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Aletheia
versão impressa ISSN 1413-0394
Aletheia no.41 Canoas ago. 2013
ARTIGOS EMPÍRICOS
A percepção dos profissionais da saúde acerca da atenção ao sobrepeso e à obesidade infantil no Sistema Único de Saúde (SUS)
The perception of health professionals on attention to childhood overweight and obesity in Brazilian Public Health System (SUS)
Aline Dias Dornelles; Márcia Camaratta Anton
Hospital de Clínicas de Porto Alegre
RESUMO
O aumento da incidência de doenças crônicas tem despertado a mobilização de gestores e profissionais da saúde que buscam estratégias para melhor atender a essa demanda tão expressiva. A obesidade infantil destaca-se por representar um fator de risco importante para outros agravos em saúde. Este estudo buscou investigar a percepção dos profissionais da saúde com relação à assistência aos usuários com sobrepeso e obesidade infantil no Sistema Único de Saúde – SUS. Participaram desse estudo sete profissionais da saúde atuantes nos diferentes níveis de atenção do SUS. Uma entrevista estruturada e a Análise de Conteúdo foram, respectivamente, utilizadas como método de coleta e análise de dados. Os resultados apontam estrangulamentos no sistema de saúde, com déficits na comunicação e no referenciamento, que afetam diretamente na qualidade assistencial, fazendo com que a tomada de decisões seja baseada em critérios de gravidade, muitas vezes deixando esta população relativamente desassistida.
Palavras-chave: Sobrepeso, Obesidade, SUS.
ABSTRACT
The increase in incidence of non-transmittable chronic diseases has generated a mobilization of health professionals and administrators in order to find strategies to better cope with this considerable demand. Childhood obesity stands out for being an important risk factor for other health problems. The present study aims at investigating the perception of health professionals regarding the assistance to patients with childhood overweight and obesity in the Brazilian public health system (SUS). The participants of this study were seven health professionals working at different levels of attention in the health care system. Structured interview and content analysis were used as data gathering method and data analysis, respectively. The results indicate bottleneck problems in the health care system, with deficits in communication and referencing. This directly affects the quality of assistance making professionals take gravity-based decisions.
Keywords: Overweight, Obesity, SUS.
Introdução
A evolução da sociedade moderna tem proporcionado inúmeras mudanças no sujeito que podem ser identificadas coletivamente. Em se tratando dos hábitos e comportamentos alimentares, a luta contra a desnutrição deu lugar a uma nova batalha, agora contra a obesidade e toda a gama de prejuízos que dela se origina. No decorrer da última década foi possível identificar um processo de transição nutricional no que diz respeito ao sobrepeso e à obesidade como questão de saúde pública. Tais características populacionais identificadas inicialmente com maior significância nos países desenvolvidos vêm ganhando grande proporção também na América Latina e Caribe (OMS, 2006).
Um estudo realizado na Paraíba com o objetivo de verificar a pressão arterial entre crianças de três a oito anos concluiu que o sobrepeso e a obesidade tem sido uma característica frequente e que esta condição está relacionada aos altos níveis de pressão arterial (Ferreira & Vianna, 2008). Tomando a obesidade infantil como questão de saúde pública complexa e de extrema relevância, faz-se necessário pensar de que forma nosso sistema de saúde está organizado a fim de atender esta e outras demandas semelhantes. O entendimento dos fluxos de atendimento levando em conta princípios norteadores do Sistema Único de Saúde (SUS) como a integralidade, a intersetorialidade, a regionalização e a descentralização, pode auxiliar na reflexão sobre esta temática.
A Unidade Básica de Saúde (UBS) surge após a reestruturação das Políticas de Saúde no Brasil ocorrida na década de 80 consolidando uma noção de saúde mais abrangente e democrática. Tem por objetivo a resolutividade das questões em saúde através de ações de promoção, prevenção e recuperação, podendo ainda fazer uso da referência e contrarreferência nos casos mais complexos (Chiapinotto, Fait & Junior, 2007). Esta estrutura responde pelas ações de atenção básica à população e pode ser considerada a principal porta de acesso dos usuários ao serviço de saúde.
