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Aletheia
versão impressa ISSN 1413-0394
Aletheia n.24 Canoas dez. 2006
ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO
Subjetividade, trabalho e solidariedade
Subjectivity, labor and solidarity
Marília Veríssimo Veronese 1
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo-RS
RESUMO
O artigo discute a importância das articulações teóricas entre subjetividade e trabalho, priorizando a análise da contemporaneidade e seus desafios, contradições e possibilidades. Apresenta como uma das possibilidades emancipatórias o trabalho associativo e solidário, organizado de forma autogestionária.
Palavras-chave: Subjetividade, Trabalho, Solidariedade, Psicologia social.
ABSTRACT
The paper discusses the importance of theoretical articulations between subjectivity and labor, prioritizing the analysis of contemporaneity and its challenges, contradictions and possibilities. It presents associative and solidary work as one emancipatory possibility, organized in a self-management way.
Keywords: Subjectivity, Labor, Solidarity, Social psychology.
Introdução
A articulação teórica entre subjetividade e atividade laboral é sem dúvida uma temática importante para a psicologia social, já que o trabalho pode ser considerado categoria central nos processos de constituição do sujeito.
Além disso, como esse campo investiga e questiona a relação das pessoas com o seu trabalho e considerando-se a configuração complexa do mundo do trabalho contemporâneo, pode-se dele partir ao trabalhar com pesquisa ou intervenção nos diferentes contextos laborais. Tais práticas poderão contribuir para a produção de saúde mental no trabalho e para além dele. Também nos cabe pensar na construção de alternativas de enfrentamento da exclusão social – que por si só a ciência em geral ilude, mas não elide –, focalizando lógicas mais solidárias no mundo do trabalho, que possam produzir inclusão digna e cidadania.
A maneira como as pessoas atribuem sentido à sua relação com o trabalho dá-se de modo singular, mas sempre a partir do registro coletivo. Não podemos pensar os processos de subjetivação como individuais, vividos pelo sujeito na construção do seu mundo interno, mas sim como processos de socialização, sempre relacionais, geradores de sociabilidades diversas. O sujeito constitui-se através dos processos socializadores nos quais se insere ativamente (deles é produto e produtor), e dos quais resultam seus comportamentos, emoções, cognições e ações.
Os processos sempre relacionais que envolvem o trabalho, que o engendram e o constituem, a partir do que se forjam ainda outras relações, necessidades e experiências, assumem, contudo, configurações peculiares, em cada contexto. Todas elas, entretanto, vão ser constitutivas da vida das coletividades que abrigam os sujeitos individuais – a consciência de si que chamamos de “eu” – e destes próprios, como alguém que age sobre o mundo para apreendê-lo. Portanto, pode-se entender muito sobre os modos de ser sujeito nas relações que engendram o trabalho, o qual assume características singulares com as metamorfoses trazidas pelo processo contemporâneo de reestruturação produtiva (Grisci, 2000; Antunes, 1999).
O trabalho, a história e o sujeito
Em termos de uma concepção de ser humano e sua articulação com o trabalho, pode-se dizer que, já nas primeiras ações sobre a natureza que nossos ancestrais empreenderam para sua sobrevivência enquanto espécie, nos inventamos e nos afirmamos como seres históricos que produzem saberes, práticas e sentidos, que compartilham códigos simbólicos e produzem a riqueza do mundo social. O ponto de ruptura fundamental é este salto qualitativo da natureza para a cultura que a espécie humana empreendeu e que determina outros elementos para mantê-la no mundo, além das forças instintuais das outras espécies, já inscritas em seu manancial filogenético2 . Ruptura parcial, dado que estaremos sempre ligados aos processos biológicos da vida na Terra; mas que define o humano também para além do biológico, no seu processo de constituição.
As formas de trabalhar estariam conectadas não apenas à produção e distribuição de produtos e serviços, mas à criação da própria vida em sociedade. Partindo desse entendimento, torna-se relevante analisar os processos de subjetivação no âmbito do trabalho, tanto para uma contribuição no plano da teoria, como também no subsídio às práticas em psicologia social do trabalho.
