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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.30 Canoas dez. 2009

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

Abuso sexual intrafamiliar na perspectiva das relações conjugais e familiares

 

Intrafamiliar sexual abuse under the perspective of the marital and familiar relations

 

 

Maria Aparecida Penso; Liana Fortunato Costa; Tânia Mara Campos de Almeida; Maria Alexina Ribeiro

I Universidade Católica de Brasília

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esta pesquisa qualitativa buscou ampliar a discussão sobre o abuso sexual contra crianças e adolescentes perpetrado pelo próprio pai. Os sujeitos foram 4 famílias com crianças de 3 a 9 anos e uma adolescente de 13 anos. Os instrumentos: observações das interações e diálogos ocorridos durante o Grupo Multifamiliar; entrevista semi-estruturada realizada durante visita domiciliar e a construção do Genograma. Os resultados foram interpretados pela análise de conteúdo construtiva-interpretativa: 3 zonas de sentido foram construídas - Cuidar é abusar; Antes mal acompanhada do que só e Depois de tudo o que aconteceu continuo amando meu pai. O abuso sexual intrafamiliar precisa ser estudado na perspectiva de um triângulo formado pelo pai, pela mãe e pela vítima. As vítimas de abuso sexual mostraram-se ambivalentes a quem amam mas que as fazem sofrer; as mães falharam ao protegerem as filhas; e os pais perceberam suas filhas como objeto de satisfação pessoal.

Palavras-chave: Abuso sexual intrafamiliar, Incesto, Família.


ABSTRACT

This qualitative research discusses the sexual abuse against children and adolescents done by their own father. The subjects are: 4 families with children from 3 to 9 years old and one adolescent of 13 years old. The instruments: observation of the interactions and dialogues taken place during the Multifamiliar Group; semi-structured interview done during home visit and the construction of the Genogram. The results were interpreted by the analysis of the constructive-interpretative content: three sense zones were construed: To take care is to abuse; Rather in bad company than alone and After every thing that happened I keep on loving my father. The interfamily sexual abuse must be studied under the perspective of a triangle constituted by the father, the mother and the victim. The children are ambivalent towards whom they love but who make them suffer; mothers fail when protecting the daughters; and fathers regard their daughters as an object of personal satisfaction.

Keywords: Interfamily sexual abuse, Incest, Family.


 

 

Introdução

O tema desta pesquisa qualitativa é o abuso sexual intrafamiliar e o objeto de estudo são as relações familiares dentro deste contexto, numa perspectiva de conhecimento pela observação das interações familiares e conjugais. Além disso, enfocamos a história transgeracional das mães das vítimas, buscando identificar elementos em suas experiências familiares passadas que possam ampliar a compreensão de alguns de seus comportamentos e reações frente aos incestos dirigidos a seus/suas filhos/as. O objetivo é ampliar a discussão sobre as situações de abuso sexual intrafamiliar, nas quais estão envolvidas crianças e adolescentes. Nosso contexto de pesquisa-ação, o fornecedor das informações aqui analisadas, é o Grupo Multifamiliar (GM), que ocorre desde 2002 (Costa, Penso & Almeida, 2005), em meio à parceria de um tribunal de uma grande capital brasileira com um grupo de pesquisa interinstitucional, agregador de pesquisadores de duas universidades locais. A efetivação dessa parceria dá-se no encaminhamento das referidas famílias para o GM após a realização do estudo psicossocial, uma prática utilizada pelo setor psicossocial dos tribunais de justiça a pedido dos juízes, geralmente nas situações que envolvem casos de abuso sexual. Em linhas gerais, os meritíssimos utilizam os resultados do estudo psicossocial enquanto subsídio a suas decisões com relação à guarda de filhos, afastamento de genitores, impedimento de pernoite.

Não pretendemos elaborar um estudo com vistas a emitir generalizações, mas sim a contribuir para um melhor entendimento da inter-relação entre fatores presentes na interação familiar atual e nas gerações anteriores, que vulnerabilizam estas crianças e estes adolescentes para a experiência tão dolorida da violência sexual. Nosso olhar sobre tal fenômeno privilegia os autores que abordam a violência sexual contra crianças e adolescentes de uma forma contextual, intersubjetiva e complexa (Vasconcellos, 2002). Porém, não podemos abrir mão de relacionar o fenômeno às configurações de gênero, da cultura e das condições socioeconômicas que o permeiam (Azevedo & Guerra, 1993; Saffioti, 1997) e, ainda, reconhecer as influências de experiências de violência, ocorridas em gerações anteriores (Costa, Penso & Almeida, 2007). Reconhecemos o problema dentro do âmbito de atuação da Psicologia Jurídica e da Justiça (Costa & cols., 2005; Vizir & cols., 2004) e, como um ato criminoso, conforme está prescrito no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (1990).

Abuso sexual intrafamiliar

Segundo Saffioti e Almeida (1995), o abuso sexual constitui uma forma de violência na qual o autor do abuso propõe à vítima atividades de natureza sexual, mediante uma conduta coercitiva e sedutora, que denuncia a relação de poder entre agressor e vítima. Portanto, no abuso sexual, há um processo de dominação psicológica e física, cujo poder do autor do abuso é de natureza violenta e autoritária (Campos & Faleiros, 2000). O abuso sexual se configura sob uma assimetria de poder (Faiman, 2004), na qual as relações sociais caracterizam-se pelo exercício da força, imposta por meio de silenciamentos, segredos, cumplicidade e sedução (Faleiros, 2003). Assim, supõe uma disfunção em três níveis: o poder exercido pelo grande (forte) sobre o pequeno (fraco); a confiança que o pequeno (dependente) tem no grande (protetor) e; o uso delinquente da sexualidade, ou seja, o atentado ao direito que todo indivíduo tem de propriedade sobre o seu corpo (Gabel, 1997). Resumindo, podemos pensar no abuso sexual infanto-juvenil como um jogo complexo, ato ou relação sexual que envolve um relacionamento desigual entre agressor e vítima, compreendendo um modo particular de significação para cada um dos envolvidos direta e indiretamente. A vítima, enquanto criança/adolescente, assume uma posição submissa e é incapaz de compreender totalmente a natureza real desta relação no contexto de tantas outras que mantém com seus progenitores e/ou cuidadores. Por sua vez, o autor do abuso utiliza-se da confiança e dependência do dominado a fim de apoderar-se de sua sexualidade.

