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Aletheia
versão impressa ISSN 1413-0394
Aletheia no.40 Canoas abr. 2013
ARTIGOS EMPÍRICOS
O bebê imaginário e o bebê real no contexto da prematuridade: do nascimento ao 3º mês após a alta
The imaginary baby and the real premature baby: form birth to 3 months after discharge
Adriana Fleck; César Augusto Piccinini
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
RESUMO
No contexto da prematuridade, o confronto entre o bebê imaginário e o bebê real pode ser bastante intenso. O objetivo deste estudo foi investigar as representações sobre o bebê imaginário e o bebê real prematuro, no pós-parto, na pré-alta e no 3º mês após a alta. Participaram quatro mães primíparas de bebês nascidos pré-termos. As mães foram entrevistadas e foi realizada uma análise qualitativa das respostas. Os resultados revelaram a intensificação do confronto entre o bebê imaginário e o bebê real. A elaboração da perda do bebê imaginário e o fortalecimento do vínculo com o filho apareceram, principalmente, no 3º mês após a alta, quando as mães revelaram estarem satisfeitas e orgulhosas com as características e desenvolvimento dos filhos. Dada a complexidade da prematuridade é importante que profissionais da saúde estejam disponíveis para ajudar no vinculo mãe-bebê.
Palavras-chave: Prematuridade, Bebê imaginário e real.
ABSTRACT
In the context of prematurity, the confrontation between the imaginary baby and the real baby can be very intense. The aim of this study was to investigate the representations of the imaginary baby and real premature baby, in the post-childbirth, pre-discharge and 3 months after discharge period. The participants were four first-time mothers of preterm infants and a collective-case study of a longitudinal character was carried out. Mothers were interviewed and a qualitative content analysis was used. The results revealed an intense confrontation between the imaginary baby and the real baby. The elaboration of the loss of the imaginary baby and the streghtering of the bond with the baby appeared mainly 3 months after discharge. The mothers were happy and proud with the characteristics and development of their babies. Due to the complexity of prematurity it is important that health professionals are available to help in the development of mother-infant bond.
Keywords: Prematurity, Imaginary and real baby.
Introdução
O nascimento pré-termo caracteriza-se pelo parto ocorrido até a 37ª semana gestacional (Araújo, 2003; Avery & Taeusch, 2003), sendo que os bebês podem ser de Baixo Peso (<2500g), Muito Baixo Peso (<1500g) e Extremo Baixo Peso (<1000g) (Stoll, 2004). O quadro clínico dos bebês nascidos pré-termo, principalmente aqueles de menor peso e idade gestacional, é caracterizado por uma imaturidade física que pode resultar em graves complicações clínicas (Araújo, 2003). Desta forma, o nascimento pré-termo está, muitas vezes, relacionado à situação de separação da mãe e do filho após o parto, à hospitalização e aos cuidados intensivos ao bebê (Brazelton & Cramer, 1992; Cramer, 1987; Klaus, Kennel & Klaus, 2000; Lebovici, 1987). Por isso, a importância de se compreender profundamente a experiência emocional destas mães diante do contato inicial com seus bebês pré-termos.
O bebê imaginário e o bebê real se referem às fantasias, as impressões e os sentimentos maternos em relação ao filho durante a gestação e após o nascimento (Lebovici, 1987). Conforme Lebovici (1987), essas representações maternas são constituídas na gestação e transformadas a partir do nascimento do bebê, do contato com as características reais deste e da relação da mãe com seu filho.
O bebê imaginário é descrito por Lebovici (1987) como resultado das referências verbais da mãe, durante a gestação, sobre o desejo de ter um filho e o desejo da maternidade. Essas representações podem ser intensificadas com o decorrer da gestação, através dos movimentos do feto, da imaginação do sexo e do aspecto do bebê e da própria função materna. Já na gestação, muitas mães começam a atribuir características ao filho, tais como sexo, aparência e personalidade a partir dos ritmos e reações do bebê no útero (Raphael-leff, 1997).
Esse reconhecimento do filho na gestação é capaz de despertar ansiedades em muitas mães (Soifer, 1980). Ao se prepararem para a chegada do filho e definirem um espaço para ele em suas vidas, elas podem ficar ansiosas e temer que ele nasça com algum problema (Lebovici, 1987). Essa ambivalência ocorre, pois, o bebê é para a mãe desconhecido e protegido ao mesmo tempo, gerando uma sensação de completude e ansiedade (Lebovici, 1987). Ainda em relação às representações maternas sobre o bebê durante a gestação, Bernardi, Tenenbaun e Detey (2005) salientam a importância de serem múltiplas e mutantes, e proporcionarem diferentes possibilidades para a criança que está por nascer. Por este motivo, essas representações comumente se alternam e são distintas, complementares e até antagônicas.
A importância de compreendê-las vem da sua influência no comportamento dos pais frente ao filho e da sua potencial interferência no desenvolvimento infantil (Stern, 1995). A interferência das representações pré-natais na interação das mães com os filhos foi revelado no estudo de Thun-Hohenstein, Wienerroither, Schreuer, Seim e Wienerroither (2008) com 73 mulheres austríacas. Os resultados revelaram que as representações pré-natais sobre o bebê foram preditoras da habilidade regulatória da mãe e do comportamento de interação com o filho, no terceiro mês após o parto, especialmente durante a interação face a face.
Além da importância das representações maternas para o comportamento materno, Bernardi et al., (2005) salientam que a existência de representações maternas múltiplas, móveis e alternadas, possibilita diversas alternativas para a criança real desde a gestação. Assim, as representações frente ao bebê imaginário podem constituir um espaço na mente da mãe capaz de conter as manifestações autônomas do filho e prepará-la para o inesperado e estranho, ou seja, para a chegada do bebê real (Bernardi et al., 2005).
O bebê real é o bebê fruto do nascimento o qual confronta o bebê imaginário e se torna, num primeiro momento, uma cópia por vezes decepcionante deste por ser desconhecido e estranho (Lebovici, 1987). Piccinini, Gomes, Moreira e Lopes (2004) apresentaram diversos relatos maternos sobre o bebê, já na gestação com destaque para os movimentos e as características do feto, principalmente no terceiro trimestre, o que contribuiria para a transição entre o bebê imaginário e o bebê real.
Após o nascimento e o contato da mãe com o filho recém-nascido, é importante que ela consiga elaborar a perda do bebê imaginário e investir precocemente na relação com o bebe real (Lebovici, 1987; Soulé, 1987). Geralmente, esse investimento ocorre de forma natural, ou seja, há um gradual vínculo com o bebê real e um desinvestimento no bebê imaginário e perfeito (Brazelton & Cramer, 1989). Porém, para que isso aconteça, é necessário que a mãe projete alguns aspectos do bebê imaginário no bebê real, modificando pouco a pouco as representações sobre o bebê imaginário de acordo com as características do recém-nascido (Lebovici, 1987). Esta reestruturação psíquica se faz fundamental para a interação mãe-bebê (Ferrari, Piccinini & Lopes, 2007; Lebovici, 1987). Para Soulé (1987), esse processo de elaboração pode ser observado mais claramente nos primeiros meses após o nascimento e pode ser facilitado ou não pela saúde da criança, pelo contato e interação mãe-bebê após o nascimento, e pelas condições gestacionais e de parto.
Se ocorrer bem, a elaboração frente à perda do bebê imaginário permite que a mãe abra caminho em sua vida mental para o novo bebê, sendo capaz de introduzir nele seus desejos, esperanças e sentimentos (Lebovici, 1987). No entanto, este processo inicial pode sofrer a interferência de diversos fatores, como por exemplo, o nascimento pré-termo e a hospitalização do recém-nascido. Sendo assim, é importante a investigação das representações maternas sobre o bebê imaginário e o bebê real no contexto da prematuridade.
O nascimento pré-termo é um contexto bastante complexo e intenso para as mães que se deparam com um bebê pequeno, pálido, fraco, frágil e imaturo, comumente diferente do bebê imaginário (Brazelton & Cramer, 1992). Em decorrência da prematuridade, algumas peculiaridades em relação às representações maternas sobre o bebê imaginário e o bebê real são apontadas pela literatura. Mathelin (1999), por exemplo, aponta a dificuldade das mães de bebês nascidos pré-termo descreverem com detalhes e com profundidade a interação com o filho imaginário como resultado da privação dos últimos meses de gestação (Mathelin, 1999). O parto prematuro ocorre no momento em que comumente a mãe já está sentindo intensamente o filho em seu ventre (Mathelin, 1999; Wirth, 2000).
Conforme outros autores, o nascimento pré-termo pode gerar dificuldades no vínculo mãe-bebê, na idealização e no investimento emocional e afetivo no bebê real (Brazelton & Cramer, 1992; Klaus et al., 2000; Raphael-Leff, 1997). Além disso, é comum se observar a continuidade de uma relação estreita da mãe com o bebê imaginário mesmo após o nascimento (Brazelton & Cramer, 1992; Debray, 1988; Lebovici, 1987; Raphael-Leff, 1997; Tracey, 2002; Wirth, 2000). Junto a isso, a mãe de um bebê prematuro pode não conseguir reconhecer, inicialmente, o filho como seu devido ao quadro clínico e aos aparelhos ligados a ele (Harris, 2005; Lamy, Gomes & Carvalho, 1997; Morsch & Braga, 2007). Este bebê prematuro pode ainda representar para a mãe a não concretização do que era imaginado, sonhado e idealizado na gestação (Lamy et al., 1997; Wirth, 2000), gerando uma ferida narcísica (Brazelton & Cramer, 1989; Morsch & Braga, 2007).
Assim, o desequilíbrio entre o bebê imaginário e o bebê real pode ser mais intenso no contexto da prematuridade (Brazelton & Cramer, 1989). Esse desequilíbrio pode estar relacionado com o fato do parto antecipado interromper o processo de construção do bebê imaginário e colocar os pais em contato precoce com um bebê real fragilizado (Zornig, Morsch & Braga, 2004). Ao invés do sentimento de triunfo frente o nascimento do filho, o parto prematuro pode gerar na mãe uma sensação de fracasso, dificultando seu olhar narcísico para além do orgânico do filho (Zornig, et al., 2004).
A sensação de proximidade emocional em relação ao filho surge, muitas vezes, apenas com a ida para casa (Klaus & Kennel, 1993). A elaboração da perda do bebê imaginário e a aproximação do bebê real também ocorrem, frequentemente, nesse período (Zornig, et al., 2004). Possivelmente, isso se dá pelo alívio diante da sobrevivência do bebê o que permite um maior investimento afetivo na relação (Zornig, et al., 2004). Assim, diante do nascimento do bebê pré-termo, da fragilidade física e hospitalização do recém-nascido, a mãe precisa passar por um processo psíquico de elaboração da perda do bebê imaginário para vincular-se com o bebê real e adaptar-se às suas necessidades.
Considerando o exposto acima, este estudo teve como objetivo investigar as representações maternas sobre o bebê imaginário e o bebê real prematuro, no pós-parto, na pré-alta e no 3º mês após a alta hospitalar do bebê.
Método
Participaram deste estudo quatro mães de bebês nascidos pré-termo internados na Unidade de Tratamento Intensivo Neonatal (UTINeo) de três hospitais públicos de Porto Alegre. Elas eram primíparas, viviam com seus companheiros em união estável e eram de nível sócio econômico baixo e médio-baixo. Os bebês nasceram com Muito Baixo Peso (<1500g) e Extremo Baixo Peso (<1000g), mas estavam respondendo bem ao tratamento clínico e não apresentavam má formação ou outros problemas além da prematuridade. A Tabela 1 apresenta as características sociodemográficos das mães e informações sobre o bebê.
Todas as participantes faziam parte do projeto "Prematuridade e Parentalidade: Do nascimento aos 36 meses de vida da criança" – PREPAR (Lopes, et al., 2013) que tem por objetivo investigar a experiência da parentalidade no contexto da prematuridade e o desenvolvimento do bebê nascido pré-termo. Trata-se de um estudo longitudinal que iniciou acompanhando 90 mães/pais e seus filhos nascidos pré-termo, e envolve várias fases de coleta de dados: no 15º dia após o parto, na pré-alta e no 3º mês após a alta; e nos 12, 24 e 36 meses de vida da criança. Em cada uma das fases são realizadas entrevistas com a mãe e com o pai do bebê, além de avaliações no desenvolvimento do bebê, através da aplicação de diversos instrumentos. Para fins do presente estudo foram selecionadas as primeiras quatro mães acompanhadas pela primeira autora do presente estudo.
Foi utilizado um delineamento de estudo de caso coletivo (Stake, 1994), de caráter longitudinal, para investigar as representações maternas sobre o bebê imaginário e o bebê real prematuro, examinados no pós-parto, na pré-alta e no 3º mês após a alta hospitalar do bebê. Em particular, buscou-se compreender o confronto entre o bebê imaginário e o bebê real desde o nascimento até o 3º mês após a alta do bebê. Este delineamento permitiu uma compreensão profunda dos casos, incluindo as suas particularidades e semelhanças (Stake, 1994).
A coleta de dados ocorreu em três fases: no pós-parto, na pré-alta e no 3º mês após a alta. Aproximadamente 15 dias após o parto, as mães foram contatadas na UTI neonatal, convidadas a participarem do estudo e assinarem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Na Fase I (pós-parto), com base em informações contidas nos prontuários e em informações fornecidas pelas mães se preencheu a Ficha de dados sociodemográficos da família, a Ficha de dados clínicos gestacionais e a Ficha de dados clínicos do bebê pré-termo e da mãe, que tinha por objetivo retratar a situação socioeconômica da família, a história da gestação e a situação clínica dos bebês e das mães. Em outros dois encontros, foram realizadas a Entrevista sobre a Maternidade no Contexto da Prematuridade e a Entrevista sobre a Gestação e o Parto no Contexto da Prematuridade. Estas entrevistas buscaram investigar as impressões e os sentimentos das mães em relação à gestação e a maternidade. Na Fase II (pré-alta do bebê) e Fase III (3º mês após a alta hospitalar), preencheu-se novamente a Ficha de dados clínicos do bebê pré-termo e da mãe e foi realizada a Entrevista sobre a Maternidade no Contexto da Prematuridade, adaptadas para os dois momentos de coleta de dados.
O PREPAR, do qual este estudo/artigo faz parte atende aos requisitos éticos de acordo com Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde e foi aprovado pelos comitês de ética da UFRGS e dos três hospitais envolvidos. O projeto previa que as mães que necessitassem de atendimento psicológico seriam encaminhadas para o Serviço de Psicologia do hospital onde o bebê estava internado. Os nomes das mães e dos bebês, assim como demais informações que possibilitassem a identificação dos participantes, foram alterados.
Resultados e discussão
A análise de conteúdo qualitativa dos conteúdos manifestos e latentes dos relatos das mães (Gomes, 2007; Gomes, Piccinini & Prado, 2009) foi utilizada para investigar as representações maternas sobre o bebê imaginário e o bebê real prematuro, examinados no pós-parto, na pré-alta e no 3º mês após a alta hospitalar do bebê. Esta análise buscou compreender os conteúdos conscientes e pré-conscientes presentes nos relatos maternos associados ao bebê imaginário e ao bebê real prematuro. Todas as entrevistas foram gravadas digitalmente e posteriormente transcritas para a análise. Após isso, as entrevistas foram categorizadas com base em dois eixos temáticos principais: o bebê imaginário e o bebê real prematuro, os quais foram derivados da literatura e dos próprios dados.
No primeiro eixo foram incluídos os relatos da mãe associados ao bebê imaginário (Lebovici, 1987), investigado retrospectivamente durante a entrevista resultando em três categorias: Experiência física e emocional da gestação; Características do bebê na gestação; Maternidade na gestação. No segundo eixo temático foram incluídos os relatos das mães acerca do bebê real (Lebovici, 1987; Stern, 1995) e resultou em duas categorias: Experiência do parto e do nascimento pré-termo e Características do bebê real prematuro. Esta segunda categoria foi investigada longitudinalmente, no pós-parto, na pré-alta e no 3º mês após a alta do bebê. Para facilitar a compreensão, os resultados serão apresentados a seguir por eixos e categorias, juntamente com a discussão1.
O bebê imaginário
Experiência física e emocional da gestação
Esta categoria englobou os relatos maternos sobre a experiência física e emocional das mães durante a gestação. Verificou-se que as quatro mães do estudo pareceram minimizar os sintomas e problemas físicos importantes da gestação comumente relacionados ao nascimento pré-termo.
Ao descrever os sintomas de pré-eclâmpsia, Joana relatou:
O primeiro sinal (da pré-eclâmpsia) foi a dormência nas mãos. Eu achava que eu dormia por cima das mãos, mas eu dizia 'Eu sempre dormi desse mesmo jeito e eu nunca acordei assim, sem tato na ponta dos dedos'. Eu cravava a unhas e eu não sentia. Às vezes eu ficava o dia inteiro assim.
Além da confusão e da dificuldade para identificar os sintomas que resultaram no nascimento pré-termo. Isso pode estar relacionado à forte sensação de onipotência e completude resultante da gestação de um bebê (Lebovici,1987; Soifer, 1980).
Nos relatos de duas mães (Daniela e Raquel), a falta de cuidados com a saúde na gestação apareceu mais intensamente, pois elas tiveram infecção urinária grave e não receberam tratamentos adequados, mesmo sentindo dor e desconforto. Raquel, por exemplo, após semanas do aparecimento dos sintomas, buscou ajuda médica e foi internada para tratar a infecção urinária. No entanto, ela fugiu do hospital abandonando o tratamento: "Eu falei [para a médica] que eu não queria ficar internada. Daí eu peguei e fugi... Eu me sentia sozinha, me sentia abandonada dentro do hospital." (Raquel). Na semana seguinte após a fuga do hospital, ela entrou em trabalho de parto prematuro, do qual resultou o nascimento da filha.
Além dos problemas de saúde, mesmo com as diferenças entre os casos, percebeu-se que as quatro mães estavam, na gestação, envolvidas em situações de vida relatadas por elas como estressantes, referindo muita irritação, tristeza e angústia. Duas delas (Joana e Ana) relataram conflitos e sobrecarga no trabalho, enquanto as outras (Daniela e Raquel) referiam conflitos e brigas conjugais intensas. Dessa forma, as preocupações das quatro mães, durante a gestação, mostraram-se direcionadas a diversas questões profissionais, financeiras, familiares e conjugais, além do bebê e da maternidade. Joana, por exemplo, referiu ter sentido raiva, irritação e estresse no trabalho durante toda a gestação, a ponto de chegar em casa " chorando de raiva" e a " tremer de braba". Os conflitos conjugais e a sobrecarga emocional foram bastante descritos por Daniela, cujo companheiro era usuário de drogas:
Eu tinha que sair altas horas da noite pra encontrar ele. E a gente já brigava, porque ele chegava louco da cabeça. E eu que aguentava tudo! Não era fácil pra mim. Eu já tinha os meus problemas, mais os problemas dele.
Características do bebê na gestação
Nesta categoria foram incluídos os relatos das mães sobre as características físicas e emocionais dos filhos imaginadas na gestação, incluindo a sua aparência e o temperamento. Em relação ao filho na gestação, os relatos das quatro mães mostraram uma variabilidade de representações, conforme aponta a literatura (Bernardi et al., 2005). Essa diversificação de características e proteção em relação às expectativas sobre o filho na gestação apareceu claramente nas falas de Joana que, inicialmente, disse ter imaginado o filho parecido com o marido: "Eu dizia pra todo mundo, 'Não, ele (bebê) vai ser loirinho igualzinho o pai dele. Eu imagino ele uma criança comprida e loirinha'". Logo depois, ela referiu tê-lo imaginado com características suas: "Eu dizia assim: 'Ah, eu queria que ele (bebê) tivesse cabelo escurinho que nem o meu'".
Mesmo havendo diferenças entre os casos, as quatro mães pareceram idealizar o seu bebê da gestação, como descrito por diferentes autores (Lebovici, 1987; Soifer, 1980). Elas referiram ter imaginado, na gestação, seus filhos como grandes e com características suas ou com outras características valorizadas por elas. Ao descrever como imaginava sua filha na gestação, Ana disse: "Imaginava ela gordinha, moreninha, com cabelinho escuro, como ela é. Assim, bem como ela é. Mas não parecida com ela, mais parecida comigo [mãe ri]. Eu tava idealizando ela, claro". Além disso, todas as mães diferenciaram, em algum grau, o que desejavam do que imaginavam em seus filhos durante a gestação, apoiando em parte a literatura (Lebovici, 1987). Ao invés de relatarem apenas seus desejos e idealizações em relação ao filho na gestação, elas pareceram proteger-se emocionalmente, considerando a possibilidade de seus filhos não corresponderem aos seus desejos.
Apesar das quatro mães terem relatado como imaginavam seus filhos durante a gestação, duas delas (Daniela e Raquel), demonstraram mais dificuldades para falar sobre as características imaginadas no filho e sobre a maternidade na gestação. Nem mesmo os movimentos do feto lhe pareceram chamar tanto a atenção e instigar a imaginação acerca do bebê. Esta dificuldade é referida pela literatura como podendo estar relacionada com o nascimento pré-termo, já que no momento em que estavam relembrando a gestação, o filho estava internado na UTI Neonatal, e era alvo de muitas preocupações (Mathelin, 1999; Wirth, 2000). Essas duas mães (Daniela e Raquel) pareciam mais envolvidas e preocupadas com os problemas conjugais que estavam vivendo do que com a gestação. Estes achados também corroboram com as ideias de Raphael-leff (1997) sobre a variabilidade das experiências maternas e a influência da situação emocional materna para o envolvimento com o filho na gestação.
Por mais que estivesse presente em maior ou menor grau em todas as mães, a variabilidade de representações em relação às características imaginadas no filho na gestação apareceu com mais intensidade nos relatos de duas mães (Joana e Ana ), conforme sugeriu Lebovici (1987). Desde o início da gestação, Joana, por exemplo, esperava que o bebê fosse um menino e por isso, antes mesmo da descoberta do sexo do filho, já havia comprado um cobertor azul para ele: "Eu até nem tinha certeza que era um guri e fui lá e comprei, digo 'Eu quero esse'. Aí a mulher disse: 'Se for uma guriazinha eu troco pra ti', eu disse: 'Não, mas é um gurizinho'". Essa sensação de certeza, no entanto, foi se modificando a partir das opiniões dos familiares acerca do sexo do bebê e do aspecto de sua barriga: "De tanto que todo mundo me dizia que era uma menina, eu comecei a achar que era uma menina. Aí imaginava uma guriazinha também" (Joana).
Diferentemente de Joana, os relatos de Daniela não demonstraram uma diversidade de representações para sobre o bebê na gestação. . Ela estava desejando intensamente ter uma menina, ficando bastante frustrada com a notícia de que o bebê era um menino: "Eu sempre quis uma menina, sempre achava que era menina. Aí quando eu fiz a primeira ecografia e vi que era um gurizinho, eu não gostei muito". Talvez essa frustração tenha intensificado as dificuldades de Daniela em envolver-se com o filho durante a gestação, permitindo que ela imaginasse suas características e cuidasse mais de si na gestação.
Maternidade na gestação
Nessa categoria foram incluídas as falas das mães sobre a experiência da maternidade com o bebê durante a gestação, incluindo os sentimentos diante da gravidez, a percepção dos movimentos do filho e a interação com ele neste período. A partir dos relatos maternos, notou-se que as quatro participantes desejavam a maternidade e o filho antes de engravidarem. Duas delas (Joana e Ana) haviam se planejado para isso junto com seus companheiros, e as outras (Daniela e Raquel) foram surpreendidas pela notícia. Três mães (Joana, Ana e Daniela) referiram felicidade ao saberem que estavam grávidas, enquanto uma delas (Raquel) mostrou-se desesperada e abatida. Ao falar sobre o desejo pela gravidez, Raquel citou as brigas constantes com o marido e explicou a sua ambivalência: "Eu ficava tentando (engravidar). Daí a gente não conseguia. Quando a gente se separou, que a gente não quis mais, daí veio".
Em relação à interação com o bebê na gestação, notou-se dificuldade para as mães descreverem estas suas experiências neste período, conforme já destacado por Mathelin (1999). O parto antecipado parece ter dificultado a interação da mãe com o bebê, típica do terceiro trimestre de gestação. Mesmo com dificuldades, três mães (Joana, Ana e Raquel) descreveram sucintamente alguns momentos de interação com o filho no útero, como toques, carinhos e conversas. Por exemplo, Ana contou:
Nos primeiros meses, parecia que eu tinha uma borboleta na barriga. Depois, eu comecei a sentir mais. Agora, por último, eu conseguia perceber olhando, que mexia. Agora eu tava às vezes trabalhando lá na loja, ela me dava uns chutões.
Apenas uma mãe (Daniela) não conseguiu relatar suas experiências com o filho, durante a gestação. Apesar das dificuldades das mães para falarem sobre a interação com o filho na gestação (toques na barriga e conversas com o feto), e a ocorrência do parto prematuro, as quatro mães do estudo relataram terem tido um envolvimento com os preparativos para a chegada do filho na gestação. Três delas (Joana, Daniela e Ana) mostraram-se envolvidas com os preparativos desde as primeiras semanas após a concepção. Ao falar sobre como estava se organizando para a chegada do filho, Joana disse: "Comprei o quarto e comprei lençolzinho, edredom, cobertorzinho. Eu tava com três meses e meio, foi daí que eu comecei. Eu comprei o protetor de berço também". Apenas uma mãe (Raquel) pareceu ter negado os sintomas da gravidez e descoberto apenas no quarto mês, envolvendo-se pouco com os preparativos para a chegada da filha.
Por mais que as mães estivessem se envolvendo com os preparativos para o nascimento dos filhos, verificou-se que o parto antecipado gerou confusão e frustração nas mães na medida em que interrompeu o planejamento do último trimestre gestacional (Mathelin, 1999). Alguns preparativos finais como a organização do quarto e realização do chá de fraldas, acabaram interrompidos ou não ocorreram, assim como as mães não puderam vivenciar plenamente a satisfação diante do crescimento da barriga. Joana, por exemplo, descreveu como o nascimento pré-termo interferiu na sua organização:
Eu dizia 'Ai, que coisa bem boa, eu ainda tenho até 19 de dezembro ainda! Agora parada em casa, vou ter bastante tempo pra arrumar tudo, pra comprar tudo direitinho, pra arrumar o quarto, pra deixar tudo limpo, tudo organizado pra quando ele nascer'. E que nada, nem a bolsa dele eu não comprei.
O bebê real prematuro
Experiência do parto e do nascimento pré-termo
Esta categoria englobou os relatos maternos sobre a experiência e os sentimentos diante do parto e do nascimento pré-termo. Os relatos das mães mostraram que o parto pré-termo gerou sofrimento intenso e angústia, assim como o primeiro contato com o filho prematuro (Brazelton & Cramer, 1992; Cramer, 1987; Klaus et al., 2000; Lebovici, 1987). A experiência do parto prematuro foi lembrada por três mães (Joana, Daniela e Raquel) como muito difícil, assustadora e confusa, sendo que para apenas uma mãe (Raquel) foi melhor do que ela esperava.
Ana, por exemplo, referiu ter ficado muito ansiosa na sala de parto, desejando que tudo acabasse rapidamente: "No dia do parto, eu lembro direitinho. Tinha um relógio na minha frente e eu ficava olhando, contando os minutos e as horas pra eu sair dali, porque eu não aguentava. Era uma coisa de ansiedade". Notou-se também uma confusão emocional da mãe frente à experiência do parto antecipado: "Quando eu tava na sala de parto, eu olhava para aquelas luzes e pensava 'Meu Deus, o que eu tô fazendo aqui?'. Passava um filme pela cabeça: 'Eu tô ganhando minha nenê agora. Não era pra ser agora!'" (Ana). Essa sensação de confusão e de descontinuidade temporal pode ser bastante traumática para a mãe e para o bebê, pois a mãe não está, geralmente, preparada para o nascimento pré-termo (Brum & Schermann, 2004; Tracey, 2002; Wirth, 2000; Zornig et al., 2004).
Características do bebê real prematuro
Nesta categoria foram incluídos os relatos maternos sobre as características físicas e emocionais dos filhos após o nascimento, na pré-alta e no 3º mês após a alta hospitalar, incluindo a aparência, o temperamento e o comportamento. A partir dos relatos maternos após o nascimento do filho, pode-se verificar que o confronto inicial entre o bebê imaginário da gestação e o bebê real prematuro foi bastante difícil e intenso para as quatro mães (Brazelton & Cramer, 1992; Lamy et al., 1997; Lebovici, 1987; Morsch & Braga, 2007; Zornig et al., 2004). As características físicas e os aparelhos ligados ao bebê causaram um impacto emocional nas mães, gerando muita angústia e tristeza, como Joana referiu: "A primeira impressão que eu tive dele, todo entubado, com aquele monte de coisa... tu te desespera! Ele tava bem magrinho, com as costelinha de fora". Este impacto diante do confronto entre o bebê imaginário e o bebê real prematuro apareceu também na fala de Daniela, que descreveu a sua impressão diante do contato inicial com o filho recém-nascido: "Pra mim ele era um nenezinho, se parecendo com um Etzinho" (Daniela).
O bebê real prematuro também esteve envolto numa sensação de estranheza e foi visto como diferente do bebê imaginário devido as suas características físicas (Lebovici, 1987). Ao descrever o filho, Daniela demonstrou o estranhamento frente as suas características físicas, diferentes daquelas imaginadas na gestação: "Nasceu meio moreninho, de cabelo preto. Eu até me assustei... porque imagina, todo mundo dizia: 'Ah o nenê vai ser parecido com o [marido] quando era pequeno, loirinho'. Daí nasceu bem moreninho". Por sua vez, Ana, no momento em que se deparou com a filha recém-nascida, disse ter se emocionado devido ao seu tamanho pequeno e a sua fragilidade: "Achei ela tão pequeninha! Eu me emocionei. Achei ela tão frágil". Já neste momento, Ana pareceu apontar para as diferenças entre o bebê imaginário e o bebê real: "Ela é magrinha, não é gordinha!".
Mesmo diante do choque emocional gerado pelo confronto intenso entre o bebê imaginário e o bebê real prematuro, as quatro mães referiram, ainda no período pós-parto, satisfação e felicidade diante das características observadas no filho. Esse encantamento e orgulho pelo bebê apareceram quando Joana referiu: "Foi a coisa mais linda do mundo! Eu nunca pensei que existisse uma pessoinha tão pequenininha que nem ele".
Além disso, as mães descreveram seus bebês com características emocionais intensas e profundas, parecendo estarem tentando compreendê-los e dar significado a experiência do nascimento pré-termo. Tal aspecto aparece numa fala de Ana, quando ela descreveu os sentimentos despertados pela sua filha:
Ela (bebê) me transmite uma fragilidade em função de ela ser pequena. Mas, ao mesmo tempo, eu sinto que ela é forte por dentro, porque ela tá aguentando tudo e tá levando tudo da melhor forma possível. Então isso me transmite a força que ela tem. Então, eu acho que ela é um bebê forte. Ela é frágil só por fora, mas por dentro ela é forte. Acho que até mais do que eu.
As características emocionais e de temperamento foram percebidas por Ana a partir dos comportamentos da filha na incubadora e reações frente aos cuidados:
Ela é agitada, ela é geniozinha. Tu pede pra ela parar e ela não para. Ela puxa os tubos, ela puxa tudo. Ela é bem geniosa. Ele [marido] botava o braço dela pra um lado e ela tirava o braço de novo. Ela queria colocar onde ela queria!
A situação clínica do filho prematuro também gerou sofrimento em todas as mães, que se utilizaram de estratégias emocionais diferentes para suportarem a tristeza e angústia. Ana, por exemplo, buscou enfatizar os aspectos positivos na filha: "Eu sei que ela tá com infecção, mas por outro lado eu sei que ela tem pontos positivos. Então, eu procuro sempre ver os positivos. Não vou ficar só salientando os negativos nela... Não adianta, não vai resolver meu problema, não adianta". Apesar de todo o envolvimento com o filho, no período pós-parto, as quatro mães referiram ter dificuldade em sentirem-se mães. Joana explicou este sentimento: "Eu não me vejo como mãe ainda. Eu falo com ele 'Ai, nenê da mãe', mas eu acho que eu vou me sentir mãe de verdade quando ele tiver em casa comigo, quando eu tiver que cuidar dele mesmo". Esse distanciamento inicial da mãe em relação ao filho prematuro é comum no contexto da prematuridade (Lamy et al., 1997; Morsch & Braga, 2007). Isso porque, a angústia da separação precoce e da possibilidade de perda do filho exige que a mãe se defenda psiquicamente, o que é capaz de gerar sequelas emocionais na criança (Ferrari & Donelli, 2010), e também na mãe. Por este motivo, seria importante para o vínculo mãe-bebê e para o papel materno, que as mães pudessem acompanhar mais de perto a internação dos filhos e que fossem inseridas mais intensamente neste contexto (Araújo & Rodrigues, 2010).
Já na pré-alta hospitalar dos bebês, verificou-se nos relatos das quatro mães mudanças nas representações desde a gestação, que apareceu através de uma maior diversidade na descrição das características emocionais e físicas dos filhos. Joana descreveu mudanças nas suas representações sobre o filho: "Antigamente, eu achava que ele seria agitado que nem o pai dele, agora eu não acho mais", pois "ele está muito calminho agora". Junto a isso, constatou-se uma maior diversidade nas representações maternas e uma maior acuracidade na descrição dos gestos, das características, habilidades, expressões e comportamentos dos filhos. Joana, por exemplo, ao descrever o filho disse que ele "reage, já se espreguiça, já bate os pés, as mãos. É ele ri, ele ri. Ele fica rindo. Ele faz careta". Ela disse ainda que: "Ele faz expressões de brabo, ele fica com a testa enrugada, tudo ele faz".
Na pré-alta, as quatro mães também demonstraram uma maior capacidade de identificar e descrever as características emocionais de seus bebês. Muitas vezes, no entanto, estas características ainda eram descritas como relacionadas ao nascimento pré-termo. Ao descrever a filha como calma, Ana justificou com o fato de ela comportar-se ainda como se estivesse no útero: "Tá calma, porque é como se ela tivesse dentro do útero ainda". Ao mesmo tempo, ela descreveu variações no comportamento da filha, referindo que "às vezes ela fica quietinha, às vezes ela fica agitada", parecendo identificar com mais clareza estes movimentos e reações do bebê. Esta capacidade de descrever com detalhes os filhos parecia estar relacionada com a proximidade física e afetiva das mães com o bebê real (Klaus & Kennel, 1993; Zornig et al., 2004).
Em relação aos relatos maternos sobre as características dos filhos, no 3º mês após a alta hospitalar, verificaram-se mudanças ainda mais expressivas. As quatro mães pareceram estar vivendo um momento de encantamento e reconhecimento do filho, mostrando-se bastante aliviadas por terem saído do hospital e por terem superado a situação difícil da hospitalização (Klaus & Kennel, 1993; Zornig et al., 2004).
Este alívio das quatro mães parecia também estar relacionado com a tentativa de esquecimento em relação ao nascimento pré-termo e a hospitalização do filho. Joana, por exemplo, falou: "Agora eu não acredito que ele (bebê) nasceu tão pequeno. Às vezes, eu fico pensando, não acredito que ele nasceu tão pequeninho. Pra mim, ele nasceu desse tamanhão!". Joana ainda referiu ter a sensação de não acreditar que o filho havia nascido tão pequeno: "Ás vezes, eu tenho que pegar as fotos dele pra ver. Porque eu não acredito que ele nasceu tão pequeno, que ele ficou tanto tempo lá (no hospital)".
No 3º mês após a alta, as quatro mães também referiram estarem satisfeitas com seus filhos ao ponto de suas expectativas estarem sendo superadas em relação a eles. Joana comentou que seu filho estava de acordo com o que imaginava na gestação, ou seja, mais próximo ao bebê imaginário: "Agora sim! Agora eu acho que é como eu pensava" (Joana). Ana referiu também as diferenças percebidas em relação ao bebê imaginário e demonstrou muita satisfação diante da filha. As características dela foram consideradas pela mãe como melhores do que ela tinha imaginado na gestação: "Eu acho que ela é melhor até do que eu imaginava" (Ana). Desta forma, verificou-se que as mães estavam pouco a pouco, elaborando a perda do bebê imaginário e consolidando a relação com o filho real (Brazelton & Cramer, 1989; Klaus & Kennel, 1993; Lebovici, 1987; Zornig et al., 2004).
Em relação às características físicas dos bebês, as quatro mães pareceram ainda mais satisfeitas e orgulhosas. Animada, Ana descreveu as qualidades da fiha, dizendo que ela estava "tão grande" e "tão perfeitinha". Neste momento, Ana também estava identificando em sua filha outras características físicas semelhantes às suas, falando que: "Agora tá mais parecida comigo. No começo, eu achava muito parecida com ele [marido]. Agora, eu acho mais parecida comigo", parecendo estar se identificando mais com o bebê real.
Raquel também falou de suas lembranças diante da filha no hospital e a descreveu como feia devido ao seu tamanho e magreza, dizendo: "Olhando as fotos dela de quando ela tava lá [no hospital], eu acho feia, horrível. Mas, olhando agora, são outros quinhentos". Assim, Raquel parecia conseguir identificar as mudanças nas características da filha, referindo à sensação de ter agora outro bebê: "Ela (bebê) tá bem diferente. Não dá pra acreditar. Porque aquela criança que era antes (prematura), morreu". Isso porque: "Ela tá bem. Lá [no hospital] ela era bem magrinha, era bem diferente. Não dá nem pra acreditar que é a mesma criança".