A “costura” dos elementos de sentido que formam o tecido social construído é a interação, ou mais precisamente a relação. Segundo Guareschi (1999), a palavra mais rica de possibilidades na compreensão dos fenômenos sociais é justamente a relação. E é nesse marco da sociedade produzida nas relações sociais, que o trabalho aparece como a “agulha” que costura a “linha” das matérias-primas e insumos da produção, dos serviços essenciais à vida e tudo o mais que é necessário à existência humana no planeta.
O ser humano é tomado como relação posto que, desde sua primeira inserção no mundo, tem de estabelecer com a alteridade uma relação – inicialmente de cuidado, – ou não se constitui como um sujeito, nem sequer sobrevive. O seu acesso ao mundo é mediado, estabelecendo-se uma relação triangular, intersubjetiva, no acesso do sujeito ao mundo no qual se desenvolve, sempre através da atividade. Na vida infantil, o “espaço potencial” é onde a criança elabora a realidade, que vai tornando-se mais apropriada na medida em que ela brinca, interage e comunica-se, segundo coloca Winnicott (1974). Esse autor considera a atividade lúdica como a base de toda a criatividade; nesse espaço produzem-se símbolos, que representam entendimentos do mundo. Sem a alteridade que demarca a diferença, a atividade simbólica humana não se sustenta.
A psicodinâmica do trabalho, segundo seu idealizador, Cristophe Dejours, concebe que o trabalho, justamente, pode ser considerado o equivalente psicossocial do jogo e do brincar infantil, no mundo adulto (Dejours, 1992; 1994). A contribuição de Cristophe Dejours para a psicologia do trabalho foi significativa, cabendo aqui uma referência mais cuidadosa. O psiquiatra e psicanalista francês que cunhou a disciplina da psicodinâmica do trabalho (com influência ainda da ergonomia, dentre outras áreas) afirma que em certas condições emerge um sofrimento que pode ser atribuído ao choque entre uma história individual, portadora de projetos, de esperanças e de desejos, e uma organização do trabalho que os ignora (Dejours, 1994).
Sua análise do conceito de organização do trabalho em termos do conteúdo da tarefa, da distribuição das responsabilidades, das relações de poder, do sistema hierárquico, do lugar onde cada trabalhador é alocado, foi importante para mostrar o impacto que ela exerce sobre a dinâmica psíquica dos trabalhadores, que podem utilizar-se de mecanismos defensivos para lidar com sua realidade, a qual proporciona sofrimentos singulares a cada indivíduo e também ao coletivo que o abriga. Tais mecanismos, embora inconscientes, podem produzir comportamentos manifestos, nem sempre favoráveis aos trabalhadores. Por exemplo, a negação do risco a que eventualmente se submetem, bem como a repressão do medo e da raiva – pois só assim conseguem ir trabalhar e continuar submetendo-se as relações eventualmente opressoras –, pode aproximar o trabalhador do acidente de trabalho, pelo qual ainda será depois culpabilizado, por ter sido “descuidado”.
Ainda segundo a teoria dejouriana, no trabalho encontramos um espaço subjetivo de elaboração de nossas angústias, as quais originaram-se no curso de nosso desenvolvimento psico-cognitivo. É na atividade laboral que, ao buscarem-se estratégias para lidar com o sofrimento, revive-se a esperança de encontrar um caminho criativo e com um sentido social útil e adequado. É aqui que o “teatro” do trabalho cumpre uma função similar ao jogo infantil; ali investem-se afetos e capacidades de aprendizagem. O estudo da psicodinâmica do trabalho direciona-se à compreensão do sofrimento gerado pelo trabalho, sofrimento este que é um estado de luta do sujeito contra forças que podem direcioná-lo rumo à doença mental.
