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Aletheia
versão impressa ISSN 1413-0394
Aletheia n.29 Canoas jun. 2009
ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO
Psicanálise de família e casal: principais referenciais teóricos e perspectivas brasileiras
Psychoanalysis with couples and families: main theoretical references and Brazilian approaches
Isabel Cristina GomesI; Lidia LevyII
I Universidade de São Paulo. Instituto de Psicologia. Departamento de Psicologia Clínica
II Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Psicologia
RESUMO
A Psicanálise de Família e Casal surge como uma ampliação do método psicanalítico. Inicialmente, baseia-se nos conceitos desenvolvidos pela psicanálise individual (Freud e Klein) para em seguida utilizar-se dos referenciais da psicanálise de grupo (Bion) e de Winnicott simultaneamente, no sentido de compor um corpo teórico próprio. O objetivo desse artigo é abordar as origens e o desenvolvimento da terapia psicanalítica de família e casal ao longo de mais de meio século de existência, apresentando seus principais representantes, a natureza das publicações nessa área e os intercâmbios possíveis entre diversos pesquisadores e clínicos, com destaque especial à realidade brasileira.
Palavras-chaves: Psicanálise, Família, Casal.
ABSTRACT
The Psychoanalysis with couples and families comes into the foreground as an enlargement of the psychoanalytic method. It uses the main concepts developed by the individual psychoanalysis (Freud and Klein), group analysis (Bion) as well as the theory developed by Winnicott to form its own theoretical structure. The main goal of this paper is to discuss the basis and the development of psychoanalysis with couples and families throughout its half century of existence. The article intends to present the main influences within the couple and family psychoanalysis field, the publications and clinical researches developed, emphasizing the Brazilian work done within this field of specialty.
Keywords: Psychoanalysis, Family, Couple.
Introdução
O método psicanalítico, enquanto processo de investigação do inconsciente, permite o estudo de diversas situações nas quais o sujeito está implicado e fornece importantes subsídios para a compreensão da conjugalidade, da familiaridade e dos impasses daí decorrentes. Neste sentido, a teoria psicanalítica contribuiu para a construção dos parâmetros teóricos de uma clínica do casal e da família.
A Psicanálise de Família e Casal surge como uma ampliação da técnica psicanalítica individual a partir do atendimento a pacientes esquizofrênicos e suas famílias, em meados da década de 40. Os psicanalistas que pretenderam incluir esta clínica no contexto da psicanálise apoiaram-se nos conceitos desenvolvidos por Freud, Bion, Klein, Winnicott, Bleger, Pichon-Rivière, entre outros, para elaborar suas propostas. Com uma forte influência da escola inglesa de psicanálise, teorizaram acerca do funcionamento fantasmático inconsciente partilhado entre os membros do grupo, estudaram a grupalidade como estrutura permanente do ser humano, teorizaram sobre um psiquismo familiar e ampliaram o conceito de transferência para designar tanto aquela que ocorre entre os membros do casal e da família, como entre estes e o terapeuta.
O objetivo do presente trabalho é discutir as origens e desenvolvimento da terapia psicanalítica de família e casal ao longo de mais de meio século de existência, pontuando a diversidade de linhas teóricas que surgiram.
Abordaremos o estabelecimento desse corpo de conhecimento, os principais representantes e suas propostas clínicas para o trabalho com famílias e casais, dando destaque especial a sua implantação em importantes centros, hoje reconhecidos como referências na área. Apresentaremos a natureza das publicações e a possibilidade de intercâmbio entre esses diversos pesquisadores e clínicos, considerando algumas das propostas iniciais e o momento atual. Um destaque especial será dado à realidade brasileira, visando apontar as influências sofridas por aqueles que, no Brasil, pesquisam e trabalham com famílias e casais, utilizando a psicanálise como referencial teórico.
