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Journal of Human Growth and Development
versão impressa ISSN 0104-1282
Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. vol.21 no.2 São Paulo 2011
ARTIGO DE REVISÃO REVIEWR ARTICLE
Desenvolvimento e adaptabilidade de pessoas com transtorno autista na perspectiva evolucionista
Development and adaptability of persons with autistic disorder in evolutionary perspective
Ana Carolina Wolff MotaI; Roberto Moraes CruzII; Mauro Luis VieiraIII
IPsicóloga da Associação de Amigos do Autista (AMA-Joinville/SC), docente da Faculdade Guilherme Guímbala, de Joinville/SC, mestre em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina
IIProfessor Associado do Departamento de Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina
IIIProfessor Associado do Departamento de Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina
RESUMO
INTRODUÇÃO: pessoas com autismo apresentam comprometimento em áreas importantes do desenvolvimento, como a interação social recíproca, as habilidades de comunicação e a capacidade imaginativa.
OBJETIVO: o objetivo principal do artigo é apresentar uma atualização sobre o transtorno autista a partir da perspectiva evolucionista.
MÉTODO: as fontes de pesquisa foram livros e artigos científicos atuais que envolvem temáticas sobre o desenvolvimento de pessoas com transtorno autista e teoria evolucionista. As fontes on-line privilegiadas para a pesquisa foram: Scielo, Sagepub e BVSPsi, em especial as publicações a partir do ano 2000. O portal virtual Google Acadêmico foi utilizado como meio de busca de artigos específicos, como aqueles indicados entre as referências de outros artigos.
DISCUSSÃO: por meio da apresentação argumentativa de uma ampla revisão da literatura (principalmente internacional e atual) procura-se demonstrar que explicações a respeito da presença dos comportamentos atípicos em função do pertencimento à espécie humana nos permitem ter uma visão mais global do fenômeno (levando em consideração aspectos gerais do desenvolvimento e do autismo). Por sua vez, considerar a história que cada um experiencia durante o desenvolvimento nos permite identificar como cada pessoa atualiza o potencial que foi moldado ao longo da evolução humana.
CONCLUSÃO: o transtorno autista pode ser mais bem compreendido ser for levado em consideração aspectos da filogênese (valor de sobrevivência para espécie) e ontogênese (história de cada indivíduo). Nesse sentido, essa concepção nos permite ter uma compreensão mais holística e complexa do autismo e de sua relação com o desenvolvimento humano.
Palavras-chave: adaptabilidade, autismo, desenvolvimento, perspectiva evolucionista.
ABSTRACT
INTRODUCTION: people with autism have impairment in important areas of development such as reciprocal social interaction, communication skills and imaginative capacity.
OBJECTIVE: the aim of this article is to present an update on the autism from the evolutionary background.
METHOD: research sources were books and academic papers about current issues involving the development of people with autism and evolutionary theory. The online sources for research were: Scielo Sagepub BVSPsi and, in special, publications from 2000 onwards. The web portal Google Scholar was used for searching specific items, such as those listed among the references of other articles.
DISCUSSION: through the presentation based on extensive arguments to a comprehensive review of the literature (mainly international and current), it was proposed to demonstrate that explanations about the presence of atypical behavior on a basis considering the dimension of human species allow us to take a more global view of the phenomenon (taking into account general aspects of development and autism). Furthermore, considering the history that each experience during development allows us to identify how each person updates the potential that has been produced by long of human evolution.
CONCLUSION: It has been concluded that autism can be better understood if it is taken into account aspects of the phylogeny (survival value for species) and ontogeny (the history of each individual). In effect, this conception allows us to have a more holistic and complex understanding of autism and its relationship with human development.
Key words: adaptability, autism, development, evolutionary perspective.
INTRODUÇÃO
O autismo tem sido objeto de estudo científico há pouco mais de seis décadas. Questionamentos sobre definições diagnósticas, possíveis causas, comorbidades, características psicológicas, funcionamento cerebral e possibilidades de intervenção vêm até os dias atuais inquietando pesquisadores, profissionais e a população em geral. Os dados epidemiológicos produzidos também têm chamado atenção, muitas vezes, pelas controvérsias entre os números de diferentes regiões do mundo e pelo crescente índice de casos diagnosticados em grandes centros de pesquisas mundiais: de 16 casos definidos de forma mais restrita para cada 10.000 ou até 60 casos para cada 10.000, considerando os espectros mais amplos de disfunção na habilidade de socialização. O diagnóstico tem sido em torno de 40 meses de idade: mais cedo do que na década de 80, que ocorriam não antes dos 54 meses1.
