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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.26 Canoas dez. 2007

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

O trabalho do psicólogo na mediação de conflitos familiares: reflexões com base na experiência do serviço de mediação familiar em Santa Catarina

 

The psychologist’s work in family conflict mediation: reflections based on the experience of the family mediation service in Santa Catarina

 

 

Fernanda Graudenz MüllerI,*; Adriano Beiras**; Roberto Moraes CruzI,***

I Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A mediação familiar é uma alternativa à justiça estatal para a dissolução do vínculo conjugal e dos conflitos decorrentes desse rompimento. O objetivo deste artigo é refletir sobre o trabalho do psicólogo na mediação de conflitos familiares, com base na experiência do Serviço de Mediação Familiar (SMF), Florianópolis/SC, considerado um programa pioneiro no Brasil. O SMF traduz a necessidade de constituição de serviços de mediação na sociedade brasileira no sentido de promover eficácia social na resolução de conflitos no sistema judicial: autonomia dos envolvidos na solução de seus conflitos, economia processual (tempo, dinheiro) e pessoal (afetivo-emocional), competência relacional (compreensão da natureza do vinculo/rompimento). O trabalho de mediação de conflitos contribui na avaliação dos limites e oportunidades de inserção de psicólogos no campo jurídico, especialmente no que tange às políticas publicas de atenção social.

Palavras-chave: Mediação, Conflitos familiares, Trabalho do psicólogo.


ABSTRACT

Family mediation is an alternative to state justice for the dissolution of the matrimonial link and the consequential conflicts of the break up. The purpose of this article is to reflect about psychologist work at the Family Mediation Service (FMS), a pioneer program in Florianópolis, Brazil. This service reflects the necessity to promote social efficacy in conflict solution on the juridical system: autonomy of involved subject, processual economy (both in time and cost), as well as personal effects (both affective and emotional), relationship skills (comprehension of the nature of the link/break up). Mediation work contributes to evaluate the insertion opportunities of psychologists in this juridical field and the capacity to attend socially significant needs.

Keywords: Mediation, Family conflicts, Psychologist work.


 

 

Introdução

As constantes mudanças que ocorrem na sociedade, especialmente no campo dos contratos, dos conflitos sociais e dos valores inerentes ao universo das famílias constituem aspectos fundamentais à reflexão e ao desenvolvimento de um processo de formação de psicólogos no trabalho de mediação de conflitos familiares.

Contemporaneamente, a multiplicidade e a complexidade dos tipos de família &– as denominadas famílias plurais &– ensejam situações reais as quais estão requerendo ponderações, estudos e pesquisas dos profissionais ligados a essa esfera. Nesse sentido, uma das questões que merece atenção diz respeito à maneira de resolução dos conflitos que eclodem no sistema familiar decorrentes da separação do casal. O processo judicial originado do rompimento da união é apenas o aspecto superficial e derradeiro dessa situação, haja vista que o desamor inicia normalmente antes de uma das partes procurar a dissolução oficial do vínculo, para cuja decisão já concorreu sofrimento e dor (Müller, 2005a).

As leis e o Direito regulamentam as relações para possibilitar a vida em sociedade. Mas existem aspectos dessas relações &– tais como os emocionais &– que não são passíveis de enquadramento legal. Em geral, nos casos de separação, o motivo aparente que mantém o litígio na esfera judicial é, em regra, patrimonial, portanto objetivo e passível de divisão, e por isso comportaria uma acomodação satisfatória para ambas as partes envolvidas. O litígio apresentado consciente e objetivamente por intermédio de um processo judicial dissimula situações dolorosas relacionadas à experiência de rompimento do tecido emocional, construído ao longo do processo de convivência interpessoal. Com efeito, aspectos emocionais geralmente estão imbricados no discurso lógico presente nos conflitos instanciados judicialmente.

Genericamente, os operadores do Direito, responsáveis pelos métodos tradicionais e adversariais de resolução de conflitos não desenvolvem, ao longo do seu processo de formação profissional, competências para lidar com aspectos psicológicos, no qual é valorizado geralmente a necessidade de subsumir a situação real a uma lei, ou seja, de fazer o denominado raciocínio silogístico1 . Isso significa que, quando uma pessoa, diante de um conflito com uma outra, recorre a um advogado, esse profissional requer em juízo, conforme a lei, que um terceiro estranho à relação familiar (juiz de Direito) declare “de quem é o direito”. A outra pessoa, contra a qual a ação foi ajuizada é chamada a responder, também por meio de um advogado (Müller, 2005a).

