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Journal of Human Growth and Development
versão impressa ISSN 0104-1282
Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. vol.20 no.3 São Paulo 2010
PESQUISA ORIGINAL ORIGINAL RESEARCH
O discurso do sujeito coletivo como eu ampliado: aplicando a proposta em pesquisa sobre a pílula do dia seguinte
The discourse of the collective subject as an i extended: proposal illustrated by a research about the morning after pill
Fernando LefevreI; Ana Maria Cavalcanti LefevreII; Vitoria Kedy CornettaIII; Sandra Dircinha Teixeira de AraújoIV
IProfessor Titular da Faculdade de Saúde Pública da USP
IIDoutora em Saúde Pública e pesquisadora do Instituto de Pesquisa do Discurso do Sujeito Coletivo. E-mail: alefevre@usp.br
IIIProfessora livre-docente da Faculdade de Saúde Pública da USP
IVDoutora em Saúde Pública. E-mail: sandradi@usp.br
RESUMO
Discute-se aqui a utilização da técnica do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC) como possibilidade de superação de alguns impasses e insuficiências das pesquisas de opinião tradicionais. A proposta do Discurso do Sujeito Coletivo é de introduzir, com vistas a recuperar na escala coletiva, a integridade da opinião, como variável essencialmente discursiva, o que se chamou de primeira pessoa coletiva do singular, que configura a opinião como a expressão de um "eu ampliado". Assim, para fazer, por meio de uma pesquisa empírica, uma coletividade opinar, para que se possa conhecer a opinião coletiva expressada diretamente, será sempre preciso contornar o problema de que tal opinião coletiva precisa, necessariamente, ser reconstruída já que, de uma perspectiva estritamente positivista, só a opinião individual parece existir. Conclui-se com a idéia de que o pensamento das coletividades é um referente, descrito pelo DSC e interpretado pelo meta-discurso teórico.
Palavras-chave: pílula do dia seguinte; gravidez; adolescência.
ABSTRACT
In this study we discuss the use of the technique of the Collective Subject Discourse (CSD) as a possibility to overcome some shortcomings of stalemates and traditional opinion. The purpose of the Collective Subject Discourse is to introduce the integrity of the review, in order to recover the collective scale, as essentially discursive variable, which is called the collective singular first person, which configures the view as an expression of "self extended". Hence, to do a community think through empirical research in order to know the collective opinion expressed directly, it will always be necessary to resolve problems of collective opinion that must necessarily be rebuilt, since from a perspective strictly positivist, only the separate opinion seems to exist. We conclude with the idea that the collective thought is a reference described by CSO and analyzed by meta-theoretical discourse.
Key words: morning after pill; pregnancy: adolescence.
INTRODUÇÃO
À primeira vista, a opinião parece ser algo necessariamente ligado a um indivíduo. Entende-se por opinião um termo genérico aqui usado como equivalente do ato ou comportamento por meio do qual indivíduos, na qualidade de atores sociais, expressam verbalmente o ou os sentidos atribuídos por eles a todo tipo de eventos, temas, assuntos, tópicos, que, de alguma forma, lhe dizem respeito.
Assim, para fazer, por meio de uma pesquisa empírica, uma coletividade opinar, ou seja para que se possa conhecer a opinião coletiva expressada diretamente, será sempre preciso contornar o problema de que tal opinião coletiva precisa, necessariamente, ser reconstruída, já que de uma perspectiva estritamente positivista só a opinião individual parece existir.
Deixando de lado, por enquanto, a manifestação ou presença bruta, direta, imagética, icônica de uma coletividade opinante, como a que ocorre numa passeata, procissão, comício, dança ritual, etc., fatos que devem ser analisados como cerimônias concretamente a opinião coletiva se manifestará, sempre, como um comportamento individual, seja ela um depoimento ou artigo de jornal
A OPINIÃO COLETIVA COMO UMA AGREGAÇÃO
Tradicionalmente, considerando tal perspectiva, a opinião coletiva como produção empírica será então formada ou por um agregado direto de opiniões individuais ou, indiretamente, pela unificação dessas opiniões individuais em um plano meta-discursivo, pela via do comentário teórico1.