Nesta luta o trabalhador pode elaborar soluções originais que favorecem tanto a própria produção como também a sua saúde, caracterizando-se o sofrimento criativo. Em contrapartida, esse combate pode chegar a soluções diversas, podendo levar ao adoecimento físico e/ou mental, o que o autor denomina sofrimento patogênico. Quando há uma possibilidade de consonância entre as representações simbólicas do sujeito e a realidade do trabalho, estaria caracterizada a ressonância simbólica, processo que torna o trabalho possível locus de sublimação, prazer e produção de estados de saúde mental. Para isso, seria necessário constituir um espaço público nos ambientes de trabalho, construído pelos próprios trabalhadores, no qual são partilhadas satisfatoriamente a cooperação, a confiança e as regras comuns a todos (e democraticamente constituídas). Representa o espaço da fala, da expressão coletiva e da busca de mecanismos de transformação. Se a organização do trabalho formal permitisse tais processos, poderia haver criatividade e prazer no trabalho.
Mas nesse caso, é necessário que esse espaço público fosse democrático, proporcionando o reconhecimento de cada um, pela sua contribuição ao trabalho executado. Na maioria das organizações, há muita dificuldade para constituir essa esfera pública inclusiva. As mensagens contraditórias convocam o trabalhador a cooperar e ser individualista e competitivo, ao mesmo tempo. Essa configuração provoca a experimentação de sofrimentos singulares aos sujeitos do trabalho. Alguns terão maior resiliência, outros poderão apresentar sintomas psicopatológicos; aí entram as diferenças individuais e as histórias de vida diversas.
Muitos outros autores podem contribuir na discussão trabalho e subjetividade. Segundo Iniguéz (2003), como o sujeito produz-se através da ação e da linguagem, pode-se dizer que os instrumentos de construção da realidade são discursivos – não exclusivamente, mas em larga medida –, e é com essa matéria prima discursiva que as representações se constituem, em cima do material simbólico que os sujeitos produzem, acessam, transformam e trocam entre si através dos processos comunicacionais. O conhecimento produz-se na interpretação dos sujeitos sobre o mundo, sempre no marco cultural e lingüístico. Nesses processos complexos e não lineares, a dimensão laboral da experiência humana ocupa importante lugar.
O trabalho é um fenômeno social que implica e é resultante de relações sociais, jogos políticos, interesses e disputas de poder. Está ligado à capacidade de reflexão do ser humano e também da possibilidade de comunicação com seus pares. Reflexão, é certo, que possui um limite: não se trata do sujeito auto-reflexivo em si mesmo, o indivíduo de Descartes, mas de alguém que vive a experiência, reflete, ensaia e erra, e constitui nesse processo sua própria “costura” ao mundo em que vive, sua própria fixidez.
Do salto empreendido transcendendo a escala zoológica e instituindo a ordem cultural, o trabalho esteve sempre presente, trazendo – e sendo modificado nesses processos –, as chamadas revoluções tecnológicas, como as nomeia Darcy Ribeiro (1978) no seu clássico livro “O processo civilizatório”. Elas ilustram o continuum da evolução sociocultural: as revoluções agrícola (fixidez na terra), urbana (edificações em pedra e comunidades mais organizadas), metalúrgica (ferro forjado, moeda cunhada), mercantil (relações comerciais), industrial (produção em massa, advento da fábrica) e agora informacional/cibernética, a cujos efeitos os profissionais da psicologia devem estar atentos.
Assim, ao longo da história, os seres humanos já atribuíram ao trabalho sentidos diferentes (positivos e negativos), o que significa que aqueles que trabalham sofreram processos de subjetivação também muito diversos conforme o espaço-tempo em que se inseriam. A divisão social do trabalho era absolutamente distinta na antiguidade greco-romana, do que o era idade média, ou na aurora da modernidade, ou após a revolução industrial e consolidação do capitalismo como modo de produção hegemônico no ocidente [a sociedade salarial a qual se refere Robert Castel (1999)].