Jurisdicionada2 a situação, na qual é necessário desenvolver uma racionalidade, o que aflora é uma luta pela razão3, quando o substrato do conflito é em geral emocional. Essa luta pela razão, entende Müller (2005a), faz com que desse momento em diante fique estabelecido entre os advogados um duelo forense, eivado pela competição e vaidade profissional, da qual decorre um jogo de sobreposição de razões que impede a compreensão das dimensões sociais, afetivas, morais e suas respectivas repercussões na família. Os legítimos atores &– nesse caso, denominados de autor e réu &– tendem a ser colocados em segundo plano, com seus medos, angústias e aflições, sentimentos que são potencializados ante o temor do processo judicial.

São observáveis, nesse procedimento judicial, relações de poder e submissão, baseadas na lógica disjuntiva, maniqueísta e binária do ganhar-perder4 . O que passa a ter relevância, confirmam o juiz de Direito Maurique (2001) e o Procurador de Justiça Bisol (1999), é a solução jurídica do litígio, distante da emocional, conduzindo, na maioria das vezes, à perpetuação do conflito. Tal cultura, que contribui para aumentar as diferenças incompreendidas entre os disputantes, reduz a eficácia social da solução de conflitos na sociedade.

A experiência de uma separação, embora muitas vezes sofrida, pode significar uma transformação positiva das relações e também dos envolvidos, ou seja, ser um trampolim para um salto de possibilidades. Nesse entendimento, a mediação de conflitos é o método de solução de controvérsias que trabalha na perspectiva de que o conflito ou a crise possui um potencial transformativo (Müller, 2005a).

Além disso, por meio da mediação é possível perceber e considerar, além dos elementos objetivos antes referidos (p. ex. as questões patrimoniais), os afetivos (por ex. os sentimentos) e inconscientes (p. ex. o que não é verbalizado; atos falhos, etc.) dos conflitos, ultrapassando as questões jurídicas, que consideram apenas aspectos objetivos, para auxiliar numa solução aditiva, ou seja, que soma e agrega, tendente ao holísmo5 , dado que quando alguém está com um conflito na esfera familiar (separação, disputa de guarda, investigação de paternidade etc.) seus problemas ultrapassam os elementos jurídicos, essa pessoa diz algo e nessa fala, e em seu corpo, existe um algo “por dizer”. Esse “por dizer” é também da esfera psicológica e normalmente o que acarreta e sustenta o conflito, chancela Pereira (2000). Dessa forma, é necessário perceber a situação como um todo.

A mediação, utilizando técnicas da Psicologia, em especial das Psicoterapias, tais como a sumarização positiva, o resumo e o enquadre, amplia e torna mais compreensíveis as diversas mensagens e mostra a importância da escuta não nervosa, da interpretação do que está por detrás do discurso, da linguagem corporal etc. Ocorre que justamente as variáveis psicológicas do conflito familiar tornam esse tipo de mediação o mais complexo, pois envolve, como mencionado, além de aspectos objetivos, aspectos emocionais e inconscientes.

Nessa linha de raciocínio, muito embora ainda prevaleça em nossa cultura o paradigma disjuntivo do ganhar-perder, cuja lógica binária e determinista limita opções possíveis, o contexto de interação social contemporâneo vem propiciando, conforme Schinitman (1999), a criação de novos ramos do conhecimento científico e de novas perspectivas relativamente às ciências, o que exige meios tecnológicos apropriados para o fomento de métodos inovadores de resolução de conflitos. A mediação é um desses métodos.

Mediação, conforme Ferreira (2001, s/p), advém do latim mediatione que significa intercessão, intermédio [...] intervenção com que se busca produzir um acordo. [...] Derivado do verbo latino mediare &– de mediar, intervir, colocar-se no meio (Müller, 2005a).

Segundo Mello (2004), não há dados concretos quanto ao marco histórico inicial da mediação. Contudo, esta prática remonta à antiguidade chinesa, por influência da filosofia de Confúcio, calcada na reciprocidade, na paz e na compreensão. Nesse sentido, sustentam Breitman e Porto (2001), a mediação de conflitos, embora contemporaneamente seja um procedimento inovador, tem suas origens e razões na civilização chinesa, com aproveitamento de costumes e utilização de antigas descobertas em situações semelhantes. A mediação foi retomada em nosso país com o modelo oriundo da Lei da Arbitragem. São temas antigos, porém com nova roupagem.