Por outro lado, dados comparativos de prevalência entre meninos e meninas (em torno de 4:1) têm feito pensar no autismo enquanto uma síndrome caracteristicamente masculina1-2. A compreensão do cérebro em termos de dois processos psicológicos extremados, de empatia e de sistematização, tem sido vinculada à ideia de cérebros feminino e masculino, respectivamente. Estudos comparativos de desenvolvimento de meninas e meninos demonstram que as primeiras têm preferência ligeiramente maior para olhar faces do que para olhar móbiles mecânicos de tamanho equivalente, já os meninos apresentaram preferências opostas.
Colle et al.3 testaram a teoria que foi cogitada primeiramente por Hans Asperger, demonstrando que, por volta de um ano, a diferença nos comportamentos entre meninos e meninas se acentua, especialmente por causa do aumento de testosterona. Tal diferença entre o processamento cerebral de homens e mulheres também reforça a hipótese de um cérebro autista como extremo do masculino pela incidência muito maior em meninos que meninas. No transtorno de Asperger, que apresenta semelhante sofrimento no comportamento empático e excelente capacidade sistematizadora, como se verifica em seu desempenho na física cotidiana3, essa proporção é ainda maior: dez meninos para uma menina2.
Com base na perspectiva evolucionista, constata-se que o ser humano atual é bastante diferente, em termos de desenvolvimento, habilidades e recursos para socialização, em relação aos seus antepassados de milhares de anos atrás4. O transtorno autista, por sua vez, caracteriza-se por falhas no desenvolvimento de funções típicas da espécie humana, como a comunicação simbólica, capacidade de aprender com a experiência alheia, compartilhar experiências e de atribuir estados mentais a si mesmo e a outros5. Nesse sentido, o objetivo do presente artigo é apresentar uma atualização sobre as origens do autismo considerando os aspectos causais próximos (fatores atuais na vida da pessoa e que estariam relacionados à ontogênese) e também tendo como "pano de fundo" os aspectos filogenéticos últimos (mecanismos selecionados ao longo da evolução e que permitiriam a adaptação do indivíduo ao meio).
MÉTODO
Trata-se de um artigo de atualização sobre o espectro autista, numa perspectiva da teoria evolucionista. Foram pesquisadas publicações atuais envolvendo os temas desenvolvimento de pessoas com transtorno autista e teoria evolucionista de desenvolvimento humano. Os artigos utilizados tiveram como fontes os bancos de artigos Scielo, Sagepub e BVSPsi, sendo privilegiadas as publicações posteriores ao ano 2000. O portal Google Acadêmico foi utilizado como meio de busca de artigos específicos, a exemplo dos que foram indicados nas referências de outros artigos. Os descritores utilizados para a pesquisa on-line foram: transtorno autista, autismo, transtorno invasivo, transtorno do desenvolvimento, desenvolvimento psicológico, intervenção precoce, atenção compartilhada, teoria da mente, evolucionismo, teoria evolucionista, adaptabilidade e os respectivos termos em inglês.
Uma vez que o presente estudo é uma revisão de literatura não sistemática, não serão apresentadas tabelas e análises estatísticas. O artigo está organizado da seguinte forma: inicialmente, é realizada uma reflexão sobre a contextualização do autismo em termos de desenvolvimento ontogenético. Posteriormente é realizada uma análise da relação dessa dimensão do desenvolvimento (ontogênese) com a filogênesem, estabelecendo parâmetros que foram selecionados ao longo da evolução e que permitem a adaptação do indivíduo ao seu contexto.
No caso do autismo, são mencionados aspectos que estariam dificultando esse processo de adaptação ou que ele passa a ocorrer de forma diferente do que se esperaria, em termos de: funções senso-perceptivas, imaginação e processos cognitivos, de sociabilidade e comunicação.
DISCUSSÃO
AUTISMO E DESENVOLVIMENTO ONTOGENÉTICO: ASPECTOS SOBRE ETIOLOGIA, PERSPECTIVA HISTÓRICA E TENDÊNCIA ATUAL
O autismo é descrito como uma alteração grave do desenvolvimento infantil e seus sintomas são tipicamente percebidos entre 18 e 36 meses de idade, possivelmente como resultado de alteração neurológica que afeta o funcionamento do cérebro2,5. A literatura científica atribui o adjetivo 'invasivo' ao quadro, como referência ao intenso e desconcertante impacto que sofrem áreas importantes do desenvolvimento, como as áreas da interação social recíproca e das habilidades de comunicação (verbal e não verbal), bem como a capacidade de imaginar, cuja principal implicação está na presença de comportamentos repetitivos e interesse por atividades estereotipadas. O quadro clínico do autismo comumente está associado a outras condições clínicas, como o atraso neuropsicomotor e/ ou deficiência mental, que, embora quase sempre coexistam, ocupam condições distintas, sendo necessária uma segunda formulação diagnóstica para identificá-los6.
