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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.34 Canoas abr. 2011

 

ARTIGO INTERNACIONAL

 

O juízo moral das crianças sobre a ingratidão

 

The moral judgment of children about ingratitude

 

 

Lia Beatriz de Lucca FreitasI; Aline Zimmermann MileskiI; Jonathan Richard Henry TudgeII

I Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Psicologia. Programa de Pós-Graduação
II University of North Carolina at Greensboro. Department of Human Development and Family Studies

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RESUMO

Apresentam-se resultados de um estudo que examinou o juízo moral das crianças sobre a ingratidão. Participaram 77 crianças (49% do sexo feminino), distribuídas em três grupos (5–6, 8–9 e 11–12 anos). Utilizaram-se duas histórias protagonizadas por um(a) benfeitor(a) e um(a) ingrato(a). Após cada história, realizou-se uma entrevista com a criança. A maioria dos participantes reprovou a ação do ingrato. Encontraram-se três tipos de justificativa para sua reprovação e duas diferenças significativas entre os grupos etários: (a) as consequências da ação diminuíram com o aumento da idade e (b) a reciprocidade predominou entre as crianças de 8 anos ou mais. A relação de amizade apareceu em todas as idades. Os resultados, discutidos à luz da literatura, sugerem questões de pesquisa.

Palavras-chave: Desenvolvimento, Juízo moral, Ingratidão.


ABSTRACT

We present results from a study that examined the moral judgment of children about ingratitude. A total of 77 children (49% female) participated, distributed into three groups (5–6, 8–9 and 11–12 years). We used two vignettes in which the protagonists consisted of a benefactor and an ungrateful child. After each vignette each participant was interviewed. The majority of participants disapproved of the ungrateful child's action. We found three types of justification for their disapproval and two significant differences among the three age groups: (a) focusing on the consequences diminished with an increase in age and (b) reciprocity predominated among children of 8 years and older. Relations of friendship appeared at each age. The results, discussed in light of the literature, suggest further research.

Keywords: Development, Moral judgment, Ingratitude.


 

 

Introdução

Em diversas culturas, vários pensadores e escritores (e.g., Confúcio, Shakespeare, Cervantes, Goethe, Adam Smith, David Hume, Immanuel Kant) louvaram a gratidão. A ingratidão, pelo contrário, sempre foi considerada uma falha moral (Buck, 2004; Emmons, 2004; McConnell, 1993; McCullough, Kilpatrick, Emmons, & Larson, 2001). O não reconhecimento adequado de um benefício por um indivíduo gera indignação nas pessoas e resulta, geralmente, em desaprovação ou até mesmo exclusão social daquele que é considerado ingrato.

Bonnie e de Waal (2004) propuseram um modelo para explicar os processos psicológicos implicados na gratidão. Quando um indivíduo recebe um benefício, gera-se um bom sentimento. O beneficiário associa esse sentimento positivo ao benfeitor. Além disso, ele reconhece os custos da ação do benfeitor e atribui-lhe boas intenções. Em função disto, o beneficiário torna-se grato não apenas pelo benefício recebido, mas valoriza o próprio benfeitor. O beneficiário, então, sente uma dívida em relação ao benfeitor e uma obrigação de retribuir o favor. Finalmente, o beneficiário retribui o favor e o ciclo continua, porque o benfeitor inicial (agora beneficiário) sente um sentimento positivo, etc.

Piaget (1965/1977) já havia proposto que a gratidão se caracteriza pela valorização do próprio benfeitor e não apenas de sua ação. É dessa valorização positiva do benfeitor que decorre o sentimento de uma dívida simbólica do beneficiário em relação ao seu benfeitor e uma obrigação de retribuir-lhe o favor. Conforme observou Chapman (1986), é esta dívida simbólica que transforma a transferência do bem ou serviço inicial do benfeitor ao beneficiário em um ato de troca propriamente dito.

