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Aletheia
versão impressa ISSN 1413-0394
Aletheia no.31 Canoas abr. 2010
ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO
Litígios intermináveis: uma perpetuação do vínculo conjugal?
Unending litigations: a perpetuation of the conjugal bond?
Ana Lúcia Marinônio de Paula Antunes; Andrea Seixas Magalhães; Terezinha Féres-Carneiro
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
RESUMO
O presente trabalho focaliza o fenômeno dos longos litígios em Varas de Família, com o objetivo de discutir a inscrição do judiciário na trama conjugal. Ressalta-se que alguns casais, mesmo após o divórcio, ficam aprisionados numa dinâmica de repetição que atua por meio do litígio, representado nas ações de guarda, de regulamentação de visitas e seus derivados. Aborda-se o processo de estruturação e de dissolução da conjugalidade, ressaltando as dificuldades envolvidas no processo de elaboração do luto pós-separação, com base na literatura psicanalítica sobre as relações amorosas. Pontua-se que a etapa jurídica da separação, compreendida como um ritual de passagem, pode representar um corte vincular ou contribuir para a perpetuação do vínculo aprisionador. Para ilustrar esta discussão, apresenta-se a análise de um caso de litígio familiar atendido no judiciário, na cidade do Rio de Janeiro.
Palavras-chave: Separação conjugal, Litígio judicial, Psicanálise.
ABSTRACT
The present work focuses on the phenomenon of long litigations in Family Courts, with the goal of discussing the role of judiciary within family networks. It emphasizes that some couples, even after divorcing, get trapped in a dynamics of repetition that functions through litigation, represented in custody actions, visiting regulations, and their consequences. The work focuses on the process of structuring and dissolving conjugality, emphasizing the difficulties involved in the process of elaborating mourning post-separation, based on psychoanalytic literature on loving relationships. It points out that the judiciary stage in separation, taken as a rite of passage, can represent a cut in bonding, contributing to perpetuate trapping ties. In order to illustrate this discussion, the works presents the analysis of a case of family litigation assisted by the judiciary in Rio de Janeiro.
Keywords: Conjugal separation, Judicial litigation, Psychoanalysis.
Introdução
Nos sujeitos que protagonizam litígios familiares de longa duração, observam-se alguns aspectos comuns: alto grau de agressividade, postura refratária às intervenções, discurso baseado na lógica adversarial. E, frequentemente, esses sujeitos têm como objeto do pedido judicial, o filho. Ocorre que, no desenrolar do processo, emerge a conjugalidade conflituosa para a qual não há respostas no referencial normativo. Alguns juristas utilizam a leitura psicológica para analisar a questão. Peluso (1999) afirma que as crises matrimoniais, frequentemente, constituem manifestações tardias de um processo de ruptura, do qual as pessoas têm consciência parcial, ressaltando que seria uma pretensão o dever dos juízes de desvendá-las com base nos recursos do processo. Dias e Souza (2000) realçam que cada parte luta para comprovar a sua versão, atribuindo ao outro a culpa pelo fim do relacionamento, e busca a sua absolvição, esperando que o juiz proclame sua inocência.
No campo da psicologia, pesquisadores se debruçam sobre o problema, motivados pelo incremento da psicologia jurídica nas duas últimas décadas. Ramos e Shine (1999) pontuam que cada genitor está obstinado com a ideia de ganhar do outro a ‘posse' do filho. Desse modo, negligenciam o fato de que o único a perder é o filho. Dolto (2003) avalia que, perante a justiça, o pai ou a mãe permanecem girando em torno de seus pretensos direitos, transformados em obsessão. A autora postula que as discordâncias de um casal provêm de dificuldades de ambas as partes relacionadas com a evolução individual de cada membro do casal. Neste estudo, parte-se do pressuposto de que, além das dificuldades pessoais apontadas por Dolto (2003), outro fator deve ser destacado na análise dos litígios familiares: a psicodinâmica da conjugalidade, entendida como produto intersubjetivo.
Vainer (1999) abordou o mesmo tema, por meio de pesquisa qualitativa com dados de onze laudos técnicos do judiciário paulista. O autor classificou as conjugalidades de acordo com a tipologia proposta por Willi (1975), com base no conceito de colusão. Silva (2003) também abordou a problemática dos longos litígios, a partir do mesmo referencial teórico, com base na experiência profissional em Varas de Família do estado de São Paulo. Em publicação recente, Souza (2007) sustentou que as longas disputas judiciais familiares seriam decorrentes da tentativa de prolongamento do vínculo conjugal, em ensaio realizado a partir da experiência de intervenção multidisciplinar no programa JUS MULHER – Rio Grande do Sul.