Quanto à etiologia, são discutíveis até os dias atuais as atribuições ao quadro de autismo. Desde a primeira descrição, realizada por Leo Kanner, em 1943, diversas explicações foram produzidas, derivando metodologias e técnicas empregadas no processo diagnóstico e em outras dimensões de avaliação7.
A história do autismo se estendeu pelo menos pelos próximos 30 anos numa compreensão do distúrbio sob a ótica afetiva ou ambiental, tendo na escola francesa os principais representantes, como Lebovice, Diatkine, Misès, Ajuriaguerra e outros8, prevalecendo até a atualidade essa visão na França. Mas o intenso processo de dominação norte-americana impôs novos modos de abordar os fenômenos no campo da ciência, passando de um embasamento humanístico e compreensivo para um pensamento empírico e pragmático9.
O afastamento das ciências humanas e a aproximação cada vez maior das ciências naturais e abordagens positivistas são verificados à medida que as teorias e concepções sobre etiologia do autismo emergem, a partir de estudos do cérebro e da genética, de forma não tão compreensiva e mais explicativa. Nesse sentido, Assumpção Jr.9 afirma haver duas "polaridades" dentre as tendências para explicar o autismo e sua etiologia, as quais foram denominadas teorias afetivas e teorias cognitivas.
Na história da evolução humana, há relatos de crianças com alterações no desenvolvimento, sugerindo quadros autísticos, mesmo antes da descrição realizada por Leo Kanner, em 1943. É o caso de lendas tradicionais ou obras literárias, como Niliouchka, de Gorki ou o "menino selvagem" Victor, de Aveyron, retratado pelo médico francês Itard, no final do século XVIII9. Essas informações contribuem para sustentar a concepção do autismo como um transtorno cuja etiologia não é psicogênica, ou produto cultural da modernidade, embora tenha sido esse o pressuposto mais fortemente aceito em meados do século XX, nos primeiros estudos científicos realizados sobre a síndrome8. Existem estudos mais contemporâneos sobre possibilidade de determinações sociogeográficas no aparecimento dos sintomas do autismo10.
Atualmente, há evidências de que fatores genéticos estão associados à etiologia da distúrbio11, devido à relação com causas neurobiológicas, como convulsões, deficiência mental, diminuição de neurônios e sinapses na amígdala, hipocampo e cerebelo, tamanho aumentado do encéfalo e concentração aumentada de serotonina circulante12. Há evidências, ainda, de que bebês autistas têm crescimento acelerado do crânio no primeiro ano de vida, embora poucos tenham macrocefalia13. Além disso, desde os estudos de Edward Ritvo8, quando se registraram estudos genéticos do autismoª, vem se estabelecendo relação entre autismo e hereditariedade12.
Pesquisas com lactentes têm permitido identificar suas capacidades desde muito cedo em razão da aplicação de procedimentos investigativos mais eficazes, fazendo com que suposições equivocadas e subestimações a respeito de recém-nascidos sejam superadas14. Ao mesmo tempo, evidências têm possibilitado maior atenção aos casos que fogem das regras do desenvolvimento, como crianças com atrasos ou transtornos nesse processo.
A busca de evidências empíricas sobre crianças autistas é uma necessidade, mas bastante difícil do ponto de vista metodológico, pois implica, antes, uma identificação precoce do autismo. Estudos longitudinais, com base na observação sistemática, são extremamente raros, pois a chance de se observar um lactente, em projetos longitudinais, que mais tarde será diagnosticado como "autista", é baixa15-16.
Em meados da década de 1980, o conhecimento sobre desenvolvimento inicial de crianças com autismo limitava-se a relatórios de pais e filmagens caseiras antes do diagnóstico. Bosa15 comenta a respeito de algumas controversas em pesquisas que informam sobre o desenvolvimento inicial de lactentes mais tarde diagnosticados como autistas. Os resultados de estudos que utilizavam informações retrospectivas faziam questionar se a consideração sobre a ausência de comprometimentos sociais no primeiro semestre de vida era fato ou, ao contrário, havia, mas não eram percebidos pelos pais. A autora revela que as razões podem estar nas sutilezas com que se expressam tais dificuldades e mesmo "negação" delas pelos pais, ou ainda a inexperiência desses pais no convívio com os filhos.
Atualmente, alguns instrumentos propõem a identificação de crianças muito pequenas que possam estar em risco de diagnóstico de autismo, por meio do relato dos pais e roteiro de observação. Através de uma abordagem relacionada ao desenvolvimento humano, tendem a privilegiar os domínios da interação e comunicação social, bem como funções sensório-regulatórias17. Além disso, a detecção de crianças em tão tenra idade com risco de autismo possibilita intervenção precoce, pela compreensão dos desvios do desenvolvimento em relação ao desenvolvimento típico18,19, permitindo que essas crianças aprendam habilidades que lhes faltam e, portanto, melhorem condições de interação social e qualidade de vida delas e das pessoas com quem convivem.