Habigzang, Koller, Azevedo e Machado (2005) compreendem o abuso sexual intrafamiliar como incestuoso e apontam como relações incestuosas mesmo aquelas nas quais o adulto assume uma função de proteção, ainda que o vínculo não seja de consanguinidade. Anton (2005), assim como outros autores clássicos (Furniss, 1993), revelam as condições da organização familiar que permitem que a violência seja mantida: segredos, fronteiras mais fechadas, medos, submissões e não responsabilização por atos cometidos. Conforme ressalta Furniss (1993), nas situações de abuso, a dinâmica familiar apresenta inversão da hierarquia familiar entre pais e filhos - o pai geralmente está em um nível de imaturidade semelhante ao da criança. Para esta autora, os cônjuges ficam incapacitados de admitir os problemas entre eles, bem como o casal parental é incapaz de assumir suas responsabilidades frente ao cuidado e proteção da criança. Concordamos com Sabourin (1997) que o incesto é a situação mais difícil de ser tratada com relação às várias condições de como ocorre o abuso sexual e por envolver muitos apelos e chantagens para se manter no silêncio e na obscuridade.

Além disto, a permanência da situação abusiva conta com a participação, mesmo que indireta e não exatamente consciente, de outros familiares, em especial da mãe. Não estamos aqui numa posição de acusação, mas de constatação perante nossa experiência e dados estatísticos nacionais e regionais, que colocam o abuso sexual intrafamiliar enquanto o maior índice de ocorrência deste tipo de violência, na modalidade do pai biológico abusando da filha menina (Furniss, 1993; Habigzang & cols., 2005; Ribeiro, Ferriani & Reis, 2004; Sanderson, 2005; Santos, 2007).

A despeito desta constatação e considerando-se a necessidade de afastamento imediato do abusador do convívio com a criança abusada, Sabourin (1997) ainda defende que o enfoque eficaz de intervenção, neste caso, é o da terapia familiar. Este também é nosso enfoque no que diz respeito à concepção da intervenção para cessar esta violência e estimular a manifestação de atos protetivos da mãe em relação a seus filhos, bem como na ampliação da compreensão da dinâmica familiar deste tipo de violência, muitas vezes transgeracional.

 

Método

Contexto

Nosso contexto de acesso às famílias e possibilidade de construção das informações é o GM, que tem lugar num centro de formação de psicólogos clínicos, sociais e organizacionais de uma universidade. Este atendimento é configurado como intervenção psicossocial e se fundamenta nos seguintes aportes teóricos: a) da Psicologia Comunitária, visando o trabalho em equipe com diferentes saberes, científicos e populares (Santos, 1999) e o enfoque da Psicologia Social Crítica e Histórica (Lane & Sawaia, 1995), percebendo o ser humano em construção, que é constituído e constitui o meio em que se insere; b) da Terapia Familiar, tendo a visão de família enquanto sistema, sendo a relação o ponto focal do trabalho, priorizando o inter-psíquico, não o intra-psíquico, e utilizando os recursos sistêmicos coma circularização e a provocação (Minuchin, Colapinto & Minuchin, 1999); c) do Sociodrama, em que o grupo é o protagonista e as famílias possuem objetivos comuns além de se identificarem mutuamente (Moreno, 1993); e d) da Teoria das Redes Sociais que enfoca a interação humana com a troca de experiência, desenvolvendo a capacidade autorreflexiva e autocrítica (Sluzki, 1996).

Cada sessão do GM foi planejada numa perspectiva voltada para a intervenção dirigida a grupos, com ênfase nas relações sociais. A organização da reunião seguiu orientação metodológica da sessão psicodramática (Gonçalves, Wolff & Almeida, 1988), que indica três etapas: aquecimento, dramatização e compartilhamento. A adaptação dessa organização resultou em outras etapas: aquecimento, discussão e conclusão. A primeira delas teve por objetivo integrar o grupo e estimular a tarefa. A etapa "discussão" objetivou aprofundar a discussão sobre o tema, desenvolver a capacidade de reflexão sobre o assunto e acolher o sofrimento psicológico, advindo das identificações com o tema. A etapa final sintetizou as opiniões sobre o tema discutido, avaliou a aprendizagem sobre ele e formulou sugestões práticas para as famílias. Este atendimento é contínuo e articulado com o encaminhamento judicial, realizado pelo setor psicossocial de vara cível ou criminal, a partir de denúncia de abuso sexual. Consideramos que esta proposta já está apresentada e consolidada em outros estudos (por exemplo, em Costa & cols., 2005).

Sujeitos

Os sujeitos que nos forneceram subsídios para esta discussão foram 4 famílias atendidas durante um GM no segundo semestre de 2006. Nestas famílias, o abuso sexual havia sido cometido pelo próprio pai e os membros da família, que compareceram aos encontros foram: Mimi, de 3 anos, e Martinha, de 2 anos, (irmãs) e a mãe (pai abusador preso); Cristina, de 3 anos, e Cacá, de 5 anos, (irmãs) e os pais (pai suspeito de abuso presente); Danira, de 9 anos, a mãe e uma tia materna (pai abusador preso); e Giovana, 13 anos (pai abusador preso), que compareceu sozinha ao GM1.

