em muitos serviços do SUS, além de inseguro e pouco apoiado em evidências científicas, é não raro marcado por uma relação profissional-usuária autoritária, que inclui formas de tratamento discriminatório, desumano ou degradante26,27,28,29.

Os modelos de assistência ao parto e vieses de gênero

O parto e sua assistência são fenômenos complexos e seu estudo é também uma área de interesse das ciências sociais, dada a permeabilidade das práticas às culturas locais e sua grande variabilidade geográfica, mesmo nos países industrializados. Entre as dimensões envolvidas na formatação cultural das práticas de assistência ao parto, estão a cultura sexual daquela sociedade, suas hierarquias e valores de gênero, raça, classe social, geração, entre outras30.

Entendemos o conceito de gênero como categoria que, no social, corresponde ao sexo anatômico e fisiológico das ciências biológicas31. O gênero é o sexo socialmente construído, ou, como define Rubin32, o conjunto de disposições pelo qual uma sociedade transforma a sexualidade (e a reprodução) biológica em produtos da atividade humana, e no qual se satisfazem essas necessidades humanas transformadas.

Os termos "viés de gênero" e "cegueira de gênero" são utilizados para demarcar a maneira como a pesquisa e a prática em uma área do conhecimento podem deixar de valorizar aspectos fundamentais dos seus objetos de estudo, enxergando apenas aqueles que confirmam o paradigma dominante. O objetivo epistemológico é remover os elementos que "cegam", invisibilizam ou enviesam a produção de conhecimento, de forma a produzir melhores descrições da realidade33. O termo viés de gênero na pesquisa epidemiológica é utilizado mais frequentemente para definir erros sistemáticos relacionados a construtos sociais gênero-dependentes. Como resultado da insensibilidade de gênero, o desenho e a análise das pesquisas podem criar vieses dependentes da interpretação "engendrada". O termo é mais conhecido nas pesquisas comparativas entre homens e mulheres - como a diferença de diagnóstico e tratamento nas doenças, mas suas aplicações na pesquisa epidemiológica são amplas e capazes de expandir os modelos explicativos34.

No caso da assistência ao parto, a cegueira de gênero leva pesquisadores e profissionais a aceitar crenças da cultura sexual sobre o corpo feminino, relacionadas a este "sexo socialmente construído", como sendo explicações científicas e objetivas sobre o corpo e a sexualidade30.

Uma das expressões deste viés é a crença de que o corpo feminino é essencialmente defeituoso, imprevisível e potencialmente perigoso, portanto necessitado de correção e tutela, expressas nas intervenções. Tal crença leva à superestimação dos benefícios da tecnologia, e a subestimação, ou mesmo invisibilidade (cegueira), quanto aos efeitos adversos das intervenções. Um exemplo desta 'cegueira de gênero' é a história da episiotomia, corte da musculatura, tecidos eréteis, nervos e vasos da vulva e vagina, instituída no início do século XX, com a intenção de ampliar o canal de parto. Durante décadas, centenas de milhões de mulheres tiveram suas vulvas e vaginas cortadas supostamente para prevenir lesões genitais graves na mãe e prevenir danos para o bebê.

Na década de 80, iniciam-se os primeiros questionamentos à base científica da segurança e da efetividade dos procedimentos no parto. Este movimento crítico interno à Medicina surge no campo da saúde perinatal35 e com influência do movimente internacional de mulheres36. As usuárias organizadas na década de 70 e 80 questionavam a utilidade das práticas, reivindicavam o parto como parte da experiência sexual feminina, e exigiam a participação de mulheres na definição das prioridades de pesquisa. Uma destas reivindicações foi o registro sistemático pelos serviços de saúde de procedimentos na assistência, muitos dos quais denunciados como irracionais e violentos, que permitissem a sua avaliação, e um foco central foi a episiotomia. A episiotomia mal podia ser "vista", pois até 1981, a quando o movimento o reivindicou, sequer era registrada37.