Como transtorno do desenvolvimento, pessoas com autismo estão sob a condição de funcionamento que contraria os pressupostos e expectativas do desenvolvimento humano, desencontrando-se com o que está previsto pela ordem filogenética para o desenvolvimento ontogenético. Para a compreensão do transtorno, portanto, não basta mera comparação descritiva entre desenvolvimento típico e atípico, mas a contemplação de modelos dinâmicos de pensamento9. Nesse sentido, a relação entre pelo menos duas dimensões temporais (ontogênese, filogênese) pode oferecer um importante instrumental teórico para a detecção precoce do transtorno.
RELAÇÃO ENTRE DESENVOLVIMENTO ONTOGENÉTICO DE PESSOAS COM TRANSTORNO AUTISTA E DESENVOLVIMENTO FILOGENÉTICO
Na perspectiva evolucionista, os seres humanos são considerados biologicamente culturais4, pois não somente a capacidade para criar e usar a cultura é um dos fatos biológicos mais notáveis da nossa espécie, como também não haveria desenvolvimento algum sem maturação biológica9. Portanto, cultura e genética são indissociáveis, de modo que conhecimentos e aprendizados podem ser herdados geneticamente no curso da evolução humana3.
Essa herança é compreendida como um processo de seleção longitudinal da espécie, que permite que habilidades adquiridas ao longo da trajetória de vida de um grupo de indivíduos fiquem "impressas", "cifradas" geneticamente. Assim, tais habilidades passam a ser inatas ao homem, atuando como mecanismos de funcionamento estratégico para a melhor adaptabilidade de cada indivíduo da espécie no seu tempo de vida20. Portanto, a noção de evolução está diretamente ligada ao número de descendentes que irão representar um indivíduo em um conjunto deles que existirá posteriormente9. Na perspectiva evolucionista, o desenvolvimento humano não é determinado biologicamente, como às vezes é equivocadamente tratado, mas é fruto da interação entre os domínios biológicos e culturais.
Tal interação entre condições biológicas e ambientais faz com que o desenvolvimento individual seja probabilístico20. As milhares de recombinações gênicas do processo de evolução humana fazem com que os indivíduos mais adaptados sejam também mais fecundos; essa condição atua especialmente nos fenótipos, ou seja, nas características do indivíduo, fruto da interação entre o genótipo e o ambiente, de modo que esses comportamentos/características passam a constituir-se como padrão de organização9.
Reconhece-se que a mente e seus mecanismos de processamento de informações são produto da história filogenética do homem moderno20. Ao longo dessa história, o ser humano, funcionalmente, apresentou características superiores em termos adaptativos, uma vez que, pelo seu desenvolvimento fisiológico e cerebral, passou a construir e utilizar instrumentos que aumentaram sua força e desempenho como predador. Não só se adaptou ao ambiente como conquistou o poder de alterá-lo e isso foi essencial para a sua sobrevivência9.
Por desenvolver estruturas cerebrais específicas, o Homo sapiens sapiens estruturou uma linguagem complexa (através de estruturas cerebrais específicas), organizou-se socialmente de maneira a permitir a existência de um número cada vez maior de indivíduos e, construindo conceitos complexos e abstratos, criou de modo contínuo novos mecanismos adaptativos9. Ao contrário do que se pode pensar - que as estratégias inatas se configuram instintos e determinam biologicamente o comportamento humano - elas têm a função de organizar estruturalmente a atividade dos filhotes da espécie humana, garantindo com maior segurança sua adaptabilidade na situação de vida ao longo do tempo.
O ser humano nasce em condição de exceção na evolução dos mamíferos em geral. Em comparação com outras espécies, é marcado por retardo na maturação pré e pós-natal21. Tal imaturidade no estágio inicial do desenvolvimento faz com que sejamos muito dependentes dos adultos para sobreviver e aprender as complexas regras de sociabilidade de herança cultural. Por isso, ao longo de sua história, desenvolveu e se apropriou biologicamente de mecanismos e estratégias adaptativos subordinados a essa condição social. Assim, como enfatizam Seidl de Moura e Ribas21, o fato de serem pouco equipados exige que consigam garantir o cuidado dos adultos de sua cultura para sobreviver. Para o processo de adaptabilidade às condições após o nascimento, a criança depende das relações que estabelece com seus pares mais maduros, de modo que possa ter recursos para se relacionar com o mundo20.