Perspectivas americanas e inglesas
Nichols e Schwartz (2007), em seu compêndio sobre Terapia Familiar, fazem uma correlação entre o surgimento desse campo teórico e os primeiros centros universitários criados para o desenvolvimento de pesquisas e atendimentos a famílias e casais. Além de toda a cronologia política da época, suscitando a influência de determinados fatores sócio-políticos na criação e desenvolvimento da terapia psicanalítica de família e casais.
Alguns psicanalistas americanos, anteriores à década de 40, iniciaram experiências de atendimento a casais. De acordo com Nichols e Schwartz (2007), o primeiro relatório sobre a psicanálise de casais foi elaborado por Clarence Oberndorf na convenção de 1931 da American Psychiatric Association. O autor apresentou a teoria de que os casais teriam neuroses interligadas e, portanto, seria melhor o tratamento conjunto. Em 1948, no New York Psychoanalitic Institute, ocorre a primeira publicação de um relato de terapia conjugal.
Ao longo das décadas de 40/50 surgem importantes grupos, alguns nos Estados Unidos e outros na Inglaterra, com a atenção voltada para o estudo de famílias esquizofrênicas. Temos no trabalho de Bateson em Palo Alto, Califórnia, o início das pesquisas sobre um tipo de comunicação que ocorria no interior dessas famílias patológicas. Em 1956, Bateson lança uma importante publicação onde introduz o conceito de duplo-vínculo, traçando as bases para o entendimento da dinâmica familiar psicótica.
Embora o grupo de Palo Alto tivesse suas raízes fincadas na psicanálise individual, aos poucos foram se distanciando do entendimento dos mecanismos inconscientes presentes na família e se encaminhando para o estudo da vertente relacional entre os membros do grupo, usando a análise da comunicação como o principal instrumento de trabalho clínico com essa população. Assim, é inaugurado um novo referencial de atendimento às famílias e casais, a Abordagem Sistêmica, que encara a família como um conjunto homeostático, ou que busca a homeostase entre seus membros, transformando a noção de patologia familiar em disfunção familiar.
Como já apontamos acima, o trabalho com as famílias, no início, sofreu a interferência do modelo de atendimento individual. Bowen, um eminente psiquiatra especializado no atendimento ao paciente esquizofrênico, no final da década de 40, foi o primeiro a se interessar pela relação entre mães e filhos, abordando a questão da simbiose entre esse par e trazendo uma importante contribuição com o conceito de diferenciação do self. Sua estratégia clínica com a família era extremamente fracionada na medida em que reconhecia a doença em todos os membros da família, mas, indicava terapeutas diferentes para cada componente do grupo familiar. Somente dez anos mais tarde, Bowen se aventura a atender famílias em grandes grupos.
Ackerman (1969), também considerado um dos pioneiros na abordagem psicanalítica de trabalho com famílias, foi muito criticado pelos adeptos da psicanálise individual, já que seu modelo de família era semelhante ao modelo psicanalítico de um indivíduo ampliado. Por outro lado, sua atuação clínica envolvia uma certa diretividade na medida em que via o terapeuta familiar como alguém capaz de provocar e trazer à tona questões conflitivas e segredos familiares, os quais de outro modo não seriam elucidados. Sua contribuição ao campo da terapia familiar foi valorosa, pois, juntamente com Don Jackson, cofundou a primeira revista específica da área Family Process, em 1962.
Em Londres, tomando como base a teoria das relações objetais de Klein, a Tavistock Clinic foi um espaço de nascimento da psicanálise de família e casais. Desde o final da década de 40, alguns importantes analistas, com formação individual, oriundos dos principais Institutos da época (Instituto de Psicanálise de Londres, Sociedade de Psicanálise Analítica, Associação Britânica de Psicoterapeutas e Instituto de Psicoterapia, entre outros) compuseram o “staff” de uma instituição pioneira no interesse de aplicar os conceitos da psicanálise individual para o estudo e entendimento da família e casal, a qual mais tarde se denominou Tavistock Institute of Marital Studies (TIMS). Trata-se hoje de um centro internacional de formação de psicoterapeutas de família e casal, bem como, de pesquisadores clínicos na área.