Uma vez que se partia do pressuposto de que o corpo feminino estava errado e deveria ser corrigido, não existiam pesquisas sobre se a episiotomia deveria ou não ser realizada. As revisões identificaram muitos ensaios clínicos bem desenhados sobre episiotomia, porém nenhum questionavam se era vantajoso praticá-la36. Apenas na metade da década de 80 surgem os ensaios clínicos sobre riscos e benefícios, que concluem pela abolição do seu uso de rotina16.

Recomendações sobre esta e outras intervenções foram divulgadas amplamente em meados da década de 90, e em muitos países o uso da episiotomia caiu de forma contínua, sendo usado apenas em situações minoritárias - uma de suas das principais indicações é um períneo rígido como conseqüência de uma episiotomia anterior. Mais recentemente, são publicados editoriais nas revistas especializadas de ginecologia e obstetrícia inclusive no Brasil, conclamando os profissionais a abandonarem o uso rotineiro da episiotomia, e seu ensino38,39.

Os primeiros dados brasileiros com base populacional sobre episiotomia, na PNDS de 2006, mostram que entre as mulheres que tiveram partos vaginais no SUS, 70,3% sofreram o procedimento, e entre as primíparas, essa porcentagem chegou a 84,8%6. No Brasil, até hoje os dados sobre episiotomia sequer estão no DATASUS.

Modelos de assistência e conflitos de interesse

"Não há nenhuma dúvida de que, mesmo que desnecessária ou mesmo que contenha maior risco para a mãe ou para o neonato, uma cesariana eletiva tem muito menor risco para o obstetra." (Editorial, Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia"40

O contraste entre as evidências de segurança e efetividade e as práticas de assistência no Brasil é ilustrativo para a compreensão do papel dos conflitos de interesse e conveniências institucionais na definição de como a assistência se estrutura. O setor privado no Brasil adotou o modelo organizacional da "cesárea de rotina", substituindo a imprevisibilidade do parto a termo por um planejamento taylorista de grande eficiência e lucratividade, criando um fato cultural: se é feito por especialistas, deve ser seguro. Desta forma, se um profissional dissidente do modelo tem qualquer complicação em um parto vaginal, estará muito mais vulnerável a ser isolado pela categoria ou ser processado pela paciente, como no editorial acima citado.

Segundo Maia (2009) no modelo tecnocrático de assistência brasileiro, para as mulheres do setor público e do privado "só há duas alternativas de parir: um parto vaginal traumático, pelo excesso de intervenções desnecessárias, ou uma cesárea", sendo esta "uma marca de diferenciação social e de 'modernidade' ". A autora demonstra que o acirramento da disputa pelo modelo de assistência ao parto, com a legitimação oficial do modelo humanizado, ocorre no mesmo momento em que se acirram as pressões do Estado para regular a saúde suplementar e no qual se fortalecem as ações de promoção e prevenção da saúde. Tal timing não seria mera coincidência, pois seria impossível questionar o modelo de assistência ao parto sem questionar a lógica de assistência à saúde no Brasil41.

A consolidação de um sistema de saúde público-privado resulta de uma dualidade de financiamento, ao mesmo tempo em que gera uma dualidade de assistência. Os trabalhadores mais qualificados, assim como a elite econômica, ao serem igualados a todos os brasileiros pelo SUS, criaram novas formas de diferenciação - e a forma de parir foi uma delas. Se a medicalização do parto é uma realidade para quase todas as mulheres brasileiras, mulheres de diferentes classes sociais foram submetidas a diferentes formas de medicalização e de assistência inapropriada, refletindo a hegemonia dos interesses corporativos sobre os interesses de saúde da população e a falta de regulamentação das práticas.41

Gênero e pessimização do parto: A naturalização do sofrimento e do dano iatrogênicos

O outro componente nuclear na formatação cultural das práticas de assistência à parturiente no Brasil, enterligada aos conflitos de interesse acima descritos, é a cultura sexual e reprodutiva12. Estas dimensões estão associadas ao reconhecimento - ou não reconhecimento - pelos serviços de saúde, dos direitos das mulheres à sua expressão sexual (evidenciada pela gravidez), à integridade corporal, à condição de pessoa, à autonomia e à não-discriminação18 .