Na vida cotidiana, porém, esse ciclo de trocas recíprocas nem sempre está presente. O indivíduo ingrato é menos propenso a ajudar e a retribuir, tornando o benfeitor menos disposto a prestar outro favor (McCullough & cols., 2001). Segundo Emmons e Shelton (2002), a ingratidão seria a incapacidade de reconhecer um benefício prestado por outra pessoa.

a ingratidão não é a incapacidade de reconhecer ou de receber um benefício, “mas incapacidade de retribuir – sob a forma de alegria, sob forma de amor – um pouco da alegria recebida ou sentida". (Comte-Sponville, 2007, p.146)

Pode-se pensar que as duas situações podem ocorrer: o beneficiário pode não reconhecer que recebeu um benefício e/ou pode não retribuir o favor ao seu benfeitor, quando surgir uma oportunidade de fazê-lo. De fato, conforme afirmou McConnell (1993), há várias maneiras de ser ingrato: (a) não retribuir um benefício a um benfeitor prévio; (b) não reconhecer a sua ajuda; (c) não retribuir adequadamente ou (d) retribuir por razões moralmente reprováveis.

Resultados de pesquisas indicam que existe um desenvolvimento da gratidão na infância, embora a sua trajetória seja ainda uma questão a ser investigada (Froh, Miller, & Snyder, 2007). As crianças são capazes de compreender (Freitas, Silveira, & Pieta, 2009; Freitas, O'Brien, Nelson, & Marcovitch, no prelo; Graham & Barker, 1990; Harris, Olthof, Meerum Terwogt, & Hardman, 1987; Russell & Paris, 1994), vivenciar (Gordon, Musher-Eizenman, Holub, & Dalrymple, 2004; Paludo, 2008) e expressar gratidão (Baumgarten-Tramer, 1938; Freitas, Pieta, & Tudge, 2011). Todavia, a ingratidão ou, pelo menos, episódios assim interpretados parecem ser comuns na infância.

A criança pequena não sente gratidão com a alimentação, o carinho, a atenção e os presentes que recebe, apesar de que, em determinados momentos, possa utilizar formas que se usam para expressá-la, as quais são aprendidas no convívio social. Emmons e Shelton (2002) afirmam que “a gratidão não emerge espontaneamente nos recém-nascidos" (p.468). Em outras palavras, até onde se sabe, a gratidão não é inata, embora o ser humano possa desenvolvê-la durante o seu processo de socialização.

Segundo Bergler (1945), as crianças aprendem a sentir gratidão com seus pais, tornando-se para elas um ditame moral. François (1953), pelo contrário, considera que a gratidão é fomentada na relação entre pares, isto é, na relação entre as próprias crianças. Observando o cotidiano de crianças que viviam em um orfanato, François constatou que a ingratidão é um fenômeno comum na infância, especialmente quando o benfeitor é um adulto. Para a criança, é mais fácil reconhecer sua dívida quando o benfeitor é outra criança, pois aquela que recebe, hoje, poderá ser a benfeitora amanhã. Em outras palavras, o ciclo que gera uma espiral ascendente de ajuda e apoio mútuos (Bonnie & Waal, 2004; McCullough & cols., 2001) parece ser mais característico das relações de cooperação (Piaget, 1932/1992, 1965/1977) entre as crianças.

Em seu estudo sobre a mentira, Piaget (1932/1992) chamou atenção para a dificuldade da criança pequena em compreender a natureza da mentira: “(...) a criança não vê o alcance real do engano. Ela mente como inventa" (p.113). O preceito da proibição da mentira, imposto pelos adultos, conduz a resultados surpreendentes. As crianças pequenas entendem que uma mentira é tanto mais grave quanto mais a afirmação estiver em desacordo com a realidade e, assim, nenhuma pessoa poderá acreditar nela. Além disto, Piaget observou que, para as crianças pequenas, é pior mentir para os adultos que para outras crianças, visto que são eles que impõem a proibição da mentira.

As observações de François (1953) sugerem que, talvez, algo semelhante ocorra com os ensinamentos dos adultos sobre a gratidão. A exigência que os adultos fazem às crianças da expressão da gratidão, usualmente verbal (Baumgarten-Tramer, 1938), e da posterior retribuição do favor, torna-se uma obrigação, mas isso não quer dizer que elas compreendam imediatamente o significado de agradecer e retribuir.