A mediação caminha no sentido oposto à do conflito judicial, o qual origina um ganhador e um perdedor. Bush e Folger (1996) coadunam com Schinitman (1999) ao conceituarem a mediação. Para eles, a mediação pode ser entendida como um método de solução de conflitos no qual as partes envolvidas recebem a intervenção de um terceiro, o mediador, que contribui, por meio da reabertura do diálogo, a chegar a possibilidades inventivas para a solução da disputa, em que ambos fiquem satisfeitos.

Dessa forma, a mediação é um método de solução de disputas flexível e não vinculador, pelo qual um terceiro neutro facilita o diálogo entre as partes para ajudá-las a chegar a um acordo (Highton & Álvarez, 1999). É observável que na mediação, diferentemente da arbitragem, não é o mediador quem decidirá ou trará a solução, mas sim, as próprias partes. Uma de suas peculiaridades, conforme Müller (2005a), é a capacidade de expansão das discussões tradicionais que são feitas para chegar a um acordo, ampliando-as para além das questões jurídicas envolvidas, como já foi dito.

Ante o exposto, uma das possibilidades de trabalho de psicólogos em contextos jurídicos é nos processos de Mediação Familiar. Segundo Ávila (2002), a mediação familiar proporciona uma separação menos traumática e mais humana, considerando que as formas tradicionais de finalizar um casamento ou união estável não estão suprindo as reais necessidades dos envolvidos e de seus filhos.

De acordo com Moore (1998, p.22), a mediação é um “prolongamento ou aperfeiçoamento do processo de negociação que envolve a interferência de uma aceitável terceira parte, que tem um poder de tomada de decisão limitado ou não autoritário”. Para esse autor, o mediador tem a função de ajudar os conflitantes a chegarem voluntariamente a um acordo mutuamente aceitável das questões em disputa. Haynes e Marodin (1996) afirmam que “o mediador é o administrador das negociações, é quem organiza a discussão das questões a serem resolvidas” (p.11).

No entendimento de Folger e Bush (1999), que transcende a compreensão recém referida, a mediação de conflitos é o método de solução de controvérsias que trabalha na perspectiva de que o conflito ou a crise possui um potencial transformativo. Esses autores, em sua obra La promessa de la mediacion (1996), advogam que o conflito é parte integrante da vida e capaz de gerar transformações e que o processo de mediação revela uma capacidade própria de mudança nas pessoas e promove um crescimento ao auxiliá-las em situações difíceis, tais como as decorrentes de um conflito.

Conforme Müller (2005b), a mediação de conflitos é uma técnica estruturada de resolução de controvérsias na qual os disputantes buscam ou aceitam a intervenção de um terceiro imparcial e qualificado, o mediador. Esse facilitador os auxilia &– por meio da reabertura do diálogo &– a encontrar soluções criativas e alternativas para o conflito, na qual ambos ganhem. Portanto, na mediação a decisão não é imposta por um terceiro. E esse é um aspecto significativo e diferencial de seu procedimento: não é o mediador quem trará a solução &– como ocorre na justiça estatal &– mas sim as próprias partes. Por isso, o acordo mediado traz uma solução mutuamente aceitável e será estruturado de forma a preservar as relações dos envolvidos no conflito. Dessa forma, o maior êxito desse método ocorre quando ambas as partes têm algo a ganhar se o conflito é solucionado negociadamente, vale dizer, quando as pessoas vão, ou deveriam, seguir se relacionando no futuro, como é o caso de casais em separação e com filhos.

Nesse sentido, é perceptível que a mediação é destinada àqueles que prezam a relação pessoal ou de convivência com aquele com quem se está em conflito ou desta relação não pode renunciar; por quem se disponha a revisar posições anteriormente assumidas na busca de soluções para o embate; por quem desejar ser o autor da solução escolhida e ainda por quem busque rapidez e confidencialidade no processo e opte pelo seu controle, conforme argúem Almeida e Braga Netto (2002).

De acordo com Moore (1998), nos último trinta anos, o uso da mediação tem sido disseminado como técnica de resolução dos mais diferentes tipos de conflitos, tais como os decorrentes de relações trabalhistas e comerciais, disputas étnicas, disputas econômicas, escolares e de instituições de educação, de política ambiental e social e de conflitos familiares.