Contemporaneidade, subjetividade e trabalho
Pensemos agora na contemporaneidade, e no sentido do trabalho hoje. Trabalho não é, obviamente, sinônimo de emprego, pois a conjuntura econômica, social e tecnológica modificou-se tão drasticamente nos últimos anos, que levou as pessoas cada vez mais à necessidade de pensarem formas alternativas de subsistência. As modificações sociais e econômicas ocorridas em nível mundial traduziram-se em inovações gerenciais e empresariais, que alteraram significativamente a relação dos sujeitos com o trabalho. Ou seja, é um processo que compatibiliza mudanças nas relações de produção e de trabalho, redefinições nos papéis do Estado e das instituições financeiras, visando a garantia da lucratividade e a passagem de um capitalismo de cunho industrial para um de cunho financeiro (Cattani, 2002; Santos, 1996).
A competição intercapitalista mundial, a globalização da economia feita indiscriminadamente, com a abertura dos mercados sem negociações prévias que protegessem os países em desenvolvimento, a substituição de mão-de-obra humana pela informatização são fatores que geram o desemprego estrutural, o qual por sua vez modifica as representações que possamos ter sobre emprego e trabalho; os dois termos estão cada vez mais não-coincidentes. O lugar social, e a afiliação social decorrente deste lugar, põe-se em constante perigo, portanto.
Ora, o reconhecimento e a análise desses processos macro sociais é fundamental para o entendimento do impacto que produzem no nível micro social dos ambientes de trabalho. A noção de subjetividade, antes de ser uma propriedade individual, é instância coletiva, social e histórica.
Para Rey (2003), a subjetividade pode ser definida como um processo complexo de construção simbólica de sentidos, sobre si e o mundo, simultaneamente um fenômeno da pessoa ou sujeito singular e de seu lugar sócio-histórico.
Conforme Guattari (1992), a subjetividade é plural, polifônica, e as origens de sua produção não podem ser analisadas nem no indivíduo, nem somente em termos infra ou supra-estruturais. Os processos de semiotização que estão em sua base não são dotados de fixidez, além de incluir aspectos etológicos e ecológicos.
Consideremos ainda a abordagem de Araújo (2002, p. 81): “Contemporaneamente, a subjetividade é compreendida como o modo de organizar as experiências do cotidiano, os universos de sensações e representações”.
Daí a importância de destacar a noção de subjetividade, quando a psicologia se debruça sobre o trabalho, os modos de trabalhar e as relações que ali se estabelecem, bem como a saúde mental relacionada a esses processos laborais. Ao analisar a relação entre trabalho e modos de subjetivação, vejamos o quão esclarecedor é o que afirma ainda Grisci (1998, p. 30):
(...) já é possível notar-se a pertinência contida na verificação de novas formas de subjetivação utilizadas pelo capital, no sentido de produzir trabalhadores que correspondam aos novos modos de trabalhar e de se relacionar, já que o trabalho pode ser considerado como categoria central em suas vidas.
A autora refere-se, aqui, aos modos de trabalhar tipicamente capitalistas. O capitalismo desenvolve seus modos de gestão contemporâneos conforme as exigências da produção, da lucratividade e dos mercados, demarcando o que é desejável em termos de ser e trabalhar. A reestruturação produtiva do capital pode ser caracterizada, em termos dos modos de gestão que lhe são próprios, pela substituição do modo taylorista-fordista pelo modo toyotista. O chamado “milagre japonês” influencia fortemente o mundo do trabalho, em contraponto aos modos anteriores de administração, obtendo grande expansão nos mercados internacionais. Tal modelo apresenta-nos um trabalhador subjetivamente ligado à empresa, parte de um time que compete comprometido com a organização (embora deva pensar na sua carreira como algo absolutamente individual), qualificação constante do operariado, organização que aprende (learning organization), produção just-in-time, terceirização de serviços, foco no produto e no cliente, abordagens culturalistas (formação de uma cultura empresarial gerível), filosofia da Qualidade Total, além da automatização e informatização avançadas (Cattani, 2002).