O agregado direto, por sua vez, apresenta duas modalidades:
1. Na primeira, a opinião coletiva aparece como uma soma de iguais, ou mais precisamente de opiniões individuais equalizadas, seja a priori, como nas pesquisas com questionários fechados, seja a posteriori, como nas pesquisas com questionários abertos, cujas respostas de sentido semelhante são tornadas idênticas ao serem integradas no mesmo conjunto ou categoria.
2. Na segunda modalidade - comumente conhecida como grupo foco 2, 3 - a opinião coletiva é obtida pela (suposta) presença direta de um simulacro de coletivo na forma do ou dos pequenos grupos socialmente homogeneizados (grupos de mulheres brancas de classe média, grupo de pacientes portadores da mesma enfermidade, etc.), que seriam capazes de produzir a opinião coletiva na medida em que são vistos como a coletividade (representada pelos grupos socialmente homogêneos) discutindo, mais ou menos livremente, o tema pesquisado, ou explorando-o "em profundidade".
Indiretamente, a agregação meta-discursiva da opinião, por sua vez, implica a recusa de autonomia explicativa para opinião coletiva como realidade empírica que, enquanto tal, é considerada incapaz ou incompetente para se auto expressar, potência esta concentrada no meta-discurso explicativo que, de fora (do mundo empírico), confere forma coletiva e sentido à opinião. Neste caso a explicação e análise do pensamento coletivo se superpõem em um texto único em que os depoimentos aparecem como exemplos, "ancorando" assim, na realidade, o pensamento do pesquisador.
AS INSUFICIÊNCIAS DAS FÓRMULAS TRADICIONAIS
As fórmulas tradicionais de agregação das opiniões individuais acima elencadas apresentam, então, as seguintes insuficiências:
Insuficiência qualitativa
- presente nas pesquisas de opinião com questões fechadas, que é insuficiência qualitativa porque, a opinião, transformada em "alternativa", perde sua qualidade essencial e constitutiva de discurso e de discurso espontâneo;
- também presente nas pesquisas de opinião com questões abertas agrupadas em categorias, que constituem insuficiências qualitativas uma vez que, nesta modalidade, os depoimentos individuais se encolhem física e semanticamente enquanto discursos, em favor de uma categoria que, na sua formulação sintética, torna-se incapaz de expressar completamente o sentido de todos os depoimentos enquadrados sob sua rubrica;
Insuficiência sociológica:
- presente nas pesquisas ditas "qualitativas" 4, 5 na medida em que se acredita, fantasiosamente, que a presença qualitativa da opinião coletiva pelo expediente da discussão em grupo ou exploração do tema em profundidade por atores sociais portadores de atributos sociológicos homogeneizados (mulher, classe média, branca, etc) em distintos pequenos grupos, traria a essência, ou seja, a "qualidade" da opinião coletiva;
Insuficiência investigativa
- igualmente presente nas pesquisas ditas qualitativas, na medida em que a pesquisa com pequenos grupos se limitaria à investigação de problemas pertinentes a pequenos grupos (pacientes de um Centro de Saúde, alunos de uma escola, etc.);
Insuficiência epistemológica e metodológica
- também presente nas pesquisas qualitativas, já que a discussão em pequenos grupos estaria captando a opinião enquanto fato psicossocial, pois no pequeno grupo teríamos a opinião em funcionamento, portanto fortemente afetada pela dinâmica das relações interpessoais;
Insuficiência propriamente discursiva
- presente nas pesquisas meta-discursivas, uma vez que nestas os depoimentos individuais passam a ocupar uma posição discursiva menor e subalterna, subordinada ao discurso meta linguístico unificador, emitido na terceira pessoa e que, pela via desse artifício retórico, acrescido do outro artifício retórico das citações através das quais convoca-se para a cena discursiva a força das autoridades incontestes (Freud, Piaget, Marx) ou, mais quantitativamente, da comunidade científica mais anônima ou menos nobre, busca produzir no leitor o efeito: presença da Ciência ou Explicação6, encarnada na figura do pesquisador, seu suposto porta voz;
Insuficiência quantitativa
- presente em todas as formas acima, uma vez que não há descrição das quantidades de indivíduos que "aderem" a uma dada opinião coletiva, não sendo possível o conhecimento do grau de espalhamento e compartilhamento de uma dada opinião no campo pesquisado.