Instrumentos

Os instrumentos foram: a) anotações das observações das interações e os diálogos ocorridos durante o GM; e, b) entrevista semi-estruturada realizada durante visita domiciliar, na qual também foram obtidas as informações para a construção da história familiar e subsequente genograma.

Roteiro para a entrevista: Como sempre foi a proteção oferecida ao filho? E o cuidado com a(s) criança(s)? E aproximação de pessoas da família? Quem se aproxima mais de quem? E a aproximação entre os irmãos/ãs? Como a família acha, agora, que deve ser o cuidado para com as crianças? O pai da criança/adolescente mudou sua maneira de ver, compreender e cuidar de seu filho/a? Como tem sido a aproximação da mãe com as crianças? E sobre a compreensão dos adultos para com as crianças? Houve mudança na família acerca dos sentimentos, reflexões ou pensamentos sobre o abusador?

O genograma é definido por Miermont (1994) como um mapa que estrutura graficamente a família ao longo de várias gerações, oferece visualização das etapas do ciclo de vida familiar, e os movimentos emocionais ligados a estas etapas. Sua construção não implica, necessariamente, em perguntas específicas, mas pede-se à família que conte a história familiar e o entrevistador vai acrescentando questões para clarificar a sequência da narrativa.

Procedimentos

Etapa 1 - os primeiros contatos com as famílias ocorreram ainda no âmbito da justiça, na perspectiva dos encaminhamentos realizados diretamente pelo setor psicossocial forense. Estes contatos iniciais foram feitos pelos responsáveis pelo projeto de pesquisa, juntamente com auxiliares de pesquisa (alunos de Iniciação Científica, IC). Etapa 2: Em seguida, foram realizados os GMs, coordenados por professores e auxiliares. As famílias compareceram a quatro sessões do GM. Cada sessão teve duração de 3 horas e intervalo quinzenal em sua realização. Os temas das sessões foram: proteção à criança, autoestima, transgeracionalidade, projeto de futuro. Etapa 3: As entrevistas nos domicílios se seguiram aos grupos e foram realizadas pelos auxiliares de pesquisa. Procuramos telefonar para marcar a entrevista sempre que possível, em casos contrários fomos à residência nos fins de semana. Procuramos convidar para participarem das entrevistas, preferencialmente, quem esteve presente nas intervenções, inclusive crianças e adolescentes. Porém, de fato, foram as mães que colaboraram nas entrevistas realizadas em domicílio. Sabedores da peculiaridade de que, embora o atendimento fosse para a família como um todo, teríamos mais facilidade em ter acesso à mãe, é que consideramos as interações ocorridas durante o GM, porque tivemos a participação de pais neste evento. Tanto as atividades do GM como as entrevistas foram gravadas e transcritas. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da universidade que sediava os GMs e recebeu o registro nº 027/2005, tendo sido seguidos todos os preceitos éticos de anonimato e voluntariedade.

Análise das informações

A análise das informações seguiu uma proposta de González Rey (2005), numa perspectiva de análise de conteúdo, que contém três aspectos essenciais: o processo de construção e o caráter interpretativo das informações, a ênfase no aspecto relacional entre a subjetividade do pesquisador e a produção do conhecimento. Esta proposta configuracional entre os sujeitos envolvidos na pesquisa, assim como a produção de ideias e reflexões apoia-se na expressão de indicadores, que revelam os fenômenos e são unidades processuais que abrangem recortes e ajustes epistemológicos, de acordo com o problema proposto. Os indicadores são produzidos durante o próprio processo de investigação e análise, constituindo-se em ferramentas essenciais para a definição das zonas de sentido. As zonas de sentido são a integração dos indicadores, produzindo sentidos e compondo conjuntos de interpretação. Em termos práticos, consideramos os indicadores como as falas, os diálogos, as observações e as informações contidas no genograma. Para os fins de possibilitar uma discussão numa perspectiva interacional e transgeracional, as informações foram primeiramente organizadas visando construir núcleos: a) história transgeracional, b) construção do genograma, c) construção do Ciclo de Vida Familiar, d) história do abuso, e) dados dos atendimentos realizados e f) situação atual das famílias. Após esta primeira organização é que se procedeu à construção das histórias transgeracionais de violência e à configuração das zonas de sentido.

Apresentação dos resultados: as famílias, as vítimas e a violência sofrida

Mimi e Martinha eram abusadas pelo pai, que tomava conta delas enquanto a mãe saía para trabalhar, desde quando uma tinha 2 anos e a outra tinha 10 meses. A mãe nada desconfiou até que uma vizinha chamou sua atenção. Ela fingiu que saía para trabalhar, voltou e pegou o pai em flagrante no banho com as meninas, todos nus. O abuso foi constatado e as meninas estavam com doença sexualmente transmissível. Ela conta que, mesmo antes da vizinha lhe alertar para o fato, começou a desconfiar, pois a mais velha estava muito agressiva com ela, e a menor, que na época tinha 2 anos, não queria tomar banho. Um desenho de Mimi (com 6 anos nas intervenções do GM) mostrou duas cenas: a primeira com as duas meninas deitadas na cama com o pai, e a segunda com grades desenhadas por cima da cama. Ambas as meninas disseram que tinham saudades do pai e do "dindin" (espécie de picolé caseiro), que ele fazia para elas.

