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Aletheia
versão impressa ISSN 1413-0394
Aletheia no.37 Canoas abr. 2012
ARTIGO INTERNACIONAL
Extravasamento trabalho-família: quando é que as condições de trabalho contribuem para práticas maternas abusivas?
Extravasation work-family: when working conditions contribute to maternal abusive practices?
Extravasación trabajo-familia: cuando las condiciones de trabajo contribuyen a prácticas maternas abusivas?
Maria Manuela Calheiros; Maria Luísa Lima; Carla Silva
Centro de Investigação e Intervenção Social (CIS), ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa
RESUMO
Na análise do equilíbrio trabalho-família, tem-se salientado o efeito de extravasamento (spillover). Neste estudo, realizado por entrevista semiestruturada a uma amostra de 102 mães portuguesas (incluindo 79 sinalizadas por mau trato e negligência), abordam-se os impactos da situação profissional das mães nas práticas parentais abusivas. Os resultados sugerem, como prevíamos, que a relação da situação profissional (estatuto e horas de trabalho) com a parentalidade abusiva não é directa, mas moderada por algumas variáveis psicossociais. Encontraram-se efeitos de extravasamento negativo para o mau trato materno em condições de fracos recursos pessoais percebidos e de insatisfação laboral; o extravasamento negativo para negligência materna ocorre apenas quando há pouco controlo percebido sobre a situação de trabalho ou atribuições internas de incapacidade. Por outro lado, o efeito de extravasamento pode ser positivo quando as mães atribuem os problemas laborais a factores externos (e.g., condições de trabalho).
Palavras-chave: Trabalho-família, Maternidade abusiva, Factores de bem-estar.
ABSTRACT
The analysis of work-family balance has highlighted the spillover effect. This study, implemented through semi-structured interviews with a sample of 102 Portuguese mothers (including 79 referred for maltreatment and neglect), addresses the impacts of the mother's professional situation on abusive parenting practices. The results suggest, as predicted, that the relationship between the professional situation (work status and work hours) and abusive parenting is not direct, but moderated by some psychosocial variables. We have found effects of negative spillover to maternal practices of maltreatment in conditions of perceived low personal resources and dissatisfaction with work; negative spillover to maternal practices of neglect occurs only when there is little perceived control over the work situation or internal attributions of inability. Moreover, the effect of spillover can be positive when mothers attribute the problems in the work domain to external factors (e.g., working conditions).
Keywords: Work-family, Abusive maternity, Wellness factors.
RESUMEN
El análisis del equilibrio entre trabajo y familia ha subrayado el efecto de extravasación (spillover). En este estudio, mediante entrevistas semi-estructuradas con una muestra de 102 madres portuguesas (79 de ellos marcados por el maltrato y la negligencia), se abordan los impactos de la situación profesional de las madres en las prácticas parentales abusivas. Los resultados sugieren, tal como se predijo, que la relación de la situación laboral (estatuto y horas de trabajo) con las practicas maternas abusivas no es directa pero moderada por algunas variables psicosociales. Hemos encontrado efectos de extravasación negativo para el maltrato materno en de condiciones de escasos recursos percibidos y de insatisfacción en el trabajo; el extravasación negativo para la negligencia materna ocurre sólo cuando hay poco control percibido sobre la situación de trabajo o atribuciones internas de incapacidad. Por otra parte, el efecto de extravasación puede ser positivo cuando las madres asignan los problemas en el trabajo a factores externos (por ejemplo, las condiciones de trabajo).
Palabras clave: Trabajo-familia, Maternidad abusiva, Factores de bien.
Introdução
As tendências sociais e ideológicas actuais sugerem que os assuntos trabalho-família se estão a tornar cada vez mais importantes neste novo milénio (Grzywacz & Marks, 2000). O aumento de práticas igualitárias em termos de género e das famílias em que ambos os pais trabalham trouxe novas responsabilidades e desafios aos pais no equilíbrio entre estas duas áreas da sua vida, com consequências na educação das crianças (Bronfenbrenner & Crouter, 1982). O emprego das mães é um veículo para obter recursos materiais e estatuto para a família, e contribui também para o seu bem-estar, para a autoestima e inserção social (Coley, Lohman, Votruba-Drzal, & Pittman, 2007), através do estímulo, auto-realização, aquisição de novas competências e relações sociais, fuga das actividades rotineiras, e compensação dos papéis familiares (Greenhaus & Powell, 2006). Por outro lado, o duplo papel de mãe e profissional, pelo investimento de tempo, energia e atenção ao trabalho, pode limitar o envolvimento na educação e actividades com as crianças (Matthwes, Bulger, & Barnes-Ferrel, 2010). Neste trabalho pretendese analisar os impactos da situação laboral das mães nas suas práticas parentais, e em particular nas práticas abusivas (mau trato e negligência).