A PRIMEIRA PESSOA COLETIVA DO SINGULAR
A técnica do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC)7, 8, 9 busca reconstituir uma opinião coletiva despida das insuficiências acima, pela agregação, num discurso-síntese redigido na primeira pessoa do singular, dos conteúdos de depoimentos individuais que apresentam sentidos semelhantes ou complementares.
A técnica inscreve-se no contexto das propostas metodológicas, como as de Bardin e outros que usando depoimentos como base buscam extrair, pela análise do conteúdo de tais depoimentos, os sentidos ou significados nele presentes.
Distingue-se, porém, como uma proposta específica pelo modo como realiza tal extração de sentido, sobretudo pela utilização da primeira pessoa do singular para veicular uma opinião coletiva ou socialmente compartilhada.
Assim, da perspectiva desta técnica, o quadro geral das opiniões disponíveis de uma coletividade sobre um dado tema, no contexto de uma dada formação sociocultural específica, num dado momento histórico, ficará composto por um conjunto ou painel de singularidades (sendo que singular aqui não tem, é claro, o sentido, de "contrário de plural" mas sim de diferente, distinto, próprio, específico) coletivas qualiquantitativamente diferentes (distintas opiniões coletivas sobre o tema pesquisado e a distribuição estatística destas opiniões no tecido social), conjunto que, na sua globalidade, é também singular na medida em que se distingue de outro conjunto singular de outra formação sócio cultural específica, ou de um outro conjunto singular da mesma formação sócio cultural em outro momento histórico (de modo equivalente ao que acontece com os paradigmas de Khun)10.
A este respeito, em trabalho que realizamos com usuários de um site de internet, relativo ao tema do consumo de maconha encontramos um dado painel de Discursos do Sujeito Coletivo que, muito provavelmente, hoje, Brasil 2006, não seria o mesmo já que naquele momento, não se verificava, como hoje, a forte presença na internet do "discurso pentecostal" de cunho marcadamente maniqueísta onde tudo de "mau" (a droga, por exemplo) encontra-se concentrado no Demônio e tudo de "bom" em Jesus11.
Desta forma, a opinião coletiva como produto empírico ganha voz e pessoa: aquela que poderíamos chamar de primeira pessoa coletiva do singular.
Esta primeira pessoa é então um "eu", mas como se trata de um eu-que-opina, é um eu acho, eu penso que, eu acredito que. Ora, como uma opinião é sempre um produto socialmente compartilhado, tal eu acho pode ser visto como a expressão subjetiva da sociedade internalizada: daí primeira pessoa coletiva. E, finalmente, esta primeira pessoa coletiva é também do singular, ou seja, portadora de uma opinião singular, própria, específica, diferente de outra opinião singular.
O "EU AMPLIADO"
Na escala de cada DSC, a diferença entre o todo da opinião coletiva singular e as partes ou a matéria-prima de que é composta (os depoimentos individuais, ou mais precisamente seus estratos mais significativos, de sentido semelhante ou complementar) é que o todo são as partes ampliadas, estendidas, processo que chamamos de eu ampliado.
Este eu ampliado carrega para dentro de si, da sua individualidade singular coletiva, todos os argumentos e conteúdos presentes nos diferentes depoimentos individuais que apresentam sentindo semelhante ou complementar.
Mas como o eu ampliado fala na primeira pessoa do singular, artifício forjado pela técnica do DSC com vistas a produzir no leitor o efeito de um discurso verossímil, de uma história individual de um falante real, certos detalhes muito particulares (e, no quadro da proposta metodológica do DSC, irrelevantes) dos depoimentos individuais como lugar de nascimento, dia da consulta, tipos de doença, etc. são suprimidos ou editados, justamente para produzir o efeito de verossimilhança.
A constituição desse eu ampliado como veículo expressivo não é, contudo, um artifício meramente decorativo, um "floreado" literário, mas um recurso que, incitando a que a dimensão expressiva do discurso retroaja sobre sua dimensão semântica, contribui para que tal discurso possa efetivamente ser considerado coletivo e ao mesmo tempo parecer uma história individual, de tal maneira que se fosse apresentado aos indivíduos portadores de opiniões semelhantes cujos depoimentos compuseram o DSC, pudesse produzir neles o efeito de um pensamento compartilhado como: " eu também penso assim", "eu não disse tudo isso mas, poderia ter dito".