A história anterior da mãe (Marilu, 33 anos) é de muita violência - foi frequentemente espancada pelo pai e pelos irmãos, sendo denunciados pelos vizinhos por tê-la deixado muito machucada. Fugiu várias vezes de casa, a partir dos seus 14 anos, e dormiu durante muito tempo na rua. Nesse período, sofreu vários estupros, o que a obrigou a voltar para casa, acabando por ficar muito revoltada com sua mãe, quem a culpou pelos estupros. Tem uma irmã de quem gosta muito, que também foi estuprada aos 13 anos. Uma coisa a intriga: ela só tem lembranças a partir dos 10 anos, e sua mãe não conta sobre sua vida antes desta idade. Sabe que o pai não a deixava ir para escola. Foi morar com este companheiro, que abusou das filhas, aos 23 anos, e diz que tinha muito medo dele porque a espancava muito, inclusive perdeu seu primeiro bebê em função de briga e surra que levou dele. Marilu separou-se deste homem, logo após a constatação do abuso sexual, e foi morar com outro companheiro, com quem teve uma filha, mas separou-se quando descobriu pela televisão que ele tinha sido preso por estupro.

Atualmente o pai das meninas está preso, ela mora com as filhas, e continua trabalhando com reciclagem no lixão. A relação de Marilu com este marido sempre foi de dependência. Após a constatação do abuso sexual, tendo sido ele processado, Marilu não conseguia impedi-lo de entrar em sua casa, mesmo havendo uma proibição da Justiça, alegando que sentia muita pena dele. Sobre a infância deste homem não sabemos detalhes, mas algo que nos chamou muito a atenção, foi o fato dele comparecer aos atendimentos e audiências, sempre acompanhado pela mãe. Esta mulher fazia questão de informar que o filho estava sendo injustiçado e que era incapaz de fazer o que o estavam acusando. Neste momento, o pai nos pareceu extremamente infantilizado e sem compreender a gravidade do que tinha feito.

Cristina e Cacá - Cristina contou para sua professora que o pai brincava com ela de jogá-la para o alto e pegá-la, sendo que neste dia ela se queixou de estar machucada e com a "perereca" doendo. A escola fez a denúncia. Quando os policiais chegaram à casa da família pediram para ver as roupas das meninas, pois, segundo a secretária da escola, a menina havia dito que tinha sangue em suas roupas. Na delegacia, a família ficou sabendo quem havia denunciado, foram encaminhados para o Instituto Médico Legal, mas não foi possível comprovar o abuso. Daí em diante, o pai parou de dar banho nelas, de lavar suas roupas, de pentear seus cabelos, de arrumá-las, de passar suas roupas e limpá-las, inclusive, não mais as levou à escola. O pai se sentiu arrasado e a família não contou o ocorrido para sua família de origem. Neste caso, a mãe em nenhum momento duvidou da inocência do pai e, inclusive, quis tirar as crianças da escola. Apesar dos problemas que a família passou, afirmam que o relacionamento conjugal não foi afetado.

A mãe de Cacá e Cristina (Sara, 30 anos) foi abandonada por sua própria mãe com menos de um ano de idade e passou a ser criada pela irmã. Seu pai foi assassinado por um dos filhos, quando ela tinha 9 anos. Sara e o marido se conheceram em 1994 e ela engravidou, o que os levou a se juntarem, apesar de ter querido abortar e o pai não ter permitido. Dois anos após a chegada de Cacá, veio Cristina, outra gravidez não planejada. Atualmente moram bem próximos à família de origem do marido, que são considerados carinhosos e não violentos com os filhos. Durante os trabalhos do Grupo Multifamiliar, em especial no dia que foi desenvolvido o tema da Proteção, foi proposto que cada família fizesse uma pose como se fossem tirar uma foto. A família se posicionou, ficando de pé. A mãe não queria tirar a foto. Quando perguntado para a família se gostariam de mudar algo na foto, Cristina disse que queria tirar a mãe da foto, mas Cacá não permitiu que ela fosse retirada. Sendo assim, não mudaram nada na foto, e deram o nome a ela de "Benção". Deste modo ficou evidente que o lugar da mãe, junto ao pai, não está assegurado, pelo menos, naquele momento. Para Sara, a melhor forma de proteção é ela não deixar as meninas brincarem na rua, levá-las para a escola, não deixar irem sozinhas na padaria.

Danira não tem irmãos e mora com a mãe, a avó e a tia que tem uma filha. Danira foi abusada pelo pai, que está separado da mãe e que também agrediu sexualmente esta avó, num episódio muito violento, que teve como consequência a sua internação. Ele oferecia R$1,00 para Danira concordar em fazer "algo". A mãe de Danira afirma que, quando descobriu o abuso, encontrava com o ex-marido e "parecia que via o capeta", mas agora não sente nada e que espera que ele pague pelo que fez à sua mãe. E quanto ao que fez com sua filha? A mãe parece não perceber a gravidade da situação e as consequências destes episódios para a filha. Chama a atenção o fato de Danira nunca ter comentado nada com a mãe, que diz que não desconfiava, porque achava normal o pai querer ficar com a filha.

A mãe de Danira (Vanusa, 35 anos) é a quinta filha de sete irmãos e já teve dois companheiros. Ela afirma que sua mãe sempre a achou a mais "custosa", por isto batia muito nela quando criança. Esta avó também bate muito em Danira, pois a mãe mostra-se muito submissa às suas ações. Tivemos grande dificuldade em construir a história das uniões de Vanusa com estes dois companheiros. Sobre o pai de Danira, repetem que ele não presta e que é usuário de maconha. Vanusa repetiu várias vezes que a filha se parece com o pai e sua família, especialmente com a avó paterna.