Os recém-nascidos, então, são dotados de um repertório de predisposições biológicas, preparados com várias habilidades sensório-perceptivas e motivacionais para interagir em um ambiente com condições também selecionadas ao longo de milhares de anos.20 Logo que nascem, estão propensos a procurar estímulos sociais, de modo que os adultos respondam da mesma forma, oferecendo e reforçando os contatos sociais, para que estejam garantidos os cuidados e a proteção de perigos, oferecendo-lhes a possibilidade de ter experiências de bem-estar e calor emocional21. Nesse sentido, é possível afirmar que crianças sem a referida predisposição ao contato social tornam-se vulneráveis a prejuízos severos no processo de adaptação, como se verá adiante, no caso do autismo.
Relacionando os temas autismo e adaptação, do ponto de vista evolucionista, talvez fosse o caso de se questionar por que, no decorrer de milhares de anos, mecanismos seletivos não teriam eliminado a maior parte das doenças, especialmente as doenças mentais, que, em geral, são extremamente não adaptativas?9 Porém, as desordens não devem ser compreendidas como adaptações da espécie projetadas para causar tais efeitos, pois, na visão evolucionista, quando algo não é funcional, os mecanismos de seleção geralmente agem para eliminá-lo e investem na propagação de uma uniformidade gênica22. Ou seja, não há explicações últimas, do ponto de vista filogenético, das causas dos comportamentos e manifestações das pessoas com transtorno autista, mas o padrão destas se explica por causas próximas, à medida que seus comportamentos são explicados em função do próprio sujeito e não pela sua relação com a espécie a que pertence.
Contudo, mesmo que a filogênese não explique os comportamentos de pessoas com transtorno autista, a herança filogenética atuante nos humanos permite a observação cada vez mais apurada do desenvolvimento infantil, possibilitando também a detecção precoce de casos em que as crianças são acometidas por atraso ou transtorno do desenvolvimento, como se demonstrará na sequência.
O nascimento representa um momento que requer a adaptação de um ser que, no período gestacional, tinha tudo de que precisava à sua disposição. A garantia dos cuidados parentais, após o nascimento, se dá por meio de comportamentos que tornem esse recém-nascido atraente e exigente da atenção dos pais. Um exemplo disso são as manifestações vocais. As crianças apresentam o comportamento de choro logo que nascem, sugerindo, numa explicação evolucionista, que a sua função é sinalizar o vigor desse lactente aos adultos, ou manipular psicologicamente os pais para que lhe forneçam cuidado parental20. Crianças autistas, no relato retrospectivo dos pais, tendem a apresentar pouca vocalização, especialmente de consoantes, bem como apresentar temperamento passivo e atitude pouco exigente de atenção parental17.
Assim como o choro, há uma série de possibilidades humanas que se atualizam ao longo do desenvolvimento ontogenético, quando interagem com a cultura humana, e propiciam ao recém-nascido a sua sobrevivência. Ao autista faltam os principais recursos de desenvolvimento que lhe garantam a adaptabilidade, o que torna o transtorno autista um dos mais graves do desenvolvimento. Vejamos outras evidências que prejudicam severamente o desenvolvimento e a garantia de pessoas acometidas pelo autismo.
a) FUNÇÕES SENSO-PERCEPTIVAS
A respeito de capacidade de selecionar estímulos auditivos, recém-nascidos apresentam predisposição a centrar sua atenção em estímulos mais relevantes para sua melhor adaptação ao ambiente em que vivem, especialmente os do contexto social.20 A regulação dos inúmeros estímulos sensoriais, aos quais eles são expostos, pressupõe atuação de um sistema psicológico que envolve capacidade perceptiva. Há uma capacidade perceptiva elementar que é inata, sendo pouco sensível à aprendizagem. Autistas têm padrões desviantes de respostas para os estímulos sensoriais, apresentando uma hiper ou hiporresponsividade, correspondendo a um comprometimento das funções sensório-regulatórias23.
Haase et al.23 explicam que as pessoas com autismo não 'sentem' de forma diferente, mas interpretam diferentemente as sensações que recebem, devido à construção de referenciais subjetivos distintos, peculiares. Pessoas com transtorno autista apresentam respostas diferenciadas para estímulos de dor, com indicações de que pode haver uma diminuição da reatividade ou mesmo analgesia24. A dor, experiência genuinamente subjetiva e pessoal, definida ou associada a lesões teciduais, é considerada o quinto sinal vital e a habilidade de perceber e interpretar sensações de dor implica prejuízos graves para a pessoa que a sente, pois ela não é capaz de promover o cuidado que a dor sinaliza e nem emitir comportamentos para requisitar atenção necessária ao dano corporal.