Gleason e Weintraub (1976) observaram que apenas 21% das crianças com menos de 6 anos agradeceram a um adulto que lhes deu balas no dia de Halloween, enquanto mais de 80% das crianças de 10 anos ou mais agradeceram nessa mesma situação. Esse dado chama atenção, quando se considera que, desde cedo, pais e professores ensinam as crianças a agradecer, quando recebem um presente ou ajuda. Becker e Smenner (1986) estudaram o agradecimento verbal espontâneo de crianças de 3 e 4 anos de idade frente a uma recompensa. Eles constataram que as crianças agradeceram mais a um adulto que outra criança. Este resultado sugere que existe uma atividade interpretativa da criança daquilo que lhe é ensinado. Talvez as crianças agradeçam mais aos adultos, porque são eles que prescrevem essa norma (Piaget, 1932/1992). Outra explicação possível para o dado observado seria que os adultos, usualmente, agradecem mais a outros adultos que a crianças. Assim, a criança estaria imitando o comportamento de seus pais e professores.

É verdade que as pessoas frequentemente agradecem por uma questão de polidez e não necessariamente porque se sentem gratas. François (1953) afirmou que a ingratidão é tão comum que a sociedade inventou certas regras de polidez para encobri-la. No entanto, segundo La Taille (2001), a partir das regras de polidez, a criança pode começar a compreender certas virtudes: “o "obrigado' aponta para a gratidão" (p.116). Esse mesmo autor propôs a hipótese de que as normas de polidez (por exemplo, “dizer obrigado") sejam não apenas algo que se apresenta na falta de moralidade (Comte-Sponville, 2007; François, 1953), mas também tenham um papel relevante em sua gênese.

Suls, Witenberg e Gutkin (1981) fizeram um estudo cujos resultados sugerem que crianças e adultos não julgam o ingrato da mesma maneira. A pesquisa foi realizada com 151 estudantes norte-americanos de primeira, terceira e quinta séries do ensino fundamental e estudantes de um curso de psicologia. Contaram-se aos participantes histórias sobre reciprocidade positiva (personagem faz um favor após ter recebido um favor), reciprocidade negativa (personagem recusa-se a fazer um favor depois de terem-lhe negado um favor), altruísmo (personagem faz um favor após terem-lhe negado um favor) e ingratidão (personagem recusa-se a fazer um favor depois de ter recebido um favor). Solicitou-se aos participantes que avaliassem as histórias utilizando-se uma escala com seis pontos que variavam do bom ao ruim. Suls e seus colegas constataram que as crianças das primeiras séries não fizeram distinção entre a reciprocidade negativa (personagem recusa-se a fazer um favor depois de lhe terem negado um favor) e a ingratidão (personagem recusa-se a fazer um favor depois de ter recebido um favor), avaliando negativamente ambos os personagens. Pelo contrário, as crianças mais velhas, assim como os jovens adultos, avaliaram melhor a reciprocidade negativa que a ingratidão.

Embora a ingratidão possa levar à exclusão social e seja considerada, em diversas culturas, uma falha moral, encontram-se ainda poucos estudos sobre este assunto. No entanto, alguns resultados de pesquisa e observações cotidianas indicam que as crianças e os adultos não julgam o ingrato da mesma maneira.

Neste artigo, apresentam-se resultados de um estudo, cujo objetivo foi investigar o juízo moral das crianças sobre a ingratidão. Mais especificamente, investigou-se o juízo moral das crianças sobre uma das formas de ingratidão – a não retribuição a um benfeitor prévio (McConnell, 1993; Suls & cols., 1981) –, a partir da abordagem construtivista sobre o desenvolvimento moral (La Taille, 2007; Lourenço, 1992; Youniss & Damon, 1992). Cabe ressaltar que esta investigação examina o juízo moral de crianças no domínio aretaico da moralidade – relacionado aos conceitos de louvável e reprovável –, contribuindo para ampliar o campo da psicologia moral, visto que grande parte das pesquisas dedicou-se a investigar o juízo moral de crianças no domínio deôntico da moralidade – relacionado aos conceitos de certo e errado (Lourenço, 2000).

