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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.27 Canoas jun. 2008

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

Projeto do futuro e identidade: um estudo com estudantes formandos

 

Project of future and identity: a study with senior college students

 

 

Larissa Hery Ito*; Dulce Helena Penna Soares**

Universidade Federal de Santa Catarina

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta revisão teórica e estudo exploratório buscando compreender como os jovens universitários se relacionam com o futuro a partir da elaboração de seu projeto da vida e escolha profissional; estudando a relação deste processo com a construção da identidade. Especificamente o recorte deste estudo inclui os estudantes ao final do curso de graduação haja vista a relevância atribuída ao nível superior como uma possível trajetória de vida para a sociedade em geral. Na pesquisa teórica sistemática sobre o tema evidenciaram-se diferentes abordagens sobre o conceito de identidade e escassez de estudos sobre projeto de futuro na produção nacional. No estudo exploratório foram realizadas redações com o tema “Eu e meu futuro” com os estudantes a fim verificar quais aspectos eram relevantes para o entendimento de seu projeto de futuro. A análise inicial dos resultados aponta alguns eixos temáticos como: estabilidade financeira, realização profissional, família e temporalidade (curto e longo prazo).

Palavras-chave: Projeto de futuro, Escolha profissional, Identidade, Formandos.


ABSTRACT

This article presents theoretical revision and exploratory study that aim at to contribute about the agreement of how college students relates with the future from the elaboration of its project of life and professional choice; studying the relation of this process with the construction of the identity. Specifically the clipping of this study encloses senior college students, have seen the relevance attributed to higher education as possible form of trajectory of life for the society in general. From the systematic theoretical research on the subject, have been detected contradictory conceptions about identity and a scarcity of studies on the notion of project of future in the national production. In the exploratory study, writings with the subject had been carried through “My future and I” with the students in question in order to verify which aspects the research could be excellent for the agreement to which if it considers, their project of future. The first analyses of the gotten results point some thematic axles as financial stability, professional accomplishment, family and temporality (short and long stated period).

Keywords: Project of future, Professional choice, Identity, Senior college students.


 

 

Introdução

Várias pesquisas sobre a relação do homem com seu futuro vêm sendo desenvolvidas para tentar cobrir uma lacuna teórica já apontada por Bohoslavsky (1998) sobre o tema. Segundo o autor a relação com o futuro destaca-se como fundamental na Psicologia de Orientação Profissional, pois “um jovem que busca a orientação vocacional demonstra estar preocupado com sua pessoa, em relação ao seu futuro” (p.23). Entretanto, o autor evidencia a predominância de posições teóricas que cristalizam os homens como “objetos”, e fazem da Psicologia de Orientação Profissional uma atividade visando o ajustamento social, pressupondo uma natureza humana pré-determinada, que objetiva colocar “o homem certo no lugar certo”. Esta posição “constitui uma colocação psicologista, e, portanto, parcial e falaz, na análise dos ajustamentos e desajustamentos sociais” (p.21). Como coloca o autor, “os psicólogos estão acostumados a ver o que o adolescente é. O adolescente se preocupa mais com o que ele pode chegar a ser” (p.23).

No Brasil existe uma carência de estudos sobre o conceito de “projeto”, em especial, junto a estudantes de nível superior, em fase de escolhas profissionais e de futuro. Atento a isso, o LIOP1 - Laboratório de Informação e Orientação Profissional vem construindo desde 1997 um trabalho conjunto entre diferentes instâncias de pesquisa, a saber: o laboratório (LIOP), o PPPG &– Programa de Pós Graduação em Psicologia da UFSC, o apoio do CNPq através de Bolsa Produtividade e PIBIC (bolsistas IC) e outras formas de financiamento da pesquisa (CNPq e FAPESC, com a finalidade de estudar a escolha profissional de jovens em busca de um curso superior, seus projetos de vida e profissionais, os fatores que interferem em suas escolhas, a influência da família, das instituições e do mercado de trabalho nestas escolhas.

O presente estudo busca aprofundar a questão do processo de elaboração do “projeto de futuro” nos indivíduos a partir de uma amostra definida: estudantes da Universidade Federal de Santa Catarina no final do curso de graduação. No amplo universo de possibilidades de sujeitos de pesquisa, a escolha pelo recorte universitário diz respeito ao status que a formação universitária representa para diversas classes sociais, como um “modelo padrão ou ideal” a ser seguido na elaboração de um projeto de vida. Esta idéia traz consigo de modo subjacente o caráter norteador do trabalho na vida dos sujeitos, corroborando com diversos estudos já desenvolvidos sobre trabalho e identidade (Ciampa, 1987; Jacques, 1996; Coutinho, Krawulski & Soares, 2007).