Inúmeros estudos mostram que são freqüentes as atitudes discriminatórias e desumanas na assistência ao parto, inclusive no SUS25-29. Estudos sobre a perspectiva das mulheres mostram que muitas vezes elas descrevem o trabalho de parto como dominado pelo medo, solidão e dor, em instituições que deslegitimam a sexualidade e a reprodução de mulheres consideradas subalternas, como negras, solteiras e de baixa renda, e estigmatizam a maternidade na adolescência26. Os abusos verbais voltados para a humilhação sexual do tipo "quando você fez você gostou", são uma constante nos estudos e fazem parte do aprendizado informal dos profissionais sobre como disciplinar as pacientes, desmoralizando seu sofrimento e desautorizando eventuais pedidos de ajuda25-28.

Outra expressão deste vies discriminatório é a negação do direito ao acompanhante da escolha da mulher durante o trabalho de parto e parto. Apesar de garantido por lei em alguns locais desde a década passada e nacionalmente desde 2005, este direito segue negado à grande maioria das mulheres. Dados da PNDS6 mostram que apenas 16,2% das mulheres exerceram este direito, sendo 34,6% das mulheres no setor privado, e apenas 9,5% no SUS.

Como fenômeno cultural complexo, é difícil definir o que seria um parto "fisiológico" ou "espontâneo", uma vez que a interpretação da fisiologia e da normalidade são em si construtos da cultura29. A própria possibilidade de a mulher ter escolhas informadas sobre sua assistência pode fazer uma grande diferença na interpretação feita por ela sobre a 'normalidade' da sua experiência42. Porém se tomaremos aqui a definição proposta em 2008 sobre o que seria um parto normal ou fisiológico (iniciado espontaneamente, conduzido espontaneamente, e que se encerra espontaneamente - sem drogas ou cirurgias)43, trata-se de um fenômeno raro no Brasil. No Brasil, além do parto espontâneo ser percebido pelos profissionais como mais arriscado para o bebê, também é tido como mais arriscado para a própria mãe, sendo associado a danos sexuais irreversíveis. Os profissionais praticam intervenções sobre a vagina, como a episiotomia (que é uma laceração de 2º grau, no mínimo) e os fórceps, que aumentam os riscos de danos genitais graves16, e quando estes danos ocorrem, responsabilizam o parto em si pelos danos13. Desta forma, o dano iatrogênico é invisibilizado e re-descrito como um dano "natural" do parto, associado ao processo fisiológico e não às intervenções. O uso rotineiro da episiotomia e dos fórceps para primíparas ainda é ensinada em importantes Faculdades de Medicina, à revelia de toda evidência científica de sua inadequação e sem que as mulheres tenham qualquer chance de fazer escolhas informadas29.

Em termos de modelo de assistência, a 'correção do corpo' preferencial para as mulheres brancas e de renda mais alta é a cesárea: "se o parto é um evento negativo, devemos preveni-lo". É defendida pelos profissionais como alternativa superior e mais moderna em termos de conforto materno (evitaria as dores do parto), proteção contra danos sexuais (evitaria a passagem do bebê pelo períneo, a episiotomia, os fórceps), e contra os potenciais danos do parto vaginal sobre o bebê. Para viabilizar este modelo, a cirurgia deve ser agendada antes que a mulher entre em trabalho de parto. Entre a minoria de mulheres que tiveram partos vaginais no setor privado, estes geralmente incluem os procedimentos como a indução ou aceleração com ocitocina (procedimento que em geral faz ultrapassar o limite de suportabilidade da dor), a episiotomia, e freqüentemente os fórceps em primíparas. Todos estes procedimentos são dolorosos - porém quase sempre, no setor privado as mulheres contam com a anestesia peridural, o que torna o sofrimento físico mais suportável44.