As mudanças advêm da emergência de um regime de acumulação globalizado, que vai centrar-se no trabalho vivo, cada vez mais imaterial e demandante de habilidades comunicacionais e intelectuais. Sendo assim, o que acontece com o proletariado urbano, especialmente na periferia do sistema mundo, como é o caso do Brasil? Como vivencia as transformações que envolvem “trabalho imaterial e subjetividade” (Lazzarato & Negri, 2001, p.25), caso esteja atuando nas empresas de novos designs? Mas se estiver excluído do mercado formal, para onde vai, que experiências o aguardam? Como a psicologia se posiciona, diante desses desafios? Essas são indagações que acompanham nosso saber-fazer, constantemente.
Tittoni (1994), destaca a importância da vivência, como a dimensão subjetiva da experiência. Os significados atribuídos à experiência de trabalho compõem a maneira como o sujeito apreende e expressa seu recorte singular do mundo, vivenciando-o no espaço da subjetividade. “(...) existe uma dinâmica da construção da cultura que está vinculada, de modo direto, às experiências vividas em um determinado momento” (p. 29).
O momento histórico que vivemos traz, na sua própria dinâmica, transformações no sujeito que se relaciona com a produção, o consumo, a exploração no trabalho, a exclusão do trabalho ou as demais interfaces sociais que vivencia. A contemporaneidade, espaço-tempo definido por Harvey (1989) como aquele que se inaugurou no início da década de setenta, a partir dessas metamorfoses sócio-políticas-econômicas, engendra configurações subjetivas chamadas por alguns de pós-modernas, sem que haja consenso sobre isso nas ciências sociais. Cabe aqui uma parada para reflexão nesse tema que é hoje objeto de preocupação para quem deseja entender o tempo que vive através da reflexão, o “dobrar-se sobre si mesmo” de Guareschi (2003) que questiona os pressupostos para ampliá-los.
Os autores divergem quanto à nomenclatura utilizada para falar da contemporaneidade: Modernidade líquida, ou “mole” (Bauman, 2001); Modernidade tardia (Giddens, 1991), modernidade reflexiva (Beck, Guiddes & Lash, 1994), pós-modernidade. Elejo o termo contemporaneidade para referir-me ao tempo presente (que inclui o passado recente), sabendo que os elementos que estão presentes nas discussões desses e de tantos outros autores fazem parte de meu entendimento sobre o tema.
Fluidez – propriedade de líquidos e gases, daí o termo utilizado por Bauman –, parece a metáfora adequada para explicar a natureza da presente fase, nova sob muitos aspectos. Os fluxos de capital circulam celeremente, as empresas diminuem de tamanho (eventualmente crescendo em poder), o tempo adquire uma urgência e rapidez sem precedentes, o trabalho volatiliza-se, a mídia transforma a relação das pessoas com o mundo.
Rockefeller apegava-se à suas sólidas e bem plantadas fábricas, estaleiros, propriedades que podiam durar a vida toda e além dela, muitas vidas mais. Bill Gates, entretanto, ganha dinheiro – e muda de produto – com uma velocidade quase etérea, e reciclagem é a palavra mágica no seu negócio. A comparação desses dois milionários, cada um no seu momento histórico, é paradigmática das mudanças (Bauman, 2001). O autor, na p. 173, sintetiza brilhantemente as mudanças que atingem contemporaneidade, trabalho e sujeito: “Tendo se livrado do entulho do maquinário volumoso e das enormes equipes da fábrica, o capital viaja leve, apenas com a bagagem de mão – pasta, computador portátil e telefone celular.” Projetos custosos e compromisso (entre capital e trabalho) de longo prazo, estão fora de questão.
O sujeito, enquanto trabalhador e cidadão, vive como no labirinto: Disperso, sem caminhos pré-definidos, procurando atabalhoadamente uma saída, e eventualmente perdendo-se. Sobre o labirinto, o sociólogo polonês ainda refere que o conceito sugerido por Jacques Attali, o labirinto, expressa como nos vemos no mundo de hoje. Ele representa a complexidade, a falta de clareza e das referências fixas, o sistema tortuoso. As promessas iluministas e a certeza da razão instrumental balançam e trepidam, nas convulsões que liqüefazem a sociedade contemporânea.