Neste trabalho, propõe-se ampliar a análise desse fenômeno, buscando-se fundamentação em diferentes teorias da conjugalidade. Além da teoria da colusão de Willi (1975), acrescentam-se as contribuições de Lemaire (1979), Eiguer (1985), de Puget e Berenstein (1993), dentre outros. Essas abordagens se fundamentam no referencial psicanalítico e postulam que a conjugalidade tem suporte num espaço psíquico inconsciente conjugal. No desenvolvimento desse estudo, focaliza-se a escolha amorosa, os diferentes tipos de conjugalidade dela derivados e o penoso processo de separação com sua fase de luto. Ressalta-se que a etapa jurídica da separação pode ser vivenciada como um ritual de passagem, promovendo o fim de um ciclo, ou sustentar a continuidade do vínculo, conforme observado nos casos dos litígios familiares de longa duração.
Objetiva-se, com este estudo, discutir a relação entre os longos litígios familiares e a perpetuação do vínculo conjugal, e apontar para a inscrição do judiciário na trama conjugal. Para aprofundar esta discussão, promove-se uma articulação teórica de estudos sobre a conjugalidade com referencial psicanalítico, ilustrando-a com a apresentação de um caso de litígio familiar atendido no judiciário do Rio de Janeiro.
Psicodinâmica da conjugalidade
Ao estudar o funcionamento familiar, Eiguer (1985) afirma que o encontro amoroso entre duas pessoas não seria determinado pelo acaso, mas haveria uma escolha baseada em critérios não identificáveis no nível consciente. Do nosso ponto de vista, o conhecimento acerca dos mecanismos inconscientes subjacentes à escolha amorosa permite deslindar os entraves dos longos litígios conjugais.
Freud (1914/1996) postula dois tipos possíveis de escolha objetal, a ligação com o objeto poderia seguir o modelo anaclítico (de ligação) ou o modelo narcísico. A escolha anaclítica recairia na busca de um objeto que completasse o sujeito, em contraposição ao que ocorreria na escolha narcísica, na qual o sujeito elegeria um objeto que se assemelhasse a ele próprio. A preferência pela escolha narcísica na vida adulta seria originária de alguma perturbação durante o desenvolvimento libidinal. Em outro ensaio, aborda o fenômeno da identificação descrevendo-o "como a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa" (Freud, 1921/1996, p. 115), afirmando que sua ocorrência desempenharia um importante papel na história do complexo de Édipo.
Magalhães e Féres-Carneiro (2003), ao estudarem o processo de identificação entre os parceiros, afirmam que diferentes modalidades de identificação podem ser entrelaçadas no jogo identificatório da conjugalidade, operando transformações na subjetividade de cada parceiro. Eiguer (1985) sustenta que as escolhas objetais do casal podem se associar, apresentando aspectos objetais e narcisistas intervindo simultaneamente e, até, evoluindo historicamente de uma modalidade à outra.
Fagundes (1999) aponta que dificuldades acentuadas na vivência fusional primária podem fazer com que o sujeito permaneça ou retorne ao estado narcísico de "ilusão de fusão". Ele sustenta que a relação de casal teria o poder de ativar reciprocamente o mundo das relações objetais internas, e assim, reativar também relações objetais primitivas, podendo gerar regressão e ilusão de uma vivência fusional.
Devem ainda ser observadas outras influências na escolha do parceiro, além das determinadas pelas relações primárias do indivíduo com suas figuras parentais, uma vez que na bagagem psíquica estão contidas, também, as heranças transmitidas por gerações, com seus legados e mandatos que inscrevem o indivíduo na história familiar e cultural.
Kaës (2001) discorre sobre esta maneira particular de abordar a constituição da subjetividade, sustentando que, inicialmente, antes de constituir-se como tal, o sujeito seria um ‘intersujeito'. O grupo precederia o sujeito, não lhe sendo dada a opção de escolha entre ser ou não ser incluído nesse espaço e tempo. Da mesma forma, a escolha amorosa, embora aparentemente uma livre escolha, também não seria consciente, ela obedeceria a um determinismo familiar. No entanto, Kaës aponta a possibilidade de transformação do material psíquico quando da interação das subjetividades.
A abordagem psicanalítica de família e casal abriu espaço para mudanças de paradigmas, criando novos conceitos. Postula-se uma nova entidade ou instância psíquica, que se processa na interação entre os cônjuges, assim como, na interação entre os sujeitos de um grupo. Sugere-se que a partir da identificação de características comuns seja estabelecida uma combinação, uma ligação, um vínculo, baseando-se na noção de complementaridade, e, desta forma, seja gerada uma intersubjetividade na interseção entre dois, ou mais.