Esse modo de funcionamento está relacionado ao que Frith9 apontou a respeito da falha de autistas na coerência central, havendo forte tendência a prestar atenção em detalhes, sem estabelecer relação entre o todo e suas partes; tendência a observar uma gravura "em partes", ao invés de uma figura inteira, e a preferir uma sequência randômica ao invés de uma provida de significado (contexto). Autistas alternam frequentemente seus estados atencionais entre hiper e hipoatenção, comportando-se de forma "demasiadamente focada"25, respondendo apenas para um tipo de estímulo proveniente do ambiente e excluindo os demais. Tais alterações nos processos atencionais podem estar relacionadas às dificuldades para compreender o sentido dos estímulos ambientais, de modo a fazerem "escolhas muito pobres sobre ao que atentar quando não há pistas e indicações claras"25.
Dentre os estímulos que são importantes de selecionar para a adaptação do lactente ao ambiente estão as faces humanas, pelas quais há um interesse inato14. Pela tecnologia Eye Gaze Systemb detecta-se que, numa imagem com rostos humanos, pessoas com desenvolvimento típico olham primeiro para os olhos, depois para a boca e o nariz, já pessoas com transtorno autista gastam pouco tempo olhando para a região ocular, tendendo a olhar pontos incomuns como a orelha, um detalhe no fundo, um fio de cabelo branco25.
Segundo Moura et al.26, a boca é uma região do rosto pobre em sugestões sociais, sendo insuficiente para sinalizações sociais, enquanto a região dos olhos é altamente informativa, de modo que muitas pistas sociais podem ser obtidas para inferir sobre pensamentos ou emoções do interlocutor. Admite-se, então, que pessoas com transtorno autista têm acesso a uma quantidade reduzida de informações para instrumentalizar a ação interpessoal. Para esses autores, mesmo autistas de alto-funcionamento (sem deficiência mental) têm prejuízo no reconhecimento das expressões faciais.
Reznik et al. 17 especificam diversos comportamentos de autistas relacionados ao interesse pelo olhar humano, como evitação do contato visual, falha na capacidade de monitoramento do olhar de um adulto bem como orientação pelo olhar de um adulto, dificuldade para encarar ou enfrentar olho-a-olho. Comportamentos dessa ordem repercutem em outros domínios, como a atividade imitativa, por exemplo, presente precocemente em crianças de desenvolvimento típico2. O perfil neuropsicológico de pessoas autistas é marcado pelo prejuízo na habilidade de imitar os movimentos de outra pessoa18, repercutindo, por sua vez, na impossibilidade de desenvolver coerentemente o uso do olhar e a responsividade da criança autista, bem como ao desenvolvimento de empatia2, comunicação intencional, atenção compartilhada5,8 e jogo simbólico14.
b) IMAGINAÇÃO E PROCESSOS COGNITIVOS
A capacidade imitativa dos autistas tem sido amplamente discutida a partir de uma recente descoberta da neurociência: os neurônios-espelho. Trata-se de tipos especiais de neurônios, localizados na região do lobo frontal, descritos em 1996 por Rizzolatti e equipe, em experimentos com macacos rhesus28. Esses neurônios, também presentes em seres humanos, são ativados quando alguém realiza uma tarefa com finalidade específica e também quando alguém observa outro que realiza a mesma tarefa. São células nervosas envolvidas na origem da linguagem humana e fortemente relacionadas com várias modalidades de comportamento humano, como a imitação, teoria da mente, aprendizado de novas habilidades e empatia.
Segundo Lameira et al.28, a disfunção dos neurônios-espelho pode estar envolvida com a gênese do autismo, pois a essas pessoas falta a capacidade de se expressar, compreender e imitar sentimentos como medo, alegria ou tristeza. A repercussão da falha do sistema de neurônios-espelho compromete o desenvolvimento de pessoas autistas já que não têm aparatos que lhes garantam a sobrevivência através da organização social, quando da possibilidade de entender a ação de outras pessoas, bem como aprender novas habilidades a partir da atividade imitativa - que é base da cultura humana. A falha na capacidade imitativa é um critério importante nos processos de diagnósticos e domínios de investigação e acompanhamento em instrumentos de avaliação dirigidos a esse público17.
Da mesma forma que apresentam disfunção na capacidade empática, têm limitação nas atividades cerebrais executivas, em que estão envolvidos processos imaginativos, como brincar e representar simbolicamente29-30, e em situações que requerem a improvisação, como aquelas em que não se pode prever o que acontecerá ou cujas regras não são explícitas. São funções psicológicas essenciais para a adaptação humana, visto que a organização das atividades humanas é marcada por regras subjetivas, aprendidas de forma espontânea, a partir da capacidade de atribuir e se apropriar do sentido social e cultural das próprias vivências e das vivências dos outros. O que pessoas com desenvolvimento típico aprendem espontaneamente precisa ser ensinado a crianças com autismo através de instrução, como em processos de aprendizagem científica, escolar.