O aprofundamento das rotinas e protocolos pelos quais transita o usuário no Sistema Único de Saúde também pode fornecer subsídios importantes para a compreensão de como o SUS vem lidando com a questão do sobrepeso e da obesidade. O processo de referência e contrarreferência é determinante para o controle de doenças crônicas como a obesidade podendo tornar-se um aliado na modificação das dinâmicas de atendimento na medida em que o usuário não fica retido apenas a um nível de atenção. Para que o tratamento evolua de forma satisfatória muitas vezes é necessário que o profissional da atenção básica referencie o usuário para um nível de maior complexidade. Quando for identificado que o usuário pode retornar a um nível de menor complexidade, esse deve ser contrarreferenciado para dar continuidade ao acompanhamento no nível básico, obedecendo ao princípio de regionalização (Serra & Rodrigues, 2010). Fratini, Saupe e Massaroli (2008) corroboram essa análise, considerando o processo de referência e contrarreferência fundamental para sedimentar o conceito de integralidade no SUS.
A criança está submissa a uma série de agentes internos e externos que perpassam o seu desenvolvimento, influenciando hábitos e seu comportamento alimentar. Neste sentido, Oliveira, Cunha e Ferreira (2010) descrevem que os hábitos de vida familiares estão entre os fatores de risco mais importantes no processo de emagrecimento. De acordo com Rinaldi, Pereira, Macedo, Mota e Burini (2008), a prevalência da obesidade infantil tem seu aumento progressivo devido os hábitos alimentares inadequados e a falta de atividade física. A criança, devido a pouca autonomia, sofre maior interferência externa, pois a realização de atividade física depende do interesse e do engajamento dos pais (Mello, Luft & Meyer, 2004).
Tendo em vista a complexidade dos aspectos que envolvem o sobrepeso e obesidade infantil, parece necessário investigar fatores de influência no tratamento destes usuários (Oliveira et al., 2010; Tassara, Norton & Marques 2010; Zambon et al., 2008; Mello et al., 2004). Um estudo recente realizado com profissionais da saúde (médicos e enfermeiros) em Portugal teve por objetivo avaliar conhecimentos, atitudes e práticas no tratamento da obesidade. Entre outros aspectos, alertam para a importância da influência da relação profissional/paciente para o sucesso do tratamento. Como conclusão, o autor descreve alguns aspectos, tanto observações de hábitos e comportamentos pessoais dos profissionais quanto maiores investimentos na formação para o tratamento dos transtornos alimentares, que poderiam ser revistos para melhor qualificar o atendimento prestado no nível primário de atenção (Rego, 2010). Considerando que os profissionais da saúde podem fornecer informações valiosas para auxiliar no combate ao sobrepeso e obesidade parece importante abordar tal temática por esta perspectiva. Assim sendo, esse estudo teve como objetivo investigar a percepção dos profissionais da saúde com relação à assistência prestada aos usuários com sobrepeso e obesidade infantil no SUS.
Método
Participaram deste estudo sete profissionais da saúde de áreas diversificadas, atuantes nos três níveis de atenção do SUS. Conforme apresentado no quadro foram entrevistados três profissionais na Estratégia de Saúde da Família, dois profissionais no Centro de Saúde/Ambulatório e dois profissionais em hospital geral. A coleta de dados se deu no período de julho a setembro de 2012. A amostra foi constituída a partir da identificação dos profissionais envolvidos no atendimento das situações de sobrepeso e obesidade infantil em cada unidade/instituição.
Trata-se de um estudo qualitativo com delineamento de estudo de caso coletivo (Stake, 2010) que buscou identificar a percepção dos profissionais da saúde com relação à assistência aos usuários com sobrepeso e obesidade infantil no SUS. Para tanto, inicialmente foi realizado um contato telefônico com três Serviços de Saúde: uma Estratégia de Saúde da Família, um Centro de Saúde/Ambulatório de especialidades e os Serviços de Nutrologia e Endocrinologia de um hospital geral, a fim de informar sobre o estudo, identificar os profissionais e convidá-los a participar. A partir da aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa e concordância dos profissionais, foram agendados horários individuais para assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido¹ e para a realização da entrevista estruturada, conduzida de modo semi dirigido com cada participante. A entrevista foi desenvolvida para fins deste estudo e contemplou questões como: parâmetros diagnósticos e de gravidade, intervenções realizadas em cada nível de atenção, fluxos de encaminhamentos e dificuldades do paciente no processo de emagrecimento e na adesão às orientações da equipe. Todas as entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas para fins de análise, pela primeira autora desse estudo. O discurso dos participantes foi examinado através da análise de conteúdo qualitativa (Laville & Diones, 1999).
Resultados e discussão
Quatro categorias temáticas emergiram no corpus de análise: Sistema Único de Saúde e equipe assistencial, Comunicação, Percepção sobre o trabalho e Intervenções necessárias.
