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Aletheia
versão impressa ISSN 1413-0394
Aletheia n.29 Canoas jun. 2009
ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO
As interfaces entre o público e o privado na produção do discurso da eficiência nas escolas de educação profissional
Interfaces of the public and private spheres in the production of the efficiency discourse in professional educational schools
Maria Inês Utzig Zulke; Henrique Caetano NardiI
I Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS. Departamento de Psicologia Social e Institucional. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social
RESUMO
Este artigo discute os efeitos das transformações contemporâneas nos processos de subjetivação dos trabalhadores em escolas públicas de educação profissional no contexto de reforma do Estado. Problematizamos as proposições centrais do Plano de Reforma do Estado que têm sustentado o discurso governamental sobre a ineficiência do serviço público, justificando a introdução no seu interior de modos de operar característicos da lógica empresarial privada. Identificamos em nosso estudo que o estigma da ineficiência não está presente nas instituições pesquisadas, interrogando a suposta homogeneidade discursiva com que o setor público é tratado. Destacamos o valor simbólico atribuído ao trabalho neste contexto e a interface do público e do privado presentes na educação profissional como possibilidades explicativas para a eficiência e boa qualidade atribuídas às escolas estudadas.
Palavras-chaves: Reforma do estado, Processos de subjetivação, Educação profissional.
ABSTRACT
This article discusses the effects of contemporary transformations in the subjectification processes of public professional educational schools workers in Brazilian State’s Reform context. We interrogate the central propositions of the State Reform that have sustained the governmental discourse concerning the inefficiency of public services, which is used to justify the introduction of operating ways characteristic of the private sector logic in this sector. We identified that the inefficiency stigma is not present in the institutions analyzed, interrogating the taken for granted discourse homogeneity concerning the public sector. As explaining possibilities for the good quality and efficiency attributed to the studied schools, we indicate the importance of work’s symbolic value in this context and the private and public interface present in professional education.
Keywords: State reform, Subjectivation processes, Professional education.
Prolegômenos sobre o percurso teórico-metodológico
Este artigo discute os efeitos das transformações contemporâneas nos processos de subjetivação dos trabalhadores em escolas públicas de educação profissional no contexto de Reforma do Estado. Analisamos, a partir do recorte específico definido acima, as proposições do Plano de Reforma do Estado que se associam ao discurso governamental sobre a ineficiência do serviço público, as quais justificam a introdução no seu interior de modos de operar característicos da lógica empresarial privada.
No Brasil, a Reforma do Estado foi desencadeada a partir de 1995, produzindo uma transformação na estrutura do aparelho estatal. As reformas promovidas no governo Fernando Henrique Cardoso inserem o Brasil na nova ordem mundial, propiciando a expansão do livre mercado e de sua lógica, introduzindo, assim, a racionalidade mercantil na esfera pública. Na transição do fordismo para o modelo de acumulação flexível, o Estado Social (Castel, 1998) o qual não se constituiu nos países de capitalismo periférico da mesma forma que nos países do capitalismo central (Nardi, 2006) dá lugar a um Estado gestor, que carrega em si a racionalidade empresarial e torna as teorias organizacionais, antes restritas aos muros das empresas privadas, referência para a estrutura estatal.
Ator importante desta transformação, o ex-ministro Bresser Pereira (1998), titular do órgão responsável pela elaboração e implantação da Reforma, defende as qualidades do setor privado propondo que a eficiência e a agilidade dos serviços do Estado deveriam ser semelhantes às do setor privado. O discurso que sustenta a Reforma tem eco nos meios de comunicação identificados com o neoliberalismo, os quais têm desqualificado os serviços públicos contrapondo sua alardeada ineficiência à eficácia do setor privado.
Fischer (2005) afirma que a mídia cria um espaço de reduplicação dos discursos de uma época, sempre a seu modo, na forma de tratar aquilo que “deve” ser visto ou ouvido. Isso quer dizer, então, que a mídia também estaria simultaneamente replicando algo e produzindo seu próprio discurso sobre a ineficiência do serviço público-estatal.
No modelo da Reforma a função do governo passa a ser a de propiciar as condições políticas e sociais para que o funcionamento do mercado seja o melhor possível. No interior dessa racionalidade, o governo direciona suas ações para esse novo objetivo, instituindo novas práticas discursivas1 capazes de garantir as condições de funcionamento do mercado como uma necessidade primordial para as mudanças na máquina estatal.
Cabe destacar que o plano da reforma ainda não está concluído e as ações já implementadas não o contemplam na sua totalidade, o que se deve em parte aos problemas de “importação” do modelo, criado em outro contexto sócio-político e, ainda, à correlação de forças sociais na definição das estratégias para a implantação do referido processo (Benites, 2002, p. 62). Assim, além da sua operacionalização ser parcial no interior do Estado brasileiro, existe um processo de mudança em curso associado ao resultado das eleições presidenciais de 2002 e 2006.