Já entre as mulheres mais pobres e dependentes do SUS, o modelo correcional parte do pressuposto de que "se o parto é um evento negativo e não estamos autorizados a preveni-lo, vamos pelo menos abreviar sua duração". Os recursos para sua aceleração incluem o uso rotineiro da ocitocina, a rotura precoce das membranas, e a episiotomia18. Também são utilizados o descolamento manual das membranas, a redução manual do colo e a manobra de Kristeller (pressão fúndica), mas raramente há qualquer registro destes procedimentos. Como estes procedimentos multiplicam as dores, ter ou não ter acesso a anestesia efetiva pode fazer uma enorme diferença na qualidade da experiência do parto, para a parturiente, para o bebê e para os profissionais que os atendem24. Para piorar, as mulheres em geral são mantidas imobilizadas em posições desconfortáveis no período expulsivo, sem privacidade, e submetidas a instruções potencialmente danosas de puxo dirigido ("faça força!"), não raro ameaçadas de resultados adversos caso não obedeçam. O cuidado com o bem-estar físico e emocional das parturientes, que deveria ser "uma das prioridades da assistência e considerado a cada intervenção"17, é um tema pouco visível, principalmente no SUS.

Apesar de mais efetiva e segura como analgesia, a peridural tem efeitos adversos importantes, como uma relativa impossibilidade de movimento, e um risco aumentado de partos prolongados, operatórios, uso de ocitócitos, e de cesárea, além do bebê menos alerta para a amamentação17. É importante a prevenção de procedimentos dolorosos e a promoção do uso das alternativas não-farmacológicas de manejo da dor (presença de acompanhantes, massagem, banhos, liberdade de movimentos e de posição, entre outras) no SUS.

No Brasil, muitas vezes o debate sobre a qualidade da assistência cai na polarização entre cesárea e parto normal. Com as evidências disponíveis, ninguém é capaz de argumentar que a cesárea sem indicações médicas não tenha resultados maternos e neonatais inferiores aos do parto fisiológico. Porém quando comparado ao parto vaginal repleto de intervenções desnecessárias, dolorosas e potencialmente danosas, pode parecer uma alternativa comparável. Segundo Klein et al45, esta comparação não é aceitável nem cientificamente honesta. Grupos de usuárias organizadas acreditam que para tornar o abuso de cesáreas aceitável, é fundamental manter o parto vaginal o mais doloroso e danoso possível, se preciso negando as evidências científicas às quais a prática médica supostamente deveria aderir. A demanda pela cesárea, no Brasil, seria sobretudo uma demanda por dignidade, já que o modelo de parto "normal" típico é intervencionista e traumático41. Trata-se de "uma escolha entre o ruim e o pior", entre duas formas de vitimização. Nas palavras de uma usuária, "se tiver que cortar é melhor cortar por cima, porque em baixo é uma área mais nobre".44

Equidade, gênero, evidências e direitos: uma agenda

No Brasil tivemos grandes avanços no campo da saúde materna, entre eles a universalização do acesso à assistência pré-natal e ao parto. Existe mesmo uma "equidade inversa" em certos aspectos e regiões, como estudos que mostram que as gestantes do SUS têm melhores exames de rotina, mais testagem para o HIV e sífilis, menores taxas de cesárea e maiores de alojamento conjunto, comparadas com as do setor privado.1 Porém persistem desigualdades e a qualidade da assistência é limitada pela escassa atenção às evidências sobre segurança e conforto dos procedimentos na assistência, e pela permanência de uma cultura discriminatória, punitiva e correcional dirigida às mulheres.

Diante deste quadro, é preciso utilizar as várias linguagens que facilitem o diálogo entre os setores que podem fazer a diferença para a mudança nas práticas de assistência. Entre eles, formuladores de políticas, o controle social do SUS, pesquisadores (das ciências sociais, epidemiologia, pesquisa clínica), e os movimentos sociais.

Um dos maiores desafios da pesquisa em saúde perinatal é dar peso equilibrado tanto para os potenciais benefícios quanto aos potenciais danos das intervenções sobre o parto, tanto os de tecnologia leve quanto os de tecnologia dura, no desenho das pesquisas e programas, para compreender seu impacto nos desfechos de mães e bebês.