Ao longo das entrevistas surgem considerações acerca do funcionamento do Sistema Único de Saúde e da equipe assistencial. Alguns profissionais citam a dificuldade na efetivação de encaminhamentos necessários. O médico de família e comunidade refere que o profissional ao qual ele mais encaminha esses casos é o nutricionista e que seria necessário que o sistema disponibilizasse mais consultas para essa especialidade: "Seria bom ter mais oportunidade de conseguir... Ter mais acompanhamento com nutricionista" (MFC1°). Ainda que a nutrição seja a especialidade mais referenciada, o médico também identifica necessidade de intervenção psicológica nestas situações: "Se as intervenções começam a fracassar aí tem que ver [através da psicologia] o que é que está acontecendo, qual é o negócio..." (MFC1°).
Ainda que a necessidade de intervenções psicológicas seja identificada pelos entrevistados, o médico revela que, por falhas do sistema de saúde, os profissionais não conseguem encaminhamento para psicologia, que acaba por não intervir de forma sistemática:
"A gente aqui tem duas consultas... (...) Tem duas consultas por mês [na equipe de referência em saúde mental]. E aí inclui adulto e criança. (...) Realmente isso aí é um número ridículo! Imagina! Duas consultas em saúde mental! E aí tu inclui psiquiatria e psicologia por mês para uma equipe dupla que a gente atende quase oito mil habitantes da área né! Quer dizer... Tu acaba tendo que mandar o que está ali com mais gravidade e as coisas que também precisam acabam ficando pra trás... Se agravando. Isso acontece!". (MFC1°)
A médica pediatra e a nutricionista atuantes na atenção secundária compartilham da percepção do médico de família de que muitas vezes o encaminhamento se perde devido ao tempo de espera ou a dificuldade de conseguir a consulta. Além disso, pode-se perceber que isso tem afetado a prática de encaminhamento, conforme relato abaixo:
"A gente encaminha, orienta, encaminha pro nutricionista e alguns vão pra psicologia né! Mas aqui o encaminhamento pra o serviço de saúde mental é muito difícil... É demorado. Então às vezes são tantas demandas que assim... Tu fica meio... Acaba não encaminhando". (PED2°)
A nutricionista revela que procura explorar as dificuldades do usuário com o tratamento antes de encaminhar, contudo percebe o limite da sua atuação.
"Eu tento trabalhar essas questões de ansiedade em relação a essa parte de alimentação, estimular o exercício físico, ver o que envolve diretamente a alimentação, mas quando tu percebe que a situação é realmente... é mais difícil! Tem que pedir ajuda. Na verdade eu acho que a gente tinha que ter um trabalho supervinculado com a psicologia... Mas é difícil encaminhar". (NUT2°)
Na atenção terciária, os dados obtidos também não demonstram uma realidade diferente da atenção primária e secundária, ainda que o encaminhamento ocorra dentro da mesma instituição. De acordo com o relato da médica endocrinologista da atenção terciária, é difícil conseguir o encaminhamento: "Com a nutricionista ainda dá, mas com a psicologia não, também encaminhamos às vezes, mas é mais difícil. Não se consegue tanto!" (END3°).
Tendo em vista que a criança está submissa aos cuidados de seus pais ou responsáveis, algumas vezes, durante a consulta, também são identificadas demandas de atendimento psicológico aos cuidadores. Nestas situações a pediatra da atenção secundária refere:
"Piorou muito... (...) Que a saúde mental aqui é referência para uma área bem grande. Antes era via referência e contrarreferência, agora é só via discussão de caso, que tá sendo chamado de matriciamento. Então se eu identificar alguém que precisa, um pai que precisa, eu tenho que bloquear a minha agenda e ir lá discutir com eles pra eles marcarem a consulta, então atualmente isso não é viável". (PED2°)
A partir do relato dos profissionais de saúde pode-se constatar que existe uma necessidade muito grande da atuação de nutricionistas, psicólogos e também educadores físicos na assistência aos casos que envolvem o sobrepeso e a obesidade infantil. Os profissionais percebem que o psicólogo poderia contribuir no entendimento das dinâmicas familiares e da criança, intervindo no auxílio à adesão ao tratamento, que nesta temática é um entrave significativo (Tassara et al., 2010; Zambon et al., 2008). Alguns profissionais citam a necessidade fundamental de conscientizar, vincular, educar e até convencer os pais de que o sobrepeso e a obesidade são fatores de risco importantes para a criança e que devem ser tratados. Contudo, apesar do consenso sobre a importância de tratar os fatores emocionais, há dificuldade no encaminhamento desses usuários à psicologia. Esta dificuldade, segundo os profissionais, aparece associada ao número insuficiente de consultas disponibilizadas à atenção primária e secundária. Já na atenção terciária, essa dificuldade aparece vinculada a grandes listas de espera e critérios institucionais estabelecidos. Devido a essas dificuldades os profissionais acabam estabelecendo critério de gravidade para a população atendida sendo que para fins de encaminhamento os casos de sobrepeso e obesidade infantil tendem a ser considerados menos graves do que outros quadros psicopatológicos emergentes.