Magalhães e Féres-Carneiro (2003) nomeiam de ‘trama identificatória conjugal' o entrelaçamento dos "eus" que se processa na conjugalidade e apontam que a saúde do vínculo conjugal dependeria do tipo de identificação objetal realizada entre os parceiros na constituição da conjugalidade, por meio da introjeção ou da incorporação. No primeiro, haveria a possibilidade de assimilar e transformar o parceiro por meio de um processo criativo que preserva e até enaltece a alteridade; já no segundo, por meio da incorporação, o componente alteritário seria desconsiderado, o que poderia levar a conjugalidade a um movimento de devorar-se /aniquilar-se.
Puget e Berenstein (1993) sustentam que o vínculo-casal é constituído por três representações: uma proveniente do vínculo mãe-bebê, correspondente ao narcisismo primário; outra da relação de casal dos pais, na qual o bebê ocupava a posição de terceiro excluído; e a terceira recaindo na representação social do que seria uma organização familiar.
As representações constitutivas do vínculo-casal são estruturadas a partir de três dimensões subjetivas: a intra-subjetiva, alocada no mundo interno, com suas representações e afetos; a intersubjetiva, uma estrutura ou um vínculo inconsciente que liga os dois egos; e a transubjetiva, o vínculo do ego com o contexto sociocultural. O vínculo do casal se estabeleceria no espaço intersubjetivo e, sobre ele, Puget e Berenstein (1993) tecem sua formulação teórica.
Os autores afirmam que a relação amorosa se constituiria a partir de uma fusão, uma indiscriminação, na qual o investimento narcísico daria lugar à supervalorização do outro, que estaria investido, nesse momento, das características do objeto único idealizado. A segunda etapa seria transitória, promovida pelo distanciamento intermitente do parceiro, dando possibilidade à discriminação das individualidades e à distribuição de papéis na relação conjugal. Caso o processo de discriminação dos egos não se complete, a estrutura relacional, formada a partir de então, pode tomar rumos diversos, desde um estado de fusão conjugal até o maior nível de complexidade, representado pela autonomia dos parceiros. Nos longos litígios conjugais, acredita-se que ocorre uma regressão ao estado fusional, um tipo de defesa reativa contra a separação, expressa nos episódios agressivos.
Tipos de conjugalidade
Puget e Berenstein (1993) levam em conta o grau de discriminação entre os parceiros para postular três tipos de estruturas organizadas a partir de uma estrutura zero, ou seja, uma matriz inconsciente. Inicialmente, apontam uma estrutura denominada de dual, na qual há o predomínio de um vínculo fusional, baseado no modelo de objeto único. Uma primeira subdivisão da estrutura dual é expressa por uma relação de simetria, denominada de gemelaridade, que se sustenta na idealização mútua, com pouquíssimo ou nenhum indício de diferenciação, podendo-se dizer que seu tema seria: "Somos um só." Ainda dentro da estrutura dual, podem ser encontradas formas de vinculação assimétricas, sendo proposto pelos autores os seguintes tipos: complementaridade enlouquecedora, disfunção temporal e disfunção semântica.
A segunda estrutura proposta é classificada como terceiridade limitada, e consiste também num vínculo indiscriminado, mas não autossuficiente, ocorrendo uma angústia catastrófica amenizada pela presença do terceiro. Nesta estrutura, os autores postulam subtipos de funcionamento: o pervertedor-pervertido, no qual ‘o terceiro' funcionaria como elemento fundamental; a enciumante-ciumento, na qual ‘o terceiro' é parte de uma cena imaginária maravilhosa entre um ego e outro ego externo ao casal.
A terceiridade ampla é proposta como uma terceira modalidade de estrutura, na qual os egos são suficientemente discriminados, oferecendo possibilidade de desfazer mal-entendidos sem despertar angústias insuportáveis. Nesta estrutura ocorre o compartilhamento de significados diferentes, favorecendo a construção de um código comum e não significando ameaça ao vínculo. As dificuldades ocorridas no cotidiano e no ciclo vital, nesta forma de funcionamento, servem de base para alterações e ajustes na conjugalidade. O projeto conjugal admite o lugar do terceiro, com prováveis momentos de exclusão, que manterão a possibilidade futura dos parceiros reencontrarem-se e reelaborarem o vínculo-casal.
Anteriormente, Willi (1975) abordara a psicodinâmica conjugal enfatizando a noção de complementaridade entre os parceiros, tendo cunhado o termo colusão para denominar o jogo inconsciente do casal. O processo colusivo teria início na escolha dos parceiros mediante a identificação de conflitos fundamentais não superados e a conexão estabelecida a partir deste encontro promoveria um jogo conjunto, oculto reciprocamente. Willi propôs quatro tipos fundamentais de arranjos colusivos: a colusão narcisista, baseada no tema do "amor como ser um"; a colusão oral, girando em torno do tema "amor como preocupar-se um com o outro"; a colusão anal-sádica, embasada no tema "amor como pertencer-se um ao outro"; e a colusão fálico-edípica, sustentada no tema "amor como afirmação masculina". Vainer (1999) e Silva (2003) basearam-se nessa tipologia para analisar longos litígios familiares.