Enid Balint foi a pioneira no trabalho com casais na Tavistock Clinic, no Departamento de Estudo de Famílias, quando ainda havia poucos estudos e pesquisas empreendidas por psicanalistas, acerca da dinâmica das interações conjugais. Seu texto sobre as Comunicações Inconscientes entre Marido e Mulher, publicado em 1968, é um marco teórico-clínico que representa quase duas décadas de uma experiência inovadora com casais. A autora, embora dimensionasse o casamento dentro da esfera familiar, fazia uma análise específica do conjugal, demonstrando uma visão bastante revolucionária para a época: “discutirei o casamento como se este consistisse em duas pessoas apenas, mas não esquecerei a relevância da presença dos filhos numa família e as mudanças ocasionadas por cada um deles” (Balint, 1972, p. 83). Contudo, deixava claro que era a dificuldade em lidar com as transferências conjugais que afastava os analistas desse tipo de clínica.
No tocante às propostas clínicas, na década de 50, o trabalho na TIMS consistia em demarcar mais claramente as fronteiras entre os parceiros, explorando fantasias compartilhadas e recuperando as projeções feitas. Entretanto, lidava-se com a conjugalidade a partir de duas terapias individuais. Gradativamente, foram adotados novos procedimentos, como por exemplo, os atendimentos individuais realizados por terapeutas distintos que, paralelamente, trabalhavam juntos com o casal e os atendimentos conjuntos com um único terapeuta.
Foi muito profícua a produção científica realizada na Tavistock Clinic. Principalmente a partir da década de 60, grandes nomes se firmaram, com projeção mundial, sendo que alguns autores são lembrados até hoje. Destacamos aqui os trabalhos de Pincus e Dare (1978) fundamentando a pratica clínica com famílias e casais em estudos que revelavam um profundo interesse na trama inconsciente dos sentimentos, desejos, crenças e expectativas que unem os membros de uma família entre si, enfatizando os efeitos dos segredos e dos mitos familiares na dinâmica constitutiva de uma família.
Ruszczynski (1994), membro do “staff’ da TIMS desde 1979, em seu livro Psychotherapy with Couples Theory and Practice at the TIMS, relata de forma bastante didática uma evolução histórica, conceitual e clínica do trabalho realizado com famílias e casais naquele centro, nos últimos 30 anos. O autor discute a construção de um corpo teórico sobre a psicanálise de família e casais que se inicia ancorado nos referenciais de Freud, Winnicott, Balint, Bowlby e Bion e que se mantem atualizado até hoje, apesar de muitos dos estudos produzidos debaterem a associação entre as esferas intrapsíquica e interpessoal.
O tipo de ligação existente entre essas duas esferas é uma das temáticas desenvolvidas no livro de Box, Copley, Magagna e Moustaki (1994), onde encontramos uma ênfase no funcionamento dos mecanismos intrapsíquicos como modelo para a compreensão dos fenômenos de natureza grupal e interpsíquica. As interpretações da autora para as dinâmicas familiares e/ou conjugais aproximam-se daquelas que pretendem compreender as etapas mais primitivas do desenvolvimento emocional individual, utilizando-se dos conceitos de cisão, negação, idealização e identificação projetiva, servindo de base aos processos inconscientes inerentes ao estabelecimento dessas relações.
Encontramos ainda em autores, principalmente americanos, uma interface com as mudanças sociais ocorridas na família e nos casais nas últimas décadas. Temos como principal representante dessa corrente teórica David Scharff, que reúne, numa publicação atual (Scharff & Scharff, 2006), os principais referenciais teóricos e manejos técnicos no tratamento de famílias e casais.
Perspectivas francesas e latino-americanas
Na década de 70, um grupo de psicanalistas, tanto na França quanto na Argentina, partindo dos estudos de Bion acerca dos grupos, cria um referencial próprio denominado Psicanálise das Configurações Vinculares, enfocando tanto a família quanto grupos maiores formadores das massas sociais. São representantes dessa linha teórica Kaës (2001) e Eiguer (1998), que através do desdobramento de seus conhecimentos partem para temas específicos que definiram novos rumos para a psicanálise de família e casal.