Ao pesquisar a produção científica sobre a noção de “projeto” no campo da psicologia, procedeu-se a um levantamento no Banco de Teses2 mantido pela CAPES, bem como na biblioteca eletrônica SciELO3 , teses e dissertações completas na área da Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina entre o ano de 1991 a 2005; e ferramenta de busca Google Acadêmico (Disponível no portal da CAPES), com resultados de teses/dissertações de outras universidades brasileiras. Foram avaliadas obras citadas com freqüência, principalmente livros, no material encontrado. Operacionalmente, na busca foram utilizados os seguintes descritores (palavras-chave): identidade, profissão, trabalho, projeto, futuro, formandos e jovens, em suas múltiplas combinações.

As informações obtidas através deste levantamento focalizaram-se em quatro temas principais:

A) Conceito de identidade profissional e identidade de forma mais ampla, onde encontramos um número grande de artigos, demonstrando o interesse perene sobre a questão da constituição do ser;

B) A questão da escolha profissional e suas possibilidades: observamos artigos na área da orientação profissional/vocacional se apresentado atualmente de forma mais crítica, enfraquecendo o enfoque vocacional de abordagem psicométrica;

C) Considerações acerca da idéia de projeto de vida, de ser, ou de futuro: percebemos escassez na literatura nacional, mas autores franceses apresentam com uma produção mais consistente. Freqüentemente a palavra “projeto” é utilizada sem maiores explicações sobre a concepção que a fundamenta e predominantemente é associada à questão profissional: projeto profissional e de carreira;

D) Caracterização do público-alvo, os formandos: encontramos poucas publicações em psicologia sobre este momento de transição, conclusão do curso superior e ingresso no mundo do trabalho.

A palavra identidade surgiu relacionada com palavras como: clínica, conflitual, cultural, de gênero, de grandes grupos, de lugar, docente, negra, nacional, e diversas outras. Por este motivo “identidade” num segundo momento, durante as buscas, foi associada à palavra trabalho e profissão (para se aproximar mais do objetivo da pesquisa). Os descritores “identidade” e “profissão” totalizaram 2064 registros no banco de resumos de teses e dissertações da CAPES, a partir de 1992. Nestes resumos, nos poucos casos em que a identidade foi associada à palavra projeto em nenhum deles foi esclarecido o conceito utilizado para o entendimento deste termo.

Outra linha de pesquisa encontrada trata da identidade como um componente que liga os iguais, razão pela qual alguns têm os mesmos objetivos e preferências, em geral tratando da identidade coletiva de profissionais de uma determinada área (Barros, 2001; Camargo, 2003; Conti, 2003; Daher, 1995; D´Azevedo, 1997; Dias, 2003; Gusmão, 2002; Lima, 2002; Louro, 2004; Maciel, 2001; Méis, 1996; Moreno, 1996; Nascimento, 2000; Oliveira, 2002; Vieira, 2003; Teixeira, 2004). Nesta mesma direção, no indexador Scielo, com os mesmos descritores, foram encontrados cinco artigos completos, onde todos tratam da identidade no seu sentido classista, identidade de uma determinada profissão (Bock, 1999; Faria, 2006; Lüdke & Boing, 2004: Moreira, 1999a; Moreira, 1999b).

De modo geral, a identidade é difundida entre o senso comum como um traço que define o ser, uma característica estática do psiquismo do indivíduo e nesse sentido traz a idéia de que o ser humano pode reconhecer-se e descobrir uma essência que caracteriza o seu verdadeiro eu. Este viés é trazido por teorias subjetivistas como a Psicanálise, por exemplo, exemplificada na definição de identidade de Erikson (1987) como um senso interior de igualdade e continuidade, ou seja, uma representação de si mesmo que persiste ao longo do tempo e dá ao sujeito a certeza de saber quem ele é e para onde vai.

Escolhemos adotar neste estudo a categoria identidade sem cair na abstração de considerá-la como uma entidade, um produto que caracteriza indivíduo, mas ao contrário, como uma constituição concreta, histórica e processual. É de Ciampa (1987) a concepção da identidade como metamorfose, tanto síntese de múltiplas e distintas determinações, como também, determinada pelas condições históricas, sociais, materiais dadas, aí incluídas as condições do próprio indivíduo. Dessa maneira, a concretude da identidade é sua temporalidade: passado, presente, futuro; e conhecer a identidade como mesmice, como sempre igual a si mesma, exclui a temporalidade e a diferença, deixando de ser a articulação da diferença e da igualdade.

