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Aletheia
versão impressa ISSN 1413-0394
Aletheia no.31 Canoas abr. 2010
RESENHA
Trauma e superação: o que a psicologia, a neurociência e a espiritualidade ensinam
Ana Catarina Araújo Elias
Neste início de século XXI o poder proporcionado pelos recursos biotecnológicos na prevenção e tratamento de doenças nos surpreende todos os dias, mas por outro lado estes recursos não são capazes de proporcionar o maior bem da humanidade: a felicidade. Para a Organização Mundial de Saúde, saúde não significa a mera ausência de doenças e sim um completo bem-estar biopsicossocial. Os traumas psicológicos podem obscurecer ou mesmo impedir o bem-estar de acordo com a realidade subjetiva de cada indivíduo, tema que o Dr. Julio Peres aborda no livro Trauma e Superação: o que a psicologia, a neurociência e a espiritualidade ensinam. Em quinze capítulos o leitor encontrará conceitos claros e atuais que facilitam a compreensão do leitor, revisões bibliográficas de pesquisas com sínteses didáticas, práticas terapêuticas indicadas a superação do trauma, depoimentos de pacientes com uma riqueza fenomenológica impar, propostas inovadoras que orientam nosso olhar para além do sofrimento, iluminando recursos auto-curativos que o ser humano dispõe como a espiritualidade.
No primeiro capítulo Peres define e explica conceitos que utilizará ao longo do livro como: o que é trauma psicológico, memória traumática, transtorno de estresse pós- traumático (TEPT) e respectivos subtipos, como um evento se transforma em um trauma e quais as respostas pós-trauma mais frequentes. O autor revela o grande número de indivíduos traumatizados na população geral com interessantes dados epidemiológicos e enfatiza a importância da área da saúde dedicar maior atenção qualificada a essas pessoas: estima-se que a prevalência ao longo da vida para a ocorrência de eventos potencialmente traumáticos pode alcançar de 50 a 90%, enquanto a prevalência do TEPT na população geral é estimada entre 8 a 10% e do TEPT parcial atinge expressivos 30%.
No segundo capítulo a relação terapêutica entre as palavras e o trauma é explicitada. Peres mostra com exemplos instrutivos e base neurocientífica que tradução da ocorrência em representações narrativas permite a atribuição de significados à vivência pessoal e a superação do sofrimento disperso em emoções e expressões sensoriais fragmentadas.
A percepção de um indivíduo é decisiva na qualidade de sua interação com o ambiente, e, por essa razão, investigações sobre os processos perceptivos são de extremo interesse à compreensão de como o trauma é configurado. Com estas palavras Peres inicia o terceiro capítulo onde discute não só a questão da percepção, como também a interação desta faculdade cognitiva com a filosofia e com as neurociências. Disseca o processo pelo qual construímos o mundo no qual vivemos e pondera a importância da subjetividade na representação da realidade individual.
Neurônios-espelhos: para olhar e superar, com este subtítulo Peres expõe com clareza no quarto capítulo a função destes neurônios recém descobertos e a sua relação com a psicoterapia frente à vivência traumática.
Observando-se que a vivência traumática esta intimamente relacionada não só com o evento em si, mas também com a subjetividade do indivíduo Peres, no quinto capítulo, discute a interação entre personalidade e trauma. Aborda os elementos constituintes deste corpo emocional, seu desenvolvimento, as limitações de um enfoque puramente neuroquímico e os desafios frente os dados empíricos que sugerem que mente e cérebro não são sinônimos, indicando o valor terapêutico de uma psicoterapia sem dogmas.
No sexto capítulo intitulado "dar a volta por cima" o autor ressalta o significado e valor da resiliência, que pode ser aprendida e desenvolvida com recursos objetivos. Peres discute a pertinência do diálogo entre a coragem e o medo, e explica, de forma didática e fundamentada, todos os passos para a aplicação de uma abordagem apropriada a superação do trauma psicológico, chamada Terapia de Exposição e Reestruturação Cognitiva. O autor ressalta que os psicoterapeutas não devem dizer intelectualmente aos pacientes "como fazer" e sim facilitar por meio de vivência terapêutica, a autocompreensão da possibilidade de escolher novos caminhos para melhor qualidade de vida.
O sétimo capítulo aborda as diferenças entre o esquecimento e a extinção das memórias traumáticas, pois conforme explica o autor o aprendizado de extinção, que fortalece novas associações aos gatilhos do temor, cumpre um papel adaptativo superior ao do esquecimento.