No Brasil, algumas experiências pioneiras de mediação vêm sendo destacadas e por isso multiplicadas em diversas cidades. Este artigo apresenta a experiência de um Projeto Piloto implantado pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) nas Varas de Família do Foro Central da Comarca de Florianópolis.

Não regulamentada no Brasil, embora prestes a sê-la, como adiante será relatado, a mediação é uma alternativa válida e eficaz para a resolução de conflitos relacionados à separação judicial. As experiências de diversos países, tais como Argentina e Canadá, assim o demonstram. O Canadá inclusive, é pioneiro em estudos de mediação de conflitos familiares e “desde 1.º de setembro de 1997, o governo de Quebec aprimorou o instituto da mediação familiar, com a promulgação de lei, dispondo que casal e crianças envolvidos em conflito familiar terão acesso a uma sessão de informação e a cinco sessões gratuitas de mediação” (Barbosa, 2004, p.02).

Na realidade nacional, a mediação está em estágio inicial e experimental. Apesar de já contar com mediadores provindos das mais distintas profissões e com o apoio de algumas seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), existem resistências de ordens diversas, muitas delas decorrentes do desconhecimento do processo de mediação. Exemplo disso é que a população, de modo geral, ainda costuma delegar aos operadores do Direito as decisões de seus conflitos, situação oposta à da mediação, na qual, salientamos, os próprios conflitantes são responsáveis pela solução de seus problemas, sendo o mediador uma parte imparcial e tão somente responsável por auxiliar a que as partes consigam comunicar-se funcionalmente.

A mediação familiar no contexto de separações judiciais surge, parafraseando Ávila (2002) como, “uma forma inovadora de abordagem jurídica e também como alternativa ao sistema tradicional judiciário para tratar de conflitos”, na qual dois aspectos são fundamentais: a cooperação entre as partes e a disponibilidade de solucionar o conflito para que aconteça um acordo entre os envolvidos.

 

O projeto piloto de Mediação Familiar do TJSC

O Serviço de Mediação Familiar &– SMF &– é um projeto que iniciou em setembro de 2001. Conforme informações disponíveis na página principal do Tribunal de Justiça na internet6 , o Poder Judiciário do Estado de Santa Catarina, motivado pela experiência bem sucedida no Canadá, Estados Unidos e Inglaterra em relação à utilização de métodos alternativos e não adversariais de resolução de conflitos, instituiu, pela Resolução nº. 11/2001-TJ/SC, o SMF, que tem como escopo oferecer aos envolvidos em disputas familiares um método para a sua resolução mais rápido, acessível e menos oneroso: a mediação de conflitos.

O mediador, no entendimento do Tribunal de Justiça7 , trabalha buscando a satisfação das pessoas na solução do conflito, para que não haja vencedor e vencido, mas para que ocorra mútua cooperação entre os envolvidos e, por conseqüência, uma diminuição do número de processos litigiosos sendo ajuizados. Nesse sentido, o SMF instituído na Comarca da capital e em outras Comarcas, executado por equipe multidisciplinar composta por assistentes sociais, psicólogos e advogados, auxilia no atendimento de casos complexos e, em geral, desgastantes para os pais, seus filhos e outros envolvidos (Müller, 2005a).

Ademais, a mediação nos conflitos familiares tende a contribuir para o efetivo exercício da cidadania, pois enseja a solução de conflitos pelos próprios envolvidos, deixando nas mãos do juiz de Direito somente o que não foi possível mediar. Cabe referir que as informações constantes na página da internet indicada referem ainda que o envolvimento de Universidades é fator essencial na propagação do SMF, tendo em vista que a parceria efetuada entre as instituições oferece suporte teórico e prático para as atividades desenvolvidas, o que garante a interdisciplinaridade que o método propõe (Müller, 2005a).

O SMF foi implantado pela assistente social Eliedite Mattos Ávila, funcionária do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que fez seu mestrado na Universidade de Montreal, no Canadá8 . Ela teve como objeto de estudo a mediação familiar, trazendo desse país seu modelo e adaptando-o à realidade brasileira. O SMF foi introduzido, como dito alhures, para solucionar por meio da mediação, os conflitos decorrentes do rompimento do vínculo conjugal, tais como os relacionados a alimentos, divisão de bens, guarda dos filhos, regulamentação de visitas e modificação de guarda.