A QUALIDADE AUTO INSTITUÍDA E SEUS DESDOBRAMENTOS
O eu ampliado, primeira pessoa coletiva portadora de uma opinião singular, configura uma qualidade auto instituída, uma fala do mundo empírico gerada nele mesmo. A opinião coletiva veiculada pelo eu ampliado é uma opinião desdobrada em seus conteúdos e argumentos e, nesta medida, ela se apresenta como um constructo auto-explicativo.
Constructo auto-explicativo significa, por um lado, que o pensamento coletivo pode se auto-explicar, mas que para se auto-explicar tal pensamento precisa ser reconstituído (no caso usando a técnica do DSC).
Assim, lançando mão do conceito de interpretante de Peirce12 - o qual no quadro de uma semiótica que define o signo como algo no lugar de outra coisa para alguém, conceitua o interpretante como aquele signo que no processo interativo de comunicação, é produzido pelo interlocutor para dar sentido às mensagens a ele dirigidas - podemos avançar para concluir a idéia de que o DSC da opinião coletiva do eu ampliado é o interpretante I do referente R (aquilo que determinada coletividade pensa sobre um dado tema num dado contexto sócio histórico), enquanto o meta discurso teórico do DSC é o interpretante I' (e sendo este processo infinito temos uma sequência: I'a - I'n) do interpretante I.
Por sua vez, a coletividade é o sujeito enunciador deste interpretante I enquanto o sujeito enunciador dos interpretantes I' é o pesquisador do DSC, porta voz da ciência ou da comunidade científica e portador do discurso que enuncia o quadro teórico e o contexto (as chamadas "condições de produção do discurso") em que se dá a opinião empírica.
Parece-nos, pois, não descabido entender como uma das possíveis contribuições práticas do DSC a de treinar a escuta, pelo especialista portador do conhecimento instituído, do mundo empírico como um outro, com o qual ele deve interagir.
A "PÍLULA DO DIA SEGUINTE"
Insuficiência quantitativa
A pesquisa enquanto treinamento da escuta
Enquanto projeto CNPQ sob o título "Gravidez adolescente e Pílula do Dia Seguinte: desvelando seus sentidos entre adolescentes e profissionais de saúde" vem sendo desenvolvida, desde 2008, pesquisa por meio da qual se busca entender as representações sociais13, 14, 15, 16 que fazem adolescentes vivendo na zona sul do município de São Paulo, bem como profissionais de saúde da rede pública que devem orientar os adolescentes sobre o uso que fazem da pílula do dia seguinte .
Tal projeto visa, com os dados obtidos das representações desses atores, propiciar a construção de instrumentos (dentre eles um programa multimídia destinado aos adolescentes usuários potenciais da pílula do dia seguinte) que possam ser úteis na prevenção da gravidez adolescente enquanto problema de saúde pública17,18.
Usando o DSC e considerando todas as implicações acima, a pesquisa em tela, enquanto "treinamento da escuta", busca oferecer aos profissionais de saúde a possibilidade de ouvir sem preconceitos o que pensam os potenciais usuários da pílula do dia seguinte para poderem, enquanto porta-vozes das políticas oficiais de enfrentamento da gravidez adolescente19,20, propiciar maior eficiência e eficácia na prevenção do problema. Da mesma forma a pesquisa oferece também a esses profissionais a possibilidade de "escutarem a si mesmos". Pretende-se assim, ampliar a possibilidade de diálogo entre os principais atores em pauta.
Os "casos"
Nesta pesquisa decidiu-se que o instrumento de coleta de dados, em função do tema abordado e da população alvo, deveria ser composto não por perguntas formais, mas por "casos" que ilustrassem os diversos aspectos ou situações do dia a dia em que o (a) adolescente alvo pudesse estar envolvido com a pílula do dia seguinte. À adolescente do sexo feminino foi pedido que se colocasse no lugar do "personagem" feminino do caso e ao adolescente masculino que se posicionasse diante do caso. Aos profissionais foi pedido que contassem sobre sua atuação profissional frente ao caso.
Tais casos foram elaborados pelo grupo de coordenação da pesquisa com base na experiência dos membros desta equipe na assistência à saúde (e sexualidade) do adolescente.