 

Método

Participantes

Participaram deste estudo 77 crianças, sendo 49% do sexo feminino. Os participantes foram divididos em três grupos etários: (a) grupo 1, composto por 26 crianças que, no momento da coleta de dados, tinham entre 5 anos e 6 anos e 11 meses (média = 6,20; desvio padrão = 5,93); (b) grupo 2, composto por 25 crianças com idades entre 8 anos e 9 anos e 11 meses (média = 9,26; desvio padrão = 4,76); e (c) grupo 3, composto por 26 crianças com idades entre 11 anos e 12 anos e 11 meses (média = 12,27; desvio padrão = 5,36). Os critérios de inclusão dos participantes na amostra foram: (a) idade da criança e (b) a assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido por seus pais ou responsáveis legais. A maior parte dos participantes foi recrutada em duas escolas públicas de Porto Alegre e quatro participantes frequentavam uma escola particular nesta mesma cidade. As escolas foram escolhidas por conveniência, isto é, de forma não aleatória.

Instrumentos

Utilizaram-se duas histórias, sendo cada uma delas seguida por uma entrevista clínica (Delval, 2002; Mayer, 2005), composta por duas perguntas básicas. As histórias eram protagonizadas por dois personagens: (a) o benfeitor, uma criança que fez uma ação generosa; e (b) o ingrato, uma criança que não retribuiu o favor a seu benfeitor, quando surgiu a oportunidade de fazê-lo. Antes da coleta de dados propriamente dita, realizou-se um estudo piloto com 12 crianças, de ambos os sexos, distribuídas igualmente nos três grupos etários deste estudo. O estudo piloto possibilitou a adequação das histórias e das perguntas à linguagem das crianças. A seguir, apresentam-se as histórias e as perguntas básicas da entrevista clínica.

História 1. Paulo sempre dividia o seu lanche com Henrique. Um dia, Henrique ganhou uma caixa de bombons. Na escola, ele foi dando os bombons para seus amigos. Quando chegou a vez do Paulo já não tinha mais nenhum (Versão feminina: Paula e Erica). Após verificar se o participante havia compreendido a história, formularam-se seguintes questões: Tu achas bonito (ou “legal") o que Henrique fez? Por quê?

História 2. Mauro e Fernando eram vizinhos e costumavam brincar juntos. Mauro ficou doente e não podia sair de casa. Fernando foi até a sua casa brincar com ele, em vez de ir a uma festa de aniversário. Uma semana depois, Fernando machucou o pé e não podia sair de casa. Mauro não foi brincar com ele, preferiu andar de bicicleta (Versão feminina: Mariana e Fernanda). Após verificar se o participante havia compreendido a história, apresentaram-se as seguintes perguntas: Tu achas bonito (ou “legal") o que Mauro fez? Por quê?

Conforme observou Comte-Sponville (2007), inicialmente o ético e o estético se confundem. Por exemplo, é comum os pais dizerem às crianças “Que bonito!" ou “Não faz isto que é feio", quando aprovam ou reprovam suas ações. Assim, optou-se por utilizar a palavra “bonito" com as crianças de 5 e 6 anos para investigar se elas aprovavam ou reprovavam a ação do ingrato. Com as demais, utilizou-se a palavra “legal", a qual foi empregada pelas crianças mais velhas durante o estudo piloto.

Procedimentos

O protocolo de pesquisa foi previamente aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (protocolo n° 2006/009), por estar de acordo com as diretrizes e normas da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde – Ministério da Saúde. A direção de cada escola assinou um documento autorizando a realização da pesquisa. As crianças foram convidadas a participar da pesquisa. Foi-lhes assegurado o direito de participar ou não, assim como de desistir de sua participação a qualquer momento.

Todos os participantes foram entrevistados, individualmente, em uma sala de sua própria escola. Em primeiro lugar, explicava-se à criança, em linguagem acessível, os objetivos da pesquisa e quais eram os procedimentos a serem seguidos. A seguir, contava-se uma das histórias e solicitava-se à criança que a recontasse para verificar se ela a havia compreendido. Por fim, passava-se à entrevista. O mesmo procedimento era realizado com a outra história. A ordem de apresentação das histórias foi sistematicamente modificada. As entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas, criando-se um protocolo para cada um dos participantes.