A discussão sobre o papel do Estado está inserida no contexto de transformações do capitalismo, as quais têm impactos relevantes no mundo do trabalho. A sociedade contemporânea vive a transformação do papel do Estado, modelado no interior de um regime de verdade legitimador de um conjunto de práticas governamentais que encaminha para o setor privado, atribuições relativas ao cuidado da população. O conceito de regime de verdade é definido por Foucault (1995) como os
[...] tipos de discursos que a sociedade acolhe e faz funcionar como verdadeiro: os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados falsos ou verdadeiros; a maneira pela qual se sanciona a ambos; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para obtenção da verdade; o estatuto daquele que se encarrega de dizer o que funciona como verdade. (p. 131)
Busca-se, instituir no âmbito estatal, modos de operar característicos da lógica privada e empresarial, com o objetivo proposto de dar agilidade, eficiência e qualidade aos serviços.
Enquanto as empresas do setor privado se adaptam aos novos tempos e adotam modelos gerenciais contemporâneos, exaltando a imagem da empresa como sinônimo de eficiência e qualidade, a imagem do serviço público é diária e severamente atacada. As mídias pautam a qualidade do serviço público, produzindo uma série de reportagens buscando “flagrar” o mau atendimento, a ineficiência, a morosidade, etc. Consagra-se uma visão que associa a empresa privada com bom funcionamento, ao contrário da organização público-estatal, que é vista como não tendo jeito mesmo. Há uma naturalização de algo que é construído social e historicamente e que se apresenta como verdade para a sociedade.
Ineficaz, ineficiente e responsável pelo déficit público são alguns dos enunciados centrais utilizados no discurso que designa a crise estrutural do Estado, fortalecendo a dicotomia entre público e privado. O público designa tudo o que é ineficiente, aberto ao desperdício e à corrupção e o privado, por sua vez, remete à esfera da eficiência e da qualidade.
Para compreender como esta dicotomia atravessa os processos de subjetivação de trabalhadores do setor público, conduzimos uma pesquisa, a qual serve de base para este artigo, em duas instituições públicas de educação profissional localizadas no Vale do Rio dos Sinos, região importante economicamente para o Estado do Rio Grande do Sul. Foram escolhidos dois grupos de trabalhadores de cada escola, constituídos por funcionários e professores que ingressaram nas escolas em dois períodos históricos distintos. Um grupo que iniciou suas atividades logo após a criação dos estabelecimentos, nos anos 70, e o outro grupo que ingressou nas escolas na década da Reforma do Estado, ou seja, a partir dos anos 80.
Foi utilizado como instrumento de pesquisa, entrevistas que buscaram reconstituir as trajetórias de vida, inspiradas na perspectiva da abordagem biográfica, proposta por Cabanes e Haroche (2001), aliada à análise foucaultiana buscando compreender como os relatos são atravessados pelos enunciados do dispositivo da Reforma do Estado. O relato das entrevistas foi construído a partir de uma questão inicial apresentada aos sujeitos da pesquisa sobre o significado de trabalhar em uma instituição público-estatal. As entrevistas tiveram por objetivo conhecer as trajetórias de vida e de trabalho, observando alguns aspectos relativos a temas constantes no Projeto da Reforma do Estado. Ainda, as entrevistas realizadas individualmente seguiram um roteiro auxiliar utilizado pela pesquisadora, incluindo questões relacionadas aos temas.
A escolha de analisar trajetórias permite articular a vida experienciada por determinada pessoa aos fenômenos sociais mais amplos. Por isso, a trajetória de vida foi utilizada como ferramenta de análise porque possibilita a compreensão dos efeitos macrossociais do capitalismo na vida dos indivíduos. Segundo Cabanes e Haroche (2001), toda história individual se refere necessariamente a uma história de interação com a comunidade e com a sociedade a qual pertence.
Durante a realização do estudo nos deparamos com algumas dificuldades teóricas que reforçaram a necessidade de avançar neste campo. Em primeiro lugar, a singularidade do público em relação ao privado exige categorias conceituais diferentes daquelas comumente utilizadas para a análise das organizações privadas. No entanto, existem poucos estudos sobre o tema, incrementando as dificuldades para realizá-lo. Esta situação pode ser confirmada na citação de França (1993), embora já datada, mas que permanece atual em razão da escassa produção neste campo:
A ausência de estudos sistemáticos que busquem aprofundamento teórico e metodológico no campo das ciências sociais é, provavelmente, a maior responsável pela permanência de mitos e lugares-comuns sobre o funcionário do Estado. A imagem popular ganha ares de verdade científica: rotina, ineficiência, desinteresse, complicação de procedimentos, burocracia, classe média, parasitas, conformistas. Assim como as coisas públicas, eles ‘não funcionam’ e recebem até demais pela estabilidade e o pouco que trabalham. Ainda que esses estereótipos possam corresponder em graus e formas variadas ao funcionamento dos aparelhos do Estado e seus empregados os burocratas , o que vale aqui ressaltar que eles têm dificultado em muito a possibilidade de uma aproximação não preconceituosa desta categoria. (p. 11-12)
A segunda dificuldade reside justamente na tradição fragmentada do estudo das categorias subjetividade e trabalho, pois a compreensão da relação entre estas categorias implica conhecer os modos de vida e sentidos atribuídos às experiências de trabalho dos sujeitos. Para Nardi (2002) “... pensar a subjetividade nas suas conexões com o trabalho implica compreender os processos através dos quais as experiências do trabalho conformam modos de agir, pensar e sentir, amarrados em dados momentos mais ou menos duráveis que evocam a conexão entre diferentes elementos, valores, necessidades e projetos” (p. 20).