A lei federal 8080, que dispõe sobre as condições, organização e funcionamento dos serviços de saúde, determina a integralidade da assistência como um de seus princípios fundamentais. A integralidade é definida como um conjunto de ações e serviços que devem funcionar de modo articulado e contínuo de acordo com as necessidades de cada indivíduo em todos os níveis de complexidade do sistema (Brasil, 1990). Cecílio e Merhy (2003) afirmam que a integralidade é uma tarefa da rede de cuidado e que cada nível de atenção possui participação em sua efetivação. Os autores fazem uma discussão a respeito do papel dos hospitais em relação à integralidade, percebendo a dificuldade do envolvimento deste nível de atenção na efetivação de linhas de cuidado.
A Comunicação foi outro ponto contemplado nas entrevistas. Os profissionais da atenção primária referem um encontro semanal da equipe para discussão de questões relativas ao funcionamento da unidade, organização, questões burocráticas e discussão de casos, quando necessário. Quando questionada com relação à discussão dos casos, a técnica de enfermagem e a agente comunitária de saúde apontam que apenas alguns casos são discutidos: "Se discute aquele que está em evidência no momento" (TEN1°). "Só são discutidas situações pontuais né! Aquelas situações que tem um problema" (ACS1°). A médica pediatra refere que na atenção secundária não é diferente e que na unidade não existe um espaço para discussão dos casos:
"Não se tem essa comunicação. Se tu quer falar de um... É o prontuário né! Pediatra cada um tem seu jeito né! Nós encaminhamos para a nutricionista... A gente não trata os pacientes em conjunto né! Se a gente quiser discutir tem algum espaço, mas aí depende dos teus horários. Isso a gente normalmente não faz se o paciente ta contigo, ta contigo". (PED2°)
A nutricionista da atenção secundária refere que o espaço de discussão não existe, ficando a cargo da disponibilidade e interesse de cada profissional. Contudo, sente falta da discussão e acredita que não ter esse espaço previsto e organizado na rotina atrapalha e desqualifica a assistência prestada: "Eu acho que toma tempo e desqualifica, pois como tu não tem muito tempo pra isso, tu acaba procurando as situações mais, mais, mais importantes"(NUT2°).
A médica endocrinologista, da mesma maneira, relata que a comunicação ocorre via prontuário de forma muito precária na instituição e reflete sobre a fragmentação que isso provoca:
"Via prontuário... (...) Acho que não é nada integrado. Por mais que a gente mande, a gente manda, mas é como se tivesse vários profissionais individuais fazendo a sua coisa. Nem se vê, o outro a gente nem sabe o que está acontecendo [porque também não está claro no prontuário]". (END3°)
Considerando a comunicação entre os diferentes níveis de atenção, os profissionais da atenção primária referem três alternativas de meios de comunicação: o documento de referência e contrarreferência, contatos telefônicos e o próprio usuário como modos de efetivar a comunicação:
"Em geral é a mãe que traz... Tem essa folhinha aqui [documento de referência e contrarreferência] que o pessoal escreve aqui. Inclusive tem áreas que escrevem muito bem, tem áreas que não né! Mas em geral tem um pouco de comunicação sim. Não ao vivo né! Mas pelos documentos tem. É utilizado". (MFC1°)
A técnica de enfermagem demonstra que essa não é uma prática frequente em sua rotina assistencial, não tendo clareza de como ocorre a comunicação: "Essa troca é feita com a coordenadora, com a enfermeira e o médico... Creio eu, ta? Creio que isso seja através de telefonemas que... Acho que a nutricionista entra em contato com a equipe daqui" (TEN1°).