A partir da leitura das entrevistas à luz do referencial teórico e da revisão da literatura, foram construídas categorias de análise, consideraram-se os passos sugeridos por Delval (2002): (a) leram-se todas as entrevistas, com o objetivo de obter-se uma visão geral dos dados; (b) escolheram-se aleatoriamente 12 entrevistas (quatro de cada grupo etário) para serem relidas e buscou-se identificar tipos de resposta, construindo-se, desta forma, categorias provisórias de análise; (c) releram-se todas as entrevistas e procurou-se classificar as respostas de todos os participantes, de acordo com essas categorias iniciais; (d) fizeram-se os ajustes necessários; por exemplo, criaram-se tipos de respostas mais abrangentes, a fim de dar conta das duas histórias.

Uma vez estabelecidas as categorias de análise deste estudo, codificaram-se as respostas de todos os participantes, inserindo-se os dados em uma planilha do programa estatístico SPSS for Windows. Posteriormente, realizou-se uma análise quantitativa da frequência das categorias, nos três grupos etários, utilizando-se o teste qui-quadrado.

Assim, utilizaram-se métodos qualitativo e quantitativo neste estudo. Constituíram-se categorias de análise das respostas dos participantes usando-se método qualitativo e testou-se de forma quantitativa se os grupos de idade diferiam quanto a: (a) extensão em que aprovavam ou reprovavam a ação do personagem ingrato e, supondo reprovação (b), suas justificativas para a reprovação. A primeira hipótese testada foi a de que as crianças de todas as idades reprovariam a ação do ingrato. A segunda hipótese foi a de que as crianças menores iriam levar em conta apenas a ação do personagem, enquanto as crianças mais velhas iriam fundamentar seu juízo no princípio de reciprocidade, isto é, considerariam o fato de que o personagem havia sido ajudado ou recebido atenção anteriormente e deveria, então, retribuir o favor.

 

Resultados

Inicialmente, analisaram-se às respostas das crianças à pergunta: Foi bonito (ou “legal") o que ele fez? Essas respostas foram classificadas como “aprovação" ou “reprovação". Alguns participantes não responderam à pergunta ou suas respostas não ficaram suficientemente claras para que fossem codificadas em uma das duas categorias, sendo assim classificadas como “outros". Por exemplo: Mais ou menos... porque sim... porque todas as colegas dela queriam... (H1, F, 6;5)1. A Tabela 1 mostra as frequências das respostas dos participantes em cada uma das histórias.

 

 

Na Tabela 1, observa-se que a grande maioria das crianças reprovou a ação do personagem ingrato (91% na história 1 e 100% na história 2). A primeira hipótese foi, portanto, confirmada. No entanto, as respostas das crianças diferiram significativamente entre as duas histórias, sendo que sete crianças (todas do grupo com idades entre 8 anos e 9 anos e 11 meses) aprovaram a ação do personagem ingrato na história 1 (Fisher's exact test p < .01).

A seguir, analisaram-se as justificativas apresentadas por aquelas crianças que reprovaram a ação do ingrato. Classificaram-se as suas justificativas em três categorias: (a) consequências da ação, (b) relação de amizade e (c) reciprocidade. Encontraram-se estes tipos de justificativa em ambas as histórias.

1. Consequências da ação: A criança levou em conta apenas a ação do personagem – o que ele fez ou deixou de fazer – e suas consequências imediatas, sejam estas de ordem material ou psicológica. Na história 1, Paulo ficou sem bombom ou ficou triste. Na história 2, Fernando ficou sem brincar ou sozinho.

2. Relação de amizade: A criança considerou o vínculo afetivo, a relação de amizade prévia, existente entre benfeitor e ingrato. Na história 1, Henrique não dividiu com o amigo, só deu para os outros. Na história 2, Mauro não foi à casa do amigo e, quando um amigo está doente, tem que dar atenção.