Kaës (2001) traz uma significativa contribuição para o tema da transmissão psíquica geracional, ampliando a noção de sujeito Freudiano para sujeito da herança, na medida em que esse último se define cada vez mais, necessariamente, no espaço intersubjetivo... “e mais precisamente, no espaço e no tempo da geração, do familiar e do grupal” (p. 5-6).
Eiguer (1985, 1998), um psicanalista argentino radicado na França, contribui, principalmente, com textos que estão centrados na teoria da técnica de atendimento a casais e famílias. Para ele, é possível partir dos estímulos fantasmáticos provenientes do objeto para explicar o duplo investimento recíproco e simultâneo entre os indivíduos. Considera ainda, que o equilíbrio entre os vínculos narcisistas e os vínculos objetais mantém as relações de aliança, enquanto o seu desequilíbrio provoca a fragilidade e o sofrimento dos parceiros. Sua proposta clínica enfatiza os organizadores inconscientes na origem da escolha de objeto, tensões e defesas comuns, a história do vínculo, os mitos e lendas familiares e conjugais.
Ainda dentre os psicanalistas franceses, podemos destacar o trabalho de Ruffiot (1984), que parte da metapsicologia freudiana para demonstrar que um novo regime econômico se instala quando de uma relação amorosa recíproca entre dois indivíduos. O autor levanta a hipótese de um aparelho psíquico grupal familiar que, apesar de resultar da fusão dos psiquismos primários de cada membro do grupo, corresponde a um sistema de funcionamento autônomo. Através deste conceito, autores que podemos denominar de “grupalistas” (Levy-Alvarenga, 1996) ou “grupoanalistas”, defendem uma terapia psicanalítica de grupo em moldes análogos a uma psicanálise individual. Considera-se que o discurso dos indivíduos, membros do grupo familiar, corresponderia à expressão de um aparelho psíquico grupal.
O grupo argentino, na América Latina, comandou a construção dos principais referenciais teóricos da Psicanálise Vincular, formando importantes Institutos e, mais recentemente, um Programa de Pós-Graduação nessa área. Possuem uma extensa produção bibliográfica difundida por toda a América do Sul. Seus expoentes máximos são Berenstein e Puget (1993, 2004), que introduziram as noções de interpsíquico ou intersubjetivo e transubjetivo, representando a inscrição inconsciente dos modelos socioculturais (Berenstein & Puget, 1997). Embora ambos tenham sido parceiros em extensas publicações, Berenstein sempre se dedicou mais ao campo familiar e Puget ao conjugal. Contudo, esses autores são unânimes em afirmar a forte interferência que sofreram do pensamento de Bleger e, fundamentalmente, de Pichon-Rivière.
É no pensamento desse último, desenvolvido prioritariamente entre as décadas de 80 e 90, que encontrávamos as bases para a compreensão da doença mental na família através da noção de porta voz ou depositário da patologia familiar, ou seja, um dos elementos do grupo familiar era escolhido para ser o depositário de toda a doença daquele grupo, o paciente identificado, já que a família como um todo dificilmente se colocava na categoria de ‘paciente’ (Ramos, 1992).
Os psicanalistas argentinos propõem uma ampliação nos paradigmas da psicanálise individual como uma forma de poder abarcar as transformações que foram ocorrendo ao longo do tempo envolvendo novas formas de psicopatologias e de inter-relações com o Social. Em decorrência desse ponto de vista, a própria expansão da psicanálise como possibilidade de intervenção terapêutica fez-se necessária.
A noção de vínculo (aqui vista em oposição à de relação objetal marca da escola inglesa de psicanálise) adquire uma especificidade no tratamento psicanalítico das famílias e casais, pois define o individuo sempre ligado à noção de ‘pertencimento’ aos grupos dos quais provem: família, instituição, sociedade.