Os profissionais de todos os níveis de atenção referem o próprio usuário, muitas vezes, como a única via de comunicação: "O paciente é que dá o retorno" (ACS). "Em geral são os pais que trazem um retorno do que eles estão fazendo... Não volta [Refere-se ao documento]. O paciente que é o dono... Se coordena né!" (PED2°). "Normalmente a família te traz a informação. Eu pergunto se foi lá de novo, fez exames, e aí a mãe me traz os exames, me traz alguma novidade" (NUT2°). Alguns profissionais acreditam que isso ocorra devido às diferenças de funcionamento dos serviços, pela pouca valorização da comunicação e também pela concepção de assistência vigente: "Não sobra muito tempo também nas agendas pra isso, para discutir caso, para conversar com esse profissional, que desse para ter mais contato, ligar... Enfim, as pessoas ficam apagando incêndio nas agendas né! Não se tem essa cultura sabe?" (NUT2°). A ideia de que o sistema como um todo é fragmentado e que isso prejudica a assistência prestada, também é uma crítica entre alguns profissionais:
"Só pra tu ter uma ideia de como é grave e esquizofrênico nosso sistema, aqui na instituição não tem um prontuário único. Então a criança que consultou na pediatria tem um prontuário lá, a criança que consultou comigo tem um prontuário aqui, a mesma mulher que eu atendo pode ter um prontuário comigo, prontuário na clínica, na odonto, na saúde mental e esta história está toda cortada". (NUT2°)
A comunicação é um dos meios pelos quais são efetivadas as linhas de cuidado, e como pode ser observado neste estudo, os profissionais referem dificuldades significativas tanto entre eles em uma mesma unidade/instituição quanto entre os diferentes níveis de atenção. Entre as instituições de saúde participantes deste estudo é possível perceber que reuniões a fim de discutir os casos atendidos não estão ocorrendo na prática assistencial de forma efetiva. Já entre os diferentes níveis de atenção, os profissionais referem a utilização dos protocolos clínicos (documento de referência e contrarreferência), do contato telefônico ou email e também do próprio usuário como alternativa de estabelecer alguma comunicação. Segundo Malta e Merhy (2010), os protocolos clínicos deveriam ser utilizados como ferramentas para a efetivação das linhas de cuidado e não como receitas de modo a substituir as relações entre os profissionais e usuários. Feuerwerker (2005) afirma que na prática não foram construídos meios para que o diálogo entre os níveis de atenção ocorra. Neste estudo, foi possível identificar que inclusive a articulação no mesmo nível de atenção é difícil. A fragmentação da saúde atual favorece o consumo de procedimentos e a falta de articulação entre os níveis, fazendo com que o usuário fique responsável por seu percurso no sistema.
Algumas considerações acerca da Percepção sobre o trabalho também emergiram durante as entrevistas. Na atenção primária, é possível perceber uma ambivalência na fala da agente comunitária. Ela refere que esse é um tipo de tratamento difícil e que depende também da motivação do profissional da saúde: "É difícil né! Mas a gente está sempre tentando. Nós não podemos desistir! Acho que é um trabalho de formiguinha. Vai ter que ser... Começar desde a base, que é a família né! Tentar mudar a cultura né!" (ACS1°).
A técnica de enfermagem descreve a atuação nestes casos como uma questão de conscientização que exige do profissional, motivação e tempo, o que às vezes é difícil em virtude da sobrecarga de atribuições:
"Olha! Eu vou ser bem sincera contigo. A gente usa todas as artimanhas pra poder fazer esse tipo de coisa, sabe? Se vai na casa do paciente e se... Olha! Está complicado, acho que mais do que isso... Até porque a nossa disponibilidade às vezes é pouca pra tanta coisa". (TEN1°)
A médica endocrinologista fala sobre o sentimento como profissional atuando nesta temática: "Tem coisas que a gente não tem como intervir como médico, que realmente o médico é impotente. Tirou a patologia que a gente pode tratar... conseguir uma consequência patológica... A gente não consegue intervir, são coisas muito grandes!" (END3°). A técnica de enfermagem também relata sentimentos relacionados a sua prática profissional:
"É um trabalho muito árduo tá! Que a gente é porta de entrada pra eles, mas a gente também é um porto seguro pra eles, sabe?! Porque nós somos... Muitas vezes tu diz assim: 'Bah de novo aquele paciente!' Mas há uma necessidade, sabe? Isso pra mim gratifica de uma certa forma. Então assim, pelos meus anos de experiência, eu gosto do que eu faço! Eu não me importo de repetir uma, duas, três vezes: 'Mãe, a senhora tem que levar seu filho lá! Só com essa ajuda o seu filho vai emagrecer!' São coisas muito boas. Pelo meu tempo de experiência eu posso te dizer que eu gosto muito do que eu faço e se eu puder ajudar eu estou sempre disposta". (TEN1°)
Com relação à eficácia e resolutividade da assistência prestadas aos usuários com sobrepeso e obesidade infantil, a maioria dos profissionais participantes entrevistados considera a assistência pouco resolutiva, ainda que alguns relatem que não têm dados ou qualquer retorno a esse respeito. Na atenção primária, a agente comunitária e o médico de família apresentam enfaticamente a mesma opinião: "Não... Não. A maioria continua engordando. Depois desistem" (ACS1°). "A gente carece de ter uma equipe multidisciplinar com mais substrato para isso. (...) Têm muitas crianças que eu não estou muito satisfeito com a evolução né! Que não se consegue! É um pouco frustrante!" (MFC1°).
