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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.38-39 Canoas dez. 2012

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

Oficinas terapêuticas em um Centro de Atenção Psicossocial – álcool e drogas

 

Therapeutic workshops in a Psychosocial Care Center – alcohol and other drugs

 

 

Luiz Gustavo Silva Souza; Luciene Bittencourt PinheiroI

Universidade Federal do Espírito Santo

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RESUMO

São descritas Oficinas Terapêuticas conduzidas por psicólogos em um Centro de Atenção Psicossocial – álcool e drogas, direcionadas a adultos de ambos os sexos, usuários de álcool e/ou outras drogas. Seus objetivos principais eram proporcionar espaços de expressão, construção e transformação subjetiva. Aborda-se especialmente um encontro de uma "Oficina de Poesia". Como metodologia, a Oficina incluiu: leitura de uma poesia junto com os usuários, apreensão de seus significados, abertura de espaços de expressão nos quais os usuários, indagados pelos psicólogos, relacionavam as palavras e versos lidos a suas experiências de vida. Sete usuários participaram do encontro relatado. Falaram sobre experiências diversas: usar droga para poder se expressar; sentir-se solitário; sentir-se insatisfeito consigo mesmo; sentir a necessidade do apoio da família e dos profissionais do CAPSad. As falas dos usuários foram pontuadas por intervenções dos psicólogos. A discussão ressalta que as Oficinas são condizentes com diretrizes clínicas e políticas da Reforma Psiquiátrica.

Palavras-chave: Droga (dependência), Redução de danos, Centro de atenção psicossocial.


ABSTRACT

This paper describes workshops conducted by psychologists towards drug dependent patients in a Brazilian Psychosocial Care Center. The workshops had the main objectives of fostering patients' expression, subjective construction and subjective change. We specially describe one session of a "Poetry Workshop". In this session, patients and psychologists read a poem together. The psychologists asked the patients to speak about the images and meanings of the poem and to link these images and meanings to their experiences of life. Seven patients participated in the session. They talked about various experiences: the need to use drugs to allow expression; the feelings of being lonely and of having low self-esteem; the need to search for support from the family and from the professionals of the Center. These participations allowed the psychologists to perform insight-oriented interventions. The discussion highlights that the workshops embody important political and clinical guidelines of the Brazilian Psychiatric Reform.

Keywords: Drug dependency, Harm reduction, Psychosocial care center.


 

 

Introdução

No Brasil, as políticas e práticas de atenção à saúde mental passaram por consideráveis transformações nas últimas quatro décadas. A Reforma Psiquiátrica Brasileira é vista como processo social complexo, do qual participam diversos atores (profissionais, usuários, serviços, conselhos, etc.), envolvidos na construção de formas acolhedoras, não asilares, de lidar com a diferença, com a loucura, com o sofrimento mental. A Reforma implica o funcionamento de serviços substitutivos ao manicômio, dentre os quais se destaca o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). O CAPS é tido como serviço estratégico e central, responsável pelo atendimento diário de uma parcela dos usuários e pela organização dos outros pontos da rede de saúde mental. Para os problemas com uso de álcool e outras drogas, o serviço de referência é o CAPSad, Centro de Atenção Psicossocial – álcool e drogas (Amarante, 2008).

No modelo asilar, o tratamento é feito essencialmente pelo médico. Intervenções grupais, como as Oficinas Terapêuticas, ficam em lugar secundário, de mera ocupação do tempo. Com a Reforma Psiquiátrica, as Oficinas ganharam destaque, voltando seu foco para a expressão subjetiva, reintegração social, produção de autonomia e de cidadania (Guerra, 2004). Ao mesmo tempo, estudos têm enfatizado a importância da atuação dos profissionais de psicologia nos serviços de saúde pública, especialmente as intervenções grupais, embora haja evidências de que essa atuação seja ainda subaproveitada (Rutsatz & Câmara, 2006).

A "Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas" (Brasil, 2004) adota como referencial técnico-político a noção ampliada de redução de danos. Essa "lógica" implica reconhecer o uso de drogas como fenômeno humano e propor a redução de riscos e danos possivelmente causados por esse uso sem condicionar o tratamento à obtenção prévia ou final da abstinência.