A substituição parcial – nunca total – do ser humano pela máquina e/ou softwares (tanto o corpo como a mente são, algumas vezes, dispensáveis à produção) têm impacto certo sobre o psiquismo e sobre a identidade dos que trabalham, tanto em emprego formal como em auto-emprego individual ou coletivo (pequenos empreendimentos, cooperativas, associações etc). A identidade individual é uma consciência de si mesmo, que podemos apreender através das instâncias intrapsíquicas, ou de nossos sistemas de percepção, sensibilidade, afeto, memória, representação, valor etc.
Outro pensador que dedica-se a decifrar a contemporaneidade e suas relações de poder-saber é Boaventura de Sousa Santos. O autor tem vindo a sustentar, em vários trabalhos, a idéia de que vivemos um período de transição paradigmática, a partir da obsolescência das promessas da modernidade – paradigma ainda dominante, embora em crise –, e do surgimento de novas formas de conhecer e de viver, que chama de paradigma emergente. Argumenta que é impossível nomear com exatidão a situação atual, pois as transições são por demais complexas e multifacéticas para revelarem-se com clareza para quem as vivencia; daí o desafio que se coloca para as ciências sociais, ao pretenderem dar conta da análise e intervenção nesse contexto em mudança.
Para Santos (2000), as mudanças se expressam em dois campos, o epistemológico e o societal. Ou seja, muda o conhecimento e mudam as práticas sociais, portanto alteram-se também os processos de subjetivação e as dinâmicas identitárias. Os diversos paradigmas convivem, interpenetram-se, competem, tudo acontecendo simultaneamente. Afirma que para navegar esses territórios movediços, faz-se necessário uma nova psicologia, juntamente com a nova epistemologia; pois são precisos novos processos de subjetivação e o reconhecimento desses novos modos de ser. Da mesma forma, a superação epistemológica seria o ato de passar do conhecimento-regulação para o conhecimento-emancipação (Santos, 2000; 2002; 2004).
Nas mutações que o mundo sofreu a partir das rupturas com modos anteriores de trabalhar e viver, a idéia de indivíduo sufocou a idéia de cidadão. Este último busca seu bem-estar através do bem-estar da cidade; o primeiro tende a ignorar a noção de “bem-comum”, ou “sociedade justa”, pois o seu bem-estar é algo dissociado dos outros. Ele deve cuidar sozinho de seus interesses, de sua carreira profissional e de seus problemas, que muitas vezes acabam sendo compreendidos como questões exclusivamente intrapsíquicas. Os livros de auto-ajuda (e alguns são grandes sucessos editoriais), oferecem soluções individualizadas para problemas que, na verdade, têm origem social. Sua mensagem é direcionada a cada indivíduo isoladamente; como se dependesse exclusivamente de uma atitude individual decidida e competente a obtenção de um emprego, felicidade, sucesso etc (Barcelos, 2002). Nessa perspectiva, a empregabilidade torna-se responsabilidade de cada indivíduo, exclusivamente. Os que não se adaptam, por diversos motivos, ficam fora do jogo; mas a “culpa”, nesse caso, seria somente deles. A solidariedade, assim, fica sufocada pela legitimação do individualismo.
Para superar o individualismo como paradigma estruturante de conduta, Carlos Rodrigues Brandão propõe a noção de eutro (Brandão, 1998, p. 104). Para o autor, somos um eu, mas irremediavelmente ligados ao outro. Esse eu é plural e múltiplo, não-linear e experimenta diversas posições identitárias, conforme esse outro cultural, discursivo, simbólico, vai lhe acrescentando a diferença que o desestabiliza. Ao ir além do individualismo, na compreensão dos processos sociais, pode-se abrir caminho ao entendimento de que o trabalho oferece um campo de aprendizagem e crescimento para os que nele interagem. Essa compreensão pode gerar práticas laborais criativas e mais dialógicas, relações de trabalho mais simétricas e enriquecedoras.