Sobre a identidade profissional, Bohoslavsky (1983), importante teórico da orientação profissional, faz uma análise minuciosa, separando-a em dois aspectos: identidade profissional/ocupacional e identidade vocacional. Segundo ele a identidade profissional é um produto da ação do contexto sócio - cultural no qual vivemos. Nela estão atuantes as variáveis do contexto, que são de ordem objetiva: o quando, onde, com quê, como desempenhar um papel produtivo na sociedade. Esta identidade está determinada por fatores sócio-econômicos e tem relação direta com o significado das ocupações, o valor social que lhe é atribuída, ou seja, o papel social das diferentes profissões. Já a identidade vocacional segundo o autor, diz respeito às variáveis de tipo afetivo e motivacional e tem ligação com a história real da pessoa, com as relações com os objetos primários, como a família, por exemplo.

Em tese de doutorado Krawulski (2004) estudou a formação da identidade profissional dos psicólogos e aponta a profissão representando muito mais do que um conjunto de aptidões e funções; constitui também uma forma de vida a ser assumida, pois a relação entre o trabalhador e a sua profissão é caracterizada pelo envolvimento, pelo sentimento de identidade e de adesão aos seus objetivos e valores. Segundo a autora, é na trajetória profissional de trabalho, quotidianamente, onde se pode localizar a efetiva expressão dessa identidade, pois é no contexto do trabalho que se darão os contornos e a medida entre aquilo que se queria ser e aquilo que efetivamente se consegue ser enquanto ser humano trabalhador.

Nessa perspectiva, é inviável entender a identidade profissional a priori, como pré-requisito para se escolher acertadamente uma profissão ou emprego. Ela é construída e reconstruída seguindo a mesma lógica da identidade como metamorfose, sempre em ação. O foco de interesse então vai de encontro aos desejos e expectativas de futuro que representam a porção subjetiva da identidade dos indivíduos. Já as escolhas se localizam dentro da concretude na qual estes se encontram, caracterizando o início da objetivação da identidade.

Sobre a temática “projeto de futuro”, na busca por artigos com esta forma de expressão foram encontradas 0 (zero) ocorrências5 , e com a combinação “Projeto e futuro/ projeto e vida”, quatro ocorrências (Delory-Momberger, 2006; Guerreiro & Abrantes, 2005; Josso, 1999; Leccardi, 2005), demonstrando a escassez de trabalhos sobre o tema. Além destes utilizamos as contribuições de Catão (2001), Boutinet (1990), Soares (1997) e a perspectiva existencialista discutida por Schneider (2002), Ehrlich (2002), Maheirie e França (2007), que trazem consistentes considerações sobre o tema em questão.

Guerreiro e Abrantes (2005) realizam análise de projetos/trajetos de vida, propondo sete padrões diferenciados de transição para a vida adulta na sociedade portuguesa atual (transições: profissional, lúdica, experimental, progressiva, precoce, precária e desestruturante), a partir da realização de entrevistas individuais e de grupo. Para os autores no modelo de Transições profissionais os jovens caracterizam-se por um investimento quase exclusivo no trabalho, nos primeiros anos, relegando os projetos familiares ou de lazer para um futuro mais ou menos longínquo. Nas Transições lúdicas os jovens caracterizam-se por um longo período pós-adolescente destinado a viver longos trajetos de escolaridade e inserções precárias e/ou temporárias no mercado de trabalho, que não implicam grandes compromissos e responsabilidades. As Transições experimentais caracterizam-se por uma sucessão de configurações de vida temporárias e imprevisíveis, como opção de vida ou como período de experimentação antes de “assentar” , casar e ter filhos. As Transições progressivas são formas de transição relativamente lineares e programadas, na qual o percurso de escolaridade antecede a progressiva integração profissional e a esta sucede a constituição de família. As Transições precoces correspondem à passagem rápida e numa idade precoce de um estatuto de dependência da casa dos pais, ao estatuto de trabalhador, em vida conjugal, muitas vezes com filhos e desejavelmente (mas nem sempre) em casa própria. Nas Transições precárias os jovens fazem parte da massa de “trabalhadores descartáveis”, que se encontram hoje na área cinzenta entre a inserção efetiva no mercado de trabalho e de inserção de longo prazo. O modelo de Transições desestruturantes é caracterizado pela incapacidade para a construção de uma transição para a vida adulta e independente, mergulhando em espirais de exclusão social, com a quebra de uma série de vínculos sociais e, potencialmente, sentimentos de depressão aguda e/ou experiências de marginalidade social.