Giovana é a filha mais velha de um casal que teve cinco filhos. O pai é mecânico e a mãe faxineira. No dia que ocorreu a violência sexual, eles estavam em casa comemorando o aniversário do pai. Estavam presentes avó, tios, tias e primos. O pai (Solano) se ofereceu para levar o irmão e a cunhada em sua casa, e Giovana foi com ele. Pararam num posto de gasolina, ainda na companhia dos tios, para tomar mais cerveja e o pai obrigou Giovana a beber. Após deixar os tios em casa, Giovana passou mal e pediu para ir ao banheiro na estrada. O pai tentou estuprá-la no banheiro e não conseguiu. Levou-a para um matagal e, por fim, a estuprou com requintes de crueldade, ameaçando-a caso contasse o ocorrido. O tio ficou preocupado com uma impressão de que algo estava errado e voltou para falar com o irmão. Ele encontrou Giovana suja e descabelada, sua mãe perguntando o que havia acontecido, e o pai ameaçando-a com uma faca. A polícia foi chamada, o pai foi preso e toda a família tomou conhecimento do ocorrido. O pai foi julgado, condenado e está preso. Giovana não gosta de comentar sobre o assunto, mas refere-se ao pai afirmando que ele batia muito nos filhos e que era muito nervoso e ignorante.

Quanto à mãe de Giovana (Francisca, 40 anos), não tivemos acesso direto a sua história, a não ser o que a filha nos contou: a família tem mais contato com os parentes do pai, que sempre os apoiaram e ajudaram nos momentos difíceis. Giovana acha que os pais da mãe não gostam dela e também dos outros filhos. Francisca apanhou muito quando era criança. No único momento em que tivemos acesso a Francisca, ela nos contou que conheceu seu marido numa igreja, quando estava com 19 anos, e ele com 24 anos. Namoraram por apenas 3 meses e se casaram, e estão casados há 16 anos. Para ela, foi amor à primeira vista e uma união bem aceita pelas famílias de ambos. Relata, ainda, que, apesar das dificuldades financeiras, ela e o companheiro sempre estiveram muito bem. Em relação à educação dos filhos, quando ele corrigia, às vezes, era com surras, ela não interferia e o mesmo acontecia quando ela os corrigia - existia um acordo entre eles. O que ela mais reclamava em relação ao marido, era que ele gostava de música e que, hoje, se arrepende de não ter tido mais paciência com ele. Francisca nos informou que, "sempre que pode", visita o esposo na penitenciária. Ainda se refere a ele como "meu esposo". Relatou, também, que pode contar apenas com a família do marido, principalmente com a sogra e os cunhados mais novos.

 

Discussão dos resultados

1ª Zona de Sentido - A relação do pai com a filha: cuidar é abusar

Ressaltamos na discussão deste item que o abuso sexual se traveste de cuidado e de amor pelas filhas, mescla-se de atenção e fortalece-se numa relação de dependência afetiva mútua, entre todas as pessoas implicadas. Observamos nas histórias destas quatro famílias que os pais fazem uma confusão entre cuidado e carícias de caráter sexual, numa impossibilidade de se colocarem enquanto protetores das suas filhas. Autores estudiosos do fenômeno do abuso sexual (por exemplo, Sanderson, 2005) indicam que estas carícias fazem parte do repertório que os abusadores utilizam com suas vítimas, especialmente o emprego de técnicas de sedução, no aliciamento para fins de conquistar seu intento. Outra possibilidade de explicação, ainda segundo Sanderson (2005), viria da observação de um ciclo repetitivo de fantasias de excitação que estaria na experiência de vida do abusador. Da mesma forma, o pai de Danira, impossibilitado de vivenciar uma sexualidade adulta, seja com a esposa ou com qualquer outra mulher, abusa da filha, a quem paga para que satisfaça o seu desejo, ou agride física e sexualmente a avó com tal expressão de violência que a subjuga definitivamente.

Impossibilitados de vivenciarem uma sexualidade adulta, estes homens não conseguem desempenhar o papel de pai, o que para Bradt (1995) pressupõe a capacidade de nutrir, guiar e proteger. Ou ainda o que, para Trindade e Menadro (2002), envolve as seguintes funções: acompanhar, educar e preparar para a vida e para o futuro, além de dar carinho, amor e atenção. Em nossa prática clínica e de intervenção nos Grupos Multifamiliares, ainda observamos que os pais abusadores de suas filhas pareciam apresentar uma construção permanente de "pensamento distorcido" no que Murphy (citado em Sanderson, 2005) chama de distorção cognitiva. Nas situações de abuso é a clássica informação: "não estou fazendo mal a ela", "isto é bom para ela", "é melhor que seja comigo". Isto é muito bem exemplificado no contato com os pais de Mimi e Martinha e de Cristina e Cacá, que, ao comparecerem ao GM, relataram que não fizeram nada de errado com as filhas e se sentiam injustiçados.

Porém, o mais significativo é a relação de poder instalada entre estes atores: o poder do homem sobre mulheres e crianças e adolescentes, e o poder de mulheres sobre as crianças e adolescentes. As histórias narradas mostram que as mulheres tiveram experiências de submissão ao poder masculino nas gerações anteriores, o que originou uma confusão relativa no tocante ao cuidado e à proteção consigo mesma e com seus filhos. A mãe de Giovana não desmente a agressão sofrida pela filha, mas privilegia a relação conjugal como se esta ficasse de fora do âmbito violento do marido. A mãe de Mimi sofreu espancamentos desde menina e necessitou da ajuda de uma vizinha para interromper o ciclo de abuso com suas filhas, porque seus espancamentos, na relação conjugal, não se constituíram como razões para tal.