Assim, mesmo se o trabalho tem sido tratado como uma categoria central da sociologia, este foi somente recentemente incorporado a partir de sua especificidade como um elemento constitutivo da subjetividade, categoria central para a Psicologia. Por esta razão a compreensão da relação subjetividade e trabalho exige um esforço teórico que busque um diálogo interdisciplinar. Nas últimas décadas, a relação subjetividade e trabalho vem sendo estudada a partir de novas perspectivas teóricas que buscam superar uma visão dicotômica acerca do indivíduo e sociedade, mundo interno e mundo externo. A definição de subjetividade remete a um espaço de intersecção, de cruzamento de olhares e saberes, uma vez que não é reduzida a um fenômeno psíquico individual e tampouco como sinônimo de interioridade. Conforme Naffah Neto (1998):
[...] o mundo não é tão somente exterior, nem tão somente interior, está sempre fora e dentro ao mesmo tempo, ou melhor, dizendo, constitui-se numa imbricação de um exterior e de um interior, fluindo e refluindo por momentos de projeção e introjeção. [...] Ao fora aprendemos a chamar de mundo; ao dentro de subjetividade. (p. 70-71)
Por último, a compreensão das transformações que ocorrem no âmbito do Estado em uma dimensão ainda pouco estudada, que é a subjetividade, exige uma escolha teórica e epistemológica que reafirma uma postura de diálogo entre diferentes campos disciplinares. Assim, alguns recortes importantes oriundos de distintas tradições teóricas serão deslocados de sua forma conceitual de origem, especialmente no campo das ciências sociais.
A reforma como dispositivo
Neste artigo, a problemática reformista é entendida como um sintoma de rearticulação de saberes e técnicas na produção de uma forma política centralizadora da gestão da vida e do trabalho dos indivíduos. Com base nas contribuições teóricas de Michel Foucault, a análise toma a Reforma do Estado como um dispositivo que atualiza as estratégias de afirmação da governamentalidade constituída a partir das novas configurações do capitalismo.
O dispositivo é compreendido, conforme descrito por Foucault (1984), como sendo,
[...] um conjunto heterogêneo que engloba discurso, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos (p. 244)
Para o autor, o dispositivo pressupõe a existência de um tipo de jogo de poder, de caráter estratégico que modifica as posições e funções entre estes elementos heterogêneos apontados, pois
[...] o dispositivo está sempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre, no entanto, ligado a uma ou a configurações de saber que dele nascem mas que igualmente o condicionam. É isto, o dispositivo: estratégias de relações de forças sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles. (p. 246)
O conceito de dispositivo nos ajuda a ampliar a análise da forma como a Reforma se fez sentir no ensino profissional público, ao mesmo tempo em que reflete seu acoplamento com as modificações do capitalismo. A Reforma do Estado engendrou um conjunto de procedimentos e de saberes considerados úteis para a conformação de sujeitos e de instituições adequados às necessidades contemporâneas do capital, no nosso caso orientado aos trabalhadores das escolas e aos futuros trabalhadores que estão sendo formados por estas instituições de educação profissional. Ou seja, este conjunto de procedimentos e saberes implantados no setor público-estatal como garantia de eficiência e qualidade são os mesmos que constituem os currículos dos cursos técnicos, agora também reformados e atualizados para a (con)formação do novo sujeito trabalhador.
As mudanças estruturais do capitalismo contemporâneo impuseram um movimento de reformas institucionais também na esfera da educação brasileira. Na segunda metade dos anos 90, uma série de transformações paradigmáticas desta nova racionalidade ocorreu na educação através da reforma curricular, realizada em todos os níveis e modalidades. Por exemplo, a reforma no financiamento educacional foi articulada à política avaliativa do Sistema Nacional de Avaliação, dentre outras ações. Tais medidas visam à rearticulação das esferas pública e privada, as quais resultam dos deslocamentos do capital no processo de universalização do capitalismo.
No campo da educação profissional, um conjunto de ações do governo federal compõe o projeto de reforma nesta área visando a estabelecer uma rede própria, separada da rede regular da educação básica, acompanhada de uma nova organização curricular com objetivo de adequar a formação às tendências contemporâneas do mundo do trabalho.
O diagnóstico que constitui a base de argumentação para definição do novo perfil do trabalhador e do conteúdo da nova educação profissional diz que “um novo paradigma tecnológico e um novo padrão industrial estão em construção no sistema capitalista, desde os anos 80, em resposta à crise sistêmica que ainda perdura...” (Kirschner, 1993; BRASIL. MEC/MCT/MTb, 1995).
A flexibilização da educação profissional era apresentada como um dos princípios norteadores da reforma do ensino profissional. Em termos organizativos, essa flexibilidade se concretizaria na possibilidade de criação, alteração e extinção de cursos, e na alocação de vagas segundo as demandas da esfera produtiva. Em termos curriculares, a flexibilidade seria expressa na modularização dos cursos e viabilização de diferentes itinerários formativos, e de outro lado, numa formação orientada para um perfil técnico também flexível, capaz de adaptar-se a novas exigências de qualificação.
A aproximação entre ensino técnico e empresas, tanto na gestão quanto na reorientação dos currículos, era justificada no discurso governamental segundo uma lógica que atribuía às empresas ou às pesquisas de mercado a capacidade de orientar as decisões sobre os currículos e ofertas de vagas.