De modo geral, essas propriedades psicológicas relacionam-se com o domínio cognitivo. A esse respeito, destaca-se a estreita relação entre autismo e deficiência intelectual, ressaltada por Wing9,31, que propõe que o autismo se configura como um continuum em função do grau de comprometimento cognitivo. Assim, quanto maior o comprometimento intelectual, tanto maior é a sintomatologia.
Nesse caso, no domínio da interação social, os quadros autísticos podem variar desde a aproximação de outrem de modo bizarro até a indiferença quase total; na área de comunicação social (verbal e não verbal), variam entre uma comunicação espontânea, porém repetitiva, até uma ausência total de linguagem; podem apresentar atos imaginativos fora de situação repetitiva, usando outro como ferramenta, até nulidade de capacidade imaginativa; podem também não apresentar ou apresentar minimamente movimentos estereotipados ou ser muito marcado por esses comportamentos.9
O déficit cognitivo pode atuar como dificultador na adaptabilidade do indivíduo humano, uma vez que a inteligência permite que se encontrem soluções para um problema ou a lógica de um argumento, de maneira rápida e versátil. Segundo Tobby e Cosmides22, o ser humano dispõe inatamente de programas de raciocínio, tomada de decisões e aprendizado complexamente especializados para resolver um problema de adaptação, independente de qualquer esforço consciente ou instrução formal. São programas distintos das mais gerais habilidades de processar informação ou comportar-se inteligentemente, que tem todos os critérios e princípios dos outros mecanismos instintivos. Porém, tais mecanismos não estão íntegros no desenvolvimento de pessoas com autismo32.
c) SOCIABILIDADE E COMUNICAÇÃO
O engajamento social e a habilidade comunicativa estão entre os prejuízos centrais em pessoas com autismo33. Nesse sentido, há pesquisas que consideram que um dos principais prejuízos no desenvolvimento de autistas é na capacidade de compartilhar a atenção (joint attention)34. Como sendo uma das habilidades mais importantes da fase de lactente, a atenção compartilhada estabelece uma relação intrínseca com a comunicação social, com a imitação e inversão de papéis e da linguagem18,35.
Em crianças de desenvolvimento típico, a capacidade de compartilhar a atenção se apresenta entre seis e nove meses, quando se inicia a fase da comunicação triádica18. Na intersubjetividade secundária, ou seja, quando introduzido um objeto ou evento na relação dual (mãe-filho), as duas pessoas que se relacionam tem seus focos de atenção voltados para o mesmo interesse. Assim, itens como "não aponta o que deseja" ou "usa as pessoas como ferramenta" são comuns em escalas para diagnóstico de autismo, pois a apresentação dessas características revela que não há atenção compartilhada, já que saber apontar ou se comunicar com gestos são habilidades provenientes da intersubjetividade secundária18. O desenvolvimento da atenção compartilhada tem sido relacionado ao desenvolvimento da linguagem em pesquisas e experimentos34. Além disso, a falha nessa habilidade tem sido considerada como critério diagnóstico em diversos check-lists e o seu desenvolvimento tem sido propósito de processos terapêuticos dirigidos a essa clientela30,36.
A respeito da comunicação social e da inabilidade social do autista, outra razão que configura o autismo como grave transtorno do desenvolvimento é o prejuízo severo na capacidade de compreender estados mentais de outras pessoas2, como já referido anteriormente. A capacidade do indivíduo de inferir a respeito dos estados mentais dos outros é conhecida como "teoria da mente". Para que o indivíduo possa fazer uso da teoria da mente, é preciso que esteja equipado com uma habilidade que permita desenvolver uma medida (isto é, um sistema de referências que viabilize comparações entre nosso mundo interno, subjetivo e o mundo externo, dos outros) daquilo que os outros pensam, sentem, desejam, acreditam, duvidam38.
Essa habilidade é inata e o comprometimento, provavelmente congênito, são altamente prejudiciais para o processo de adaptação de pessoas com autismo. O homem, como ser eminentemente gregário, depende da percepção dos estados mentais dos que com ele convivem para que possa estabelecer relações entre diferentes elementos do mesmo grupo de convivência, de maneira que facilitem os processos de adaptação e, consequentemente, de sobrevivência9. A falha dessa habilidade dificulta ou mesmo impede que se explique ou preveja o comportamento de outras pessoas, dificultando, também, a interação social no seu grupo de convivência. A teoria da mente, portanto, está altamente relacionada aos processos de desenvolvimento da capacidade empática, outro aspecto de desenvolvimento tomado como inato no ser humano2,9.