Leccardi (2005), a partir de pesquisa recente realizada na Itália, aponta para uma nova percepção de tempo sendo constituída pelos jovens em resposta às condições adversas de futuro profissional. Segundo a autora, em uma época na qual o futuro a médio e longo prazo não pode ser discutido sem suscitar preocupações e, com freqüência, um sentimento de verdadeiro temor, a maior parte dos jovens, moços e moças, encontra refúgio, sobretudo em projetos de curto ou curtíssimo prazo, e assume o “presente estendido” como área temporal de referência. Reagem ao “tempo curto” com projetos que se expressam sobre arcos temporais mínimos e, por isso mesmo, parecem extremamente maleáveis. Em geral, conforme Leccardi, os jovens se ligam á conclusão positiva de atividades já iniciadas capazes de responder tanto à necessidade de assenhorear-se do tempo biográfico em um ambiente veloz e incerto, como à pressão social por resultados em curto prazo.

Delory-Momberger (2006) e Josso (1999) convergem na idéia de que através da técnica da narrativa das histórias de vida os sujeitos poderiam melhor construir seus projetos profissionais e de vida de forma mais ampla. A técnica do ateliê biográfico, proposta pelas autoras, é um procedimento que inscreve a história de vida em uma dinâmica prospectiva ligando o passado, o presente e o futuro do sujeito. Visa fazer emergir seu projeto pessoal, considerando a dimensão do relato como construção da experiência do sujeito e da história de vida como espaço de mudança aberto ao projeto de si.

Além destes, ainda na produção nacional, destaque para Catão (2001) que discute o projeto a partir de três dimensões, subdivididas em oito classes de operadores: (1) Dimensão espaço-temporal: possibilidade de realização de projetos em função dos antecedentes sócio-ocupacionais; da mudança de vida; e das práticas institucionais (inserções presentes possibilitadoras de inserções no tempo futuro); (2) Dimensão sócio-afetiva: possibilidade de construção das bases psicossociais para operacionalização do projeto de vida em função da exclusão/ inclusão social; da tríade trabalho-educação-família; da relação com o outro e consigo; e da relação de agressão/destruição com este projeto; (3) Dimensão sócio-cognitiva: possibilidade de elaboração e crítica constante do projeto de vida em função do pensamento/reflexão (diálogo consigo mesmo sobre si e sobre o mundo em relação). Cada dimensão descrita age como fator possibilitante ou impossibilitante de um determinado comportamento do indivíduo, no nosso caso, a escolha, o ingresso e a conclusão de um curso superior.

Boutinet (1990), autor francês, ressalta o projeto como o momento no qual se integra asubjetividade e a objetividade, e também o momento no qual funde num mesmo todo, o futuro previsto e o passado recordado. Através do projeto, se constrói para si um futuro desejado, esperado. Na perspectiva operatória de Boutinet (1990), o projeto não pode ser para um futuro longínquo nem também se limitar a ser muito imediato. Seu caráter parcialmente determinado faz com que ele não seja jamais totalmente realizado, sempre passível de modificações. Mais do que um plano ou um objetivo, o projeto com sua conotação de globalidade, é destinado a ser integrado numa história, contribuindo para modelizar o passado que é presente nele e prever o futuro. Todo projeto, através da identificação de um futuro desejado e dos meios próprios para fazê-lo realidade, se dá num certo horizonte temporal, no interior do qual ele evolui. Mas o projeto não se termina no ambiente onde sua evolução é previsível. Ele diz respeito primeiramente ao autor, que se dá uma perspectiva de um futuro esperado.

A perspectiva existencialista em direção semelhante aponta as contribuições de Sartre para o entendimento da noção de projeto e futuro. Segundo Schneider (2002), o homem é presença que se lança em direção ao seu projeto, aquilo que ainda não é e busca ser, às suas possibilidades, que nada mais são do que seu futuro. O devir é aquilo que se persegue, se projeta, mas não se pode alcançar, pode-se desviar seu rumo, posto que ele ainda não é. O futuro é o que ainda não se é, na busca de ser. No entanto, a autora ressalta que ocorre uma decepção ontológica cada vez que a realidade humana desemboca no futuro, pois ele não se deixa alcançar; quando nele chegamos já é passado e isto quer dizer que o homem não se totaliza, não se completa, ele é sempre uma totalização em curso, uma busca incessante de realização, um vir-a-ser. Isto mostra que o ser do homem é uma infinidade de possibilidades. Esta autora destaca que o homem é seu passado (que é o que é) e seu futuro (que não é ainda) enquanto presença no mundo; e essa dinâmica temporal desenvolve-se como processo de totalização incessante da experiência nessas três dimensões.