Willi (1975) aponta que, frequentemente, encontra-se a união de um cônjuge que tem necessidade de progressão supercompensadora, com outro que necessita de satisfação regressiva, sendo este emaranhamento regressivo-progressivo, dentro de uma mesma temática, descrito como encontro colusivo. Os quatro tipos, ou temas, quase sempre estariam presentes na conjugalidade e não representariam, necessariamente, estados disfuncionais ou patológicos, mas na ocorrência de um conflito conjugal, o autor destaca que um desses tipos colusivos ficaria mais evidente na dinâmica conjugal.
Separação conjugal
A complementação ou a semelhança, vislumbradas no ato de escolha amorosa, advém de traços identificados reciprocamente que, pela força do desejo, são tomados pelo todo num processo ilusório. No entanto, "a ilusão dura pouco tempo, a desilusão logo invade os amantes e põe à prova a solidez do vínculo sentimental" (Eiguer, 1985, p. 46). Logo, o objeto amoroso com quem se identificou ou que foi idealizado, apresentará sua alteridade, promovendo um abalo na ilusão de completude do casal, pois as diversas solicitações proporcionadas pelo cotidiano desencadeiam defasagens entre expectativa e realidade, entre o que é desejado e o que o outro pode atender. Diversas reações podem ser desencadeadas por este tipo de frustração, dependendo da estrutura psíquica dos sujeitos envolvidos e da qualidade do vínculo formado na conjugalidade. Mas, o que se pretende aqui ressaltar, sobre o processo de des-ilusão amorosa, é que ele pode ser descrito como um desdobramento da ilusão de completude ocorrida na escolha dos parceiros, ou seja, como uma consequência da convivência amorosa. E, ainda, que dele tanto pode resultar um crescimento mútuo com a discriminação dos ‘eus', produzido pelo manejo das sucessivas frustrações das expectativas idealizadas de cada ego e, sequencialmente, o reconhecimento da alteridade, como podem também ser desencadeados estados patológicos da conjugalidade.
Lemaire (1979) aponta três saídas possíveis para a ilusão conjunta: a primeira seria a do casal que não resiste à desilusão e interrompe a relação; na segunda, a qual nomeia de ‘via perpétua', manter-se-ia o estado ilusório que sustenta o estado amoroso e a relação, mas diminuiria a interrogação sobre a natureza do apego e da qualidade dos sentimentos recíprocos e, uma terceira via seria aquela na qual o casal se confronta com a desilusão diante da revelação de aspectos indesejáveis do parceiro, podendo levá-los a construir uma relação menos defensiva e reforçar o vínculo. Focaliza-se, neste trabalho, a via da interrupção da relação, para apontar os mecanismos de dissolução do vínculo e de sua manutenção de forma patológica.
Partindo da premissa de que o sujeito se constitui no vínculo e que o casal conjugal seria mais uma modalidade dessa constituição, Andino (1996) sustenta que a separação seria também um produto vincular, articulado conjuntamente, mesmo que, por vezes ela seja atribuída à problemática de um dos parceiros. A autora discorre sobre conceitos de ato de encontro e de desencontro, de acting e de ação, de acordo com a tipologia estrutural predominante no casal, para abordar a complexidade do encontro e da separação conjugal. O conceito de ‘ato' está referido ao instante em que se dá o sentido, em que se origina algo diferente e produz-se uma marca, e o conceito de acting faz referência a uma repetição dirigida a um outro.
O ato de encontro seria a marca inscrita na história dos sujeitos a partir do momento de eleição mútua dos cônjuges e seria atravessado por três eixos: o do investimento mútuo, o do corte com a família de origem e do reconhecimento dos outros de que se formou um casal. Esses eixos estariam relacionados aos espaços inter, intra e trans-subjetivo dos sujeitos. Da mesma forma que o ato de encontro, o ato de desencontro também seria encarado como um ato fundante, mas de outra situação, diferenciada dos desencontros do cotidiano. O ato de desencontro implica num corte, numa desorganização e em novas organizações na estrutura que possam promover a dissolução do vínculo que ambos constituem e que os constitui como casal.