Tobby e Cosmides22 referem que, da mesma forma que adultos, crianças de quatro anos têm a capacidade de perceber a direção de olhos de outras pessoas e usam disso para inferir sobre o estado mental daquele que é fitado. Numa situação real, por exemplo, quando uma pessoa está diante de várias balas, crianças a partir de quatro anos são capazes de inferir qual a bala desejada pela pessoa a partir da direção do seu olhar. Crianças com autismo, contudo, não apresentam essa habilidade 34. Essas crianças têm capacidade de computar direção visual corretamente, mas não de usar essa informação para deduzir o que alguém quer. Esse mecanismo cognitivo, que parece óbvio para pessoas com desenvolvimento típico, não deixa de ser "senso comum". Porém, o senso comum é algo causado, produzido por mecanismos cognitivos22. Para que se possa fazer inferência do estado mental de outra pessoa, é necessário um instinto de raciocínio que determine o funcionamento de um circuito de inferência.
Além disso, é importante reconhecer os sinais de linguagem não verbais, a exemplo das expressões faciais39. Autistas apresentam comprometimento na capacidade de meta-representação, de modo que tem dificuldade para compreender os próprios estados mentais, bem como o de outros, pois esse reconhecimento permite sucesso em interações sociais mais complexas, que envolvem a concepção de crenças e desejos de outrem. É necessário que, em um diálogo, por exemplo, a pessoa que fala se coloque a partir do lugar daquele que ouve. Essa habilidade empática não é encontrada em autistas, de modo que não obtém sucesso em um discurso comunicativo.
A expressão facial permite a percepção de informações vitais que caracterizam estados e atributos mentais. Apesar da habilidade para classificar objetos genéricos, esse requisito não encaminha necessariamente à presença da habilidade de identificar algo particular, como a expressão facial40. Da mesma forma que autistas conseguem captar a direção do olhar em figuras, mas não inferir sobre o desejo do personagem a partir dessa informação, também é capaz de identificar os sinais de uma expressão facial, mas não atribuir sentidos aquilo que vê.
Um dos níveis de análise é pensar o desenvolvimento humano em função de padrões e regularidades entre humanos, enquanto seres de uma mesma espécie. Nesse sentido, ao nascerem, herdam estruturas de desenvolvimento relativamente consistentes que se estabeleceram ao longo da história da espécie14. Isso faz com que alguns comportamentos sejam facilmente estabelecidos ao longo da história ontogenética da pessoa, como a facilidade para desenvolver o comportamento de apego15.
As diferenças inter e intraespécies são compreendidas como processos selecionados ao longo da história filogenética de cada uma dessas espécies e, no propósito de discussão deste artigo, da humanidade. Por isso, não se pode afirmar que o autismo é representativo de um modo de funcionamento para atender as necessidades de adaptação. Ao contrário, é um transtorno fortemente limitador desses processos, pois autistas apresentam limitações especialmente no domínio sociocomunicativo, fundamentais para o processo de adaptação.
Nesse sentido, é importante que haja a detecção precoce de risco de transtornos de desenvolvimento. Atualmente, há medidas de diagnóstico disponíveis que auxiliam profissionais a detectarem precocemente risco de diagnóstico de autismo através da comparação com parâmetros típicos de desenvolvimento, destacando-se os que privilegiam a observação clínica e o relato de pais.
A detecção do transtorno, quanto mais precoce for, mais cedo permite intervenções em situações naturais através da orientação sistemática com a família e com a criança nas áreas mais acometidas pelo transtorno, possibilitando interferências significativas no rumo do desenvolvimento16. Nesse sentido, essa perspectiva proporciona pensar as possibilidades de intervenção com pessoas com autismo, sem negar suas limitações constitutivas, mas proporcionando-lhes condições socioambientais que viabilizem o desenvolvimento de habilidades e recursos para sua melhor adaptabilidade no ambiente em que vivem.
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Correspondência para:
Ana Carolina Wolff Mota.
R. Hildo Novaes, 239 - Vila Nova Joinville/SC.
CEP 89237-345.
Telefone: (47) 3425-5649; (47) 8408-0804.
Endereço eletrônico: anacwolff@gmail.com
Recebido em: 08/ago./2010
Modificado em 26/nov./2010
Aceito em 16/mar./2011
* A opção pelo termo "adaptabilidade" tem o intuito de demarcar conceitualmente a discussão numa perspectiva ontogenética do autismo, diferenciando do conceito de "adaptação", como é tratado na perspectiva filogenética da Psicologia Evolucionista
aEntre 1980 e 1982, Edward Ritvo catalogou quase 300 famílias com membros autistas em duplicidade ou até triplicidade (entre irmãos gêmeos e outros parentescos de 1º e 2º grau)
b Exame objetivo que registra o percurso do olhar humano, por meio de raios infravermelhos que se projetam nas córneas e determinam a angulação em relação à tela, detectando as direções para onde os olhos se dirigem.