Saffioti (2002) discute que o funcionamento patriarcal de nossa sociedade muitas vezes prescinde da figura concreta do homem para o exercício do poder violento sobre a mulher, já que a organização social do patriarcado está intrinsecamente incorporada como valor nas relações entre as pessoas e entre os sexos. A força da dominação masculina é tida como natural. Trata-se de uma ideia do poder masculino naturalizado, no qual o homem tem autorização permanente para o exercício de seu poder simbólico, físico, sexual, dentre outros aspectos. O que cabe avançar é na perspectiva de se discutir algumas percepções nesta área de estudo sobre a mulher como cúmplice do homem violento. A hierarquia de poder faz parte estrutural das regras sociais, portanto, a dominação encontra-se numa ordem de introjeção emocional e não de uma consciência política trabalhada permanentemente. A referida autora produz uma crítica contundente sobre a discussão que caminha no sentido de culpabilizar ou dar uma co-autoria à mulher em sua experiência de ser violentada, e afirma: "Ocorre que a sociedade não é apenas androcêntrica, mas também adultocêntrica" (Saffioti, 2002, p.213). Esta afirmação possui propriedade, porque é como se tratasse de um daqueles jogos de dominó no qual, ao se derrubar a primeira peça, todas as demais derrubam as outras em sequência, assumindo a força que a primeira a imprimiu em sua queda.

Nos casos de abuso sexual, as violências perpetradas em uma geração recaem sobre outras subsequentes como em tal jogo, assim como a mulher acaba por assumir o poder de opressão masculino quando em relação aos seus dependentes, sem conseguir com ele romper. A relação de submissão de uma mulher ao poder masculino violento está conectada, em alguma medida, à submissão ao poder masculino violento genérico de um pai sobre sua filha, de seu próprio pai sobre ela mesma e do genitor de sua filha sobre a própria criança. Ou seja, a mulher, enquanto mãe, se vê impotente e silenciada frente ao mandato cultural de opressão das gerações, à reedição de sua história passada com seu pai e, ainda, à posição de mantenedora e reprodutora de tais matrizes de relacionamento de seu marido junto à sua criança. A relação de poder violento que se estabelece na infância é extremamente perversa, pois tem uma duração que não é transitória, passageira, uma vez que se imprime profundamente nos sujeitos, enquanto um modo de se relacionar permanente, quando se considera o jogo relacional entre as gerações, as projeções afetivas já ocorridas e aquelas ainda por vir, bem como entre as amarras culturais e a liberdade dos indivíduos.

2ª Zona de Sentido - A relação conjugal: antes mal acompanhada do que só

Procurando conhecer a história destes casais e de sua constituição, duas questões se apresentam: Quais aspectos das histórias destas mulheres influenciaram a escolha destes parceiros? O que eles representam nas suas vidas? Na busca de esclarecimentos, discutiremos, nesta Zona de sentido, aspectos da escolha e manutenção da relação conjugal, a partir da perspectiva transgeracional, a qual também poderia ser utilizada na obtenção de compreensão sobre os homens abusadores. Assim, procuraremos compreender a história familiar das mães, e relação entre as violências sofridas por elas, seja física, sexual ou emocional, em suas famílias de origem e a escolha e aceitação dos parceiros, imersas num processo de "cegueira" para os seus atos de violência com as filhas e até mesmo com elas próprias. Isto nos leva à discussão sobre a questão da autoestima destas mulheres e sua relação com a escolha conjugal.

Segundo Bitencourt (2000), o processo de escolha do cônjuge é delineado ao longo do desenvolvimento do sujeito, no qual ele forma o seu repertório de comportamentos, de crenças sobre si mesmo, fazendo com que suas escolhas sigam na direção daquilo que lhe é familiar ou de contra-exemplos familiares. Nos casos mencionados, podemos pensar que estas mães procuraram e encontraram parceiros que repetem o modelo de abandono e violência vividos nas suas famílias de origem. Nesse processo, de acordo com Bowen (1991), revivem o vínculo emocional e mantêm o lugar que ocupavam nas suas famílias de origem. Numa perspectiva de análise da relação micro-familiar, podemos inferir que essas mulheres procuraram parceiros que as mantivessem nos lugares que já conheciam, pois o desconhecido costuma ser mais ameaçador do que a pior das realidades. Portanto, suas escolhas as mantiveram nos modelos já conhecidos. Segundo Satir (1995), terapeuta familiar da década de 1960 e importante teórica desta abordagem, se a autoestima é muito baixa, haverá um receio com relação à intimidade. Neste caso, o casal estabelece uma relação, em que a regra geral é a projeção no parceiro dos sentimentos com relação aos seus pais e mães. "Desse modo os membros do casal estão presos um ao outro, num encaixe psicológico que faz lembrar seus modelos infantis" (p.33).

Outras questões sobre esta relação conjugal nos inquietam: Porque mesmo depois da descoberta da conduta do companheiro elas continuam nos relacionamentos? Que relação conjugal é esta que se respalda na aceitação de um marido "bonzinho e injustiçado"? Por que as versões das histórias contadas por estes homens são prontamente aceitas por estas mulheres, a despeito dos fatos ou dos relatos das filhas? O que acontece com estas mulheres que as impede de enxergar a realidade? Ao buscar compreender melhor estas questões, dirigimos nossa atenção para o jogo relacional conjugal violento e obscuro que se estende às filhas e que as mães não conseguem vê-lo como tal, bem como o peso e a importância da conjugalidade, em sobreposição à maternidade e até mesmo à individualidade na vida destas mulheres.

Relações fusionais (intensamente interdependentes) impedem a vivência da intimidade, pois, para Bowen (1991), uma relação íntima pressupõe o reconhecimento de diferenças e semelhanças. Isto significa que, sem a individualidade, torna-se impossível a vivência da conjugalidade (Féres-Carneiro, 1998). Esta perspectiva pode nos ajudar a compreender porque Sara não acredita que seu companheiro foi capaz de cometer atos abusivos com suas filhas e, também, porque Francisca, a despeito da obviedade dos fatos, continua chamando o abusador de "marido" e visitando-o na cadeia. Ou, então, porque Marilu, mesmo depois da descoberta e da confirmação das doenças das crianças, ainda sente "pena" do marido. Podemos levantar a hipótese, portanto, que o poder exercido pelos companheiros, sobre estas mulheres estaria relacionado a esta fusão e indiferenciação. São mulheres aprisionadas nestas relações, talvez também infantilizadas frente a uma conjugalidade mais madura, têm muita dificuldade no exercício do papel materno, em sua dimensão de proteção. Neste processo, desconsideram as barreiras geracionais, adultizam as filhas, criando relações de rivalidade e desconfiança com elas. Podemos supor que foi isto que aconteceu com Francisca, que se mantém afastada da filha, ignorando as suas tentativas de aproximação.

Ainda uma vez mais recorremos a Saffioti (2002), no intuito de melhor compreendermos esta função materna que se configura a partir da dependência conjugal. A autora aponta para o fato das subjetividades se construírem sob a vigência do gênero - sob uma perspectiva de gênero como relação de poder. Acresce-se a isto que estas relações se dão em uma afetividade de desvalorização, submissão, reprodução de outras relações calcadas em desvalia e menosprezo. Um aspecto importante a ser ressaltado é que se tratam de famílias de baixa renda, com baixa escolaridade e um histórico de processos contínuos de migração. Saffioti (1997) afirma que as relações de opressão econômica, social e racial, efetivam-se nas individualidades, nas situações particulares. As condições de múltiplas carências (de acesso à escola, à norma da língua falada, da arte, além das carências econômicas), que estas mulheres vivenciaram e que as crianças estão repetindo, condicionam e reproduzem o processo de submissão e dominação. Neste sentido, a solidão, o abandono e o espancamento praticamente adquirem um status natural de modus vivendis e fazem com que seja aceito e significado como natural o que é, na verdade, violento.

3ª Zona de sentido - A relação da filha com o pai: Depois de tudo o que aconteceu, continuo amando meu pai.

Discutiremos nesta Zona de Sentido as reações das crianças frente ao afastamento dos pais abusadores do convívio diário. Como compreendem o que aconteceu? Como lidam com a ausência do pai e, ao mesmo tempo, a desproteção ou rivalidade da mãe? Furniss (1993), ao discutir a relação da criança com o abusador, alerta para o fato de que muitas vezes esta é a relação mais importante e significativa da sua vida, com muitos elementos danosos, mas também com aspectos gratificantes. Para o autor, estas crianças têm suas demandas afetivas respondidas pelo abusador num contexto que desperta precocemente a sua sexualidade. Ou seja, ao buscar cuidado emocional, recebem uma resposta sexual. Com o acúmulo de experiências de abuso, a vítima em sua confusão entre cuidado emocional e experiência sexual pode apresentar comportamento sexualizado, quando, no fundo, quer carinho e afeto.

Isto ajuda-nos a compreender porque Mimi e Martinha nos atendimentos afirmavam sentir falta do pai e, quando desenham a família e a casa, incluíam o pai. Em um dos desenhos, inclusive, Mimi coloca o pai deitado na cama e a mãe no chão. Neste caso, realmente, era o pai que ficava durante todo o dia com as filhas, quem cuidava, conversava e dava carinho. A mãe sempre esteve trabalhando, seja como faxineira ou em reciclagem. Num outro nível de gratificação, Danira recebia dinheiro do pai para participar do jogo abusivo. Isto era importante para ela, tanto que a mãe relata que a filha, como não vê mais o pai, pede dinheiro para qualquer pessoa. Cacá e Cristina, por sua vez, posicionam o pai em um lugar de grande importância na família, até mais que a mãe, não demonstrando explicitamente nenhum "trauma" pelo que supostamente ocorreu.

Saffioti (1997) discute que o abuso sexual infantil aponta mais uma afirmação de poder do que uma pulsão irresistível de ordem sexual por parte do adulto. Mais uma vez estamos diante de relações de dominação e esta autora ainda chama atenção para, nesta circunstância, haver uma dupla dominação da mulher e da criança. A grande dificuldade no incesto é que a criança não tem poder para impor limite ao pai ou padrasto. Ou como diz Saffioti (1997): no caso do abuso cometido pelo pai não há um outro pai para vingar esta agressão. É como se a criança ficasse sem autorização para odiar aquele homem, já que ela também o ama. A autora chama atenção para o fato de que não existem estudos comprovando que estes pais abusadores necessariamente mostram disfunções patológicas. O que proporciona longos períodos da manutenção da situação abusiva é uma relação de confiança e dependência, que a criança estabelece com o adulto juntamente com a expressão do controle e dominação masculina sobre a mulher, ou como esta autora expressa, "colocar a sexualidade feminina nos trilhos da falocracia" (p.182).