Para que uma separação conjugal tenha efeito de fim ou de fechamento de um ciclo e produza as necessárias transformações, se faz necessário o desinvestimento do objeto privilegiado e, assim como no ato de encontro, o ato de separação é também atravessado por três eixos: desinvestimento mútuo, corte vincular (ou o momento simbólico da separação) e reconhecimento dos outros do novo lugar social que cada membro do par passa a ocupar a partir da separação. Observa-se que há marcas representativas desse momento, evidenciadas em relatos sobre rupturas conjugais. Frequentemente, alude-se a um momento único de corte ou ruptura, os sujeitos referem-se a "um cristal que se quebrou" (Andino, 1996, p. 163). A cena da separação, ou alguma ação que a represente, inscrever-se-ia como a representação do corte vincular. Seria um rito produzido pelos cônjuges como forma de corporificar, de trazer à realidade, o ato da separação.
Feito o corte vincular, o espaço privado do casal é tornado público e levado ao reconhecimento da rede relacional, que também é afetada e interage nesse processo, podendo favorecer a discriminação ou aumentar os mal-entendidos entre os ex-parceiros.
Algumas questões relativas à separação estão presentes desde a formulação dos acordos e pactos constitutivos do vínculo conjugal, sejam da ordem do ‘dito' ou do ‘não- dito', e, estas últimas seriam explicitadas por meio de encenações durante o processo de separação. Nestes casos, não é raro a encenação e a re-encenação de alguns conflitos durante a fase da separação, expressados em acontecimentos que refletem variações de um mesmo tema, nos quais se percebe uma espécie de jogo com papéis complementares. Essas atuações estariam a serviço da ‘não separação', ou seja, da continuidade do vínculo e, Andino (1996) se refere a esse tipo de conjugalidade como representante de uma ‘estrutura de repetição'.
Para que ocorra a dissolução do vínculo, o desejo de ruptura deve-se sobrepor ao desejo de complementaridade, caso contrário, os sujeitos se manterão numa eterna tentativa de separação. Mesmo que ocorra o afastamento físico, os sucessivos encontros do ex-casal, muitas vezes promovidos pelo vínculo da parentalidade que não se desfaz, em razão da educação e do cuidado dos filhos (Féres-Carneiro, 2007), os conflitos voltam a se expressar com a mesma intensidade e constância do período anterior à separação conjugal. Nestes casos, seriam evidenciados o jogo compulsivo e a repetição, indicando que o corte vincular não teria se produzido.
Sobre as separações intermináveis, Willi (1975) sustenta que as iniciativas de ruptura podem ter por finalidade a concretização da separação e representarem atitudes saudáveis frente a arranjos neuróticos, mas podem também ocorrer tentativas de ruptura promovidas pela não satisfação das necessidades neuróticas, tendo como objetivo a permanente sujeição ao jogo colusivo. Ocorreria, neste caso, um processo interminável de tentativa de ruptura do laço, no qual tormentos implicados na separação tornariam a convivência insuportável, ocorrendo uma contínua tentativa de destruição mútua, mesmo que promovam a separação conjugal.
Na fase pós-separação amorosa um luto é vivenciado, independente de quem promoveu a ruptura amorosa. O trabalho de luto dos amantes é discutido por Caruso (1981), considerando a separação conjugal como uma vivência psíquica de morte. A separação simbolizaria a morte no curso da vida, podendo sua dor ser tão insuportável, ou até maior do que a da morte do ser amado. A separação conjugal promoveria um forte abalo no ego dos cônjuges, mesmo nas situações em que a iniciativa de separação se deveu a ambas as partes, assim como uma morte em vida: a morte da consciência de um dentro do outro. O sujeito sofreria com a vivência da morte do outro em sua consciência, mas sofreria ainda mais com a constatação de sua morte na consciência do outro, em razão de uma dor narcísica. Com a finalidade de conservar a vida (a do próprio ego), seria promovida uma destruição do outro na consciência, por meio do esquecimento, num processo defensivo do ego contra a catastrófica experiência de morte promovida pela separação. Mas, paradoxalmente, o esquecimento do outro levaria também a uma destruição da própria consciência, uma vez que o outro habita essa consciência e, dessa forma, o esquecimento estaria atuando como uma defesa, mas, ao mesmo tempo, como uma automutilação.
Conflitos conjugais no judiciário: do privado ao público
A passagem do âmbito privado ao público é uma fase importante da separação. Inicialmente são os círculos íntimos, a família, os amigos e o trabalho, que são informados da separação do casal. Posteriormente, é o Estado que deve conhecer e reconhecer o fim do casamento. O privado e o íntimo são tornados públicos e levados à lei para serem regulados e legitimados.