Neste domínio, duas perspectivas gerais têm sido propostas para a análise da relação do trabalho com a família. Tradicionalmente, a investigação nesta área foi dominada pela perspectiva da tensão de papéis provocada pela interface trabalho-família (i.e., conflito trabalho-família; Barnett, 1996), postulando que as responsabilidades destes dois domínios competem pelo tempo, energia e recursos psicológicos limitados (Oomens, Geurts, & Scheepers, 2007), resultando numa variedade de consequências negativas em ambos os espaços (Parasuraman, Purohit, Godshalk, & Beutell, 1996). O pressuposto de que o stress nos papéis profissionais está relacionado com experiências de conflito trabalho-família (Matthews, Bulger, & Barnes-Ferrel, 2010) baseia-se na relação tensão-deformação prevalente em inúmeros modelos de stress, como o de Lazarus e Folkman (1984). Por outro lado, a partir da hipótese de extravasamento (spillover), um corpo paralelo de investigação sugere que a participação em múltiplos papéis providencia oportunidades e recursos (e.g., suporte social, autoestima) que podem ser usados para promover um melhor funcionamento noutros domínios de vida (Greenhaus & Powell, 2006; Wayne, Musisca, & Fleeson, 2004). Aplicada à relação trabalho-família, esta hipótese sugere que os estados psicológicos (positivos ou negativos) experienciados no trabalho afectam os estados psicológicos na família (Lambert, 1990; Matias & Fontaine, 2012).
Nos estudos sobre a relação trabalho-família tem sido extensivamente analisado o impacto do estatuto profissional das mães e do número de horas de trabalho na qualidade e na quantidade das interacções pais-filhos (e.g., Zubrick, Silbum, & Vimpani, 2000). Fokkema (2002) verificou que as mães que trabalham parecem estar menos angustiadas do que as mães que apenas tomam conta das crianças, sendo a forma como estas organizam o seu tempo de trabalho que determina a disponibilidade de tempo que têm para as crianças e não o facto de trabalharem ou não (Dockery, Li & Kendall, 2009). De facto, as mães que trabalham tendem a compensar a sua ausência na interacção directa e na quantidade de tempo que passam com as crianças, no tempo que têm disponível, dedicando menos tempo ao lazer e a outras actividades não relacionadas com a criança (Coley et al., 2007).
Não obstante, estas estratégias de conciliação de papéis, as horas que as mães dedicam ao trabalho estão significativamente e inversamente relacionadas com o tempo que passam com os filhos. Embora estudos recentes tenham sugerido que as mães que trabalham, especialmente as que trabalham mais horas, têm maior probabilidade de envolver os filhos entre os 6 e os 11 anos em actividades extracurriculares, compensando assim os efeitos negativos associados às longas horas de trabalho materno (Han, 2006), quando o número de horas excede o trabalho a tempo inteiro, outros efeitos negativos na família têm sido observados. Por exemplo, as mães de bebés que trabalham mais de 40 horas por semana são mais ansiosas e insatisfeitas, e têm interacções menos positivas com os filhos (Owen & Cox, 1988).
Na maioria dos estudos psicológicos efectuados neste domínio, existe o pressuposto de que o stress nos papéis profissionais está relacionado com experiências de conflito trabalho-família (Matthews et al., 2010), no entanto, cada vez mais se considera que o impacto das situações de trabalho está dependente da atribuição de significado, sendo os padrões e estratégias de actuação consequência destas avaliações. Esta atribuição de significado baseia-se na avaliação dos recursos disponíveis e das exigências que lhe são feitas (Voydanoff, 2004). Uma particular atenção tem sido dada a estes processos cognitivos, e mais recentemente ao efeito que estas avaliações possam ter sobre a parentalidade (Greenberger & O`Neil, 1993; Matias & Fontaine, 2012; Repetti, 1994).
Porém, pouco se sabe ainda sobre como é que as diferentes características e recursos dos dois contextos modelam a experiência trabalho-família (Barnett, 1996) em mães com poucos recursos, sabendo-se ainda muito menos no que diz respeito a famílias maltratantes. Particularmente, há poucos estudos sobre a influência das variáveis do trabalho em mães cuja maternidade é abusiva.
Na literatura sobre mau trato é referido que níveis elevados de desemprego paterno estão associados à ocorrência de maus tratos às crianças (Sidebotham & Heron, 2006). Contudo, os dados em relação às mães têm sido menos claros (Gillham et al., 1998) apesar de, mais recentemente, Sidebotham e Heron (2006) terem verificado que o emprego materno exercia um ligeiro efeito protector em relação à probabilidade de situações de maus tratos. No entanto, Coley et al. (2007) realçaram que a passagem de mães com baixos rendimentos e que são dependentes de apoios financeiros da segurança social para um sistema de emprego estável afecta o seu bem-estar e o ambiente familiar que proporcionam às crianças. De facto, advogavam que essas mães, perante a perda dos apoios, e com poucas competências ou oportunidades para adquirir e manter um emprego estável, iriam perder estabilidade financeira e experienciar mais stress, prejudicando-se assim o ambiente familiar e a parentalidade. Neste sentido, é objectivo deste estudo testar a hipótese de extravasamento na relação entre o trabalho e a maternidade em mães abusivas e conhecer quais as características e recursos do contexto de trabalho que modelam a experiência trabalho-família.
Satisfação, recursos e atribuições causais na situação de trabalho
A investigação nesta área tem-se movido do estudo sobre a mera ocupação para a natureza das experiências das pessoas nos seus papéis sociais (Greenberger & O`Neil, 1993). Desta forma, para além das variáveis de estatuto profissional e tempo dedicado aos papéis (trabalho e parentalidade), dois aspectos da qualidade do papel ganharam relevância: a satisfação com o mesmo e os recursos disponíveis. A suportar esta ideia, a revisão de literatura realizada por Hoffman (1989) mostrou que a satisfação das mães com o emprego está positivamente relacionada com a qualidade da interacção mãe-filho, e com os vários índices de ajustamento e capacidades da criança. Mostrou também que os recursos do trabalho são as variáveis com correlações mais fortes das consequências positivas do trabalho para a família. São também interessantes os resultados obtidos por Greenberger e Goldberg (1989) e por Silverberg e Steinberg (1990), que apontam para correlações baixas entre o envolvimento no papel profissional e o investimento no papel parental. Um estudo recente mostra que os indivíduos mais satisfeitos no trabalho relatam também maior facilitação trabalho-família (Boyar & Mosley, 2007). Tomados em conjunto, estes resultados sugerem que o nível de satisfação com o trabalho fora de casa é um moderador crucial dos efeitos do trabalho na parentalidade e que, em geral, as hipóteses sobre o aumento de recursos, em vez da sua escassez, em mães empregadas, têm vindo a aumentar ao longo do tempo (Greenberger & O`Neil, 1993).
O significado positivo da situação de trabalho parece proporcionar protecção em relação ao conflito trabalho-família (Byron, 2005) também através da percepção de controlo que os indivíduos têm sobre a situação. Boyar e Mosley (2007) constataram que o locus de controlo apresenta relações significativas quer com o conflito, quer com a facilitação trabalho-família. Outros trabalhos salientam que quanto mais baixa é a pressão e maior o controlo no trabalho, menor é o extravasamento negativo do trabalho para a família (e.g., Grzywacz & Marks, 2000; Oomens et al., 2007). Os indivíduos com um locus de controlo interno (i.e., que creem poder influenciar os seus resultados) tendem a trabalhar mais e melhor a fim de utilizarem melhor os recursos de cada um dos domínios. Pelo contrário, baixos níveis de decisão e de controlo estão associados a menos consequências positivas do trabalho para a família.
O enquadramento descrito anteriormente sobre os processos de trabalho e stress, embora sugira diferentes caminhos de influência, converge em predições similares. Os resultados de autores que analisam o estatuto de trabalho por si (e.g., Goldberg & Easterbrooks, 1988; Greenberger & Goldberg, 1989) sugerem que o trabalho materno tem efeitos positivos na família e na parentalidade, sobretudo se as mães avaliarem estar satisfeitas, sentirem que têm controlo sobre a situação (Boyar & Mosley, 2007) e dispuserem de recursos para enfrentarem os problemas de relação trabalho-família (e.g., Grzywacz & Marks, 2000; Silverberg & Steinberg, 1990).
Modelo a testar
O modelo que se pretende testar neste estudo orienta-se na perspectiva psicológica do stress e iremos analisar os factores cognitivos ao nível da avaliação de significado (satisfação, recursos, atribuições) e a importância que possam ter como mecanismos explicativos das relações entre a situação profissional (estatuto e horas de trabalho) e a parentalidade abusiva, através da hipótese de extravasamento.
O estudo centra-se sobre as mães, uma vez que a investigação tem mostrado que apresentam níveis mais elevados de stress familiar e de carga de trabalho em casa (e.g., Fontaine et al., 2009). A maioria dos estudos que ligam o trabalho materno aos efeitos na criança tratam a variável trabalho em termos muito simples (i.e., empregados-desempregados, e trabalho em tempo parcial ou tempo inteiro) (e.g., Hoffman, 1989). Tais categorizações não diferenciam o significado psicológico que o trabalho pode ter, nem as suas diferentes implicações na parentalidade foram avaliadas. Assim, e na tentativa de contribuir para colmatar estas limitações na investigação, o presente estudo visa abordar os mecanismos subjacentes aos diferentes estatutos de emprego (desemprego, domésticas ou empregadas) e à participação das mães no trabalho e na família (tempo dedicado ao trabalho) controlando variáveis socioeconómicas e educacionais da mãe. Assim, o nível socioeconómico da família e escolaridade da mãe foram introduzidos na primeira etapa de cada equação como covariáveis.
O modelo apresentado na Figura 1 orienta este estudo, que analisa os efeitos da avaliação cognitiva, mais concretamente da avaliação primária face à situação do trabalho, das atribuições e dos recursos das mães sobre a situação profissional, enquanto factores moderadores dos efeitos do contexto profissional (situação perante o trabalho – estatuto de empregada, doméstica e desempregada – e horas de trabalho) sobre a parentalidade abusiva.
Com base na literatura, espera-se que os efeitos de extravasamento do contexto profissional (situação perante o trabalho e horas de trabalho) sejam maiores ao nível do mau trato e negligência quando as mães se avaliam mais insatisfeitas com o trabalho, com menos recursos e com menos controlo sobre a situação de trabalho.
Método
Participantes
Participaram neste estudo 102 mães de crianças que frequentam escolas públicas, de Lisboa. Os critérios que presidiram à selecção das participantes incluíram o tipo de práticas abusivas e um conjunto de variáveis sociodemográficas.
O primeiro critério tomado em consideração foi o tipo de mau trato e negligência perpetrado pela mãe. Embora a totalidade da amostra constitua um grupo único no tratamento dos dados, para a selecção das participantes tivemos em consideração quatro grupos a partir das duas dimensões (mau trato e negligência) do Questionário de Avaliação do Mau Trato e da Negligencia Parental (Calheiros, 2006), como adiante se explicitará. Porque pretendemos ter uma amostra heterogénea no tipo e gravidade de mau trato e negligência (mau trato – mau trato alto e negligência baixa; negligência – negligência alta e mau trato baixo; controlo – mau trato baixo e negligência baixa) e na sua co-ocorrência (mau trato alto e negligência alta), os participantes foram incluídos nos grupos de mau trato e negligência a partir dos resultados obtidos nestas duas dimensões, tendo em consideração o primeiro e último quartil (Tabela 1). A presente investigação inclui assim, 79 mães de crianças maltratadas e negligenciadas, sinalizadas às Comissões de Protecção de Crianças e Jovens em Risco (CPCJ's), e 23 mães não sinalizadas, que compõem o grupo sem mau trato e negligência (grupo controlo). O grupo de famílias sem abuso foi seleccionado aleatoriamente nas mesmas escolas e turmas das crianças dos grupos de mau trato e negligência. Para tal, foi previamente elaborada uma lista de crianças controlando o nível socioeconómico das famílias e confirmando-se que não estavam sinalizadas, com base nos processos escolares. Após esta selecção, a professora respondia ao "Questionário de Avaliação do Mau Trato e Negligência" (Calheiros, 2006).
Como pretendemos ter uma amostra homogénea do ponto de vista das variáveis sociodemográficas, emparelhámos as participantes nos diferentes grupos, tendo em consideração a idade da criança, a duração da situação (cronicidade do mau trato e negligência), a situação profissional e escolaridade da mãe e o tempo de residência.
Os resultados da Tabela 1 evidenciam a similaridade das variáveis nos diferentes grupos, à excepção da variável escolaridade da mãe que apresenta diferenças significativas entre o grupo de mau trato e o grupo sem mau trato e negligencia e os dois restantes, sendo os níveis mais baixos nos últimos. O teste para analisar se os grupos se diferenciavam em função da situação profissional das mães (trabalharem ou não) (χ2 = 2.15, p= .54) não indica diferenças nos grupos. Os agregados maternos são constituídos por famílias monoparentais (N= 19, 18.6%), nucleares (N=61, 59.8%) e reconstituídas (N= 22, 21.6%). As crianças, de sexo masculino (N=59, 57.8%) e feminino (N=43; 42.2%), têm idades entre os 6 e 12 anos, sendo 30 de seis e sete anos (29.4%), 23 de oito e nove anos (22.5%) e 49 de dez, onze e doze anos (48%).
O estatuto de trabalho foi avaliado em função da situação das participantes perante o trabalho. Assim, as mães que constituíam a amostra foram distribuídas por três grupos: empregadas (n=53, 52.0%) desempregadas (n=24, 23.5%) e domésticas (n=25, 24.5%). Foi ainda avaliado o "número de horas de trabalho semanal" da mãe: não trabalha (n=48, 47.1%); trabalha 8 a 35h (n=18, 17.6%); trabalha 36 a 40h (n=20, 19.6%); trabalha mais de 42h (n=16, 15.7%).
Procedimento
As mães foram convocadas pelas instituições (Instituto de Reinserção Social e CPCJ's) no caso das participantes com sinalização, e pelas escolas no grupo não sinalizado) para participação num estudo sobre educação na grande zona de Lisboa.
Para evitar enviesamentos devidos ao questionamento de um único informante, este estudo utilizou múltiplas fontes para a recolha dos dados (mães, professores e técnicos). Os dados de avaliação do mau trato e negligência e da violência doméstica foram recolhidos pelos técnicos das instituições referidas e professores através do preenchimento do "Questionário de Avaliação do Mau Trato e Negligência" a partir dos processos individuais da criança. A recolha dos dados com as mães e as crianças foi realizada presencialmente, através da aplicação de questionários aplicados pela investigadora principal.
Os instrumentos para avaliação com as mães foram construídos em duas versões: para mães com escolaridade e sem escolaridade. A parte que corresponde aos questionários com respostas fechadas, no caso das mães sem escolaridade, era apresentada pela investigadora com o auxílio de material de apoio com as respectivas escalas de resposta.
Instrumentos
Mau trato e negligência. O Questionário de Avaliação do Mau Trato e Negligência (Calheiros, 2006) é um instrumento construído para ser preenchido por técnicos ou educadores, e inclui 18 itens, cada um com quatro descritores de gravidade diferente numa escala de 0 a 4. Os itens que são assinalados como nunca tendo ocorrido, como "desconhecidos" ou suspeitos, mas não confirmados, são cotados com zero (0). Os itens cujos descritores estejam presentes são cotados pelo nível de gravidade superior apresentado. Assim, cada item pode ser cotado numa escala de 4 pontos (0 na situação de todos os indicadores ausentes, 1 na situação do primeiro nível de gravidade, 2, 3, 4, consoante a gravidade dos indicadores).
No estudo de desenvolvimento e validação do questionário foi encontrada uma estrutura factorial de segunda ordem organizada em duas dimensões de parentalidade abusiva – Negligência e Mau Trato. A dimensão denominada "Negligência" é definida por omissões parentais como a falta de provisão em relação às necessidades básicas da criança, falta de supervisão nos cuidados de segurança física, acompanhamento e estimulação e negligência educacional em relação às áreas de acompanhamento escolar e em relação às necessidades de desenvolvimento (α= .67). A dimensão de "Mau Trato", reúne todas as acções de violência física e mau trato psicológico em relação à criança. Os indicadores finais utilizados são a média dos itens que constituem cada uma das escalas.
Nível socioeconómico da família – Utilizaram-se cinco itens (escolaridade, profissão, rendimento, habitação e bairro de residência) para a construção de um indicador de nível socioeconómico (alfa de Cronbach=.81). Níveis elevados nesta variável correspondem a um estatuto socioeconómico alto.
Contexto profissional – O contexto profissional foi avaliado através da situação de trabalho (exerce uma profissão, está desempregada ou é doméstica) e do número de horas de trabalho semanal.
Satisfação com o estatuto de trabalho. Esta dimensão foi avaliada através da média de 3 itens: "satisfação geral com o estatuto de trabalho", "satisfação geral com os efeitos do estatuto do trabalho na sua função das mães" e "satisfação geral com os recursos que disponibilizavam para enfrentar as situações que não corriam bem", avaliadas cada uma através de uma escala de 1 (Muito insatisfeita) a 5 (Muito satisfeita) .
Recursos. A avaliação da percepção das mães acerca dos recursos disponíveis para lidarem com a sua situação profissional foi feita através da questão: "Até que ponto considera que tem meios para enfrentar as situações que não correm bem no seu emprego/na sua situação de desemprego/no seu trabalho doméstico?", formulada numa escala de 1 (nenhuns) a 5 (muitíssimos).
Atribuições causais sobre a situação profissional. Após caracterização da situação das mães em relação ao trabalho (trabalho, desemprego e doméstica), foi formulado um conjunto de 10 questões (avaliadas numa escala de 1=nada a 5= muitíssimo) sobre as causas da insatisfação com a situação actual. Todas as questões, independentemente do tipo de situações a que se referiam, foram elaboradas com base nas dimensões de "locus" e "controlo" adaptadas à situação avaliada. A análise factorial em componentes principais resultou em dois factores com uma variância total explicada de 51.7%. O primeiro factor, cujo alpha de Cronbach (α= .75) explica 30% da variância, agrega itens que descrevem "causas internas", como a falta de interesse, esforço e experiência . O segundo factor, com uma consistência interna (α= .71), refere-se à dimensão de "causas externas" (maneira de ser dos outros, dificuldades da tarefa, condições gerais de emprego, etc.) e explica 21.6% da variância. Os indicadores finais correspondem à média dos itens de cada factor.
Relações entre as variáveis
A Tabela 2 apresenta as correlações das variáveis de trabalho e práticas maternas com as variáveis moderadoras, as médias e os desvio-padrões das variáveis de avaliação cognitiva, atribuições e estratégias comportamentais.
As médias obtidas mostram que as mães apresentam um nível médio de satisfação com a sua situação profissional (M=3.25), que avaliam como baixos os seus recursos disponíveis (M=2.88) e que fazem poucas atribuições tanto internas como externas à sua situação de trabalho.
O estatuto social destas mães está fortemente ligado às variáveis consideradas. Assim, podemos ver que as práticas maternas de negligência (mas não as de mau-trato) estão associadas ao nível sócio económico da amostra: são as mães menos escolarizadas e de estatuto sócio económico mais baixo que mais apresentam práticas negligentes . Por outro lado, o estatuto social está claramente associado ao significado atribuído aos factores do trabalho. De facto, os resultados indicam que quanto maior é o nível socioeconómico e educacional, maior é a satisfação com a situação profissional e os recursos percebidos. Por sua vez, o significado atribuído à situação profissional também tem associações importantes com esta avaliação: a atribuição interna das dificuldades na situação do trabalho está associada a menor satisfação e avaliação de recursos (r=-.25 e -.26 respectivamente), enquanto que as atribuições externas estão associadas a uma melhor avaliação destes recursos (r=.51 e .44). É ainda importante salientar que, nesta amostra, as horas de trabalho estão positivamente associadas à satisfação laboral (r=.55) e aos recursos (r=.41).
Relativamente às questões do extravasamento trabalho-família, os dados do nosso estudo não suportam a ideia de uma associação directa entre as variáveis do contexto de trabalho e as práticas maternas. Os resultados indicam que as práticas maternas abusivas não estão associadas às variáveis de trabalho – "estatuto" (F(2,101)= .62, p=.53; F(2,101)= 3.08, p=.06, mau trato e negligência, respectivamente) e "horas de trabalho" (respectivamente, r=.11 e .19, n.s.). No entanto, o nível de satisfação com o estatuto laboral e a avaliação dos recursos apresentam um padrão de relações mais consistente com o mau trato e a negligência. De uma forma geral, os resultados parecem indicar não só que as mães desempregadas (M=1.79) e domésticas (M=3.24) avaliam a sua situação como mais negativa (F(2,101)= 41.92, p=.000) do que as mães empregadas (M=3.93), e com menos recursos e controlo (F(2,101)= 11.97, p=.000; Mempregadas=3.26, Mdesempregadas=2.08), como parecem ser estas avaliações que são determinantes das práticas maternas abusivas. De facto as correlações da tabela 2 mostram que o mau-trato e a negligência têm associações positivas com a satisfação laboral e a avaliação de recursos e principalmente com as atribuições internas aos insucessos profissionais.
O efeito moderador da satisfação na ligação entre o contexto de trabalho e as práticas maternas abusivas
Os resultados das análises que testam o efeito de moderação da avaliação primária são apresentados na Tabela 3. Estes resultados ilustram o impacto já referido do estatuto socioeconómico nas práticas negligentes.
Os dados revelam dois efeitos de interacção nas práticas de mau trato1. A análise de cada termo de interacção mostra que a satisfação interage com o estatuto de trabalho (F incremento (1,96) = 8.33, p= .001) e com as horas de trabalho, (F incremento (1,96) = 6.62, p= .01), e acrescentam 7% e 6%, respectivamente, da variância das práticas maternas de mau trato. As análises realizadas posteriormente com o grupo das mães insatisfeitas com a sua situação profissional mostram que são as mães empregadas as que mais maltratam os filhos ((F(2,24) =2.28, p=.132), e que o mau-trato aumenta à medida que o número de horas despendido no papel profissional aumenta (r(25)= .39, p=.05). No entanto, nas mães satisfeitas, não parece haver diferenças na gravidade e frequência do mau trato em função do estatuto (F(2,44)=.37, p=.68), e tempo dedicado ao trabalho (r(45)= -.10, p=.46).
As mesmas análises foram conduzidas para a predição das práticas de negligência, mas os termos de interacção não foram significativos em nenhuma das equações.
Deste modo, os resultados parecem indicar que é só quando as mães estão insatisfeitas com a sua situação profissional que as variáveis do contexto de trabalho se associam a práticas de maus tratos.
O efeito moderador da avaliação de recursos na ligação entre o contexto de trabalho e as práticas maternas abusivas
Quando se toma a variável "avaliação de recursos" como moderadora do estatuto e horas de trabalho, observa-se unicamente um efeito de interacção nas práticas de mau trato. Os resultados apresentados na Tabela 4 mostram que a avaliação dos recursos interage com o estatuto de trabalho (F incremento (1,96)= 4.47, p= .02), e prediz 4% da variância das práticas maternas de mau trato.
A análise de variância realizada posteriormente a este teste indica que as mães domésticas sem recursos (F(2,33)= 2.71, p=.08), são aquelas que tendencialmente recorrem mais a este tipo de práticas (média das mães donas de casa = 2.33; média das mães empregadas = 1.96). Nas mães com recursos não existem diferenças na gravidade e frequência do mau trato em função do estatuto de trabalho (F(2,28)= .09, p=.91). Uma vez mais, as práticas de negligência não se encontram associadas a nenhum efeito de interação significativo.
Deste modo, os resultados parecem indicar que é só quando as mães acham que têm poucos recursos para responder às exigências laborais que se verifica extravasamento das variáveis do contexto de trabalho às práticas de maus tratos.
O efeito moderador das atribuições sobre o trabalho na ligação entre o contexto de trabalho e as práticas maternas abusivas
Os resultados das análises que envolvem as atribuições das mães relativamente à sua situação de trabalho revelam efeitos principais das causas internas, que explicam 13% da variância do mau trato, quando entram na equação com o estatuto e horas de trabalho, e 8% da variância da negligência quando entram na equação com o estatuto de trabalho (Tabela 5).
A atribuição de causas internas (falta de esforço, interesse e experiência na área profissional) às dificuldades laborais, aparece, tal como vimos na tabela 2, associado quer ao mau-trato como à negligência. Quer isto dizer que quanto menos investimento existe na área do trabalho, mais problemas relacionais da mãe com a criança.
Não se observa qualquer efeito de interacção destas variáveis no factor de mau trato. Pelo contrário, observam-se três efeitos de interacção na negligência. O efeito (estatuto de trabalho x causas externas) (F incremento (1,96)= 4.91, p= .029) prediz 3% da variância das práticas maternas de negligência, indicando que as mães que não atribuem externamente a sua situação profissional (F(2,25)= 2.84, p= .09) não apresentam diferenças na gravidade da negligência no teste post-hoc, contrastando com as mães com elevadas atribuições externas (F(2,20)= 11.56, p= .001) em que são as mães desempregadas (M=2.24) e domésticas (M=2.18) que mais negligenciam os filhos, quando comparadas com as empregadas (M=.61). Assim, o estatuto profissional extravasa para práticas negligentes apenas quando há atribuições externas das dificuldades laborais.
O efeito de interacção (horas de trabalho x causas externas)3 (F incremento (1,96)= 3.19, p= .07) prediz 2% da variância das práticas maternas de negligência, e indica que a negligência às crianças diminui nas famílias em que as mães estão empregadas à medida que as horas de trabalho aumentam, mas apenas quando as mães atribuem causas externas à sua situação profissional (r(21) = -.58, p= 006); quando isso não acontece, a relação entre horas de trabalho e negligência não assume qualquer significado (r(26) = .32, p= .10). O último efeito de interacção entre horas de trabalho e causas internas, explica 2% da negligência (F incremento (1,96)= 3.15, p= .07), indicando que as mães mais envolvidas no trabalho, uma vez que atribuem a sua situação profissional à experiência, capacidade e esforço (atribuições internas baixas), à medida que o número de horas despendido no papel profissional aumenta, tornam-se mais negligentes (r(19)= .45, p= .05). Nas mães menos envolvidas na carreira profissional (atribuições internas elevadas de falta de esforço e experiência elevadas) não apresentam diferenças na negligência em função do tempo gasto no trabalho (r(19)= -.14, p=.56). Deste modo, os resultados indicam que o menor tempo de trabalho das mães empregadas se associa a práticas maternas negligentes, apenas quando o envolvimento com o trabalho é baixo e as mães veem a sua situação determinada por factores externos.
Resumo dos resultados
Sumariando as análises de moderação que predizem mudanças nas práticas maternas em função da sua situação de trabalho, um conjunto de resultados aparece como relevante. De uma forma geral, as variáveis relativas ao trabalho da mãe – estatuto e horas de trabalho – não parecem ser preditores directos das práticas maternas de mau trato e negligência. Contudo, os resultados relativos às variáveis de satisfação e de recursos, que predizem uma proporção de variância razoável das práticas abusivas, salientam a importância que estas têm na parentalidade, quer através dos efeitos de moderação, quer através dos efeitos directos.
Relativamente às práticas maternas de mau trato foram encontrados três efeitos de moderação: dois da satisfação com o estatuto e horas de trabalho, e um dos recursos com o estatuto, e ainda efeitos directos das atribuições internas. Estes resultados sugerem que as mães que trabalham fora de casa e dedicam mais tempo ao trabalho, quando insatisfeitas com a situação, são mais vulneráveis às práticas de mau trato. Por outro lado, são também as mães domésticas com fracos recursos, e as que investem pouco na área do trabalho que parecem ser também mais vulneráveis a este tipo de práticas.
O padrão de relações entre o trabalho das mães e as práticas negligentes é bem diferente do anterior. Não só a situação socioeconómica baixa da família parece ser um factor determinante da negligência, como após o controlo desta variável, os efeitos observados revelam que não é a satisfação das mães que explicam a relação com os filhos, mas sim as atribuições de controlo na resposta aos problemas. As atribuições relacionadas com um elevado interesse, esforço e experiência na área do trabalho contribuem para que, com o aumento de horas de trabalho, as mães se tornem mais negligentes. Pelo contrário, as mães que não investem na sua situação profissional, negligenciam menos os filhos à medida que o tempo dedicado ao trabalho aumenta. Por outro lado, quando se considera o estatuto de trabalho das mães que pensam que as causas da sua situação profissional estão fora do seu controlo, são as mães que não trabalham que são mais negligentes com os filhos.
Discussão
A questão que motivou as análises que acabam de se relatar foi a de saber se seria possível explicar as práticas maternas abusivas através dos contextos de trabalho da mãe, a partir de uma hipótese geral – a de extravasamento – em que as circunstâncias do sub-sistema de trabalho se transferem para o sub-sistema de relação pais-filhos. A literatura mostra que o estatuto económico e profissional e as horas de trabalho das mães são factores que interferem nos processos de parentalidade (e.g., Hoffman, 1989), pelo que importa explorar em que situações e vivências de trabalho as funções maternas se tornam mais ou menos vulneráveis. Para isso analisou-se a avaliação da satisfação e dos recursos maternos (pessoais, sociais e comunitários) disponíveis para enfrentar as questões relacionadas com o estatuto de trabalho (e.g., Greenberger & O`Neil, 1993).
De uma forma geral pode dizer-se que, se para algumas variáveis o padrão de resultados obtidos é bastante semelhante, a especificidade da parentalidade abusiva torna mais difícil enquadrar na literatura recenseada algumas das conclusões a que se chegou. Em primeiro lugar, e contrariamente às referências clássicas da literatura que descrevem os efeitos directos do estatuto de trabalho e do tempo dedicado ao trabalho nas interacções pais-filhos, os resultados indicam um processo mais complexo de relações destas variáveis com a parentalidade. Consonantes com o modelo proposto, os resultados indicam que as variáveis de trabalho materno interferem na parentalidade abusiva, mas somente em determinadas condições que variam em função da avaliação da satisfação, dos recursos e das atribuições causais maternas sobre a situação de trabalho. Quer isto dizer que as práticas abusivas estão associadas ao desemprego materno e ao número excessivo de horas de trabalho, mas não de forma directa, como sugerido pela maior parte da literatura referida (Hoffman, 1989). Por outro lado, os resultados estão largamente de acordo com as propostas mais recentes de um conjunto de autores (e.g., Barnett, 1996; Greenberger & O`Neil, 1993; Grzywacz & Marks, 2000), que têm vindo a mostrar, com populações sem risco, que os efeitos do trabalho na parentalidade estão relacionados com a satisfação, percepção de recursos e de controlo sobre a situação.
Em suma, os resultados mostram, então, que o mau trato, a par das explicações maternas de falta de capacidade, investimento e experiência, parece estar mais relacionado com o desemprego materno e o número excessivo de horas de trabalho da mãe quando estas avaliam, no primeiro caso, não ter recursos suficientes para enfrentarem os problemas, e no segundo caso, quando avaliam estar insatisfeitas com a situação profissional. A negligência aparece também relacionada com o desemprego materno e o número excessivo de horas de trabalho da mãe, mas, no primeiro caso, associado à falta de controlo sobre a situação para enfrentar os problemas e, no segundo caso, quando avalia como causas principais da situação o investimento e a experiência profissional para manter o estatuto de trabalho. Por outro lado, o tempo dedicado ao trabalho parece aumentar o investimento parental, mas apenas nas situações em que as mães não atribuem a si próprias os problemas de trabalho com que se deparam.
Enquadrados na literatura, estes resultados parecem confirmar o papel da falta de recursos e da insatisfação com o trabalho como particularmente disruptivo nas relações mãe-filhos como defende Hoffman (1989), embora, o baixo nível de controlo apareça associado a resultados na negligência que parecem mais difíceis de enquadrar na literatura recenseada. Pois, enquanto Grzywacz e Marks (2000) refere que o baixo nível de controlo está associado a mais consequências negativas do trabalho na família, os resultados aqui obtidos não confirmam este extravasamento negativo nas mães que trabalham, mas sim nas domésticas e desempregadas. De forma consistente com a mesma revisão de literatura, o autor salienta que, quanto mais baixa é a pressão e maior o controlo no trabalho, menor é o extravasamento negativo do trabalho para a família (e.g., Grzywacz & Marks, 2000).
Contudo, os nossos resultados indicam que as mães, mesmo com controlo, face a pressão elevada (horas de trabalho) aumentam a frequência e gravidade da negligência. Por sua vez, a hipótese de que os pais com baixo envolvimento no papel profissional estão mais investidos no papel parental, não confirmada no estudo de Silverberg e Steinberg (1990), também não é confirmada no nosso modelo com mães negligentes, uma vez que estas, apesar das horas de trabalho, desde que não se considerem cognitivamente envolvidas (fazem atribuições externas) parecem aumentar o investimento na parentalidade. Tomados em conjunto, estes dois últimos resultados sugerem que o nível de orientação das mães negligentes para o trabalho fora de casa pode ser um moderador crucial dos efeitos do trabalho na parentalidade, embora seja necessário distinguir os aspectos funcionais (horas de trabalho) dos aspectos motivacionais. As mães com elevado envolvimento funcional e motivacional parecem negligenciar mais os filhos do que as mães com um envolvimento funcional elevado, mas que não estão emocionalmente envolvidas no trabalho.
Os resultados foram obtidos num contexto cultural particular (o Português), embora haja sinais de que é um tópico de crescente interesse também no Brasil (e.g., Faria & Rachid, 2007). A investigação neste domínio tem mostrado que o stress familiar é um importante preditor do extravasamento trabalho família tanto em Portugal como no Brasil, mas que pode revestir contornos diferentes nas duas culturas (Fontaine et al., 2009), pelo que as diferenças culturais deverão ser analisadas.
O padrão de resultados que emergiu também dá suporte à perspectiva ecológica da interface trabalho-família. Consistente com os modelos ecológicos e de stress, os resultados obtidos confirmam que factores pessoais, da situação de trabalho e da família influenciam o extravasamento da área profissional para a parentalidade.
Implicações
Tomados em conjunto, os resultados deste estudo, embora definam processos mais complexos do que os observados na investigação desenvolvida com amostras de mães sem risco, sugerem que o nível de orientação, recursos e satisfação com a situação profissional são moderadores cruciais dos efeitos do trabalho na parentalidade e que, em geral, as hipóteses sobre os efeitos positivos do aumento de recursos, em vez da sua escassez, são uma área importante na intervenção comunitária com famílias abusivas.
O foco nas percepções das mães sobre os diferentes contextos socioecológicos, profissionais e familiares deve ser particularmente importante nas políticas de intervenção com a pobreza, a família e a educação, no sentido de mover as famílias do desemprego e rendimento mínimo, da dependência e dos contextos da violência, para o trabalho, a autonomia e bem-estar. Tendo como objectivo diminuir o extravasamento negativo do trabalho (desemprego/pressão do trabalho) para a família e vice-versa, e destes para a parentalidade, deverão ser pensados programas comunitários que promovam a inserção profissional, associados à implementação de relações sociais de suporte (em comunidades com infantários, por exemplo), com horários flexíveis, focalizados na redução da pressão, construindo meios profissionais, familiares e comunitários que possam beneficiar as mães nas diferentes esferas de vida. A disponibilidade de serviços sociais, de saúde e educativos na comunidade, assim como o suporte social informal, são cruciais quando as experiências de vida negativas passadas e presentes são tão características nestas famílias.
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Endereço para contato
E-mail: maria.calheiros@iscte.pt
Recebido em julho de 2012
Aceito em novembro de 2012
Maria Manuela Calheiros – Centro de Investigação e Intervenção Social (CIS), ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa.
Maria Luísa Lima – Centro de Investigação e Intervenção Social (CIS), ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa.
Carla Silva – Centro de Investigação e Intervenção Social (CIS), ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa.
1 Uma vez a correlação elevada entre a variável estatuto e horas de trabalho (r= .78) e encontrados os efeitos de interacção de cada uma destas variáveis com a satisfação, confirmámos se os resultados destas interacções (apresentados na Tabela 3) se mantinham após controlo de cada uma das interacções. Os resultados obtidos indicam que somente a interacção estatuto de trabalho e satisfação se mantêm após este controlo (F(1,97)=10.38, p=.002).
2 Embora a análise de variância apenas mostre diferenças tendenciais entre os grupos de estatuto profissional diferente, a correlação encontrada entre estatuto profissional e mau trato nas situações de insatisfação, (r (25)=.41, p=.04) é indicadora de que são as mães empregadas que mais maltratam os filhos.
3 Este efeito de interacção mantém-se tendencialmente significativo F (1,97)= 3.08, p= .08, mesmo controlando o efeito de interacção anterior.