Berenstein e Puget (2004, p. 2), na atualidade, definem o “vínculo como sendo o inconsciente em sua maior densidade: é o que dá pertencimento e estabelece uma descontinuidade e uma continuidade entre os eus. Esta ultima se constrói na fantasia como defesa ante a percepção de descontínuo”. O “entre” é um estado psíquico derivado do contato com a presença do outro, com a alteridade. O outro visto como algo novo, diferente do EU. Atualmente esses autores estão buscando, num diálogo interdisciplinar com alguns filósofos do século XXI (Hanna Arendt e Lévinas), uma complementação de suas posições teóricas e ideológicas.
Como é vasta a produção argentina sobre psicanálise vincular, encontramos interessantes discussões sobre esse campo teórico e relatos de experiências clínicas no sentido de diferenciar a forma de pensar e o trabalho terapêutico de um psicanalista vincular. Gostaríamos de destacar, também, uma importante contribuição de Moguillansky (1999) acerca da evolução teórica existente na passagem da noção de relação de objeto para a noção de vínculo, corroborando os ensinamentos do ‘criador’, Berenstein, como ele é visto por toda a comunidade psicanalítica vincular portenha.
A realidade brasileira
A psicanálise de família e casal no Brasil vem se desenvolvendo seguindo as duas tendências apresentadas anteriormente; ou seja, sofrendo uma forte influência dos referenciais da psicanálise individual, tendo como base o tipo de formação clínica e teórica oferecido pela Tavistock ou tomando como referência a psicanálise vincular e o corpo teórico construído por seus fundadores.
Além da proximidade física e de algumas semelhanças com a Argentina, como a situação político-econômica, não conseguimos formar instituições psicanalíticas brasileiras capazes de promover intercâmbio entre profissionais da área e de proporcionar formação clínica e teórica nos moldes dos nossos vizinhos. Talvez pelo impedimento da língua? Pela geopolítica característica de nosso país, onde o conhecimento psicanalítico é setorizado, ocorrendo principalmente na região Sudeste e Sul? Essas são questões que merecem esforços contínuos para serem suficientemente respondidas.
Os profissionais que pesquisam e trabalham na clínica com o referencial da psicanálise de família e casal têm uma vivência bastante solitária, reunindo-se em pequenos grupos, alguns dentro das Universidades e outros pertencentes a Sociedades de Psicanálise de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, sem uma organização que permita e facilite a troca de experiências. Essa realidade ficou muito visível em Montreal no Canadá, 2006, quando da realização do II Congresso Internacional de Psicanálise de Família e Casal e da criação da Associação Internacional de Psicanálise de Família e Casal (AIPFC), onde nossa representatividade foi mínima, principalmente, quando comparada com a delegação Argentina. Além disso, um dos objetivos lá propostos, a criação de uma Associação Brasileira de Psicanálise de Família e Casal num prazo de dois anos, até o momento, tem se mostrado tarefa impossível de ser concluída.
Em contrapartida, o referencial Sistêmico desenvolveu-se de forma bem organizada em nosso país. Há muito existe a Associação Brasileira de Terapia Familiar (ABTF) que, nos últimos eventos realizados, aceitou a apresentação de trabalhos de orientação psicanalítica.
A seguir, posto o ‘status da arte’ atual, gostaríamos de mencionar alguns trabalhos de pesquisadores/clínicos brasileiros relevantes para o estabelecimento e desenvolvimento desse referencial teórico e prático em nossa sociedade.
Féres-Carneiro (1980, 1996), uma das introdutoras da psicoterapia de família e casal no Brasil, atua desde o início da década de 80, principalmente no âmbito universitário (PUC/Rio), tendo sido orientanda de Mathilde Neder (PUC/SP), pioneira na abordagem.
Alguns colegas psicanalistas que fizeram formação na Tavistock e trouxeram suas experiências para cá e se tornaram divulgadores desse eminente centro britânico. Citaremos o trabalho de Meyer (1987), utilizando-se do referencial Kleiniano na terapia com famílias.