Muitos casais legalizam o fim do casamento quando estão começando a serem superadas as tristezas e novos investimentos estão começando a ocorrer, evidenciando a possível superação do luto, ou, como propõe Caruso (1981), usando o recurso de dirigir a libido para outro objeto, a fim de fugir da vivência catastrófica provocada pela separação. Nesses casos, o processo legal da separação ou do divórcio seria mais uma etapa necessária para corporificar o ato da separação, seria a cena representativa do corte (Andino, 1996). Contudo, nesta fase, a cena teria a máxima visibilidade e seria exposta ao Estado para legitimar formalmente o fim daquele "amor". Esse momento, representativo do fim, pode conceber também um começo, pode inscrever os sujeitos em outro ciclo de sua história e produzir uma marca que daria outra representatividade ao vínculo. Nesse sentido, o ato jurídico seria assemelhado a um ritual de passagem, na sua função de outorgar um outro estatuto ao sujeito. Pereira (2003) parte da premissa de que, na linguagem jurídica, os ritos sociais se traduzem por meio dos processos judiciais e que a função do rito judicial seria de por fim a uma demanda (intra e interpsíquica) e marcar a entrada em outra etapa da vida. O autor sustenta que o processo judicial é um ritual sob o comando de um juiz, representante legal e simbólico da lei, com a função de por fim a uma demanda e instalar uma nova fase na vida das pessoas.
A repercussão psíquica da vivência do processo de divórcio, considerado um ritual de passagem, pode auxiliar os sujeitos no redimensionamento dos afetos e na transformação dos acordos e pactos do casal, dando possibilidade de passagem do vínculo de conjugalidade ao vínculo exclusivo de parentalidade. No entanto, nem todos os casais realizam esta etapa jurídica do divórcio, ou se a realizam, não a vivenciam como um ritual de passagem. Nesse caso, o necessário divórcio psíquico não é alcançado. A etapa jurídica da separação, que poderia ser uma breve intervenção do Estado, apenas confirmando o que já fora definido entre os ex-cônjuges no âmbito privado, se transforma, então, numa longa e sofrida batalha judicial.
Alguns ex-parceiros ingressam com seus processos legais da separação, mas no decorrer dos atos jurídicos ocorre uma série de ações, ou de atuações, de cada uma das partes, que se constituem em entraves às necessárias negociações relativas ao patrimônio e aos filhos. A situação de conflito impede acordos privados ou uma busca por serviços especializados que possam operar uma transformação mantendo a privacidade da família. O ingresso no judiciário busca uma intervenção da lei para além do conjunto de normas da sociedade, uma lei inscrita como um super-eu, no sentido freudiano do termo. Shine (2002) sustenta que a escolha de lidar com os conflitos por meio do processo judicial, "responde a uma necessidade anterior de ataque e defesa que precisa, de certa forma, do reconhecimento público que é alcançado em um procedimento legal" (p. 69).
Análise de um caso de litígio familiar no contexto da intervenção psicológica
As partes do litígio, aqui nomeadas Márcio e Cida, casaram-se motivados por uma gravidez nos primeiros meses de namoro. Ambos, em entrevistas individuais, relataram relacionamento apaixonado até o nascimento do primeiro filho. Em três anos, nasceram os dois filhos do casal em meio a uma progressiva convivência hostil, com alguns episódios de violência física. A separação se deu por iniciativa de Cida, quando as crianças contavam com quatro e três anos, as quais permaneceram sob sua guarda. Após a separação, as brigas se intensificaram. Segundo Cida, em decorrência do desamparo financeiro a que foi submetida, e segundo Márcio, devido ao impedimento para visitação. Cida ingressou com ação de Alimentos contra os avós paternos e foi bem sucedida. Márcio ajuizou ação de Regulamentação de Visitas. Cida, então, ingressou com pedido de Guarda dos dois filhos, o qual se desdobrou numa Busca e Apreensão. Em outra ação paralela, disputavam um imóvel. Durante esse período, foram registradas várias ocorrências policiais por ambos.
O caso foi encaminhado para avaliação psicológica no curso da ação de Regulamentação de Visitas, em razão de alegações maternas sobre maus-tratos dos avós paternos e abuso sexual por parte do pai. Nos atendimentos, Márcio apontou o casamento como "uma desgraça" em sua vida, descreveu situações de violência física praticadas por Cida e a qualificava como louca. Ele assumiu uma postura vitimizada, inclusive com relação ao Judiciário e interpretava as propostas reflexivas como uma aliança com a ex-cônjuge. Cida também se mostrou refratária a qualquer intervenção e sua postura era muito agressiva. Ela sustentava haver uma conspiração do ex-parceiro, juntamente com os avós paternos de seus filhos. Nos atendimentos com as crianças, foram verificados comportamentos de intensa agressividade física e verbal entre elas, agitação exacerbada, dificuldade de concentração e recusa em submeter-se a quaisquer regras. Referiam-se ao pai como "o Corno", "o Mau", e à avó paterna como "a Vagabunda", expressões estas, que quando proferidas em presença da mãe, eram recebidas com aprovação e humor. O filho mais velho confirmou ter sofrido abuso, mas seu relato se mostrou estereotipado nas várias entrevistas realizadas. Os avós paternos se mostraram críticos em relação ao comportamento do casal, compreensivos com a agressividade dos netos e desejavam acolher as crianças para afastá-las do conflito conjugal. Pela análise da psicodinâmica familiar, que envolveu outros aspectos não descritos nesse breve relato, avaliaram-se fortes indícios de falsa alegação de abuso sexual. Sugeriu-se que a guarda das crianças fosse confiada, temporariamente, aos avós paternos, que denotavam maior equilíbrio, e também o encaminhamento para psicoterapia familiar e individual.