O oitavo capítulo é dedicado ao tratamento de muitos indivíduos que apresentam sintomas como fobias, pânico ou TEPT, entretanto, não lembram dos episódios que dispararam tais sofrimentos. Nas palavras do autor, a "iluminação" de traumas que se encontram no nível inconsciente é possível por meio da Terapia Reestruturativa Vivencial Peres (TRVP), a qual pode trazer padrões previamente inconscientes de comportamento à luz da consciência, facilitando a ligação do significado ao afeto, desconstruindo a compulsão à repetição do trauma e levando assim, a remissão dos sintomas que geravam sofrimento.
No nono capítulo outras diversas formas de psicoterapias aplicadas ao trauma psicológico são descritas de forma sintética e didática, explicitando a abordagem terapêutica, os objetivos e as estratégias de cada uma delas. São referidas mais 16 outras técnicas, assim como são discutidos o valor terapêutico da farmacoterapia, a função adaptativa dos pesadelos pós-traumáticos e o respectivo tratamento com a Terapia do Ensaio Imaginário.
O décimo capítulo reflete os estudos do próprio autor sobre a interação entre neurociências e a psicoterapia eficaz, abordando o conceito de neurônio, as interfaces com o sistema nervoso, os métodos de investigação por imagem e os estudos neurofuncionais em psicoterapia. Um capítulo escrito com sólida consistência acadêmica que oferece ao leitor, através de dados empíricos, compreensão sobre a complexa inter-relação da neurociência com a psicoterapia.
No décimo primeiro capítulo a verdade da alma dos que sofreram uma experiência traumática e a superaram é revelada através do depoimento de vários pacientes e dos comentários do autor. Inúmeras situações traumáticas foram abordadas, com destaque para o abuso sexual, perda de ente querido, assalto e acidente. Este capítulo demonstra empiricamente o sagrado da natureza humana, o potencial de auto-reformulação e aprendizado em cada indivíduo e a possibilidade de fortalecê-lo através da psicoterapia. Os relatos espontâneos dos pacientes demonstram que não somos apenas o resultado passivo dos eventos de vida, mas somos responsáveis sujeitos de nossas existências.
O décimo segundo capítulo é dedicado à importância da pessoa do terapeuta, sendo que o autor o intitula de "A terapia é o terapeuta". Enquanto psicóloga atuando nas áreas clínica e hospitalar, e na docência universitária, endosso na íntegra estes escritos de Peres, que nos fala sobre a relevância da segurança interior do terapeuta, conseguida através do palmilhar prévio de seus caminhos internos, do ouvir e re-significar suas próprias dores para levar a um lugar por ele conhecido, respeitando os sistemas de crenças e a cultura do indivíduo em tratamento.
No décimo terceiro capítulo Peres aborda a inter-relação entre religiosidade, espiritualidade e saúde com base em publicações científicas; escreve um brilhante resumo sobre religiões comparadas, descreve a religiosidade / espiritualidade como fonte de resiliência para o enfrentamento do trauma e suas implicações na psicoterapia, assim como menciona o importante trabalho de vários grupos acadêmicos dedicados ao estudo da espiritualidade e saúde.
No décimo quarto capítulo Peres aborda com profundidade a questão do bem-estar e da felicidade. Corajosamente inicia o capítulo com uma citação de Abraham Lincoln, referindo que a maioria das pessoas é tão feliz quanto resolver ser. Mais a frente fundamenta, através de pesquisas epidemiológicas, que a natureza do sofrimento e da felicidade transcende o evento em si e se dinheiro, poder e fama não ajudam as pessoas a serem mais felizes, o desenvolvimento do caráter e das virtudes podem fazê-lo.
No décimo quinto capítulo conclui seu livro explanando sobre a cultura da Paz e a responsabilidade de cada um de nós na construção de um mundo menos traumatizante. Explica porque a herança genética competitiva ancestral atualmente é desnecessária e através de dados empíricos demonstra como ensinar a nossa genética o caminho do bem. Julio Peres demonstra que um mundo melhor e humano, ou seja, menos violento, é exequível.
O livro do Dr. Julio Peres traz uma síntese atraente de um conjunto de informações sobre o trauma psicológico e os processos factíveis de superação com profundidade e clareza. Considero uma leitura importante e necessária, não só para os profissionais da saúde mental, mas também para todos que atravessam eventos dolorosos com potencial traumático.
Referência
Peres, J. (2009). Trauma e Superação: o que a Psicologia, a Neurociência e a Espiritualidade ensinam. São Paulo: Ed. ROCA. [ Links ]
Endereço para correspondência
E-mail: anacatarinaelias@uol.com.br
Recebido em janeiro de 2010
Aceito em março de 2010
Ana Catarina Araújo Elias: Psicóloga; Doutora em Ciências Médicas (UNICAMP).