Esse autor propõe o estudo da dinâmica da organização familiar, vista como expressão do entrelaçamento de várias relações objetais inter-relacionadas, cujo objetivo é desvendar a rede oculta de identificações projetivas que compõe a família e a conscientização desta frente à demanda por tratamento que a distancie do paciente identificado. A proposta terapêutica, assim aceita, pode tornar-se ameaçadora na medida em que promove um ataque a uma dada organização do grupo e o terapeuta é caracterizado alternadamente, pelos membros da família, como dotado da vontade e do poder tanto de desestabilizar quanto de salvar a família.
Lamano (1994), no campo da psicoterapia psicanalítica com casais, também trouxe para o Brasil a experiência obtida através da formação na Tavistock, utilizando-se da técnica de coterapia. Ramos (1992, 1999), reúne a visão de vários especialistas em terapia de família e casal. Gomes e Prochat (2006) traçam uma cronologia histórica sobre o desenvolvimento da psicoterapia do casal, tendo como base a teoria das relações objetais e suas principais atualizações.
Correa (2000, 2000a, 2007) é uma grande divulgadora das ideias de Kaës e do grupo francês, bem como dos autores argentinos, enfatizando em suas publicações os conceitos de transmissão psíquica e de legado familiar e a inter-relação desses fatores na terapia psicanalítica com famílias. Vem debruçando-se também na compreensão psicanalítica de determinados fatos da contemporaneidade (violências familiares e grandes catástrofes sociais) e suas consequências na constituição familiar e individual.
Em relação aos adeptos da psicanálise vincular, temos iniciativas de criação de alguns Núcleos e Sociedades para difusão e formação de terapeutas. São eles: Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares (NESME), Sociedade de Psicoterapias Analíticas Grupais do Estado de São Paulo (SPAGESP), Associação Brasileira de Psicoterapia Analítica de Grupo (ABPAG) e Federação Latino-Americana de Psicoterapia Analítica de Grupo (FLAPAG); com exceção da última, todos sediados em São Paulo, sendo dirigidos por analistas paulistas, mas não se detendo especificamente no trabalho com famílias e casais, e sim com grupos em geral. Em 2003, essas entidades publicaram um manual sobre Grupos e Configurações Vinculares, obra de cunho didático, baseada nos conceitos do grupo argentino (Fernandes, Fernandes & Svartman, 2003).
Não poderíamos deixar de mencionar, dentro dos grupoanalistas brasileiros, a longa trajetória de ensino/formação, pesquisa e clínica de Zimerman (1993/2000) não aparece nas referencias, eminente analista do Sul do país que gerou consistente contribuição para a psicanálise de família e casal.
Pesquisas brasileiras acerca do tema família e casal, clínica e estudos psicossociais, vem sendo desenvolvidas por pesquisadores das principais universidades do país. O que denota uma tendência nossa de atribuir à universidade o lugar e o status de organizadora e formadora de um saber científico sobre essa clínica específica.
Considerações finais
Nossa intenção, ao apresentar os principais referenciais teóricos da psicanálise de família e casal, foi no sentido de enfatizar o desenvolvimento cronológico desse tipo de conhecimento, sem entrar em questões ou escolhas que expressassem maior ou menor valor, seja ele de natureza teórico ou clínico.
Da analise histórica acerca das origens, desenvolvimento e atualização do campo da psicanálise de família e casal, observamos que as modificações mais profundas ocorreram no cenário clínico. Foram produzidas consideráveis mudanças em função da terapêutica inicial, que recaía sobre a escolha de um terapeuta individual diferente para cada membro da família ou do casal, sendo substituída por um atendimento que privilegiava o grupo casal ou o grupo família.
Entretanto, muito tempo transcorreu até que fossem criados critérios diferenciados de encaminhamento para um atendimento individual, familiar, ou de casal. Nas duas últimas décadas houve uma disseminação de estudos abordando as limitações, indicações e contraindicações para a terapia familiar e de casal.