O novo paradigma pedagógico proposto nos Referenciais Curriculares Nacionais da Educação Profissional de Nível Técnico passa a ter o foco na aprendizagem e na constituição de competências em contraposição ao paradigma tradicional de acumulação de conhecimentos. A metodologia decorrente desta concepção estaria orientada para o processo de trabalho do sujeito que aprende. As competências, segundo os Referenciais Curriculares, são “saberes articulados e mobilizados através de esquemas mentais” e as habilidades “permitem que essas competências sejam colocadas em ação em realizações eficientes e eficazes” (BRASIL,MEC, 2000a, p. 26-8).
Podemos encontrar na Reforma da Educação Profissional as mesmas noções e intenções presentes na Reforma Administrativa do Estado. A referência ao mercado tomado como uma realidade dada e onipresente, a flexibilidade, a competência associada à eficiência, a tentativa de “senaização” das escolas técnicas públicas através da transposição da experiência das agências de preparação de mão de obra vinculadas às empresas privadas compõem a nova racionalidade governamental.
No contexto das transformações no mundo do trabalho deveria haver uma completa mudança de comportamento e de habilidades por parte dos trabalhadores, de modo a melhorar a produtividade num momento de competitividade e fragmentação dos mercados. A qualificação que na década de 1960 (época de criação das escolas técnicas profissionalizantes) estava relacionada a um contexto produtivo cujo modelo de organização do trabalho era taylorista-fordista, se metamorfoseia no modelo de competência, o mesmo utilizado no contexto da reestruturação produtiva (Rosenfield & Nardi, 2006). À escola caberia ajustar a formação do indivíduo a este novo perfil de trabalhador que estava sendo requisitado pelo mercado, onde agora não mais vigorava a lógica do pleno emprego, mas a lógica da empregabilidade. Para disputar o mercado de trabalho passa a ser necessário comunicação clara e precisa; capacidade de análise tanto para solucionar conflitos como para prever e corrigir problemas do sistema produtivo; familiaridade com computadores e novas tecnologias; saber enfrentar as mudanças individualmente e em equipe; ser responsável, versátil, equilibrado emocionalmente, polivalente; deve estudar continuamente. Enfim, estas características dariam garantias de empregabilidade ao indivíduo e promoveriam as melhorias contínuas no processo produtivo.
Para estar à altura das exigências de um mercado versátil, caberia ao indivíduo ser “empresário de si mesmo”. Na versão contemporânea do liberalismo, o postulado do Homo Economicus é extremado, na medida em que o sujeito deve ser um empreendedor de sua utilidade, governando sua própria conduta tendo este fim como objetivo central.
A discursividade produzida pela reforma da educação profissional em prol da formação dos novos sujeitos potencializa as estratégias de governo e autogoverno dos indivíduos. Este discurso ao produzir a necessidade de educar para a empregabilidade, ao fazer emergir novas racionalidades políticas, põe em funcionamento técnicas sutis de governamentalidade, através das quais é possível moldar e normalizar a conduta, as aspirações, as decisões dos indivíduos, com o propósito de alcançar objetivos considerados desejáveis (Bampi, 2003).
O conceito de governamentalidade contribui com o nosso estudo sobre a Reforma do Estado, pois, de acordo com Foucault, a compreensão do Estado deve considerar as táticas gerais da governamentalidade. A abordagem foucaultiana possibilita a articulação da problemática das práticas de governamentalidade, no nível da população e, no nível do indivíduo, pois os funcionários das instituições estudadas constituem-se ao mesmo tempo como alvos e como veículos das políticas de governo. As políticas administrativas conduzidas no processo de Reforma do Estado funcionam como um mecanismo de regulação importante nas estratégias de governo.
O deslocamento do governo dos outros para o governo de si permite introduz a temática da autoconstituição do sujeito. Ao descrever as tecnologias de governo na análise do poder, Foucault descreve também a função das técnicas de si, sendo a relação entre ambas a base da definição de governamentalidade. As “mentalidades de governo” (a governamentalidade) são racionalidades políticas pelas quais governar se torna uma questão de conduzir de forma calculada as condutas de si e dos outros buscando atingir certos objetivos (Bampi, 2003).
Quando Foucault (1995) analisa o dispositivo da sexualidade se dá conta de que o exercício do poder não deve ser entendido como pura violência ou coerção, uma vez que o poder consiste em relações complexas. Dessa forma, as relações de poder implicam, ao mesmo tempo, na constituição simultânea de formas de dominação e resistência. As lutas forjadas nos processos de condução da conduta permitem dar uma nova compreensão aos jogos de poder que nos constituem como sujeitos. O autor atribui dois sentidos para a palavra sujeito: “sujeito a alguém pelo controle e dependência, e preso à sua própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento. Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga e torna sujeito a” (p. 235).
Após ter estudado o campo de governo, partindo das técnicas de dominação, Foucault (1984) passa a analisar as tecnologias de governo não somente orientada para os outros, mas também para si e conclui: “Se quisermos analisar a genealogia do sujeito na civilização ocidental, é preciso considerar não apenas as técnicas de dominação, mas também as técnicas de si” (p. 95).