Em relação à decisão judicial, o juiz não acolheu as sugestões da avaliação, manteve a guarda materna e regulamentou a visitação quinzenal, de forma que o pai pegasse e devolvesse os filhos na escola, a fim de evitar os encontros entre os membros do ex-casal.
No primeiro retorno do caso, os episódios de conflito haviam sido transferidos para o contexto escolar, e os impasses giravam em torno de mudança de escola e recusa em acompanhamento psicológico por parte da mãe. A avaliação apontou a mesma dinâmica e reafirmou as sugestões anteriores, mas a decisão judicial não se alterou. No último retorno do caso, o filho mais velho, prestes a completar treze anos, apresentou um discurso mais crítico com relação ao conflito dos pais, apontando que tanto o pai quanto a mãe "jogavam o tempo todo". O pai continuava a contestar a guarda materna, usando como justificativa a repetência escolar do filho mais velho e o comportamento antissocial do filho mais novo, que havia furtado dinheiro na escola e na casa dos avós, no entanto, continuou a se eximir de qualquer responsabilidade. A mãe atribuía tais comportamentos unicamente à influência paterna. Nem Márcio, nem Cida refizeram suas vidas amorosas, mas diziam-se cansados de brigar, porém sem saber como parar. Cida aceitou o encaminhamento para psicoterapia dos filhos, mas não aceitaram sugestão de psicoterapia individual ou familiar. Em decorrência da moderação do conflito, foi possível, pela primeira vez em cinco anos, realizarem-se entrevistas conjuntas com o ex-casal, esboçando-se um acordo sobre guarda materna e visitação livre, que foi homologado pelo juízo.
Discussão do caso
A análise deste caso contempla os aspectos intra, inter e transubjetivo envolvidos na conjugalidade. Com relação ao laudo, ressalta-se a importância de estar atento ao uso desse instrumento no contexto institucional, sem deixar de observar a possibilidade de aliança com o poder disciplinar, como bem sinalizado por Coimbra (2004), implicando num posicionamento ético em seu conteúdo.
Cabe apontar que as teorias aqui discutidas não devem ser utilizadas para classificar a conjugalidade no contexto judiciário e que a relação psicólogo-jurisdicionado não favorece que os sujeitos se revelem espontaneamente, diferentemente do que ocorre na escuta clínica do casal que busca a psicoterapia. Pode-se, contudo, interpretar o material coletado durante o processo judicial, à luz das teorias da conjugalidade.
A paixão avassaladora que ambos descreveram nos remete ao vínculo fusional, baseado no modelo de Objeto Único, descrito Puget e Berenstein (1993). Contudo, logo na chegada do primeiro filho tudo mudou. Aquela conjugalidade não suportou a entrada do terceiro. Márcio se viu excluído, ou se fez excluir, sendo formada uma forte cumplicidade entre mãe e filhos. Nos relatos surgiram queixas quanto à passividade e falta de iniciativa de Márcio e à postura excessivamente autoritária de Cida. Este aspecto do arranjo conjugal nos remete à colusão anal-sádica, postulada por Willi (1975), na qual se observam posições polarizadas entre domínio e dependência, sendo protagonizada pelos cônjuges, uma interminável luta. A descrição da convivência pautada em violência e hostilidade, sem, contudo, conseguirem separar-se, ainda nos remete à ‘gemelaridade tanática' descrita por Puget e Berenstein (1993). Neste arranjo, "O compartilhar é persecutório ... Circulam desprezo, críticas, mas, apesar disso, não podem ficar separados" (p. 37). Cida sustentou graves acusações contra o pai de seus filhos e os avós paternos, que não foram comprovadas, e denotava divertir-se com o impacto causado e com os xingamentos proferidos pelos filhos. Essa dinâmica encontra semelhanças com o funcionamento ‘pervertedor-pervertido', descrito pelos mesmos autores, no qual existe um predomínio da transgressão dos valores e são observados intercâmbios sádicos. Sobre a função do terceiro neste tipo de funcionamento, assinala-se a impotência do judiciário frente a esse conflito.