O registro atual das práticas de assistência no SUS invisibiliza muitos detalhes importantes que podem fazer a diferença nos desfechos de saúde de mães e bebês, como uso abusivo de ocitocina na indução e na aceleração do parto, manobras invasivas como o descolamento de membranas, e a manobra de Kristeller. Se o objetivo da assistência é preservar a integridade corporal sempre que possível, o registro de episiotomia e de resultados perineais deve ser monitorado e discutido nos serviços. A perspectiva das usuárias sobre a assistência é um tema central para a investigação e para o controle social dos serviços.

A pesquisa sobre como implementar mudanças nas práticas da saúde deve igualmente ser uma prioridade, uma vez que temos muito mais evidência de o que é efetivo e seguro do que sobre como fazer a mudança acontecer9,47.

Além de profissionais bem treinados e serviços bem equipados para tratar complicações, precisamos desenvolver intervenções inovadoras, que usem tecnologia simples e que sejam aplicáveis a todos os níveis de cuidado em áreas urbanas e rurais47.

Um exemplo são os centros de parto normal, intra-hospitalares, anexos ou independentes, com parteiras qualificadas ou enfermeiras obstetrizes, articulados à atenção primária e com sistemas eficientes da referência. Outro exemplo promissor é a presença de um acompanhante da escolha da mulher, e o apoio de uma doula (acompanhante experiente) no parto e pós o parto. Há evidência sólida de que o acompanhante durante o trabalho é uma ferramenta poderosa para promover melhores resultados maternos e neonatais, entre eles a maior satisfação materna com o processo do parto, trabalhos de partos mais curtos, taxas mais baixas de partos operatórios, menores taxas de demanda por analgesia, menos índices de Apgar abaixo de 7 nos primeiros 5 minutos, e muito mais48. O potencial para prevenir a morbidade e a mortalidade materna de ter um acompanhante no parto deve ser explorado à medida em que se torna uma realidade no SUS pois, quando as mulheres têm um acompanhante, elas tendem a ser tratadas melhor47. Relatos informais mostram que casos de near miss (mulheres com complicações graves que sobreviveram), o acompanhante teve um papel central em reconhecer precocemente a deterioração rápida do estado de saúde da mulher após o parto.

Para o SUS, os estudos comparativos desses modelos com serviços tradicionais são urgentes, para criar a chamada "evidência local", assim como para propiciar uma experiência cultural e um espaço de formação para relações mais democráticas entre os serviços e as usuárias e suas famílias. Estas mudanças fariam o parto normal mais confortável, aceitável e seguro, possivelmente diminuindo o número de intervenções e a demanda por cesárea.

Desde 2005, a "lei do acompanhante no parto" (No.11.108) foi aprovada pelo presidente Lula da Silva. É urgente investir recursos para promover e monitorar o cumprimento desta legislação, e disseminar a informação às mulheres sobre seus direitos, como parte da rotina do pré-natal. Já é hora de desenvolver políticas de inclusão dos parceiros (quando existam e assim desejem ele e sua parceira) na assistência pré e pós-natal, a exemplo de outros países, como forma de desconstruir o viés de gênero que pressupõe serem as mulheres as únicas cuidadoras dos bebês49. A sociedade civil brasileira, em particular as redes pela humanização do parto e o movimento feminista, podem jogar um papel chave em garantir que estes direitos estejam respeitados no SUS. É inaceitável que o cidadão brasileiro já nasça tendo os seus direitos e os da sua mãe desrespeitados. Esta lei pode ajudar a "empoderar" as mulheres para exigir o que precisam do SUS, podendo ser uma ferramenta poderosa para a mudança, integrando as abordagens baseadas em evidências e baseadas em direitos que precisamos.

 

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Endereço para correspondência
Av. Dr. Arnaldo, 715 - sala 218
CEP 01246-904. São Paulo, São Paulo
E.mail: sidiniz@usp.br

Recebido em: 28 de setembro de 2008.
Modificado em: 22 de março de 2009
Aceito em: 06 de junho de 2009.

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