Ramminger (2005) problematiza a ideia de assujeitamento em Foucault, a qual deve ser considerada na análise da relação subjetividade e trabalho, uma vez que o aprisionamento às normas traz em si mesmo as possibilidades de resistência. Conforme Ramminger (2005),
Estudar a relação entre subjetividade e trabalho é estar atento, portanto, não apenas as formas de assujeitamento, mas também às transgressões e às possibilidades de invenção de outros modos de lidar com as normas, quiçá transformando-as. (p. 26)
Propomos, neste artigo, pensar a subjetividade através dos processos e dos modos de subjetivação (Nardi, 2002, p. 20). Por processo de subjetivação entendemos “a maneira como o conjunto de regras que define cada sociedade é experienciado em cada trajetória de vida“, enquanto que os modos de subjetivação referem-se à forma predominante como os sujeitos se relacionam com a regra, reconhecendo-se como impelidos a colocá-la em prática.
Foucault utiliza a ferramenta genealógica para compreender “O que somos hoje”, buscando encontrar no passado às condições de possibilidade de ser o que somos no presente. A genealogia produz uma ruptura com um tipo de fazer histórico, que se preocupa em encontrar uma origem fundacional para determinados conceitos ou práticas. Para o autor, a verdade é produzida e cada época determina o que pode ser dito e pensado a partir do que ele chama de ”jogos de verdade”. Os jogos de verdade são os diferentes procedimentos que conduzem a uma verdade ou regime de verdades que sustenta uma determinada forma de dominação. Há, portanto, uma luta permanente entre diferentes campos de saber que produz determinados regimes de verdade.
As investigações de Foucault para compreender “como nos tornamos sujeitos” em cada tempo e em cada contexto, nos indicam a necessidade de identificar os regimes de verdade que balizam os processos de subjetivação dos trabalhadores de nossa pesquisa. Por isso, a perspectiva genealógica é adotada na pesquisa para compreender como os diferentes discursos sobre o trabalho no serviço público-estatal, que legitimam a Reforma do Estado, incidem sobre a vida dos trabalhadores, no caso deste estudo, como já dito, trabalhadores de escolas técnicas, determinando o seu modo de trabalhar e a experiência que fazem de si mesmos.
É preciso reconhecer que as táticas de governo contemporâneas não seriam eficazes sem a mobilização das subjetividades para esse objetivo. O circuito da governamentalização no aparelho administrativo escolar se completa com a produção da sujeição dos seus trabalhadores, que envolve também as diversas formas de resistência praticadas.
A racionalidade governamental contemporânea e a produção dos novos sujeitos
Bauman (2001) e Sennett (2000), entre outros autores, apontam para o fato de que o mundo outrora chamado de “moderno” vem passando por transformações e vem se (re) organizando de tal maneira que os modos como experimentamos esse mundo estão sendo profundamente modificados. As formas de ordenamento consideradas modernas, ao serem rearranjadas, transformam o próprio caráter de moderno, engendrando, assim, um arranjo social contemporâneo que quanto mais combina os diversos elementos que o compõem (discursos, práticas, mecanismos, dispositivos, procedimentos, técnicas), mais dificulta a percepção desses elementos em separado.
De acordo com Bauman (2001), um dos deslocamentos mais poderosos operado na contemporaneidade diz respeito à intensificação e expansão da lógica de mercado que passa não apenas a influenciar, mas também e principalmente a coordenar, conduzir, induzir, arranjar, orientar a organização dos espaços e o controle da ordem. Trata-se de um mercado em constante movimento, o que significa duas coisas: não fazer parte de nenhum lugar específico e com isso estender sua presença a quase todos os lugares. Disso resulta que dificilmente sabemos com certeza de que lugar as novas e móveis ordens serão estabelecidas, porque o controle está disperso e difusamente distribuído pelo corpo social. Porém, o controle continua tendo efeitos normalizadores, só que a normalização das coisas relativas à vida cotidiana de cada um e da massa populacional está passando por mudanças correspondentes às novas formas de organização da vida atual.
As práticas de governo contemporâneas ao subjetivarem os indivíduos, os objetivam como cidadãos empreendedores. Para tal é necessário que se autogovernem de uma forma específica, ou seja, sujeitos de diálogo, respeitosos, cumpridores de deveres e merecedores de direito, que saibam conviver em grupo. Sujeitos de saber, objetivados e guiados pelas sedutoras promessas de liberdade e flexibilidade, ao contrário da tão criticada rigidez disciplinarizada dos tempos tayloristas-fordistas.
Neste sentido, pode-se dizer que estamos diante de uma transformação operada nos últimos tempos que é a hipervalorização generalizada do indivíduo. Vemos um hiperinvestimento do Eu, seja como resposta a situação de vulnerabilidade com a qual os sujeitos vêm se deparando, seja como tentativa de seguir a lógica da privatização.
Sennett (2000) faz uma análise dos impactos do capitalismo flexível sobre o caráter. Ele afirma que o sistema de poder que se encontra nas formas de flexibilidade dos dias de hoje são mais sutis, mas continuam presentes no trabalho em equipes, na flexibilização, nos recursos tecnológicos. Acrescenta que a sociedade atual busca meios de destruir os males da rotina com as denominadas instituições flexíveis. A repulsa à rotina burocrática e a busca da flexibilidade, ao invés de libertarem, teriam como resultado a produção de novas estruturas de poder e controle.