Os casos foram propostos e discutidos na equipe de coordenação e em seguida pré testados, em "grupos foco", com populações equivalentes
Assim foram propostos e testados os seguintes "casos"
1) Uma adolescente muito namoradeira foi a um baile funk, bebeu um pouco demais e no dia seguinte nem lembrava muito o que tinha acontecido; aí resolveu tomar a pílula do dia seguinte para prevenir a gravidez.
2) Uma adolescente que costumava tomar pílula todos os dias, foi a uma festa e acabou ficando com um rapaz bonito que ela tinha paquerado na festa. Aí, no dia seguinte ficou morrendo de medo porque não tinha certeza se tinha tomado a pílula anticoncepcional todos os dias.
As amigas dela então falaram para ela tomar a pílula do dia seguinte; mas ela resolveu não tomar porque achava que só tinha esquecido de tomar a pílula um dia.
3) Uma adolescente namorava, faz tempo, um rapaz. Como eles se amavam muito, acabaram não resistindo e indo para cama. No dia seguinte, a moça ficou muito nervosa achando que poderia ter ficado grávida; ela contou para as amigas e mesmo para a mãe, que recomendaram que ela tomasse a pílula do dia seguinte. Ela, porém, decidiu não tomar porque era uma pessoa muito religiosa.
4) Uma adolescente que tomava pílula decidiu que não ia tomar mais porque achava muito chato tomar pílula todo dia já que sua vida sexual não era lá muito ativa. Decidiu então que seu método anticoncepcional seria a pílula do dia seguinte. Quer dizer, quando ela ficasse com alguém, tomava a pílula do dia seguinte.
5) Uma adolescente saindo da Escola e tendo que passar por um matagal, foi violentada por um estranho; no dia seguinte ela encontrou suas amigas que insistiram para ela tomar a pílula do dia seguinte para prevenir a gravidez. Acontece que ela queria muito ter o filho e então decidiu não tomar a pílula do dia seguinte.
6) O namorado terminou com ela e ela parou de usar qualquer método anticoncepcional; mas eles se reencontraram numa festa e transaram sem tomar cuidado. Ai ela chega à conclusão que eles não estavam namorando e só tinham ficado aquele dia. Então foi conversar com uma amiga que disse: a pílula do dia seguinte serve para isso, quando a gente não está namorando e está só ficando.
7) Depois de conversarmos sobre todos esses casos, para finalizar a nossa entrevista, gostaríamos de perguntar: Para que você acha que serve a pílula do dia seguinte?
Um exemplo de Discurso do Sujeito Coletivo
Podemos colocar como exemplo as representações do grupo de adolescentes do sexo masculino, feminino e dos profissionais, frente ao primeiro caso, onde foi questionado o uso da pílula do dia seguinte no quadro de comportamento inseguro de uma adolescente em um baile funk.
Apresentaremos os resultados conforme sequência a seguir:
1. representações que surgiram, frente ao caso, entre adolescentes homens e mulheres
2. gráfico descrevendo o grau de compartilhamento dessas representações entre esses grupos
3. representações que surgiram, frente ao caso, entre profissionais
4. gráfico descrevendo o grau de compartilhamento dessas representações entre os profissionais
5. Escolha de dois DSCs para exemplificar
Vamos apresentar os DSCs B das mulheres e o G dos homens por apresentarem grande discrepância no grau de compartilhamento entre os rapazes e moças entrevistados, sendo o DSC B mais compartilhado entre as moças e o DSC G mais compartilhado entre os rapazes.
DSC B - Acha certo/tomaria porque não sabe o que fez e quem é o pai
MULHERES
Tomava a pílula porque eu não sabia o que eu tinha feito. Porque eu não ia saber quem era o pai, porque a gente nunca sabe com quem a gente tá se envolvendo. Se fosse com qualquer cara tinha que realmente tomar, né? Eu tomaria porque eu não conheceria o meu parceiro, eu não sei dos antecedentes dele.
Ah! se eu não lembrasse acho que eu faria o mesmo também. Vai saber se ela fez alguma coisa lá no baile e tal e aí pode engravidar. Porque se eu não lembro, sei lá, se fez sexo com várias pessoas, como é que ela vai saber quem é o pai o filho dela? Eu teria tomado a pílula do dia seguinte também, porque aí eu pego barriga, sem saber quem é o pai?, como é que ia fazer, né?. Se fosse no mesmo caso que isso, eu tomaria. Vai que eu tivesse transado sem camisinha e no caso, eu tomaria a pílula sim, não ia saber quem era o pai e traria muito poblema.