Ehlich (2002) com objetivo de analisar, em que medida, o “Projeto de Ser”, incrustado na psicologia de Sartre, vem a contribuir para a superação da lacuna teórica apontada por Bohoslavsky com respeito à relação do homem com o futuro, aponta alguns elementos importantes a serem considerados: a “relação com o futuro” a partir das relações com os outros, com o passado, com o contexto social, com a condição material real em que a pessoa se encontra; a problemática filosófica do “projeto pessoal”; “articulação entre o individual e o social”, da possibilidade da escolha e suas restrições, esclarecendo o homem como sujeito de suas escolhas. Neste sentido Maheirie e França (2007) acrescentam que o projeto de ser contempla as condições dadas e o campo dos possíveis que orienta a ação para um destino ou para outro, o sujeito pertence a um determinado contexto sócio-econômico, o que lhe viabiliza alguns caminhos em detrimento de outros; e mesmo aqueles caminhos que lhe são vedados, aparecem a ele na qualidade de ausência, de empobrecimento.

Numa concepção sócio-histórica, Bock e Liebesny (2003) trazem a idéia de que compreender o projeto de futuro dos jovens significa conhecer a sociedade brasileira em seus valores e formas de educar a juventude, e, portanto, a sociedade também está implicada neste estudo. Para as autoras apesar da importância de se conhecer os projetos de vida dos jovens, poucos estudos têm sido realizados nesta direção, em decorrência da adolescência ser pensada enquanto uma fase de incompletude e imaturidade, e isso faz com que a sociedade adulta desvalorize seus projetos por considerá-los frutos de um período de transição. Estas reflexões nos levam a delinear o projeto em perfis mais consistentes, considerando sua característica temporal, dialética e social.

Finalmente, o projeto e a escolha profissional se articulam, como afirma Coutinho (1993), pois a escolha é o momento no qual o sujeito reflete e articula seu projeto profissional, buscando assim determinar a trajetória de sua futura relação produtiva com o mundo. Soares (2002) ressalta a condição “multi determinada” da escolha, sendo esta influenciada por fatores políticos, econômicos, sociais, educacionais, familiares, psicológicos. Assim a escolha profissional não se trata de um processo linear, por envolver uma gama de escolhas subjacentes à escolha principal, por exemplo: o retorno financeiro, status social decorrentes do tipo de valor atribuído à atividade exercida, aspectos como preconceitos e expectativas em relação ao gênero na profissão, tempo de dedicação que a profissão/emprego vai demandar (o que pode ir inclusive confrontar com outros desejos do indivíduo), as possibilidades de inserção profissional, entre outros.

Dentre as obras encontradas e categorizadas, foram analisadas e serviram de subsídio de discussão com os resultados deste estudo as vertentes que compreendem a concepção de identidade e processo de construção do projeto profissional à luz das relações sociais concretas que o indivíduo estabelece em sua história de vida. Algumas perspectivas já foram superadas, como aponta Mayorga (2006) em artigo no qual realiza um apanhado teórico sobre as concepções psicológicas acerca da identidade e também da adolescência (perspectiva biologicista, internalista, fenomenológica e narrativa) trazendo uma noção de sujeito separado do mundo, com características universais e que através do método científico, pode alcançar as verdadeiras leis da natureza. Estas concepções, segundo a autora, compõem o quadro do paradigma dito dominante, devendo ser superado por estudos e pesquisas que abarquem o sujeito como ser inserido num contexto social concreto e de relações.

A fim de estudar como os estudantes formandos de uma universidade pública articulam seu projeto de futuro com a construção de sua identidade pessoal e profissional realizamos um estudo qualitativo, apresentado a seguir.

 

Método

Participantes

Selecionamos os participantes do estudo empírico com base no critério “ser estudante em final de curso de graduação”. Incluiu-se nessa amostra pessoas regularmente matriculadas na disciplina optativa “Orientação e Planejamento de Carreira”, não necessariamente no último período, mas indicando alguma preocupação com a carreira futura. Esta disciplina é oferecida pelo Departamento de Psicologia, e atende a todos os cursos de graduação da Universidade Federal de Santa Catarina visando estimular os alunos à reflexão na busca pelo autoconhecimento, direções e motivações envolvidas nas suas escolhas profissionais, perspectivas de projeto de futuro pessoal e profissional através de um planejamento de carreira.

Participaram dessa pesquisa 11 pessoas, nomeados como “formandos”, com idade entre 23 e 37 anos. Consideramos que os estudantes em fim de curso universitário se encontram no início da fase adulta, denominada aqui, adultez jovem. Segundo Teixeira6 (2002) este período, é marcado pela consolidação das opções e valores pessoais, integrados agora em um projeto de vida e profissional mais elaborado e realista do que aquele esboçado na adolescência: (...) É o momento de transitar da identidade de estudante para a de trabalhador, não porque para a maioria das pessoas é vital a remuneração que o trabalho proporciona, mas também porque o trabalho é uma forma de inserir-se na sociedade, de estar em relação com o outro e de ser reconhecido socialmente (...).