O autor argumenta ainda que uma vida de impulsos momentâneos, de ações de curto prazo e sem rotinas que se sustentem constitui uma existência irracional, sem objetivos nem propósitos. Sendo assim, o novo cenário econômico-social que traz termos excitantes como agilidade, flexibilidade e mudança não propicia a realização ambicionada, ao mesmo tempo em que corrói no indivíduo as qualidades que criam os laços entre os seres humanos e lhes conferem uma identidade sustentável.
Neste sentido, podemos dizer que outra transformação operada nos últimos tempos e conectada com as demais transformações contemporâneas refere-se à valorização generalizada de um individualismo cada vez mais afastado dos grandes sistemas de sentido. A contemporaneidade parece acentuar a fabricação de certo tipo de sujeito privado, sujeito privatizado que vem sendo produzido desde a ascendência da esfera que Arendt chama de “social”: Daí o desaparecimento de ambas estas esferas da vida “a esfera pública porque se tornou a função da esfera privada, e a esfera privada porque se tornou a única preocupação comum que sobreviveu. [...] a única coisa que as pessoas têm em comum são seus interesses privados” (Arendt, 2001, p. 79).
Quando o próprio Estado assume a necessidade de uma administração do tipo gerencial, inspirando-se na lógica da administração de empresas identificadas com o setor privado, ficam evidentes a dissolução e a privatização do conceito de público ou, nas palavras de Hardt e Negri (2002), “o público é dissolvido e privatizado até como conceito” (p. 232).
A transformação na delimitação do público e do privado, com o superinvestimento no íntimo e no familiar como constitutivo da subjetividade pós-moderna, “facilita” a construção e a manutenção da crença na importância do privado concomitante à desvalorização do público. Isto acontece já que o próprio processo de constituição subjetiva opera a partir do molde valorativo de um espaço em detrimento do outro e estabelece o suporte psíquico necessário à manutenção desse aspecto da ordem social.
O novo “humano” passa a ser o indivíduo produtor-consumidor que não é somente um empreendedor no sentido tradicional, mas, sobretudo, um empreendedor de si e do mundo. O trabalho de autoelaboração de si torna-se a principal e mais rentável transação do mercado social em crescimento.
Nesta racionalidade de governo que se constitui, vê-se fortalecer progressivamente a ideia de que o novo “humano” é menos o sujeito disciplinado pelas técnicas de trabalho e pelas normas familiares do que o sujeito independente e senhor de si a que a nova lógica passa a exigir. Indivíduo que deve ser o “autor ativo” de suas escolhas de vida e também o único responsável pelos riscos e perigos que estas escolhas implicam.
A eficiência e a qualidade da educação: a presença simbólica do privado na escola pública de educação profissional
O enunciado da eficiência nos serviços do Estado, presente no discurso que sustenta a Reforma do Estado, constituiu um dos eixos de nossa análise. Já descrevemos a produção discursiva que desqualifica o serviço público e oferece como exemplo de sucesso e eficiência o trabalho no setor privado. Entretanto, o que concluímos a partir de nosso estudo interroga a suposta homogeneidade com que este discurso desconstitutivo do setor público é tratado. Ou seja, existem algumas áreas de atuação do Estado que estão fora desta suposta ineficiência, tendo, ao contrário, um desempenho importante e reconhecido/valorizado pela sociedade. A propósito desta heterogeneidade, é importante dizer que as práticas governamentais são exercidas num campo estratégico em que existem diferentes forças e discursos em disputa. Evidenciamos que o estigma da ineficiência do trabalho não está presente nas escolas técnicas estudadas. Ambas as instituições são valorizadas e reconhecidas nos seus municípios e regiões pelo trabalho que realizam, pois resultam na qualificação profissional dos jovens, possibilitando o ingresso destes jovens no mercado de trabalho. A reconhecida eficiência das escolas estudadas leva-nos a pensar em duas possibilidades para compreender esta situação.
A primeira delas diz respeito ao valor atribuído ao trabalho que, apesar das mudanças contemporâneas, preserva o seu valor simbólico na sociedade. As famílias acreditam que a educação profissional ainda é a forma de alcançar uma vida melhor para seus filhos, pois incrementa as chances de alcançar um posto qualificado no mercado de trabalho e, por consequência, ter uma vida melhor. Estamos tratando, pois, de duas tecnologias de poder que servem a produção de sujeitos pautados na organização e controle das condutas, ou seja: a escola e o trabalho. Por sua vez, os seus filhos reproduzem/consolidam/partilham desta visão e assumem uma postura diferente, conforme as falas dos professores, dos alunos de escola particular e/ou apenas de ensino propedêutico, comprometendo-se muito mais com os estudos. Agrega-se a isto o próprio contexto escolar de uma escola técnica que permite ao aluno estar nos laboratórios e oficinas, desenvolvendo projetos, praticando o conhecimento aprendido. O outro aspecto está relacionado à estreita vinculação das escolas ao setor produtivo privado, outra esfera muito valorizada no discurso contemporâneo sobre a relação entre trabalho e educação. Ou seja, há um resultado no trabalho destas escolas que atende os interesses e as necessidades das empresas da região. Por isso, diferencia-se das escolas de ensino médio, onde parte dos alunos sai sem destino, pois não têm condições financeiras para continuar os seus estudos na Universidade e também porque a formação obtida não lhes propicia adquirir nenhuma competência específica para conseguir um trabalho cuja remuneração seja razoável.