A interface da terapia de casal com a terapia familiar não suscita tantas dúvidas, pois, no nosso entender, parece clara a primeira indicação quando as questões referentes à conjugalidade se destacam a partir do tipo de funcionamento e comunicação da família. Alguns autores (Féres-Carneiro, 1980; Gomes, 1998, 2007) observam que determinados sintomas apresentados pelos filhos demonstram a interferência da problemática conjugal e, portanto, a importância da proposta interventiva ser direcionada para os pais/casal.
Já em 1983, Soifer apontava a presença do bode expiatório da família a criança e a presença de situações de crise familiares luto, doença orgânica, desemprego, mudanças culturais, prisão de um dos membros e formas neuróticas de funcionamento do grupo como critérios indicativos para a terapia familiar.
Em relação aos critérios de indicação para o trabalho terapêutico com casais, Berenstein e Puget (1993) abordaram a partir da definição de zonas compartilháveis e não-compartilháveis entre os pares e o terapeuta. Assim é que recomendam a análise individual, quando observam que as zonas afetadas dizem respeito a funcionamentos intrassubjetivos e não ao funcionamento vincular e recomendam uma análise de casal quando há uma disfunção referida ao vínculo.
Zimerman (1993/2000) pontua que cada vez mais casais procuram tratamento, alegando como principais motivos manifestos problemas na comunicação e na sexualidade, problemas com os filhos e, mais frequentemente, a deterioração gradativa do casamento em função do desequilíbrio causado pela emancipação da mulher nem sempre bem entendido pelo cônjuge e nem por ela mesma. O autor menciona também a difusão da terapia individual, abrangendo cada vez um número maior de indivíduos, que pode causar uma ruptura no equilíbrio neurótico da dupla conjugal quando um deles não acompanha a mudança e o crescimento emocional do outro.
Eiguer (1998) menciona que a consciência sobre a existência de conflitos conjugais é indispensável para a indicação da terapia de casal e cita como problemáticas mais comuns nos casais: os conflitos relacionais e de comunicação, desentendimentos sexuais, a decisão de um divórcio, a violência doméstica e tipos diversos de relações perversas.
Spivacow (2005) compartilha desse mesmo ponto de vista, discutindo ainda a necessidade de alguns casais buscarem a terapia de casal como uma forma de ajuda para uma separação sem traumas, já que atualmente não existe mais a “institucionalização” do casamento, enfraquecendo a pressão para os sujeitos permanecerem juntos por motivos econômicos, sociais ou familiares.
Concluindo, a Psicanálise de Família e Casal vista sob o enfoque de inovações e ampliações da técnica psicanalítica, surge como consequência da criação de novos constructos teóricos em decorrência de estudos e pesquisas realizados ao longo dos anos, movimento esse que se situa em consonância com as mudanças ocorridas na sociedade contemporânea.
O Brasil ainda contribui de forma incipiente, seja na construção de novos referenciais teóricos (já que utilizamos ou os modelos advindos da Tavistock ou da Psicanálise Vincular Argentina, ou os referenciais franceses envolvendo a transmissão psíquica geracional), seja na organização dos profissionais em Associações e o subsequente intercâmbio com a comunidade internacional.
Diferentemente de outros países, também não temos revistas (ou periódicos) com perfil específico para a área, entretanto, nossa produção bibliográfica em livros é bastante consistente e veio aumentando nas duas ultimas décadas. Se por um lado, fazemos apenas a aplicação de constructos teóricos criados por outros, nossa diversidade clínica nos permite inovar no manejo técnico empregado, com diferentes populações, em culturas diversas.
Referências
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Endereço para correspondência
E-mail: isagomes@ajato.com.br
Recebido em agosto de 2007
Aceito em junho de 2008
Isabel Cristina Gomes: livre-docente; professora associada do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
Lidia Levy: doutora em Psicologia Clínica (PUC-RJ); professora Assistente do Departamento de Psicologia da PUC-RJ; Psicanalista,membro da SPCRJ e da SPID.