Solidariedade e trabalho
Atualmente, a sociedade tem produzido respostas variadas aos desafios da inclusão social digna, ou do resgate do trabalho como suporte identitário. Uma delas é o trabalho associativo, autogestionário. Pesquisas recentes tentam compreender o sujeito que se constitui nos processos autogestionários de trabalho, como um contexto em construção, no qual circulam discursos e produzem-se práticas que supostamente valorizam a autonomia e a solidariedade, buscando a constituição de uma comunidade de aprendizagem no trabalho. São as práticas conhecidas como economia solidária (Cattani, 2003; Veronese, 2005a e 2005b; Andrada, 2005). Sabe-se que dificuldades e contradições obstaculizam esses propósitos, também conforme mostram outros estudos já conduzidos (Gaiger, 2004; Santos e Rodriguez, 2002). Mas a emergência de modos mais solidários de produzir, distribuir e consumir evidencia as potencialidades positivas da contemporaneidade, que também engendra seus novos processos de subjetivação no sentido emancipatório.
A economia solidária abrange um amplo espectro de expectativas, experiências e práticas: associações, cooperativas autogestionárias, empresas recuperadas, grupos de poupadores, redes internacionais de consumo ético etc. Como princípios geradores de sua ética, estão os valores de sustentabilidade social e ambiental. Muitas experiências populares de produção econômica e de geração de renda, no Brasil e em outros países, estariam formando uma economia popular fundada na cooperação solidária e integrada à economia de mercado, segundo uma lógica não-mercantil (Singer, 2002). Nelas residiriam alternativas consistentes para os setores de baixa renda e as classes trabalhadoras, diante dos processos de empobrecimento e de desocupação estrutural que os atingem (Gaiger, 1999).
A autogestão diferencia-se da heterogestão onde a alta cúpula decide, orienta e define os rumos dos processos da e na produção. Na autogestão, as decisões deverão dar-se no coletivo, discutindo-se em grupo quais são as ações prioritárias; é definida como o conjunto de práticas que propicia a autonomia de um coletivo responsável pela concepção e decisões dos processos de gestão, entendida como um fenômeno multidimensional que ultrapassa a noção de gerência, abrangendo aspectos políticos, técnicos, psicossociais etc (Albuquerque, 2003). E, certamente, exige novos processos de subjetivação, para que se potencialize a ação coletiva dos trabalhadores, através das relações entre sujeitos individualmente propensos ao enfrentamento desses desafios. Sujeitos capazes da operação crítico-reflexiva de pensar na própria existência, tomando decisões e compartilhando dificuldades.
A autogestão como princípio organizador da vida econômica e social não é uma idéia nova, tendo sido a base para o socialismo utópico no século XIX, bem como para o movimento cooperativo que teve seu berço nos primórdios do capitalismo industrial, como uma reação dos trabalhadores, considerando o forte antagonismo de classe que se estabelecia na época. A Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e de Participação Acionária – ANTEAG – define a autogestão como o controle dos meios de produção e da gestão do trabalho pelos trabalhadores (ANTEAG, 2000).
Espera-se a emergência de uma sociabilidade comunitária, onde sujeito e coletivo sejam dimensões complementares e onde os conflitos – inevitáveis onde haja pessoas em relação – sejam trazidos à esfera pública (no sentido de Dejours, descrito no início desse texto) e devidamente reconhecidos.
Também nas empresas heterogestionárias, os princípios da autogestão têm inspirado modelos de gerenciamento mais abertos, participativos e coerentes com as necessidades dos que trabalham, em qualquer nível hierárquico.
Cartografar os caminhos possíveis nesses novos tempos, no âmbito do trabalho e para além dele, é uma tarefa altamente desafiadora; mas receio que não nos reste outra escolha, pois não fazê-lo implica em aceitar a realidade como esgotando-se no que já existe, aceitando-a só porque existe. Acredito que temos o direito de desejar e experimentar cada vez mais e melhores alternativas.
Referências
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Endereço para correspondência
E-mail: mariliav@unisinos.br
Recebido em março de 2006
Aceito em agosto de 2006
Autora
1 Marília Veríssimo Veronese Doutora em Psicologia (PUCRS); Docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo-RS
2 Filogênese refere-se à constituição da espécie, enquanto ontogênese refere-se à constituição do ser