A transição da universidade para o mercado de trabalho segundo Teixeira e Gomes (2004, 2005) pode ser caracterizada como um período no qual o jovem investiga as possibilidades existentes em sua profissão e procura experimentar-se em diferentes papéis; além de implicar em uma reavaliação das escolhas realizadas, das experiências vividas até o momento e, também, uma antecipação do que está por vir, tanto em termos profissionais, como não profissionais.

Procedimento

Com o objetivo de recolhermos a produção subjetiva dos participantes que permitisse uma compreensão sobre o projeto de futuro, foi solicitado a cada um dos estudantes que escrevesse uma redação com o tema “Eu e meu futuro”. As redações foram escritas em uma folha padronizada com um cabeçalho de identificação pessoal. Um termo de consentimento livre e esclarecido foi entregue juntamente com explicação verbal sobre os objetivos da pesquisa.

A aplicação da redação foi feita de forma coletiva no mesmo local da Universidade onde as aulas eram ministradas e durante um período de aula previamente cedido pelo professor da disciplina. Antes da aplicação, os participantes receberam explicações sobre os objetivos e considerações éticas do estudo, ressaltando que se tomou o cuidado de não mencionar palavras, termos ou expressões que pudessem influenciar no conteúdo das redações (como projeto, identidade, futuro). No que se refere ao tema da redação, este foi proposto de forma ampla a fim de permitir recolher os significados sobre a escolha e projetos de futuro profissional dos formandos, livre de idéias preconcebidas e de hipóteses preestabelecidas.

Para a análise das redações produzidas aplicamos a análise do conteúdo, método proposto por Bardin (1977), considerando o texto como um meio de expressão construído no processo de pesquisa. De acordo com Bardin (1977, p. 31), a análise de conteúdo interpretativa se caracteriza como “um conjunto de técnicas de análise das comunicações”. As narrativas foram analisadas utilizando-se um procedimento inspirado na análise de conteúdo, seguida de uma análise temática, desenvolvida na pesquisa de doutorado de Soares (1997): inicialmente retiram-se do texto os temas mais significativos, depois se realiza a sua organização, a ligação entre eles, o encadeamento dos temas no interior de uma redação, aqueles que vêm espontaneamente, como aparecem, ligados a quais situações e como se articulam dentro do texto, os diferentes temas.

 

Resultados e discussão

O perfil dos alunos da amostra é predominantemente do gênero feminino; faixa etária entre 22 a 27 anos, com um caso de 37 anos. Outros dados obtidos através do cabeçalho de identificação da redação demonstram que quatro estudantes são alunos de Economia, dois de Engenharia Química, um de Engenharia Mecânica, um de Engenharia de Produção Mecânica, um de Letras, de Serviço Social. As profissões dos pais relatadas foram: Engenheiro Químico, Engenheiro Agrônomo, Autônomo, Economista, do lar (três ocorrências), Caminhoneiro, Funcionário público, Doméstica, Costureira, Motorista de ônibus, Recepcionista, Representante de vendas, Professor, Aposentado (03 ocorrências) e ainda uma ocorrência de pai falecido e uma de pai desconhecido.

Os dados supracitados demonstram uma heterogeneidade na amostra quanto ao curso de graduação e também em relação a profissões dos pais, já que somente alguns exercem atividades de ensino superior. Em relação à idade, a amostra é relativamente homogênea e no que diz respeito à fase do curso, se encontram, predominantemente entre oitavo e décimo semestre. Entre os estudantes oito relataram exercer atividade remunerada entre monitoria acadêmica, auxiliar administrativo e atendente bancário.

Nas redações propriamente ditas percebemos dois núcleos que se articulam na produção da identidade e projeto profissional ou de futuro da amostra, cada qual com subnúcleos: dimensão subjetiva (desejos e percepção temporal) e dimensão objetiva (Escolha/estratégias e atitudes em relação ao futuro e aspectos contextuais/de relacionamento).

 

 

A seguir a ilustração em alguns dos trechos coletados:

- “Minha perspectiva para o futuro profissional é conseguir um emprego onde eu possa ter estabilidade, enfrentar desafios e mostrar minha competência técnica”. (Dig, 27 anos, formando, Engenharia Mecânica).