Em relação ao funcionamento do SMF de Florianópolis: quando uma pessoa procura, no setor de informações do Foro, o equivalente à defensoria pública, ou seja, um advogado pago pelo Estado para fazer a defesa de pessoas consideradas carentes e sendo seu conflito decorrente de relações familiares, ela é informada sobre o SMF e encaminhada para o respectivo setor. O SMF dispõe do procedimento de triagem, no qual é sucintamente explicado ao interessado o que é a mediação e como funciona. Além de informações prestadas ao solicitante, na triagem é indagada sua condição sócio-econômica, dado que somente são aceitos os casais cuja renda familiar seja de até 10 salários mínimos.

Tendo o interessado preenchido os requisitos necessários (interesse no processo de mediação, disponibilidade e renda compatível), é marcada a primeira sessão de mediação. De um modo geral, o serviço é procurado por apenas um dos separandos. Nesse caso, o outro é informado e solicitado a comparecer no serviço, por meio de uma carta, geralmente entregue pela própria pessoa que procurou o setor de mediação.

O número de sessões de mediação familiar nos SMF está programado para dispor de duas a quatro sessões. O SMF conta com mediadores provindos de diversas áreas, tais como do Serviço Social, do Direito e da Psicologia, como antes referido. Esses profissionais passam por um curso de base em mediação familiar, ministrado pela própria instituição e por um treinamento prático inicial dentro do projeto. O SMF dispõe também de advogados plantonistas, os quais são chamados a solucionar dúvidas jurídicas durante o processo de mediação &– a fim de auxiliar na manutenção da imparcialidade do mediador &– e para acompanhar o casal na audiência, na qual eles serão ouvidos pelo magistrado e ratificarão, ou não, seu desejo de separação, bem como os demais itens do acordo mediado. Ao final, o acordo é homologado pelo magistrado.

O SMF funciona em dias úteis, das 13 horas às 19 horas, ao longo do ano judiciário; foi implantado também em outras cidades, bem como estão em fase de implantação em outras Comarcas de Santa Catarina.

As etapas do processo de mediação

Na SMF da Comarca de Florianópolis, a mediação de conflitos possui as seguintes etapas: introdução ao processo de mediação, verificação da decisão de separação, negociação das responsabilidades parentais, negociação da divisão dos bens, negociação das responsabilidades financeiras e redação do termo de acordo. No primeiro encontro, o mediador cria uma atmosfera apropriada para as negociações, objetivando manter a postura imparcial, que significa, conforme Müller (2005a), demonstrar não ser tendencioso em relação a um dos envolvidos, bem como uma conduta desinteressada em relação às conseqüências do eventual acordo alcançado. Nesse momento são apresentadas as informações básicas dos conflitantes por esses, permitindo com que seja revelada a motivação do casal para a separação, identificando os anseios e, por fim, mas de suma relevância, desenvolvendo o inicio da empatia e cooperação.

É nessa fase que o mediador apresenta os objetivos e as exigências da mediação, explica o seu papel e apresenta algumas regras, tais como: respeito pelo outro, suspensão dos procedimentos judiciais durante a mediação, a impossibilidade de obrigar o mediador a testemunhar, o sigilo sobre as sessões, divulgação de todas as informações financeiras para as negociações sobre a divisão dos bens e a pensão alimentícia, entre outras.

Num segundo momento, o mediador procura discutir com o casal a decisão de separação. De acordo com Ávila (2002, p. 39), nessa etapa “a tarefa do mediador consiste em identificar a natureza dos conflitos escondidos ou dos expressos abertamente pelo casal”. Confirmada a decisão pela separação são iniciadas as negociações das responsabilidades parentais, as quais estão relacionadas a questões de guarda, visitas, férias e pensão alimentícia. O objetivo é garantir o bem estar dos filhos e ressaltar os interesses comuns e necessidades de cada uma das partes.

Uma etapa difícil e neste caso peculiar, dado que a experiência piloto ora relatada abarca famílias de baixa renda, é a divisão dos bens. Nesse tópico, referem Haynes e Marodin (1996, p. 80) que o “o mediador precisa entender o que prevê a lei, porém não ser limitado por ela”. Segundo esses autores, ocorrendo uma limitação à lei, a mediação tornar-se “um processo que importaria aos clientes o mesmo resultado que um tribunal. (...) A mediação é um processo de poder que dá aos clientes o direito e a habilidade pra determinar o que consideram justo para a família”.