A segunda possibilidade explicativa que, evidentemente se acopla à primeira, remete para um entendimento da produção do discurso da eficiência nas escolas técnicas a partir da interface destas instituições com o privado, o qual antecipa as ações da Reforma do Estado nas escolas. É por esta razão que o dispositivo da Reforma não se faz sentir de maneira explícita, uma vez que parte dos valores que o sustentam já estavam incorporados no cotidiano dos professores, principalmente em razão da relação íntima com o privado e com a atualidade das transformações no mundo do trabalho globalizado e “neoliberalizado”.
O fato de a lógica privada já estar presente no interior das escolas técnicas, em razão das alianças com o capital regional, sugere que a Reforma do Estado, ao importar mecanismos de gestão privados, se fez pouco sentir, uma vez que reforçou uma lógica já preexistente. O que não quer dizer que esta aliança elimine a possibilidade de resistência que se afirma a partir de uma noção de público que valoriza a liberdade presente no interior do sistema público, o qual protege seus trabalhadores, por enquanto, da competitividade que produz uma espécie de servidão voluntária nos ambientes ferozes de trabalho do setor privado.
Nas instituições pesquisadas, identifica-se também a qualidade do ensino associada à satisfação dos seus trabalhadores, a partir de um engajamento coletivo, que revela a existência de um modelo conciliador. Talvez se construa ali uma síntese criadora de jeitos possíveis de lidar com um contexto no qual o papel do Estado está em disputa na sociedade, colocando em ameaça permanente a existência das instituições e do emprego, ao mesmo tempo em que o resultado do trabalho é reconhecido e valorizado pela comunidade e pelos próprios trabalhadores das escolas, que demonstram orgulho nos seus relatos. Pode-se sugerir ainda uma síntese possível nos processos de produção das subjetividades tendo em vista a contradição enfrentada nos seus cotidianos profissionais. Os trabalhadores destas escolas devem adotar nos seus contextos laborais o conjunto de saberes, procedimentos, leis e tecnologias que são acionados pelo dispositivo da Reforma do Estado e da própria educação profissional, na condição de servidores e de educadores. Através da incorporação das novas pedagogias e dos novos discursos sobre a empregabilidade e a competência, devem conduzir a conduta dos seus alunos-trabalhadores de modo a atender às demandas da sociedade contemporânea.
Apesar da potência dos enunciados da Reforma, o trabalho nestas escolas preserva ainda um espaço de autonomia, criação e liberdade que se situa na valorização do próprio trabalho e no grau de liberdade próprio a uma determinada noção de educação pública que resiste à lógica do aluno-cliente. Cabe reafirmar ainda que os novos saberes coexistem com os discursos existentes, gerando muitas vezes confrontos de diferentes lógicas ou racionalidades que foram importadas parcialmente de sociedades cujas condições sociais são bastante diferentes daquelas apresentadas nos contextos importadores. Este fenômeno é denominado de hibridação por Badie e Hermet2, citados por Benites, 2004.
Considerações finais
As escolas pesquisadas são paradigmáticas de uma aparente contradição, pois ambas devem lidar com as transformações contemporâneas do capitalismo, onde está inserida a Reforma do Estado. Elas enfrentam os impactos destas mudanças nas suas condições de trabalho, na função social da sua atividade profissional, na adoção de ferramentas de gestão das empresas privadas, ao mesmo tempo em que devem preparar seus estudantes para este tempo de flexibilização, de polivalência, da supremacia do individualismo; enfim, afirmando o ideal do novo trabalhador, agora um empreendedor de si e do mundo.
Ao estudarmos a Reforma do Estado e os processos de subjetivação em trabalhadores de duas instituições público-estatais de educação profissional, sugerimos compreender a Reforma como um dispositivo que se apresenta tendo como objetivo fazer com que o serviço público-estatal se constitua num instrumento eficaz. Portanto, procuramos analisar as implicações deste dispositivo na e para a produção de um novo servidor público que atendesse às transformações do capitalismo.
Evitamos pensar o Estado enquanto uma unidade homogênea, mesmo reconhecendo as suas características centralizadas e centralizadoras, propondo algumas noções formuladas por Foucault, especialmente a noção de governamentalidade. Assim, buscamos compreender como a escola técnica pública opera nas redes das práticas governamentais, através de um conjunto de técnicas, práticas e saberes que se originaram fora do universo estatal e que foram nele introduzidas por conta de uma multiplicidade de estratégias de poder. Por isso, entendemos que as mudanças nos regimes de poder no capitalismo contemporâneo e as novas configurações do ethos social extrapolam o espaço estatal e as modificações no seu interior, as quais não devem ser redutíveis aos processos produzidos no seu próprio espaço.
Entendemos, neste estudo, que as atividades dos trabalhadores nas instituições de educação profissional pesquisadas se constituem em um componente do exercício de governo, no qual articulam-se o governo dos outros e o governo de si. O governo dos outros envolveria o aprofundamento e a sofisticação dos instrumentos de controle sobre os trabalhadores, através das estratégias de gerenciamento-empresariamento trazidas para o interior do Estado (terceirização, precarização do trabalho, práticas discursivas orientadas para a eficiência e a qualidade, etc.), de modo a potencializar a capacidade de controle sobre a população e os funcionários. Este mesmo jogo, jogado na esfera do indivíduo, nos mostra que as táticas de governo não seriam eficazes sem a mobilização das subjetividades para esse objetivo.