Além das mudanças nas características físicas dos filhos, as quatro mães pareceram identificar também mudanças nas características emocionais e no temperamento dos filhos após a ida para casa. Segundo Ana, sua filha continuava sendo braba, apesar de estar agora mais feliz: "Tá diferente. No hospital ela era muito braba. E ela continua sendo braba, mas ela é uma criança extremamente feliz. Tá bem diferente, bem mais feliz". Estas mudanças nas características emocionais dos filhos foram relacionadas pelas mães a saída do hospital e a diminuição do estresse gerado pelos procedimentos invasivos. Ana explicou sua percepção: "Lá no hospital, eu achava que ela era mais braba. Ela tem um gênio forte ainda, mas eu sentia que ela tava estressada com a situação (hospitalização). Eu via que as enfermeiras amarravam ela, pra ela não arrancar a sonda. E ela ficava estressada". Joana também parecia surpresa com as características emocionais e de temperamento do filho: "Até eu imaginava que ele fosse ser uma criança mais braba, que ele fosse ter mais manha. Imaginava que ele fosse ser mais manhoso".
O desenvolvimento dos bebês também foi descrito como diferente e melhor do que o esperado, pelas quatro mães. Ana, inclusive, estava surpresa com a evolução da filha, já que havia imaginado que ela teria problemas em decorrência da prematuridade: "Eu não imaginei que ela fosse ser tão sorridente. Eu imaginei que ela fosse ficar uma criança meio sequelada, meio parada. Ela nem parece que foi prematura. Ela é muito ativa, muito esperta. Eu acho que ela é melhor". Isso mostra uma gradual elaboração das mães diante da perda do bebê imaginário e uma adaptação das mães ao bebê real, que inclui o reconhecimento de suas próprias características físicas e emocionais, a identificação da mãe com o filho, a aceitação de suas manifestações e habilidades e a presença da função materna de continuar sonhando, imaginando e fantasiando (Lebovici, 1987; Brazelton & Cramer, 1989; Klaus & Kennel, 1993).
Considerações finais
O objetivo deste estudo foi investigar as representações maternas sobre o bebê imaginário e o bebê real prematuro, no período pós-parto, na pré-alta e no 3º mês após a alta hospitalar do bebê. Os achados mostraram que o nascimento pré-termo esteve relacionado às dificuldades das mães em falarem sobre as características imaginadas no filho durante a gestação e sobre a maternidade neste período. Esta dificuldade pareceu também estar relacionada ao estresse e as preocupações das mães na gestação, que podem também ter resultado na minimização dos sintomas que resultaram no parto prematuro. Assim, o nascimento pré-termo possivelmente dificultou o incremento das representações maternas durante o terceiro trimestre da gestação, na medida em que interrompeu, em parte, o processo de construção do bebê imaginário. Também pode ter contribuído para isso o fato de terem sido solicitadas a falar retrospectivo sobre o bebê na gestação, envoltas com o impacto da situação do nascimento pré-termo e com as primeiras interações com o bebê real prematuro.
O nascimento pré-termo trouxe para todas as mães um confronto muito intenso entre o bebê imaginário e o bebê real, como já indicado por diversos autores. Foi sem dúvida um choque para todas elas, que apresentaram confusão emocional, estranhamento do filho e impacto diante das suas características tão distintas do bebê imaginário.
No entanto, mesmo diante dessas intensas emoções, as mães aproximaram-se gradualmente do bebê real, identificando as suas características físicas e emocionais mais sutis, e se esforçando para encontrarem um significado para as mesmas, desde o período pós-parto. A elaboração da perda do bebê imaginário e aproximação das características do bebê real, no entanto, foi gradual e constante, mostrando-se mais sólido no 3º mês após a alta do bebê.
A alta hospitalar e os primeiros meses em casa mostraram-se muito importantes para este processo de elaboração, significando em parte um novo nascimento para as mães. Após a ida para casa, elas pareceram ter tido a possibilidade de reconhecer e aceitar mais o filho real, e aproximá-lo das características do bebê imaginário. É plausível se pensar que para estas mães, o processo de conciliação entre o bebê imaginário e o bebê real, e a adaptação a ele necessitou da alta hospitalar e do convívio com o filho em casa, para se consolidar.
Os achados deste estudo também demonstraram o desejo, a necessidade e a satisfação das mães diante de um espaço para falarem de seus sentimentos e contarem sobre a sua intensa experiência. Então, cabe ressaltar a importância de serem implementados mais programas multidisciplinares de acompanhamento da dupla mãe-bebê prematuro. Este suporte emocional poderia contribuir de forma preventiva para os problemas de vínculo, desde o pós-parto, auxiliando as mães a lidar com o sofrimento diante da perda do bebê imaginário.
Por fim, sugere-se que novos estudos utilizem outras abordagens de investigação, para além de entrevistas, que permitam investigar mais exaustivamente os conteúdos pré-conscientes e inconscientes associados ao bebê imaginário e a complexa experiência das mães no contexto do nascimento pré-termo. Além disso, seria importante que se considerasse a evolução clínica e o desenvolvimento do próprio bebê, o que também pode contribuir para a compreensão das representações das mães no contexto do nascimento prematuro.
Referências
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Endereço para contato
E-mail: adrifleck@yahoo.com.br
Recebido em março de 2012
Aceito em agosto de 2013
Adriana Fleck: Psicóloga, Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
César Augusto Piccinini: Phd, Doutor. Professor do curso de Pós-graduação em Psicologia do Desenvolvimento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
1 Na dissertação de mestrado da primeira autora, que deu origem ao presente artigo (http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/37208) podem ser encontrados diversos relatos maternos que apoiam o que está sendo assinalado ao longo desta seção e que tiveram de ser omitidos para não ultrapassar a extensão permitida do artigo.