DSC G - Acha errado/não tomaria porque a pessoa deve assumir seus atos, ser responsável, controlada, não beber
HOMENS
Eu acho muita irresponsabilidade do fato dela ter ido pro baile funk, porque ela sabe que baile funk o que rola é isso: ela vai beber demais, vai dançar demais e aí vários homens vão chegar nela, né? Muito irresponsável também porque podia tá fazendo uma coisa, podia tá trabalhando, ajudando a sua mãe. Ela foi descuidada, ela não devia ter esse comportamento, de não controlar a si própria. Acho que ela tá errada. Vai pros lugar pra bebe! Devia ir pra se divertir.Podia pensar antes de fazer.Então não deve tomar: a gente tem que aproveitar a nossa vida, mas com consciência. Por que bebeu demais sabendo que não tinha condição? Se o corpo dela não aguentava a bebida, por que ela bebeu? Ela se excedeu.
Essa é minha opinião, assim, no caso, entendeu?
Um exemplo de análise meta discursiva
Sem entrar nos detalhes dos sentidos presentes nessas representações podemos dizer, numa interpretação sumária, que os profissionais encarregados de orientar os adolescentes precisam treinar sua escuta atentando para o fato de que a população adolescente masculina, se comparada com a feminina, apresenta - diante de exemplos, como o ilustrado no caso, que retratam situações hedonistas (21) comuns entre adolescentes hoje, em nosso país - comportamentos e atitudes de corte nitidamente moralista.
Numa leitura comparada dos depoimentos masculinos e femininos aqui apresentados pode-se destacar um contraste entre a postura moralista presente no DSC G com uma postura ética presente no DSC B. Com efeito, num registro ético, o DSC B pode ser considerado positivo já que, como consequência não desejada de um momento hedonista "descontrolado" (como soem ser tais momentos) poderia estar sendo gerado um novo ser; nesse sentido poderia ser visto como eticamente irresponsável não lançar mão de um recurso emergencial como a pílula do dia seguinte para evitar uma séria consequência para uma vida inteira.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O exemplo em tela permite mostrar que na pesquisa que usa o DSC configura-se um efetivo processo de significação partindo-se de uma base empírica sobre a qual é possível montar, com relativa segurança, uma cadeia articulada de signos/discursos interpretantes que conferem confiabilidade aos resultados na medida em que fica transparente a origem e a cadeia argumentativa subjacente às afirmações, posicionamentos, interpretações do pesquisador.
Isso, por sua vez, permite que outros pesquisadores possam concordar ou discordar das afirmações, o que está contribuindo para a necessária introdução sistemática de procedimentos científicos nas pesquisas que lidam com a subjetividade humana
Desta maneira buscou-se demonstrar a utilidade prática de pesquisa do o recurso do DSC22, na medida em que tal técnica permite a emergência de resultados muito detalhados, tanto de um ponto de vista qualitativo quanto quantitativo nas pesquisas de opinião.
Qualitativamente, as representações na forma de "eus ampliados" permitem a exposição de detalhes e meandros dos conteúdos e dos argumentos dos pensamentos coletivos; quantitativamente, os DSC permitem mostrar (quando for o caso) a distribuição diferenciada das representações nas populações estudadas.
Tais atributos dos resultados permitem que, sobre a camada descritiva representada pelos DSCs sejam apostos signos interpretantes (os comentários meta-linguísticos)23, que podem ser usados para interferir positivamente em realidades social e humanamente indesejáveis como a gravidez adolescente hoje, isto é num mundo como o pós moderno que, pela sua complexidade e incerteza23-25, exige enorme esforço de investimento pessoal do adolescente, que pode estar sendo fortemente dificultado pelo presença precoce de um filho, com as exigências e os compromissos daí necessariamente decorrentes.
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Correspondência para:
flefevre@usp.br
Recebido em 02/02/10
Modificado em 06/07/10
Aceito em 12/08/10
Trabalho realizado no Departamento de Práticas em Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da USP e Instituto de Pesquisa do Discurso do Sujeito Coletivo
Projeto financiado pelo CNPQ.