Identificamos que o trabalho é regido por determinados princípios que valorizam alguns preceitos a serem cumpridos no desenvolvimento das suas atividades. Assim, a obediência a estes preceitos implica a constituição de certa relação consigo, produzindo o sentido das formas de atuar face às prescrições normativas do trabalho. Ainda que existam diferenças no trabalho desenvolvido pelos funcionários e pelos professores das escolas, podemos pensar que há uma racionalidade imersa na cultura administrativa e educacional que constrói o lugar do trabalhador do serviço público, fornecendo-lhe os elementos para a constituição de sua identidade. O cuidado de cada trabalhador, seja funcionário, ou seja, professor, na realização atenciosa e exemplar do ponto de vista da sua conduta, é uma forma de sujeição à lógica que regula o aparelho estatal na área educacional.
O conjunto de saberes e práticas compartilhado pelos trabalhadores para a realização da missão da escola os torna agentes ativos no processo de produção de verdades cujo alvo é a população de alunos. Deste processo é que emergem determinados processos de subjetivação no serviço público. É preciso produzir-se enquanto sujeito zeloso, responsável, prudente, pois produzir-se como sujeito seguro e convicto é uma tática para impor e legitimar as verdades produzidas no meio educacional e empresarial, no caso das escolas técnicas.
Vemos que a racionalidade governamental funciona produzindo sujeitos que se constituem em aliados importantes para a eficácia da implementação dos seus programas e projetos. Entretanto, identificamos também formas de problematização de si e um trabalho de reflexão possibilitado pela entrevista, na qual os trabalhadores descrevem resistências a este modelo. Esta resistência se evidencia em relatos queixosos que envolveriam o “não-trabalho de alguns colegas, que não fariam por merecer a oportunidade que estão tendo”, os baixos salários e a falta de investimento nas pessoas e nas escolas.
Surpreendemo-nos inicialmente com o desconhecimento sobre o Plano da Reforma do Estado, por parte dos entrevistados. No entanto, a ação do dispositivo da Reforma é tão mais eficaz quando sua própria ação passa despercebida e é naturalizada, como se não houvesse existido uma intervenção articulada, sistemática e intencional.
Não pretendemos realizar generalizações a partir deste estudo tendo em vista o referencial metodológico escolhido, mesmo porque o serviço público estatal apresenta uma heterogeneidade no seu interior e também porque lidamos com o contexto da educação, mais particularmente da educação profissional. Ressaltamos as diferenças existentes entre as instituições investigadas, ainda que apresentem um elemento em comum, fundamental na análise da racionalidade governamental. Neste sentido, os resultados da investigação nos possibilitaram pensar o reconhecimento da eficiência e da qualidade da escola técnica. Todos os trabalhadores afirmaram que as suas escolas são muito boas e que apesar das dificuldades financeiras e dos baixos salários, especialmente, na escola técnica estadual, os alunos recebem uma excelente formação profissional, sendo absorvidos pelas empresas da região. O que nos faz pensar que apesar das tentativas dos governos de reduzir investimentos e até mesmo de transferir a responsabilidade pela educação profissional ao setor privado, identificamos nestas escolas técnicas uma tecnologia discursiva potente para legitimar e, ao mesmo tempo, deslegitimar a lógica que opõe público e privado no que tange à ineficiência e a eficiência. Uma vez que os trabalhadores destas escolas mostram que o público pode funcionar, claro que se aliado ao privado, sugerimos pensar em uma tensão interna aos distintos modelos de liberalismo. Apesar ainda de ser uma escola pública, funcionando com poucos recursos financeiros, vem operando com muita eficácia a condução da conduta dos trabalhadores através de novas tecnologias de poder. Mesmo que a lógica de gestão do setor privado encontre resistências nos trabalhadores para ser implantada na gestão das escolas públicas, ela está entranhada, de forma invisível e pulverizada nas práticas discursivas destas escolas.
Os caminhos da pesquisa nos mostraram como a escola tem assumido um papel relevante na constituição de subjetividades na sociedade atual,
A educação institucionalizada sintetiza todos os problemas de governamentalidade, para utilizar uma expressão de Foucault, enfrentados pelo estado capitalista numa situação de profundas transformações econômicas e sociais. A educação não está apenas no centro do projeto educacional moderno, ela está no centro dos problemas de governamentalidade do moderno estado capitalista. (Silva, 1995, p. 253)
Mais do que apresentar “uma conclusão”, as análises apresentadas pretendem transformar-se em inquietudes e convites para novas análises. O universo empírico é dinâmico tornando necessários novos estudos sobre este tema, ampliando os horizontes de interpretação e incluindo aspectos que possivelmente não foram contemplados.
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Endereço para correspondência
E-mail: ineszulke@terra com br
Recebido em janeiro de 2008
Aprovado em setembro de 2008
Maria Inês Utzig Zulke: psicóloga, mestre Psicologia Social e Institucional (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
Henrique Caetano Nardi: médico, mestre e doutor em Sociologia (Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS), docente do Departamento de Psicologia Social e Institucional e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social (UFRGS).
1 As práticas discursivas não são pura e simplesmente modos de fabricação de discursos. Ganham corpo em conjuntos técnicos, em instituições, em esquemas de comportamento, em tipos de transmissão e difusão, em formas pedagógicas, que ao mesmo tempo as impõem e as mantêm (Foucault, 1997, p. 12).