Em seguida, são negociadas as responsabilidades financeiras. Essa fase, para Ávila (2002), está relacionada à organização da vida após a separação. É feito um levantamento da situação financeira dos conflitantes com o intuito de averiguar suas necessidades econômicas, bem como as possibilidades que cada um demonstra para arcar com as mesmas. Caso haja consenso e o casal chegue a um acordo, é redigido um projeto de acordo, no qual as decisões tomadas são colocadas no papel e revistas pelo casal e pelo advogado de plantão no setor de mediação. Após essa etapa, é marcada a sessão de homologação de acordo com o juiz.

Avaliação do serviço &– dados estatísticos do ano de 20049

Durante o ano de 2004 foram realizados 1.652 atendimentos de triagem, sendo que desses, 886 foram encaminhados para as sessões de mediação de casal e 766 caracterizaram-se por serem orientações gerais e também encaminhamentos para outros setores judiciais. Esses encaminhamentos ocorrem, por exemplo, em situações como as separações nas quais uma das pessoas envolvidas ou ambas radicalizam suas posições, inviabilizando qualquer acordo, sendo orientadas a buscar alguma solução com advogado do Estado; também é inviabilizada a mediação nos casos em que o paradeiro do cônjuge é desconhecido. Há ainda encaminhamentos para o Conselho Tutelar, para serviços de psicoterapia, pedidos de alvará judicial, situações em que o conflito apresentado é de competência territorial de outros Fóruns de Justiça, entre outros.

Na triagem, muitas pessoas buscam apenas informações e orientações jurídicas sobre sua separação, bem como a aqueles que expõem seus conflitos como forma de desabafo, sem necessidade de intervenção específica. Algumas revelam, ao ouvirem as informações na triagem, sua intenção de repensar sua vida conjugal para evitar o ingresso de ações litigiosas prematuras. Uma observação cotidiana é que, genericamente, as queixas são de cunho psicossocial, relacionadas a questões de vínculo afetivo e não atinentes aos bens materiais implicados na situação, por exemplo.

Dentre os casos encaminhados para as sessões de mediação, foram homologados um total de 228 acordos (26%); 120 (14%) foram encaminhados para ação judicial litigiosa e 538 (60%) foram casos arquivados no setor. Desse total, o numero de reconciliações é o mais elevado, e os demais terminam como acordos informais ou pelo não comparecimento de uma das partes. Há ainda os casos em acompanhamento ou agendados.

Os tipos de homologações judiciais estão relacionadas a: dissoluções de sociedade de fato (37%), separações de direito (26%), alimentos (14%), divórcios diretos (20%) e guarda, modificação de guarda e visitas (3%). Para a realização dos acordos, têm sido feitas, em média, duas sessões de mediação com cada casal. Dentre essas estatísticas, o baixo índice de casos que efetivamente necessitam de uma ação judicial litigiosa (14%) evidencia que a mediação familiar auxilia na diminuição dos processos judiciais, confirmando a eficácia da mediação na pacificação social.

Com relação ao perfil do usuário do serviço deste projeto piloto, os seguintes dados forma colhidos de uma pesquisa documental dos arquivos do SMF: 71% das pessoas que procuram o serviço na triagem são do sexo feminino; 47% correspondem a faixa etária entre 20 e 30 anos de idade; 66 % dos usuários estão desempregados; 32% desejam resolver a questão da pensão alimentícia; 55% possuem apenas um filho; 42 % tem o ensino fundamental incompleto e 41% tem renda fixa de dois salários mínimos.

Além da Comarca da Capital, o serviço já foi implantado nas seguintes cidades do Estado de Santa Catarina: Joinville, Balneário Camboriú, Ituporanga, Dionísio Cerqueira, Itajaí, Aberlardo Luz, Anchieta, Catanduvas e São José. E estão em processo de implantação as comarcas de Chapecó e Concórdia. O projeto conta com parcerias de Universidades, entre outras instituições.

Reflexões sobre o SMF de Florianópolis

O número reduzido de sessões de mediação &– em média duas &– realizadas no SMF de Florianópolis é a primeira reflexão a ser feita, sobretudo porque no ano de 2005 os dados estatísticos parciais mostram que essa média caiu para 1,3 para cada acordo. Nesse sentido, cabe questionar: ocorre um processo de mediação familiar ou uma conciliação10 ; os acordos que porventura são assinados derivam da atuação competente do mediador ou simplesmente da necessidade ou da determinação do casal para a separação?

Além disso, existe a necessidade da implantação de um serviço de supervisão aos mediadores e de capacitação continuada, visto que há uma carência de aprofundamento teórico acerca de conhecimentos sobre técnicas de negociação, técnicas das Psicoterapias Breves, teorias da comunicação e sistemas, entre outros, os quais são primordiais para que os mediadores atuem com excelência. Nesse ponto está a importância de psicólogos para o processo de mediação, dado que possuem a formação mais consentânea com os atributos necessários a esse serviço. Esse aspecto traz embutido o questionamento sobre quais as competências necessárias a um mediador? E ainda, como deve ser organizada a sua formação? Que aspectos são imprescindíveis?

Todavia, apesar das limitações do SMF, esse se configura como uma alternativa válida ao sistema judiciário tradicional dado que é caracterizado como uma via mais rápida, informal e econômica de alcançar um acordo. Além disso, o ajuste celebrado por meio da mediação familiar, que não é fruto de decisão imposta por uma outra pessoa, permite a que os envolvidos reflitam sobre suas reais necessidades e as de seus filhos, o que gera ajustes nos quais sobressai a responsabilização pessoal e o cumprimento das avenças fixadas.

Ademais, a mediação familiar mitiga sentimentos de mágoa, cólera e ansiedade características do processo de separação, além de permitir maior flexibilidade e criatividade na resolução dos conflitos, aspectos relevantes para a realidade da população de baixa renda do Brasil, onde o sistema judiciário tradicional, conforme Müller (2005b), é insuficiente. Decidir os rumos da vida enseja o resgate da autonomia do indivíduo, como também, afasta o problema da interpretação judicial. Nesse contexto, verificada a inoperância do Judiciário, a mediação desponta como uma possibilidade de solução dos conflitos interpessoais.

A necessidade de novas vias para desobstruir o Judiciário é considerada tão urgente que a atividade da mediação está prestes a ser institucionalizada no Direito brasileiro. O primeiro texto legal sobre mediação de conflitos, de autoria da Deputada Zulaiê Cobra, aprovado pela Câmara dos Deputados (Projeto de Lei n°. 4827/98) é de 1998 e está tramitando no Congresso Nacional. Um segundo texto foi elaborado, inspirado na redação legal da Província de Buenos Aires e foi ao primeiro agregado. Posteriormente à divulgação desse, foi sistematizada uma última versão do Anteprojeto de Lei de Mediação Paraprocessual, em outubro de 2002, e aqueles foi somada, que além de regulamentar a mediação, traz o Sistema Multiportas de Resolução de Conflitos, composto pela mediação, arbitragem, conciliação e avaliação neutra de terceiro.

 

Conclusão

O desenvolvimento de programas e serviços de mediação de conflitos em diferentes instâncias da Justiça é um processo recente e está diretamente associado a necessidade de construir um modus operandi alternativo à Justiça do Estado. A experiência no Serviço de Mediação Familiar em Santa Catarina reflete a necessidade de avaliação das experiências de constituição de programas e serviços de mediação na sociedade brasileira: sua eficácia social, graus de resolutividade no sistema judicial, economia e, especialmente, a percepção dos participantes envolvidos sobre a repercussão do processo de mediação em suas vidas.

Para que a sociedade brasileira se aproprie da mediação como recurso não conflitivo e alternativo à jurisdição e ao uso de mecanismos impostos na solução de conflitos, mudanças paradigmáticas precisarão penetrar seu processo cultural. Mudanças que estão relacionadas ao processo educativo de compreender os diferentes meios de intermediar relações sociais, amorosas, afetivas.

Nesse sentido, o trabalho dos psicólogos no campo jurídico, no âmbito dos processos de mediação de conflitos, deve estar permanentemente orientado para responder às necessidades da população no processo de condução e resolução de impasses configurados juridicamente, compreendidas no contexto dos paradigmas culturais de afirmação das diferenças individuais e do compartilhamento de necessidades e sentimentos mútuos.

Por outro lado, o trabalho dos psicólogos em processos de mediação de conflitos familiares possibilita, de certa forma, o desenvolvimento da reflexão e da crítica acerca dos limites e oportunidades de inserção no campo jurídico, à capacidade de atender necessidades socialmente significativas e de avaliar as repercussões das intervenções realizadas. Do ponto de vista do papel do mediador é necessário afirmar que, no processo de construção das competências do profissional que media conflitos, existe a necessidade de integrar conhecimentos de diferentes disciplinas (especialmente da Psicologia e do Direito), coerentes com os objetivos e o processo de trabalho de mediar, de forma a responder às exigências específicas do objeto de trabalho e às demandas sociais e de mercado de trabalho. Resultam dessa coerência teórico-instrumental, novas habilidades e atitudes que contribuem na formação de um perfil profissional e no aperfeiçoamento da atuação do mediador.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: mediar@terra.com.br

Recebido em fevereiro de 2006
Aceito em março de 2007

 

 

* Fernanda G. Muller: advogada; psicóloga; mestranda em Psicologia (UFSC).
** Adriano Beiras: psicólogo; mestre em Psicologia (UFSC).
*** Roberto M. Cruz: psicólogo; doutor em Engenharia de Produção (UFSC); professor adjunto do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (UFSC).
1 Silogismo, conforme Ferreira (2001, s/p) é a “dedução formal tal que, postas duas proposições, chamadas premissas, delas, por inferência, se tira uma terceira, chamada conclusão”. Exemplo de silogismo jurídico: todos os homens são mortais (premissa maior), João é homem (premissa menor), logo, João é mortal (conclusão).
2 Jurisdicionada designa “submetida à jurisdição”, que significa o “poder atribuído ao juiz de Direito para conhecer, julgar e executar os litígios” (Ferreira, 2001, s/p).
3 Razão, no sentido de fundamento ou causa justificativa de uma ação, atitude, ponto de vista, motivo. Neste caso está também relacionada à vaidade profissional. “Ao contrário do que se pensa, o homem não se torna violento quando perde a razão, mas sim quando a exerce com intransigência, ou seja, quando pretende exercê-la a despeito das razões dos outros” (Bisol, 1999, p.113).
4 Disjuntivo, explica Morin (1996) em seu artigo Epistemologia da Complexidade, significa separado, desunido, desligado. “Na escola aprendemos a pensar separando” (ob. cit., p.275). Assim, as demais esferas ou dimensões da vida, tais como as questões de cunho afetivo, não importam ao processo judicial.
Maniqueísta advém de maniqueísmo: “doutrina do persa Mani (séc. III), sobre a qual se criou uma seita religiosa que teve adeptos na Índia, China, África, Itália e Sul da Espanha, e segundo a qual o Universo foi criado e é dominado por dois princípios antagônicos e irredutíveis: Deus ou o bem absoluto, e o mal absoluto ou o Diabo” (Ferreira, 2001, s/p). Portanto, não existe na lógica jurídica um caminho intermediário ou do meio.
Binário, por sua vez significa, segundo Ferreira (2001), reduzir uma situação a duas possibilidades ou “o que tem duas unidades, dois elementos”. Sua alusão decorre do seguinte: no processo judicial, existe somente uma alternativa: culpado ou inocente, autor ou réu, certo ou errado, procedente ou improcedente. Nesse sentido, conforme Barbosa (2004), a terceira solução que contempla o terceiro excluído não é admitida. Portanto, é possível perceber o sistema jurídico como disjuntivo, maniqueísta e binário, sinteticamente em função da lógica que o sustenta, na qual há sempre um certo e o outro errado ou um inocente e outro culpado.
5 “Teoria segundo a qual o homem é um todo indivisível, e que não pode ser explicado pelos seus distintos componentes (físico, psicológico ou psíquico), considerados separadamente” (Ferreira, 2001, s/p).
6 http://www.tj.sc.gov.br, acesso em 06/10/05.
7 Maiores detalhes disponíveis em http://www.tj.sc.gov.br, acesso em 06/10/05.
8 Ávila, 1999, Eliedite Mattos. Le transfert de pratiques de médiation familiale: une étude Quebec-Brésil. Dissertação (Mestrado em Serviço Social). Universidade de Montréal, Canadá.
9 Fonte: AVILA, Eliedite Mattos. Projeto Serviço de Mediação Familiar &– Relatório Anual-2004. Tribunal de Justiça de Santa Catarina &– TJSC, Florianópolis, 2004.
10 Na conciliação o conciliador sugere ou induz o acordo e por isso o tempo necessário para chegar ao mesmo é menor.

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