Para essa abordagem, a abstinência é apenas mais uma forma de reduzir os danos. A noção ampliada a que se fez referência implica não só diminuição do consumo da droga ou adoção de medidas protetoras no que diz respeito ao funcionamento biofisiológico. Pressupõe também determinantes psicossociais e a participação ativa do usuário na reflexão sobre suas experiências e transformação de seu estilo de vida. A lógica da redução de danos convoca à diminuição da estigmatização dos usuários de drogas e a promoção de sua participação ativa na construção do autocuidado, da assistência e das políticas de saúde (Andrade & Friedman, 2006; Brasil, 2004).

A referida "Política para Atenção Integral" enfatiza a responsabilidade do sistema de saúde público brasileiro de oferecer uma rede de alternativas para o acolhimento e tratamento de pessoas com problemas com álcool e outras drogas. Afirma a importância do CAPSad e de seu papel de atender a uma parte da demanda e de coordenar o cuidado em outros pontos da rede. Preconiza a territorialização da assistência e a parceria estreita com serviços de Atenção Básica. Como exemplos de estratégias do CAPSad, menciona os atendimentos individuais, de grupo, as visitas domiciliares e as Oficinas Terapêuticas (Brasil, 2004).

No estudo de Moura e Santos (2011), os usuários de CAPSad entrevistados percebiam as Oficinas Terapêuticas como espaços de convivência que poderiam promover o sentimento positivo de pertencimento a um grupo. Descreveram as Oficinas como meios de expressão, de troca, de aprendizado (inclusive sobre redução de danos) e de construção de novas formas de ser. Os autores caracterizam as Oficinas como estratégias "propulsoras de mudanças subjetivas, que produzem efeitos narrativos determinados, embora imprevisíveis" (p.130).

A importância dos atendimentos de grupo certamente não é reconhecida apenas no Brasil. Johnson, Gibbons & Crits-Christoph (2011) afirmam que o "aconselhamento de grupo" é o mais importante recurso terapêutico nos serviços comunitários nos Estados Unidos (EUA). Autores fazem referência a tratamentos de dependência do álcool e da cocaína com grupos de orientação cognitivo-comportamental, grupos de aconselhamento, grupos para treinamento de técnicas de autoajuda. Esses atendimentos são tipicamente estruturados, com temas e número de sessões pré-definidos (Greenfield, Trucco, McHugh, Lincoln, Gallop, 2006; Johnson et al. 2011).

Esses exemplos da literatura internacional mostram a preocupação com variáveis específicas nos atendimentos de grupo: gênero, etnia, comportamentos dos participantes no grupo (níveis de autorrevelação, de empatia, de uso da palavra, de aconselhamento dos outros participantes, etc.) (Johnson et al. 2011). Greenfield et al. (2006) verificaram que, em comparação com grupos estruturados mistos, atendimentos de grupo estruturados específicos para mulheres apresentaram indícios de maior eficácia: maior satisfação com a intervenção e maiores níveis de redução de consumo de drogas no acompanhamento seis meses pós-intervenção.

A literatura brasileira parece distante dessas preocupações específicas. Cordeiro, Oliveira e Souza (2012) observaram um aumento da produção científica nacional sobre os CAPS a partir de 2001, com a aprovação da Lei da Reforma Psiquiátrica Brasileira (Lei 10.216/2001). Entretanto, artigos sobre intervenções grupais em CAPSad continuam escassos. Este artigo pretende contribuir para o enriquecimento dessa literatura. Trata-se de um relato de experiência profissional construída junto a usuários de um CAPSad na forma de Oficinas Terapêuticas. Será especialmente descrito um encontro da "Oficina de Poesia" para ilustrar métodos e resultados obtidos com as Oficinas em geral e para embasar reflexões sobre sua pertinência em relação às propostas de redução de danos (Andrade & Friedman, 2006; Brasil, 2004) e clínica ampliada (Campos, 2003).

"Um encontro de sete faces"

O referido CAPSad localizava-se em um município do sudeste brasileiro com cerca de 330 mil habitantes. O projeto terapêutico de cada usuário poderia prever sua frequência a uma ou a várias Oficinas Terapêuticas. As Oficinas descritas aqui eram conduzidas por psicólogos (solo ou em dupla), direcionadas a adultos, de ambos os sexos, usuários de álcool e/ou outras drogas, sem haver restrição quanto à escolaridade. Disponibilizavam quinze vagas e podiam acolher novos participantes a cada encontro. Eram realizadas quatro vezes por semana, com duas horas de duração por encontro, utilizando-se de diversos tipos de materiais como mediadores e disparadores: jornais, vídeos, folderes e obras de artistas consagrados da pintura e da literatura. Este artigo abordará especialmente um encontro da "Oficina de Poesia" que utilizou, como disparador, um trabalho de Carlos Drummond de Andrade. A discussão trará reflexões sobre características e potencialidades desse dispositivo terapêutico.

O encontro da Oficina de Poesia foi conduzido por uma psicóloga e um psicólogo, com apoio de uma estagiária de letras. Foi realizado ao redor de uma mesa que ocupava o centro do pátio interno do CAPSad. Contou com sete participantes ao todo, cinco homens e duas mulheres, com diagnósticos de transtornos relacionados a álcool e/ou cocaína/crack. As idades variavam de 32 a 58 anos. O tempo de tratamento era diverso, indo de alguns dias a até 11 anos. Um deles participava pela primeira vez da Oficina. Os participantes tinham baixa escolaridade, cinco estavam desempregados, um era comerciante e outro, aposentado.

Para começar, os psicólogos falaram brevemente sobre objetivos e métodos da Oficina, apresentando-a aos novatos e reafirmando a proposta aos já participantes. Lembraram aspectos do contrato coletivo, referente ao horário inicial e final e à dinâmica de funcionamento. Afirmaram que se tratava de um grupo terapêutico e que o objetivo principal era proporcionar um espaço de expressão para os participantes. Dessa forma, todos poderiam falar de suas ideias, dúvidas e dos desafios que vinham encontrando para repensar sua relação com as drogas. A poesia foi apresentada como manifestação artística que poderia inspirar, surpreender e desconcertar, abrindo possibilidades de novas reflexões sobre temas diversos. A partir dela, seria possível conversar sobre relacionamentos amorosos e familiares, amizade, trabalho, saúde, arte, religiosidade, cultura, drogas, etc., temas que emergem da existência humana e que fazem parte do cotidiano de todos.

Em seguida, fez-se a proposta para o encontro em questão: debater uma poesia de Carlos Drummond de Andrade. O autor e o conjunto de sua obra foram brevemente apresentados. Em seguida, abordou-se o trabalho escolhido, o "Poema de sete faces" (o belo texto de Drummond pode ser apreciado no livro "Alguma poesia"). Um dos psicólogos fez uma leitura em voz alta e o grupo teve o primeiro contato com o texto. Nesse momento, já surgiram comentários sobre palavras ou versos.

Em uma etapa seguinte, pediu-se aos participantes que fizessem uma "leitura circular" da poesia: cada um leu um ou dois versos e passou o livro adiante. As leituras repetidas constituíam um esforço de apropriação crescente do texto. Os participantes eram solicitados a prestar atenção à impostação da voz e a tentar declamar com ritmo e cuidado, sentindo o impacto de cada palavra. Apenas um dos participantes não pôde fazer a leitura circular, por ser analfabeto. Isso não inviabilizou sua participação nas reflexões sobre o texto e não gerou desconforto a ele ou ao grupo.

Um dos psicólogos fez mais uma leitura em voz alta, mas, dessa vez, parando a cada verso, questionando os sentidos das palavras e frases, levantando dúvidas sobre a poesia. Perguntou-se, por exemplo, o que os usuários entendiam por "anjo torto que vive na sombra" e por "ser gauche na vida". Tentou-se aproximar a poesia do universo léxico, semântico e imagético dos participantes, destacando a polissemia das palavras. Os participantes fizeram ricas associações dos elementos dos textos com experiências que viveram e com representações que construíam sobre o mundo, sobre si e sobre o outro. Muitas vezes, a fala de um participante encontrou ressonância em outros membros do grupo.

A etapa de "aquecimento" (informações sobre o autor, primeira leitura, leitura circular, contextualização das palavras) era seguida pela etapa de "análise", na qual os psicólogos questionavam diretamente cada um dos participantes sobre como aquelas palavras e reflexões se relacionavam com suas questões existenciais e com seu momento de vida atual. A intenção era que cada um pudesse se apropriar de um espaço para a fala: garantir seu direito a ter um ponto de vista, uma opinião, uma análise. Esse espaço se prestava à construção de lugares subjetivos, mesmo com as possíveis dificuldades. Pediase que cada participante destacasse uma parte da poesia ou das discussões já efetuadas, associando-a a suas opiniões, crenças e comportamentos, momento privilegiado para conhecer o participante (sua situação psicossocial, seu funcionamento psicodinâmico) e para realizar intervenções. A seguir, destacam-se falas de quatro participantes (com nomes fictícios). Entre chaves, descrevem-se algumas intervenções feitas pelos psicólogos e algumas informações que as embasaram:

Daniel (32 anos, usuário de cocaína):

"Percebi no poema um camarada com um conflito interior, talvez ele não fosse feliz, ele era mais calado, talvez ele quisesse ter mais amigos, sair, aproveitar os prazeres da carne, talvez não aguentasse mais tanto peso e fardo. Ele queria pôr tudo pra fora. Por isso, bebia conhaque."

{Os psicólogos sublinharam a importância de "colocar tudo pra fora", o que parecia ser uma questão central para Daniel, novato no grupo, e reafirmaram a Oficina como espaço de expressão}

Márcio (55 anos, usuário de crack):

"O personagem do poema está num baixo astral, se comparando com o diabo." [Queixou-se de sua própria solidão e de ser abandonado pela família. Ao comentar o texto, afirmou que] "a solidão pode levar a pessoa à depressão, a um problema mental. Eu mesmo estou me sentindo assim, porque eu estou me isolando muito. Eu tô numa paranoia danada... Preciso terminar o que começo". {Márcio já estava em tratamento havia anos e já tinha feito reflexões sobre como ele próprio também produzia seu sofrimento. Entretanto, parecia não passar da fala à ação. Esse também poderia ser o sentido de "terminar o que começa". Os psicólogos questionaram: "ter uma noção do que acontece com a própria vida não pode fazer diferença? O uso da droga não está boicotando o tratamento? Não seria à hora de tentar uma abstinência"? (naquele momento, a abstinência parecia ser uma condição para reconstruir suas relações familiares)}

Bruna (35 anos, usuária de crack):

"O poema mostra uma insatisfação pessoal dele com ele mesmo, por ele estar insatisfeito consigo mesmo, ele recorre ao conhaque. O coração é vasto porque está vazio". {Psicólogos: por que ele está insatisfeito consigo mesmo?}. "Introspecção e timidez, ele tem que tentar alguma coisa, superar a timidez. Não ter medo demais nem coragem demais".

Roberta (45 anos, usuária de álcool):

"Acho que ele está se escondendo atrás da barba. Ele tem que ser mais otimista, se expressar mais, dialogar mais com os outros". [Em seguida, comentou sua própria necessidade de] "falar de seus problemas com os outros", [afirmou que procurava a bebida para alcançar esse objetivo e que considerava o CAPSad como] "uma família". "Eu sinto bem aqui, para soltar, para conversar com as pessoas. É um paraíso. Tomei uma atitude [entrar em tratamento] e minha família está apoiando". {Psicólogos: como é a relação com essas "famílias" (a família e o CAPSad)? Será que se poderia realmente esperar que fosse um "paraíso", como tinha dito?}

Não é preciso ser acadêmico ou erudito para apreciar poesia. Os participantes da Oficina o demonstraram. Suas análises dos textos às vezes surpreendiam. Ao longo do encontro, imaginaram os elementos do poema, "um coração vasto", "um homem atrás do bigode", conferiram sentidos a esses elementos, interpretaram o texto, o personagem e suas motivações. Com isso, efetivamente "aproveitaram" a poesia, a polissemia dos versos, a multiplicidade de interpretações que os recobriam, exercitando sensibilidade às emoções transmitidas. Não foi o caso do encontro relatado, mas, em várias ocasiões, os participantes eram solicitados a produzir suas próprias poesias. Afirmavam-se assim como criadores de novos discursos, movimento semelhante à reconstrução de novas formas de vida.

Os "textos" que os participantes produziram ao interpretar a poesia, suas falas, também se prestavam a múltiplas interpretações. Ao mesmo tempo em que falavam do poema, falavam também de sua realidade psicossocial, da cidade (da sociedade), da família, dos vizinhos, das drogas, do CAPSad e da própria Oficina. Evidentemente, também falavam de si. Daniel se mostrava como o "camarada fechado" que "precisa pôr tudo pra fora", que ele mesmo citou ao comentar a poesia. Bruna, ao mencionar a importância de "não ter medo demais nem coragem demais" falava das dificuldades que enfrentava no processo de construir formas de existência não centradas na droga: não ter medo demais, para tentar outras formas de vida, não ter coragem demais, para não se iludir com os resultados iniciais do tratamento. Roberta mencionou sua necessidade (compulsiva) de falar e a relação de dependência idealizada que estabelecia com seus "familiares". Expressar-se sobre si mesmo pode ser difícil. Uma das vantagens estratégicas das Oficinas é proporcionar essas formas indiretas (mediadas por objetos, textos, etc.) de falar de si.

Considera-se, portanto, que o discurso produzido pelos usuários nas Oficinas terapêuticas se refere também às suas formas de ser, a seus investimentos afetivos, a seu funcionamento psicodinâmico, às suas fantasias inconscientes. É importante destacar que as interpretações feitas acima são algumas dentre as infinitas possíveis. Elas foram formuladas não por um suposto valor de verdade, mas sim por sua conexão com o contexto psicossocial e com o caso clínico e por sua utilidade terapêutica. Elas adquiriam valor e legitimidade na relação de confiança que se estabelecia com os psicólogos e com o grupo.

"Duas faces do instrumento, clínica e política"

A psicanálise serve como referencial teórico para as intervenções descritas, trabalhos de "inspiração psicanalítica" no sentido abordado por Figueiredo (2002). Ferreira Neto (2008) lembra da importância histórica da psicanálise e de sua influência na Reforma Sanitária Brasileira. Para Guerra (2004) a psicanálise pode contribuir para a consecução dos objetivos da Reforma Psiquiátrica, desde que não ceda às tentações do purismo, da exclusividade ou da hegemonia.

Obviamente, não se pretende psicanalisar os participantes das Oficinas. Entretanto, a aplicação de uma escuta psicanalítica pode se mostrar útil para a clínica psicológica a ser estabelecida no CAPSad, uma escuta atenta à polissemia do discurso e aos investimentos afetivos. Com a criação de vínculos transferenciais, questionam-se permanentemente as formas de relação que os usuários constroem com os psicólogos, com as Oficinas e com o CAPSad. A partir desses vínculos, simultaneamente obstáculos e motores do processo, as falas são escutadas e produzem-se interpretações (Freud, 1925/1987; Reis & Moraes, 2008). Interpretar não significa descrever ou explicar. "Trata-se de um esforço de poesia, pois, como no modo poético de enunciação, não está em questão na interpretação o verdadeiro e o falso, já que ela é sempre verdadeira" (Holck, 2008, p.23).

Pode-se dizer que o psicólogo, o oficineiro, é um "acompanhante", cujo objetivo é assessorar os usuários na redução de danos, na construção de formas de vida não centradas no objeto-droga. Espera-se produzir um deslocamento do objeto-droga, possibilitando a construção de outros sujeitos (Pereira, 2008). Cabe lembrar que as dificuldades podem ser muitas. Frequentemente, os vínculos são precários. A entrada, saída ou retorno de cada participante às Oficinas expressam características de seus laços com o CAPSad e com os profissionais; expressam também peculiaridades do momento de tratamento de cada um e de sua situação de vida, incluindo uso de drogas, possíveis recaídas ou internações.

Nas Oficinas, buscava-se exercitar uma clínica ampliada, conceituada por Campos (2003) como prática de cuidado atenta à dialética entre sujeito e doença. A clínica ampliada não desconsidera os padrões da "doença" (no caso, a toxicomania), mas também não perde de vista a singularidade de cada usuário e, sobretudo, não reduz o sujeito à doença como entidade abstrata. A clínica é uma forma de promoção de autonomia e de cidadania, na medida em que o sujeito e o grupo podem se apropriar ativamente de sua história, que é sempre também sociopolítica, reconhecendo-se como cocriadores dela.

É possível retomar falas do encontro relatado para exemplificar essa "abertura temática" própria à clínica ampliada. Os participantes trataram de experiências diversas: usar droga para poder se expressar ("ele queria pôr tudo pra fora"); sentir-se solitário ("a solidão pode levar a pessoa à depressão"); sentir-se insatisfeito consigo mesmo ("ele tem que tentar alguma coisa"); sentir a necessidade de falar e de contar com o apoio da família e dos profissionais do CAPSad ("dialogar mais com os outros"). As intervenções dos psicólogos buscaram fazer com que os usuários prestassem atenção a seu próprio discurso, que se comprometessem com ele, que o repensassem, reposicionando-se frente a seus desejos e dificuldades.

O CAPSad trabalha com a lógica de redução de danos. Os usuários não são internados, mas estabelecem uma frequência regular ao Centro. A abstinência não é um pressuposto para o tratamento. A lógica de redução de danos envolve não somente a diminuição dos prejuízos físicos causados pelo uso crônico de drogas, mas também a redução dos prejuízos sociais e psicológicos (Brasil, 2004). Com as Oficinas, realizava-se um convite para que os usuários participassem ativamente de seu tratamento. O objetivo principal não era fazer com que o participante parasse de usar drogas, mas sim promover reflexões sobre como cada um lidava com sua saúde e com sua vida, propondo corresponsabilidade na construção de práticas diferenciadas de cuidado de si. Estar ou não abstinente é uma condição que pode mudar de um minuto a outro. Mais do que a preocupação com essa condição, a lógica de redução de danos convoca a promover corresponsabilização e transformações subjetivas. Diferentemente dos estudos internacionais citados (Greenfield et al. 2006; Johnson et al. 2011), as Oficinas descritas se afirmam como possibilidades de atendimento não estruturado, adaptadas à lógica de "atenção diária" que organiza o CAPSad (Brasil, 2004).

Os objetivos das Oficinas Terapêuticas, das quais se pôde ver um exemplo no relato da Oficina de Poesia, podem ser esquematizados como se segue: a) proporcionar um espaço de expressão sobre os mais diversos temas: relações amorosas, amizades, trabalho, sexualidade, família, lazer, cultura, saúde, etc., um espaço que não esteja centrado exclusivamente no tema "droga", mas sim aberto à pluralidade da vida cotidiana; b) possibilitar intervenções psicológicas, partindo da criação de vínculo (entre os participantes e entre eles e os profissionais), partindo da produção artística e do discurso dos sujeitos; c) acompanhar a evolução dos casos clínicos, verificando que sentidos os usuários atribuem ao seu próprio tratamento e ao CAPSad; d) proporcionar a busca de sentido existencial e de satisfação por meio da relação com um grupo, com a cultura e com as artes, fornecendo alternativas ao recurso às drogas para obtenção "solipsista" de prazer. Em suma: as Oficinas eram espaços de relação com o prazer, de expressão, de reflexão e de acompanhamento.

Estudos têm enfatizado a importância dos trabalhos grupais em psicologia e a corresponsabilização dos sujeitos em direção à modificação de estilos de vida (Rutsatz & Câmara 2006). É preciso buscar as potencialidades específicas do grupo como forma de intervenção em saúde. Nas Oficinas, um participante acolhia a fala do outro, concordando, discordando, relatando experiências parecidas, etc. Estar em grupo permitia aliviar a ansiedade, comum entre os usuários, de falar e produzir estando sozinho frente ao profissional. Apreciar obras de arte em grupo pode favorecer a adesão ao tratamento.

O trabalho em Oficinas, ler ou produzir textos, por exemplo, não é terapêutico em si. O que pode ser ou não terapêutico são as relações estabelecidas por meio da Oficina (Almeida, Moraes, Barroso, Barros & Sampaio, 2004). Os CAPS também não são terapêuticos em si. Não basta juntar os usuários em uma nova estrutura, pensada como alternativa sociopolítica ao manicômio, para que os problemas se resolvam. É preciso estar atento para não repetir velhas relações asilares nos serviços substitutivos (Amarante, 2008).

Ella (2005) lembra que, nos "tempos heroicos da desospitalização", quando os profissionais e movimentos sociais batalhavam para afirmar os CAPS como novo modelo de atenção em saúde mental, a palavra "clínica" se tornou "palavra maldita", pois encarnava "os riscos da medicalização e da patologização" (p.58). Entretanto, segundo o autor, passados os primeiros momentos, verificou-se que não bastava prescrever inclusão e cidadania. Ele afirma que "[...] a doença mental existe como positividade fenomênica e estrutural, que não é mero resultado de processos político-sociais de exclusão" (Ella, 2005, p.58). Ou seja, para tratar, os profissionais tiveram (ou estão tendo) que resgatar a clínica. As Oficinas Terapêuticas são possíveis estratégias para esse resgate: não basta "ocupar" os usuários no espaço inclusivo do CAPSad. É preciso garantir que seu discurso seja ouvido e "questionado".

Para resumir a argumentação desenvolvida aqui, pode-se dizer que a Oficina não é terapêutica em si (importância das relações); que o CAPS não é terapêutico em si (importância da clínica); que a clínica deve ser ampliada (não reduzir o sujeito ao toxicômano); que as Oficinas permitem tratar com base na lógica de redução de danos e na forma de atenção diária (próprias ao CAPSad); que elas favorecem a expressão dos usuários e buscam promover autonomia, cidadania e novas relações (não asilares) entre sujeitos, grupos e a polis, sendo portanto instrumentos clínicos e políticos.

Inseridas em um CAPSad, as Oficinas relatadas seguiam seus preceitos, mas, nelas, buscava-se principalmente levantar diversos temas e os usuários podiam se posicionar de maneira diferente e divergente nos debates. Como em qualquer trabalho, as Oficinas comportavam limites. Os usuários muitas vezes não se sentiam à vontade para expor experiências e sentimentos para o grupo, o que levava à necessidade de manter alternativas de atendimento individual. Dificuldades emergiam quando os vínculos eram frágeis, quando não havia confiança nos profissionais, nos demais participantes ou em si mesmo. O tratamento certamente não era unívoco e simples. O tempo e a escolha de cada um poderiam variar. A participação na Oficina contemplava alguns usuários, mas não era a única opção para todos. Este relato também possui inúmeros limites: entre outros, descreveu apenas algumas falas de um tipo específico de Oficina e não contemplou a história pregressa de tratamento de cada usuário. Dentro desses limites, buscou ilustrar o uso de Oficinas Terapêuticas como instrumentos de intervenção psicológica, relacionando-as a princípios teóricos e metodológicos.

Conclui-se que as Oficinas podem ser bons dispositivos para a atuação de psicólogos em CAPSad, ao lado de outros tipos de intervenção como atividades de mobilização social, acompanhamento de familiares, grupos informativos, acompanhamento de atividades de vida diária e atendimentos individuais, contribuindo para atingir os objetivos gerais de prevenção de internações e de suicídio, de redução de danos e de reabilitação psicossocial.

 

Referências

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Endereço para contato
E-mail: luizsouza@hotmail.com

Recebido em outubro de 2011
Aceito em abril de 2013

 

 

Luiz Gustavo Silva Souza: Psicólogo, Doutor em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGP-UFES). Endereço para correspondência: Universidade Federal do Espírito Santo, Cemuni VI. Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
Luciene Bittencourt Pinheiro: Psicóloga do Centro de Prevenção e Tratamento de Toxicômanos (CPTT, Vitória, ES), Psicóloga da Unidade de Saúde da Família de Maruípe (Vitória, ES), Especialista em Saúde Pública, Especialista em Saúde Mental, Graduanda em Letras – Português pela UFES.