-“O futuro que busco é estar em harmonia: corpo, mente e com as pessoas. Onde a preparação profissional consiga um trabalho que me realize, valorizando-me pelo trabalho exercido e recompensada a altura”. (S@1, 23 anos formando Economia)

-“Hoje, estou quase terminando o curso, e após ter conquistado, principalmente, conhecimento e capacidade técnica para exercer minha profissão, vou buscar atingir meu objetivo maior. Só que agora com idéias um pouco mais elaboradas”. (Bia, 22 anos, formanda Engenharia Química).

A partir desses relatos percebe-se que as dimensões subjetiva e objetiva aparecem nos relatos de forma dinâmica e sem contornos que as delimitem. Aspectos como valorização, harmonia se entrelaçam com enfrentamento de desafios, estabilidade e exercício da profissão. Em comum a evidência de que, num futuro por vir, o exercício da profissão escolhida surge como possibilidade de realizações pessoais e profissionais. Com isso, percebe-se a ação como foco central para nos reconhecermos no mundo, e ela se dá e é reconhecida principalmente através do trabalho, que representa a parte objetiva da construção da identidade. Conforme aponta Ciampa (1987) se o desenvolvimento da identidade dependesse apenas da subjetividade, representada pelos desejos, ficaria menos difícil reconhecê-la, mas depende também da objetividade. Por isso o homem é desejo, é trabalho. “O desejo o nega, enquanto dado; o trabalho é o dar-se do homem, que assim transforma suas condições de existência, ao mesmo tempo em que o desejo é transformado” (Ciampa, 1987, p.201).

Sobre a questão do projeto de vida e de futuro os resultados apontam que os formandos privilegiam os frutos do trabalho, a longo prazo, como objetivo e, manifestam desejos e expectativas positivas sobre isso (realização, tranqüilidade). Paradoxalmente o tempo futuro aparece como algo imprevisível, duvidoso, o presente e o futuro desconexos, sem relação temporal causal estabelecida. Uma possível hipótese sobre essa contradição foi apontada por Leccardi (2005) em sua pesquisa, onde aponta o fato de que a realidade objetiva está causando aversão e medo, podendo ocasionar nos formandos a construção de projetos de futuro em curto prazo.

- “Atualmente meu futuro é incerto, estou inseguro. Não tenho claramente os meus objetivos, mas tenho certeza que no fim dará tudo certo, pois foi assim a minha vida inteira. Quase tudo que faço no presente, faço pensando a longo prazo (no futuro)”.(Kmz, 23 anos, formando em Engenharia de Produção Mecânica)

Sobre a questão de remuneração os recursos financeiros são descritos como importantes na medida em que oferecem estabilidade, todavia o prazer de trabalhar foi dito como mais importante do que ganhar dinheiro, e sobre isso, os formandos descrevem em relação à constituição da sua própria família (casar, ter filhos, demanda gastos) o quesito “condições financeiras” como sine qua non para isso.

- “Os meus planos são após me formar voltar para a Alemanha e lá fazer o mestrado de especialização e estabelecer contatos para futuros empregos. E quando voltar poder trabalhar e ter estabilidade financeira para então ter a minha família” (Tat, 22 anos, Engenharia Química)

A análise das redações apontou também que os formandos mencionam a intenção de realizar especialização (mestrado, doutorado, MBA) e se referem as “escolhas certas” como cruciais. Apresentam elementos como insegurança e sorte como importantes para suas vidas futuras. Sobre isso Teixeira e Gomes (2005) destacam que os formandos puderam vivenciar a identidade profissional através de estágios e experiências, por exemplo, e tem em seu campo de possibilidades dados que os situam na realidade objetiva referente à profissão.

O sentimento dos indivíduos prestes a se lançarem no mercado de trabalho esta contextualizado num país no qual se observa, segundo Druck (2001), certa epidemia da qualificação. “O debate acerca da necessidade de qualificar a força de trabalho em nosso país tomou conta de todos os setores da sociedade &– instituições governamentais/oficiais, ONG´s, sindicatos, empresas, universidades &– enfim a qualificação tem sido colocada como a grande solução para os problemas de desemprego e subemprego no Brasil” (p.82). Segundo a autora, é importante perceber de forma subjacente que o mito da qualificação e da competência trata de responsabilizar os indivíduos que trabalham para desenvolver aptidões e habilidades requeridas pelas mudanças tecnológicas e organizacionais que criam novas situações de trabalho a fim de garantir produtividade e competitividade às empresas.

Segundo Coutinho, Krawulski e Soares (2007) na contemporaneidade estão presentes as dimensões da mudança e da continuidade, requerendo dos sujeitos que se identifiquem, a cada momento, com algo novo, e reconheçam em suas trajetórias uma dimensão temporal, integrando passado, presente e futuro, no mundo laboral. De um lado, os trabalhadores ainda precisam vender sua força de trabalho sob condições que lhes são determinadas pelo capital. De outro, as mudanças nas formas de emprego e o desemprego estrutural, entre outras, trazem exigências de novas competências, habilidades e talentos para se manter empregado. Todas estas situações levam o sujeito a ter que enfrentar cotidianamente o novo e reescrever sua trajetória de vida e sua identidade.