Na atenção secundária, os profissionais percebem a complexidade deste problema e também identificam a dificuldade em obter dados sobre os resultados de seu trabalho.
"Um dos problemas graves é que não se têm dados sobre isso, a gente atende, atende, atende, mas não sei te dizer. (...) A maior parte das vezes até, eu te diria, a gente não consegue realmente mudar alguns hábitos da família. Têm coisas que são muito arraigadas. E é meio complicado. Porque assim, a alimentação envolve muitas outras questões, tu não come só por fome, têm questões de educação nutricional, de ansiedade...". (NUT2°)
Na atenção terciária, a percepção da médica endocrinologista não é diferente: "Eu não fiz estatística, mas a impressão que me dá é que não tem sido [efetivo]. Eu acho que a obesidade infantil é uma questão muito complexa para a gente só mandar para uma dieta" (END3°).
A grande demanda de trabalho em virtude da extensa área de abrangência, principalmente da ESF, foi levantada por estudos que identificam um prejuízo na capacidade do cumprimento de ações programadas (Silva & Trad, 2005). De acordo com Feuerwerker (2005), a ausência de mecanismos de articulação entre os níveis de atenção pode ser entendida como um dos fatores que explicam a baixa resolutividade das questões em saúde, conforme percebida pelos profissionais participantes deste estudo. Alguns profissionais da atenção primária e secundária referiram que a grande demanda assistencial e o cumprimento de atividades administrativas, por vezes, inviabilizam essa comunicação. Assim, evidencia-se a percepção dos profissionais com relação a pouca resolutividade dos casos acompanhados, ainda que alguns tenham referido que não possuem os registros de acompanhamentos ou dados estatísticos que possam revelar a eficiência da assistência.
Diferentemente do restante dos profissionais, a médica nutróloga é a única que afirma a obtenção de resultados satisfatórios comprovados através de um banco de dados que o serviço possui.
A epidemiologia, segundo Feuerwerker (2005), é a principal ferramenta para identificação de problemas e questões de saúde prioritárias, que devem ser o eixo norteador na execução das ações em saúde, principalmente na atenção primária onde o trabalho é centrado no território. Segundo Mendes (2011), o sistema de atenção à saúde deve ser articulado a partir das necessidades sociais refletidas pela condição demográfica e epidemiológica da população. Os sistemas de saúde vivem atualmente uma situação de crise em todo cenário mundial em virtude das discrepâncias entre necessidades de atuação em situações crônicas e agudas, que provocam discordâncias entre os modelos de atenção. Sua crítica está pautada na constatação de que o sistema se saúde brasileiro está organizado, fundamentalmente, para dar conta de situações agudas, sendo que o sistema como um todo parece não ter acompanhado a transição que hoje revela que as doenças crônicas exigem uma articulação ainda maior devido a sua expressiva incidência (Mendes, 2011).
Somente na atenção terciária, ligada ao serviço de nutrologia, foi encontrado um programa específico para atendimento de crianças com sobrepeso e obesidade infantil. Em nenhum outro nível de atenção, serviço ou unidade, foi identificado outro programa de atendimento estruturado a fim de atender essa demanda. Quando questionada com relação a resolutividade dos casos afirma: "Extremamente eficaz. Os nossos resultados são muito bons. A adesão... Porque existe muito relato de abandono do paciente. Nossos resultados são muito bons, a gente já está com publicações. Então funciona muito bem" (NTO3°).