E o que dizer sobre a história de Giovana que, aos 13 anos, foi estuprada pelo pai, desacreditada pela mãe e responsabilizada pela situação de carência material da família a partir da prisão do pai? Giovana concordou em participar dos atendimentos grupais desde que não se tocasse no assunto do estupro. Isto foi respeitado e, portanto, tivemos poucas informações sobre detalhes de como ela elaborou o acontecimento e suas repercussões. Mas chama a atenção o fato da mãe só ter comparecido a um encontro, quando foi convidada a vir a cinco, além de referir-se ao abusador ainda na condição de seu esposo. Nesse momento, hipotetizamos que esta mãe culpa a filha pelo ocorrido. Giovana, por sua vez, só faltou a um encontro, não demonstrou sentir raiva do pai e estava sempre pronta a agradar a mãe. Haja vista que, no último encontro, escreveu uma carta a ela, onde lhe agradecia muito pelo apoio e amizade que esta vem lhe dando. Na visita domiciliar, Giovana estava triste e bem diferente da forma como se apresentava nos atendimentos. Afirmou que gostaria de continuar recebendo atendimento psicológico, porque estava passando por momentos difíceis, mas que não poderia continuar a comparecer pela falta de dinheiro. Expôs que sentia muita falta do grupo, pois lá era acolhida.

Perrone e Nannini (1998) e Padilha e Gomide (2004), bem como maioria dos estudiosos sobre a questão do abuso, apontam para a presença do sentimento de culpa de crianças e adolescentes abusados. Neste caso, parece ser mais que um sentimento. Na verdade, é com a sua concretude em atitudes, pensamentos e sentimentos que Giovana se depara a todo momento. Seu comportamento de evitação do assunto, também, é discutido por estes autores, que chamam a atenção para o aspecto de que não falar sobre o assunto impossibilita novas aprendizagens, o redimensionamento e até mesmo a superação do sofrimento que ele provoca. Mudar a crença da pessoa abusada de partícipe (culpada) para vítima é propiciar a aprendizagem de um repertório comportamental que impeça a revitimização.

 

Considerações finais

A violência sexual incestuosa não ocorre de repente, ao acaso. Não é espontânea ou imprevisível. Ao contrário, utiliza-se de enredos e cenários gerados nos próprios processos de construção das subjetividades, nas frestas familiares presentes e passadas. As condições e a lógica que a produzem vão sendo tramadas e produzidas ardilosamente no interior dos sujeitos inseridos nas famílias, muitas vezes de gerações em gerações. Assim, a prática da violência sexual não é improvisada, não é um acidente. Ela se anuncia, vai sendo tecida de diferentes maneiras, utilizando-se de códigos sócio-culturais, sinais de ameaças, mensagens de insegurança, segredos, afetos e jogos psíquicos que, instalados no seio familiar, começam a atuar orquestradamente ao menor descuido.

Reforçamos, então, nossa opinião sobre o fato de que o abuso sexual infantil deve ser profundamente estudado e que as intervenções neste contexto devem ser sempre pensadas na perspectiva da existência do seguinte triângulo: criança(s), mãe e pai, além de incluir irmãos e familiares que testemunharam e/ou foram co-participes da trama incestuosa. Essas famílias devem, ainda, ser sempre vistas enquanto representantes de um espaço ambíguo, tanto de insegurança como de proteção, constituídas e constituintes de relações afetivas bastante confusas e tensas entre seus personagens. Trata-se, afinal, de um tipo de violência que consegue quebrar a ordem simbólica, aquela que normatiza e constitui-se o fundamento básico de toda família, por meio de tramas de sedução e poder, de obediência e de ameaça, de desconfiança e acusações que é imposto às crianças e aos adolescentes.

Para tanto, precisamos enxergar a ambivalência dessas crianças para com seus respectivos pais e mães, a quem amam apesar de tudo, mas que as fizeram sofrer quer seja com o ato abusivo quer seja com a ausência e desconfiança. Precisamos acessar essas mulheres que falham ao protegerem as filhas, rivalizam com elas, ainda permanecem com o parceiro e têm pena dele, e se encontram aprisionadas em papéis de subordinação e dominação. Precisamos, enfim, nos aproximar destes pais que percebem suas/seus filhas/os como objeto de satisfação pessoal, reeditando um jogo relacional perverso, possivelmente de geração em geração, que rompe com um ideal de família enquanto locus de proteção, educação e orientação e impede a constituição de sujeitos felizes e livres de marcas tão dolorosas do passado.

Como dissemos na introdução, não tivemos a pretensão de apresentar resultados passíveis de generalização. Trabalhamos com uma população bem restrita, mas que nos oferece uma possibilidade de discussão, a partir de uma inserção judicial, origem dos encaminhamentos para o GM. Consideramos que este estudo contribui para o tema quando enfatiza as relações de poder que caracterizam as relações incestuosas, e chama atenção para o poder da mãe sobre a filha, que a vulnerabiliza e participa da desproteção da criança; quando coloca a circunstância de abuso sexual intrafamiliar indissociável em sua discussão das questões de gênero e do ambiente socioeconômico das famílias; e finalmente quando aponta os impasses e paradoxos referentes aos sentimentos das vítimas em relação aos seus abusadores e as decisões de afastamento desta figura que é temida, mas ainda representa a presença de laços afetivos.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: alexina@solar.com.br

Recebido em junho de 2008
Aceito em maio de 2009

 

 

Maria Aparecida Penso - Psicóloga, Doutora em Psicologia Clínica (UnB); Professora no Curso de Graduação e no Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Católica de Brasília.
Liana Fortunato Costa - Psicóloga, Doutora em Psicologia Clínica  (USP); Professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura (PCL/IP/UnB).
Tânia Mara Campos de Almeida - Antropóloga; Pós-doutora em Representações Sociais pela perspectiva da Psicossociologia (EHESS/Paris); Doutora em Antropologia (UnB); Professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Católica de Brasília.
Maria Alexina Ribeiro - Psicóloga; Doutora em Psicologia Clínica (UnB); Professora no Curso de Graduação e no Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Católica de Brasília.
1 Todos os nomes são fictícios.

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