Os formandos, ainda não ingressaram no mundo do trabalho, mas já demonstram a preocupação em relação às dificuldades deste ingresso, uma vez que cada vez mais lhes é exigido qualificação, enquanto o mercado se oferece fragmentado e com altos níveis de desemprego. Além disso, não é somente a escolha do caminho profissional que se impõe a estes jovens, já que as escolhas são alem de mutideterminadas, multideterminantes: ou seja, a escolha de uma profissão, especialização ou constituição familiar se apresentam imbricadas e com reflexo uma nas outras. Desta forma as angústias desse grupo se localizam justamente no conflito entre os desejos e a realidade objetiva na qual se encontram.

 

Considerações finais

O grupo de formandos apresentou relatos com ênfase na insegurança em relação ao futuro profissional, como se preparar para conseguir emprego, em qual área trabalhar, como preocupações a curto e médio prazo. A estabilidade financeira foi mencionada como pré-requisito para a constituição familiar mais a longo prazo, e ainda, o prazer no trabalho foi considerado mais importante do que alta remuneração. Podemos relacionar esses dados com a idéia de Ehrlich (2002) e Schneider (2002), numa perspectiva existencialista, apontando o futuro como realidade para se chegar à plenitude ontológica, e aparece como o que falta para ser. Assim, o futuro é o que nos faz agir, é o que possibilita cada um de nossos atos, e aparece justamente na relação concreta com o mundo. Isso equivale a dizer, segundo as autoras, que toda a ação remete à totalidade do ser que projetamos ser.

Sobre os sete padrões diferenciados de transição (profissional, lúdica, experimental, progressiva, precoce, precária e desestruturante) propostos por Guerreiro e Abrantes (2005), pode-se perceber que os formandos aproximam-se do padrão de transições profissionais, pois concentram seus objetivos no prolongamento dos estudos, relegando os projetos familiares ou de lazer para um futuro mais ou menos longínquo.

Este estudo, de caráter exploratório, aponta diversos aspectos do projeto de futuro, identidade e escolha profissional. Um deles é o contexto atual das relações de trabalho que reforça o desejo da classe trabalhadora de superar sua condição de exploração ao mencionarem o desejo de se especializarem, demonstrarem competência técnica e adquirir estabilidade financeira. Há o interesse pelo ensino superior como forma de realizar os desejos oprimidos pela condição social e a constatação ao final de que a universidade é um espaço importante para adquirir conhecimento, por vezes, inerte, mas não oferece as almejadas oportunidades, restando assim um prolongamento do aperfeiçoamento profissional, dos estudos.

Os projetos de futuro aparecem carregados de idealização e de sentimentos de insegurança e ansiedade por parte dos formandos. Eles buscam estabilidade financeira, diante de um mercado de trabalho flexibilizado e de mudanças rápidas e também querem paz e qualidade de vida.

Como próximo passo no estudo do tema propõe-se uma pesquisa em maior escala em relação ao número de sujeitos, e também um estudo mais aprofundado sobre possíveis especificidades de alunos de diferentes cursos de graduação, histórico escolar e classe social a fim de obter dados mais precisos sobre a relação das trajetórias sócio profissionais com a elaboração de um projeto de futuro.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: larissa089@yahoo.com.br

Recebido em agosto de 2007
Aceito em fevereiro de 2008

 

 

* Larissa Hery Ito: graduando em Psicologia (UFSC); bolsista de Iniciação Científica PIBIC-UFSC/CNPq, período de 2006-2007.
** Dulce Helena Penna Soares: doutora em Psicologia Clínica (Universidade Louis Pasteur, França); professora Adjunta IV de graduação e pós-graduação da Universidade Federal de Santa Catarina.
1 Este laboratório faz parte do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina.
2 A CAPES só disponibiliza on-line em versão integral as teses e dissertações na área da História.
3 A sociologia demonstrou um maior número de publicações sobre a questão do significado de tempo em relação à psicologia.
4 Somente foram citados e referenciados os resumos que apresentaram alguma relação com o tema desta pesquisa.
5 Os casos em que o termo foi utilizado apenas de forma superficial ou citado foram desconsiderados.
6 A adultez jovem pode ser entendida como um novo status (psicológico e social) ao qual o indivíduo ascende à medida que vai cumprindo ao menos algumas das tarefas culturalmente esperada dele.

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