É interessante observar que quando questionada sobre a eficácia e os motivos pelos quais é possível atingir bons resultados, a médica nutróloga atribuiu a frequência dos atendimentos, que segundo ela, proporciona um melhor monitoramento das dificuldades e ao vínculo estabelecido com os usuários:
"A gente sempre continua acompanhando. Essa é a nossa filosofia, porque a história mostra, a experiência mostra que tu não pode abandonar os pacientes. Tu tem que continuar tendo um vínculo, porque aí eles mantém o controle. Porque é para a vida inteira, por isso que é tão importante a mudança de hábitos da família e do paciente". (NTO3°)
Por fim, os profissionais tiveram oportunidade de falar sobre Intervenções necessárias para atender melhor a essa demanda de saúde dos usuários. Grande parte dos profissionais aponta a necessidade de abordar essa questão através do trabalho em grupo e demonstram apostar nesse instrumento como alternativa para mobilizar e auxiliar na adesão ao tratamento:
"O grupo para prevenção sempre. Com a rede no caso o pessoal da psicologia. Alguém que pudesse ter mais aquele foco para motivar a pessoa mesmo, incentivar a pessoa, ter mais um apoio na rede para as pessoas aderirem ao tratamento". (ACS1°)
O médico de família e comunidade também observa contribuições no trabalho em grupo: "Daria para fazer um grupo. É uma outra maneira boa de abordar, porque tu tem uma boa troca de experiências entre eles. Acho que até para os pais porque vão trazer experiências para discutir no grupo. Um grupo para isso pode motivar bastante" (MFC1°).
Na atenção secundária, os profissionais também citam o grupo como um bom instrumento de trabalho: "Talvez fosse interessante a gente com a nutricionista né! Fazer grupo né! (...) Era importante fazer um grupo de obeso, que eu acho que eles têm coisas muito parecidas. Pelo menos na fase de criança né!" (PED2°).
Diversos profissionais, de diferentes níveis de atenção (NUT2º, MFC1º, END3°) referem que devido à complexidade desta questão seria necessária a intervenção de uma equipe multiprofissional apontando esta estratégia como um determinante para o sucesso no tratamento.
"Eu acho que falta trabalhar mais a interdisciplinaridade né! A comunicação entre os profissionais. Não enxergar só o dedinho machucado né! Tu tem que enxergar o todo, todo aquele contexto senão tu não vai pra frente né!". (NUT2°) "Quando é obesidade simples, que não tem complicações ou causas na verdade, a criança fica com a nutricionista, a agente revisa anualmente, do ponto de vista médico... Mas também isso não funciona muito porque não tem um programa que fica do lado deles, mas não tem que ser um programa só com a nutricionista, tem que ser um programa que envolva psicologia, nutrição, exercício físico...". (END3°)
Os precários recursos públicos para realização de atividade física também foram citados por alguns profissionais como intervenção necessária para auxiliar no tratamento do sobrepeso e da obesidade infantil:
"Pra encaminhar os recursos da sociedade a gente não... Eu até pedi pra a assistente social. (...) Se ela conseguiria ver na comunidade... Mas ela também tem tanta coisa pra fazer! Quais são os recursos que teria pra encaminhar essas crianças pra ter outra atividade? Às vezes é porque eles não têm condições, mas às vezes é porque não tem nenhum estímulo! Nunca ninguém disse pra fazer isso, que até poderia... às vezes as mães não trabalham né! Pode levar uma vez por semana, duas vezes por semana numa quadra pra brincar mais... Ter uma orientação". (PED2°)
A médica endocrinologista percebe que mesmo os serviços de saúde especializados não dispõem, muitas vezes, da presença de um educador físico para atendimento desta população. O educador físico foi apontado como uma alternativa para trabalhar com as crianças a importância da prática de atividade física:"Educação física não temos! Quer dizer... Tão importante e está fora. Então na verdade são coisas individuais. Deveria ser uma coisa conjunta trabalhar com a criança" (END3°).
A maioria dos profissionais relatou a identificação de situações que necessitam intervenção psicológica tanto para as crianças quanto para as famílias, principalmente para trabalhar questões relativas à adesão ao tratamento: "Porque a gente vê que quando eles aderem ao tratamento... Funciona" (TEN1°).