Entendemos que se a sugestão de inversão de guarda em favor dos avós paternos, feita na primeira intervenção, tivesse sido acolhida, o curso da história dessa família poderia ter sido outro. As funções materna e paterna, exercidas de forma disfuncional pelos pais, poderiam ter sido parcialmente supridas, de forma a resguardar as crianças do conflito conjugal. A possível utilização dos filhos pela mãe como meio de atingir o pai poderia ter sido interditada, a omissão paterna poderia ter sido suprida e, os ex-parceiros, presos no jogo da conjugalidade, não contariam mais com o acolhimento do judiciário para manutenção daquele vínculo. Mas, no entanto, o judiciário se paralisou. O mito da supremacia materna na guarda dos filhos pode ter influenciado a decisão judicial (Barros, 2005), mas também se destaca que a instituição pode ter sido convocada a interagir subjetivamente na dinâmica conjugal, a qual necessitava representar sua cena para um observador passivo, papel que foi cumprido, sem que o judiciário conseguisse se inscrever como lei nessa demanda.
A observação dos tipos de conjugalidade apresentados pode servir de parâmetro norteador na identificação das dinâmicas dos conflitos conjugais que se apresentam no judiciário. No entanto, é importante apontar que os funcionamentos, quando descritos na teoria, são apresentados como mecanismos distintos e separados. Mas, quando se observam as dinâmicas de funcionamento dos casais, podem ser detectados funcionamentos que se entrelaçam no decorrer da história da conjugalidade. É ainda importante observar que estes mecanismos são engendrados conjuntamente no jogo da conjugalidade, e, mesmo no caso da colusão anal-sádica, onde se identifica uma forte assimetria na distribuição de poder da relação, o polo passivo do conflito também atua ativamente na dinâmica conjugal.
Considerações finais
A compreensão da dinâmica dos litígios familiares por uma ótica de complementaridade confronta-se com a lógica adversarial do judiciário e dos casais em conflito, fundamentadas em persecutoriedade e culpa (Groeninga, 2003) e, desse confronto, advêm resistências.
No contexto contemporâneo do direito, a lógica adversarial vem sendo apontada como um entrave aos novos focos da justiça – celeridade e democratização do processo – sendo propostas novas técnicas de resolução de conflitos, como a conciliação, a mediação e a arbitragem (Azevedo, 2009). Contudo, para que essas novas propostas metodológicas sejam eficazes, é necessário que os operadores do direito reformulem seus paradigmas. No caso dos litígios familiares, é necessário que o judiciário reconheça que o litígio está inserido no contexto de um jogo encenado conjuntamente, com base em motivações inconscientes, e que a justiça é permanentemente convocada a contracenar e a sustentar sua perpetuação.
O encontro da psicologia com o direito vem se desdobrando em novos saberes, dentre os quais ressaltam-se a perspectiva foucaltiana sobre a política de normalização nas Varas de Família (Reis, 2009) e a perspectiva de Legendre (2004) que aponta o risco da instituição não ocupar mais os lugares centrais de referência na ordem genealógica.
O trabalho do psicólogo jurídico requer um olhar transdisciplinar, atento ao contexto social que influencia a formação das subjetividades (Altoé, 2003), ao conjunto normativo onde sua práxis está inserida, à representação da lei para os sujeitos que recorrem a ela e, tudo isso, sem perder de vista o funcionamento singular de cada célula desse organismo – o sujeito.
Neste estudo, pretendeu-se incluir, na profusão de saberes psicojurídicos da contemporaneidade, a perspectiva intersubjetiva da conjugalidade na análise dos litígios familiares. Nesta proposta, inclui-se o campo intersubjetivo entre jurisdicionados e operadores do direito, buscando inserir mais um olhar sobre um inquietante fenômeno que se multiplica na contemporaneidade, os litígios familiares. Buscou-se acrescentar mais uma referência neste imbricado contexto e apontar a possibilidade do judiciário interagir complementarmente à demanda conjugal de perpetuação do conflito.
Referências
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Endereço para correspondência
E-mail: anantunes@click21.com.br
Recebido em julho de 2009
Aprovado em dezembro de 2009
Ana Lúcia Marinônio de Paula Antunes: Psicóloga; Especialista em Terapia de Família e Casal (PUC-Rio); Mestranda em Psicologia Clínica (PUC-Rio). Psicóloga do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Andrea Seixas Magalhães: Psicóloga; Doutora em Psicologia Clínica (PUC-Rio). Professora assistente do Departamento de Psicologia da PUC-Rio.
Terezinha Féres-Carneiro: Psicóloga; Doutora em Psicologia Clínica (PUC-SP); Pós-doutora em Terapia de Casal e Família (Universidade de Paris 5/Sorbonne). Professora Titular do Departamento de Psicologia da PUC-Rio.