3. Reciprocidade: O participante levou em conta o fato de que o personagem ingrato havia recebido um benefício anteriormente, ou seja, o princípio de reciprocidade serviu de fundamento para o seu juízo. Ao explicar sua resposta, a criança referiu-se explicitamente ao fato de que o ingrato não retribuiu o beneficio recebido. O beneficiário deve retribuir o favor, isto é, ajudar o seu benfeitor assim como este o ajudou. Na história 1, Henrique tinha que ter dado primeiro para Paulo, o qual sempre dividia o lanche com ele. Na história 2, Mauro ficou doente e Fernando foi brincar com ele; agora, Mauro tinha que ir visitá-lo.

Alguns participantes utilizaram mais de um tipo de justificativa em suas respostas. Por exemplo:

Participante: Eu, por exemplo, teria dado primeiro pra minha amiga, melhor amiga, né? Pesquisador: Por quê? Participante: Porque, desde o primeiro dia, assim, ela sempre dava o lanche comigo, assim, dividia o lanche comigo (H1, F, 12;4).

Codificou-se essa resposta como: (a) relação de amizade e (b) reciprocidade. As situações classificadas como “outros" foram: (a) o participante respondeu “não sei" ou (b) a criança não respondeu à pergunta de justificação. A Tabela 2 mostra a frequência dos tipos de justificativa das crianças que reprovaram a ação do ingrato, nos três grupos etários.

 

 

Quanto às justificativas das crianças que reprovaram o personagem ingrato, na história 1, um teste qui-quadrado mostrou que houve uma diferença significativa entre os grupos etários (χ² (4) = 24,85, p < .001). Examinando a Tabela 2 observa- se que esse resultado deve-se à diferença entre as justificativas utilizadas pelas crianças do grupo 1 (principalmente, consequências da ação) e as crianças dos demais grupos (predominantemente, reciprocidade). Na história 2, também houve diferença significativa entre os três grupos etários (χ² (4) = 23,64, p < .001). Da mesma forma que na história 1, essa diferença deve-se ao tipo de justificativa predominante (consequências da ação) entre as crianças do grupo 1 e aquelas dos grupos 2 e 3 (reciprocidade). Não houve diferença significativa entre as histórias quanto aos tipos de justificativa utilizados pelas crianças dos três grupos etários que reprovaram o personagem ingrato, χ² (2) = 1,34, ns. Assim, a hipótese 2 foi confirmada, em ambas as histórias.

A seguir, examinaram-se as justificativas dos sete participantes que aprovaram a ação do ingrato na história 1. Observou-se que as crianças evocaram a sua generosidade. Por exemplo, “acho que ele foi legal, porque ele dividiu com todo mundo" (H1, M, 12;8). Uma das crianças considerou também as consequências negativas da ação para o benfeitor prévio em sua justificativa, mas desculpou a personagem que não retribuiu:

Participante: Ela foi dando pras amigas dela, daí, chegou a vez da Paula, não sobrou nenhum. A Paula ficou triste, mas só que a Erica não teve culpa, porque acabou, assim, de uma hora pra outra" (H1, F, 9;2).

 

Discussão

Neste estudo, buscou-se investigar o juízo moral de crianças de 5 a 12 anos sobre a ingratidão, a qual foi definida como a não retribuição a um benfeitor prévio (McConnell, 1993; Suls & cols., 1981). Os resultados indicaram que a maioria das crianças reprovou a ingratidão, em ambas as situações que lhe foram apresentadas (87% dos participantes, na história 1, e 99%, na história 2). Quanto a este aspecto, as crianças parecem não diferir dos adultos, visto que a ingratidão é julgada moralmente de forma negativa na maioria das culturas (Buck, 2004; Emmons, 2004; McConnell, 1993; McCullough & cols., 2001).

Todavia, quando se examinaram as justificativas apresentadas pelas crianças para a reprovação do ingrato, constatou-se que as suas razões variaram significativamente de acordo com a idade. Além disto, essas razões nem sempre coincidiram com as dos adultos.

O tipo mais elementar de justificativa encontrado neste estudo foi aquele em que as crianças centraram-se nas consequências negativas da ação apenas para o benfeitor prévio: ele ficou sem bombom, triste, sem brincar ou sozinho. Tudo se passa como se aquele que não retribui – o ingrato – não tivesse nada a perder. Este tipo de justificativa foi predominante entre as crianças de 5 e 6 anos. Embora também presente entre as crianças de 8 anos ou mais, sua frequência diminuiu significativamente com o avanço da idade.

Entende-se que as justificativas que evocaram a relação de amizade existente entre o benfeitor e o ingrato são mais avançadas que as do primeiro tipo, porque as crianças consideraram a relação benfeitor-ingrato; nas justificativas do primeiro tipo, as crianças detiveram-se em apenas um dos polos dessa relação. Além disto, elas levaram em conta as trocas previamente estabelecidas entre as personagens, ou seja, as trocas no tempo e não somente as consequências imediatas de um único evento, no caso, a não retribuição ao benfeitor prévio. Isto é importante, visto que a gratidão envolve conservação no tempo e, portanto, memória capaz de evocar eventos passados, além de capacidade de relacioná-los com o presente (Bonnie & Waal, 2004; Godbout, 1997; Piaget, 1965/1977). Essas crianças parecem ter consciência ou, pelo menos, algum nível de consciência de que a não retribuição de um favor tem consequências também para aquele que não retribui, isto é, aquele que é considerado ingrato, podendo enfraquecer ou até mesmo destruir vínculos entre os seres humanos (Emmons & Shelton, 2002; McCullough & cols., 2001).

Esse tipo de justificativa apareceu em crianças de todas as idades, mas não foi predominante em nenhum dos três grupos etários. A troca mútua de favores é comum e até mesmo esperada entre amigos. No estudo de Vale e Alencar (2009), mais da metade das crianças (7, 10 e 13 anos de idade) referiram-se à amizade para justificar a manifestação de generosidade. As relações de amizade, evidentemente, não se reduzem à troca de favores e requerem mais que gratidão e generosidade. No entanto, é verdade também que, como ressaltou McConnell (1993), muitas amizades tiveram origem em uma ação generosa. Esta ideia também encontra algum suporte empírico no estudo de Vale e Alencar, visto que 23,3% dos participantes mencionaram que uma ação generosa para um desconhecido pode gerar uma amizade. Isto leva a pensar que as relações de amizade e companheirismo estabelecidas entre as crianças têm um papel importante no desenvolvimento do juízo moral (Piaget, 1932/1992) também no que diz respeito à ingratidão.

Essa é uma hipótese que mereceria ser verificada em futuras pesquisas. Talvez, como propôs François (1953), o sentimento de gratidão seja fomentado na relação entre pares. As crianças aprenderiam por que se deve retribuir a um benfeitor prévio nas relações de cooperação (Piaget, 1932/1992, 1965/1977) e não porque os pais (Bergler, 1945) e professores as ensinam a fazê-lo. Evidentemente, isto não significa que pais e professores não devam ensinar às crianças a agradecer e a retribuir. Mesmo que estes ensinamentos, do ponto de vista da criança, sejam apenas regras de polidez, sentidas como obrigatórias, para o convívio social, é melhor tê-las e segui-las que ser considerado ingrato (Comte-Sponville, 2007; François, 1953). Além disto, essas regras, talvez, também tenham o seu lugar na gênese da gratidão (La Taille, 2001).

Nas justificativas fundamentadas no princípio de reciprocidade também estiveram presentes: (a) a relação estabelecida entre benfeitor e ingrato e (b) o tempo. As crianças levaram em conta o fato de que o ingrato foi beneficiado, em um momento anterior. Todavia, não é porque se tratava de um amigo que se deveria retribuir, mas sim porque se tratava de um benfeitor prévio. A reciprocidade foi o tipo de justificativa com maior frequência, em ambas as histórias, e predominou entre as crianças de oito anos ou mais.

Nesse tipo de justificativa, o princípio de reciprocidade não é apenas válido (ao menos, não deve ser) nos pequenos círculos de relações em que as pessoas estão ligadas por vínculos afetivos (relações familiares, de amizade, etc), mas a eles ultrapassa ainda que, como nos ensinou Piaget (1932/1977), o ser humano, inicialmente, vivencia e compreende a reciprocidade graças às relações de amizade e camaradagem que se estabelecem entre os indivíduos de uma mesma geração (Freitas, 2003). Em outras palavras, neste último tipo de justificativa, o princípio de reciprocidade é universalizável, no sentido de que seria desejável que se aplicasse a qualquer pessoa (Lourenço, 1992) e, por esta razão, entende-se que foi o tipo mais evoluído encontrado nesta pesquisa.

Quanto às crianças que aprovaram a ação do ingrato, na história 1, constatou-se que elas justificaram o seu juízo evocando a generosidade: Henrique dividiu os bombons ganhos com os colegas, ou seja, ele não foi egoísta. Segundo La Taille (2006), a generosidade caracteriza-se pelos seguintes aspectos: (a) o altruísmo, visto que o beneficiário da ação é o outro; (b) a existência de um sacrifício por parte do agente e (c) o fato de que se dá ao outro algo que não lhe cabe de direito. Conforme afirmou McConnell (1993), “a beneficência não torna a gratidão desnecessária" (p.70), ou seja, se entre as pessoas a serem beneficiadas estiver presente um benfeitor prévio, este deve ser o primeiro a receber o benefício. Todavia, talvez, nem sempre seja assim. Nos resultados deste estudo, chama atenção que foram as crianças de 8 e 9 anos que mais consideraram a generosidade do ingrato. Em futuros estudos, seria interessante apresentarem-se dilemas que envolvam generosidade e gratidão a crianças de diferentes idades.

A amostra utilizada é uma das limitações deste estudo. A maioria dos participantes frequentava duas escolas públicas, sendo apenas quatro crianças de uma escola particular. Ainda que seja difícil, muitas vezes, a realização de pesquisas nestas instituições, em função de que, por exemplo, o pesquisador nem sempre tem acesso direto aos professores para explicar o seu projeto e convidá-los a participar com seus alunos do estudo, uma maior diversidade da amostra seria desejável, podendo-se escutar também crianças de escolas particulares.

Outra limitação é o próprio delineamento da pesquisa. Um estudo transversal é útil quando se examinam questões em um campo no qual não há muitas pesquisas. No entanto, há questões, como as apontadas anteriormente, que poderiam ser melhor respondidas por meio de um estudo longitudinal.

Apesar dessas limitações, acredita-se que este estudo seja uma contribuição importante para a psicologia moral, visto que examina o juízo moral de crianças de diferentes idades no domínio aretaico da moralidade (Lourenço, 2000). Conforme argumentou La Taille (2000), pesquisas nesse campo contribuem não apenas para ampliar nosso conhecimento sobre a moralidade humana, mas também podem trazer dados relevantes para a educação de crianças e adolescentes.

 

Referências

Baumgarten-Tramer, F. (1938). “Gratefulness" in children and young people. Journal of Genetic Psychology, 53, 53-66.

Becker, J. A., & Smenner, P. C. (1986). The spontaneous use of thank you by preschoolers as a function of sex, socioeconomic status, and listener status. Language in Society, 15(4), 537-545.         [ Links ]

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Endereço para contato
E-mail: lblf@ufrgs.br

Recebido em 17/10/2011
Aceito em 02/04/2012

 

 

Lia Beatriz de Lucca Freitas: Doutora em Psicologia pela USP, Professora Associada do Departamento de Psicologia do Desenvolvimento e da Personalidade e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Aline Zimmermann Mileski: Mestre em Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Jonathan Richard Henry Tudge: Doutor em Psicologia do Desenvolvimento pela Cornell University, Professor Titular do Department of Human Development and Family Studies, University of North Carolina at Greensboro.
1 Toda resposta ou a justificativa de um participante, citada literalmente, é seguida de: (a) o número da história; (b) sexo do participante e (c) dois números separados por ponto-e-vírgula, os quais representam a idade do participante em anos e meses. Assim, (H1, F, 6;5) significa: história 1, sexo feminino, 6 anos e 5 meses.