A nutricionista referiu um campo vasto de aspectos individuais e familiares que percebe nestes usuários e que seriam trabalhados pelo psicólogo nesses casos:
"A maior parte que eu observo são questões de ansiedade, são normalmente muito ansiosas. Algumas eu sinto deprimidas. Tem aquelas crianças que são tiranas com o pai e com a mãe e tem também o contrário, às vezes tu vê que a criança está meio oprimida... Meio sem jeito de falar as coisas, de se abrir". (NUT2°)
A médica endocrinologista justifica a importância da atuação da psicologia baseada em observações durante a consulta:
"Muitas crianças já mostram ali que estão comendo para tapar alguma coisa. E outros já é necessária a intervenção com a família. Seria importante a psicologia de família porque senão fica impossível pedir que a criança faça uma coisa se os pais dão outra mensagem. Então eu acho que a psicologia deveria entrar cedo com a família, na verdade, com todos e já identificar o que está acontecendo". (END3°)
Na percepção dos profissionais entrevistados, há intervenções ainda necessárias para qualificar a assistência prestada a essa população. O trabalho em grupo, assim como a atuação de uma equipe multiprofissional qualificada, foram apontados pela maioria dos profissionais como uma alternativa a ser implementada, tanto com as crianças quanto com as famílias. De acordo com o Ministério da Saúde (2006), a apropriação do próprio corpo e do autocuidado, o resgate da autoestima e o controle das comorbidades deve ser a meta do acompanhamento ao indivíduo com sobrepeso e obesidade em qualquer etapa do ciclo vital. O apoio social proporciona um melhor prognóstico relacionado à mudança no estilo de vida. Desse modo, o trabalho em grupo é descrito como uma das mais potentes e terapêuticas ferramentas no tratamento do sobrepeso e da obesidade. Os grupos têm por finalidade proporcionar a escuta da história pessoal, clínica e familiar, valorizando vivências e experiências, acolhendo sentimentos emergentes além de proporcionar a educação e a promoção da saúde (M.S., 2006).
O Estatuto da Criança e do Adolescente determina que o ato de brincar, praticar esportes e divertir-se compreende aspectos que viabilizam o direito à liberdade. É dever dos municípios, com o devido apoio do estado e também da União, a estimulação e facilitação de recursos destinados a programações culturais, esportivas e de lazer voltadas para crianças e adolescentes (ECA, 1990). O Ministério da Saúde (2006) refere o incentivo à prática de atividades físicas como fator central no trabalho voltado à qualidade de vida. Assim sendo, ainda há muitas ações necessárias para que o tratamento do sobrepeso e da obesidade infantil se torne realmente efetivo, diminuindo os índices que levaram a obesidade ao status de epidemia no século XX (OMS, 2006).
Considerações finais
O sistema de saúde brasileiro, apesar de seu avanço na última década no que diz respeito à cobertura assistencial e resolutividade, ainda carece de melhorias, voltando o olhar não somente para as questões agudas, mas também para os agravos de saúde crônicos. Os profissionais identificam a necessidade de um maior investimento dos gestores em saúde na disponibilização de atendimento psicológico à população e na luta por espaços e recursos públicos para a realização de atividade física. Desse modo, pode-se constatar que a integralidade não tem sido atingida em sua plenitude, conforme previsto por lei, uma vez que foi identificado neste estudo que os usuários geralmente não transitam de forma fluente e resolutiva entre os níveis de atenção. A falta de comunicação, evidenciada neste estudo, inviabiliza a articulação entre os diferentes níveis e entre os profissionais a fim de traçar metas e estratégias comuns no combate às doenças. A falta de controle dos profissionais em relação a dados de incidência e de acompanhamento dos casos foi apontada como fator dificultador na assistência. Será que este não deveria ser um ponto a ser discutido entre os profissionais nas reuniões de equipe/serviço a fim de qualificar a assistência e torná-la mais resolutiva?
Por fim, os resultados deste estudo indicam que os profissionais de modo geral encontram-se afinados com as propostas de tratamento que o Ministério da Saúde preconiza com relação à atenção a saúde da criança com sobrepeso e obesidade. Em meio às deficiências do sistema, os profissionais seguem atuando com a difícil tarefa de escolher aqueles que serão beneficiados pelo atendimento das especificidades. Na grande maioria das vezes, o cotidiano assistencial é tomado pela lógica das emergências e situações agudas vigentes no panorama atual da saúde, fazendo com que os profissionais consigam encaminhar apenas as situações mais graves para atendimento. Além disso, as instituições de saúde parecem não contemplar suficientemente em sua rotina espaços de discussão e incentivo à pesquisa, que poderiam auxiliar na efetividade da assistência prestada e avançar rumo a uma concepção de saúde focada na qualidade de vida. Talvez tenha chegado o tempo de refletir sobre a necessidade de viabilizar as prerrogativas da lei, as quais o presente estudo mostra que são necessárias para alcançar resultados satisfatórios nas ações em saúde.
Referências
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Endereço para contato
E-mail: dornellestche@ibest.com.br
Recebido em julho de 2013
Aceito em abril de 2014
Aline Dias Dornelles: Psicóloga, Especialista em Saúde da Criança pela Residência Integrada Multiprofissional do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA).
Márcia Camaratta Anton: Psicóloga, Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Psicóloga do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA).