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Aletheia
versão impressa ISSN 1413-0394
Aletheia no.45 Canoas dez. 2014
ARTIGOS EMPÍRICOS
Relacionamento conjugal e violência: sair é mais difícil que ficar?
Marital relation and violence: is leaving harder than staying?
Josiane Razera; Denise Falcke
Universidade do Vale dos Sinos
RESUMO
A violência conjugal demanda ser amplamente estudada, pois possui altas taxas de incidência e pode causar sérios problemas de saúde aos envolvidos. Por esse motivo, o objetivo desse estudo foi analisar a história conjugal de um casal heterossexual, considerando as diferentes formas de violência praticada pelos cônjuges. Foi realizado um estudo qualitativo, com delineamento de estudo de caso único. Os instrumentos utilizados foram: genograma, entrevista semiestruturada e Revised Conflict Tactics Scale (CTS-2). Os resultados revelaram que o casal apresentou agressão psicológica, preponderantemente exercida pela esposa, e coerção sexual, exercida pelo marido,além de uma repetição dos padrões de violência praticados em suas famílias de origem. Os cônjuges consideraram que sair dessa relação era mais difícil do que permanecer, devido a questões financeiras, filhos e até mesmo o medo de recomeçar. Revela-se a necessidade de atenção dos profissionais para a avaliação dos motivos que mantém unidos casais em situação de violência.
Palavras-chave: Relações conjugais, Conflito conjugal, Violência na família, Violência psicológica, Agressões sexuais.
ABSTRACT
Intimate partner violence demands to be widely studied since its incidence levels are high and it may cause serious health problems to those involved. This study aims to analyze the marital history of a heterosexual couple, considering the different forms of violence employed by both spouses. A qualitative study, with single case study design was developed. Instruments used were a genogram, a semi-structured interview, and the Revised Conflict Tactics Scale (CTS-2). The data showed the couple presented psychological aggression mainly practiced by the wife, and sexual coercion by the husband, alongside a repetition of the violence patterns practiced in their families of origin. The spouses considered that leaving the relationship is harder than staying, on account of financial issues, children, and even the fear of recommencing. It reveals the need of professional attention for the evaluation of reasons that maintain couples in situations of violence.
Keywords: Marital relations, Marital conflict, Family violence, Psychological violence, Sex offenses.
Introdução
O tema da violência conjugal tem sido significativamente investigado pela literatura científica, em especial a partir da segunda metade do século XX (Antunes & Machado, 2012; D'Oliveira, Schraiber, Hanada, & Durand, 2009; Piosiadlo, Fonseca, & Gessner, 2014). Contudo, por se tratar de um fenômeno complexo e de difícil compreensão, constantemente se destaca a necessidade de explorar o assunto, além de pensar em formas de tratamento e/ou prevenção. Atualmente a violência conjugal é a forma mais comum dentre as violências interpessoais (Almeida & Soeiro, 2010) eestudos nacionais revelam que pode estar presente em até 70% dos casais, considerando suas diferentes formas de expressão (Rosa, Boing, Büchele, Oliveira, & Coelho, 2008; Vieira, Perdona, & Santos, 2011).
A violência conjugal pode se manifestar de diferentes formas, sendo as mais frequentes a violência psicológica, física e sexual (Fuentes, Leiva, & Casado, 2008). Para Strauss (1995), as agressões podem ocorrer de diferentes maneiras e intensidades. A violência física pode se manifestar desde empurrões, tapas, puxões de cabelo até dar socos, bater, chutar, usar uma faca ou arma de fogo. A violência psicológica, por sua vez, mais complexa de avaliar, se caracteriza por insultos, xingamentos, gritos, ofensas, ameaças e/ou destruição de objetos pessoais do companheiro. Já a violência sexual ou coerção sexual engloba desde a insistência em fazer sexo até ações que envolvem obrigar o parceiro a ter relações sexuais utilizando-se de força e armas para coação. Qualquer dos diferentes tipos de violência pode proporcionar sérios problemas de saúde aos envolvidos (Razera, Cenci, & Falcke, 2014), sendo que as pesquisas têm destacado a depressão, a ansiedade, o estresse pós-traumático, o aumento nas taxas de suicídio, problemas com alcoolismo e drogas (Caldwell, Swan, & Woodbrown, 2012; Sillito, 2012; Silva, Coelho, & Njaine, 2014).
A exploração do tema vem surgindo a partir de diversas vertentes. O movimento feminista foi a perspectiva que impulsionou os estudos sobre a violência, surgindo em uma época marcada por movimentos sociais em que as mulheres lutavam por direitos civis, educativos e políticos, que até então pertenciam aos homens, herdeiros de uma cultural patriarcal. As feministas denunciam que o homem tem sido privilegiado ao longo da história, enquanto que as mulheres vivem em uma situação de subordinação e dominação especialmente através de seus corpos. A partir disso, surgem estudos sobre a violência cometida por parceiro íntimo, em especial a violência de gênero ocasionada pela opressão do feminino pelo masculino (Jong, Sadala, & Tanaka, 2008; Pazo & Aguiar, 2012; Rada, 2014; Schraiber et al., 2007; Stockman, Lucea, & Kampbell, 2013).
As questões de gênero também têm sido apontadas como possíveis formas de compreensão dos diferentes tipos de violência conjugal. A violência sexual, por exemplo, historicamente vem sendo associada com a tradição patriarcal que, por muitas décadas, consentiu com o modelo de submissão social e sexual da mulher, em troca do controle e poder do homem. A dependência econômica feminina seria uma das explicações para a submissão sexual (Dantas-Berger & Giffin, 2005). Já a agressão psicológica, em muitos casos de violência conjugal, tem sido mais praticada por mulheres do que propriamente pelos homens (Alvim & Souza, 2005; Lee, Stefani & Park, 2014). Uma possível explicação para essa associação entre violência psicológica e gênero feminino está voltada para a distinção na criação de homens e mulheres, sendo elas direcionadas para os aspectos emocionais, e eles, para a razão (Oliveira & Souza, 2006). Embora exista uma possível associação entre as formas de violência praticada e gênero, é válido ressaltar que ambos os cônjuges podem agredir o parceiro de maneiras diversas, bem como utilizando mais de uma forma de violência concomitantemente (Oliveira & Souza, 2006; Schraiber, Barros, Couto, Figueiredo, & Albuquerque, 2012).
Os estudos que privilegiam uma compreensão a partir de categorias de gênero possuem grande relevância para o desenvolvimento e compreensão do fenômeno da violência conjugal. De forma a ampliar essa perspectiva, observa-se uma crescente tendência de propostas teóricas, em especial a sistêmica, que compreendemos relacionamentos conjugais e a violência a partir de múltiplas variáveis em interação. Essa proposta não se preocupa com a culpabilização ou responsabilização pelos atos violentos praticados ou sofridos, mas amplia o foco para a compreensão de que as relações conjugais violentas também podem assumir um viés interacional (Alvim & Souza, 2005; Colossi & Falcke, 2013). Nesses casos, homens e mulheres podem ser agressores e/ou vítimas, visto que as relações não são estáticas e as reações agressivas podem variar conforme o conflito se estabelece (Chan, 2012; Straus, 2008).
A resolução de conflitos através da violência pode se tornar usual no relacionamento entre os cônjuges, tornando essas práticas naturalizadas (Rosa & Falcke, 2014) e inclusive podendo ser transmitida de uma geração para a outra (Marasca, Colossi, & Falcke, 2013). Indivíduos que vivenciam relações violentas, sejam elas no âmbito familiar ou conjugal, apresentam uma tendência à prática de ações violentas na tentativa de resolução de conflitos sem que a considerem inadequada. Atualmente, a naturalização da violência tem sido uma das causas da camuflagem dos índices de violência conjugal, que, por vezes, nem sequer chegam a ser denunciados, também podendo ser uma das responsáveis pela não separação dos casais (Romagnoli, Abreu, & Silveira, 2013).
A reprodução desses modelos de relacionamentos pautados na violência pode ser, além de naturalizada, perpetuada entre gerações, por meio da aprendizagem por modelagem (Baptista, Cardoso, & Gomes, 2012) ou via transmissão de mitos e legados familiares que ocorrem de geração em geração e que são concernentes à repetição de comportamentos, atitudes e até mesmo escolhas (Almeida, Magalhães, & Féres-Carneiro, 2014). O sofrimento e os prejuízos à saúde dos envolvidos são importantes motivações para o desenvolvimento de pesquisas que visem a investigar o relacionamento destes casais, reproduzindo informações e visando à redução dos índices de violência. Pensando nesse cenário, o objetivo deste artigo foi analisar a história conjugal de um casal heterossexual, considerando as diferentes formas de violência praticada pelos cônjuges.
Métodos
O presente estudo, de caráter qualitativo, possui delineamento de estudo de caso único (Yin, 2010). Adotou-se o delineamento de estudo de caso único, pois, conforme Martins (2006), ele permite uma percepção da realidade a partir dos ensinamentos advindos do referencial teórico e das características particulares do caso a ser estudado.
Participou deste estudo um casal heterossexual que vivenciou violência conjugal. Por meio da Revised Conflict Tactics Scale (CTS2), identificaram-se índices de agressão psicológica e coerção sexual, sendo a primeira praticada especialmente pela esposa, e a coerção sexual, pelo marido. Vicente (pseudônimo), 38 anos, possuía ensino médio e no período da entrevista estava trabalhando como motorista, em união estável com Maria Júlia (pseudônimo), 44 anos, que possuía ensino fundamental e trabalhava como cozinheira. Ambos possuíam filhos de relações passadas, que já se encontravam na fase entre a adolescência e a adultez jovem, e um filho de ambos, que se encontrava na infância.
Para atender aos objetivos deste estudo, foram utilizados os seguintes instrumentos:
1) Genograma (Carter & McGoldrick, 1995) – foi utilizado para compreender a história transgeracional do relacionamento. Esta é uma ferramenta que permite ao pesquisador observar um quadro trigeracional das famílias, além dos movimentos do ciclo vital e os padrões de interação familiar. O genograma é um retrato gráfico que possibilita visualizar e mapear a história da família, os relacionamentos e o funcionamento da mesma.
2) Entrevista Semiestruturada – buscou contemplar dados sociodemográficos, além das seguintes questões: a) como ocorreu a escolha dos cônjuges? b) como era o relacionamento conjugal dos cuidadores? c) qual foi a história do relacionamento conjugal? d) como os cônjuges avaliam o relacionamento conjugal que construíram? e) o que os cônjuges consideram como fatores positivos e negativos em seu relacionamento? f) como se manifesta a violência no relacionamento? g) quais os fatores que levam o casal a permanecer juntos?
3) Revised Conflict Tactics Scales – CTS2, concebida por Strauss, Hamby, Boney-McCoy e Sugarman (1996) e adaptada ao português por Moraes, Hasselmann e Reichenheim (2002). O instrumento é constituído por 78 itens que descrevem possíveis ações do respondente e, reciprocamente, de seu/sua companheiro/a. É formada por cinco escalas, que tratam das seguintes dimensões: 1) violência física; 2) agressão psicológica; 3) coerção sexual; 4) lesão corporal; 5) negociação. Estudos prévios evidenciam bons índices de confiabilidade da escala, com Alpha de Cronbach que variaram entre 0.79 e 0.95 (Bolze, Crepaldi, Schmidt, & Vieira, (2013).
Esta pesquisa seguiu todas as diretrizes e normas para pesquisas que envolvem seres humanos de acordo com Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde – Ministério da Saúde. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, sob o parecer número 558.906.
O casal foi localizado através de um banco de dados de um estudo prévio, intitulado: "variáveis preditoras da violência conjugal: experiências na família de origem, características pessoais e relacionais", em que os participantes se prontificaram a participar de etapas seguintes. Foi sorteado dentre os que apresentaram um perfil típico dos casos de violência conjugal, o que justifica a realização de um estudo de caso único. Os participantes receberam informações relacionadas à pesquisa e, em seguida, assinaram o termo de compromisso livre e esclarecido (TCLE). A partir disso, iniciou-se a construção do genograma, ação que demandou informações dos participantes acerca da conjugalidade e da configuração das respectivas famílias de origem. Posteriormente, foi realizada a entrevista semiestruturada, coletando as informações sociodemográficas e realizando a sequência das questões citadas no item Instrumentos.
A entrevista foi realizada por uma psicóloga, terapeuta de casal e família, na residência do casal, e teve dois momentos: inicialmente foi realizada com o casal e, em seguida individualmente com cada cônjuge, possibilitando que expressassem o seu ponto de vista, especialmente sobre os aspectos considerados negativos da relação e o que os fazia permanecerem juntos. No final do encontro, os casais responderam a CTS2.
Os dados obtidos foram analisados descritiva e qualitativamente, sendo que sua análise foi pautada na descrição abrangente do caso organizada de forma cronológica (seguindo os eventos da história do relacionamento do casal) e temática (identificando as diferentes manifestações de violência conjugal). A técnica de explanação de Yin (2010) foi utilizada com o objetivo de analisar exaustivamente os dados coletados a partir de diferentes instrumentos (Yin, 2010). Nesse método, o estudo de caso pode ser revelador de uma situação complexa da vida real, oferecendo descrições e interpretações que chamam a atenção pela singularidade do caso analisado (Martins, 2006).
Apresentação do caso
O genograma do casal analisado permite observar os vínculos e a dinâmica das famílias de origem, bem como da família nuclear. Além disso, observa-se também a ocorrência de relações pautadas pela violência que se estendem nas relações conjugais e nas relações entre pais e filhos.
Conforme relatado no momento de construção do genograma, Vicente teve uma infância bastante conturbada. Os pais vivenciavam um relacionamento permeado por interações violentas e o estilo educativo utilizado com os filhos também se baseava na agressão. Esses fatos foram identificados quando ele comentou: "Eu cresci apanhando muito, vendo o meu pai bater na minha mãe todo dia. Ele bebia, nunca trabalhou, sempre a minha mãe trabalhou e sustentou a família". Já Maria Júlia viveu em um contexto familiar sem evidências de violência física, porém se observou que tanto o estilo de relacionamento conjugal como o parental pareciam basear-se em uma conduta patriarcal, na qual o pai, chefe da família, falava e os demais membros obedecem. A fala de Maria Júlia retrata que: "Na casa do meu pai, uma olhada era suficiente e eu cresci vendo a minha mãe obedecer ele em tudo, não sei se é devido a isso que eles estão juntos até hoje ou não".
O casal teve um período curto de namoro. Aproximadamente 30 dias após se conhecerem, resolveram morar juntos. Vicente refere que essa atitude "foi idiota de ambas as partes", enquanto que, para Maria Júlia, casar após um mês de namoro foi "coisa de criança". Os cônjuges concordam que um dos principais motivos que os levou a essa decisão foi evitar a solidão. Vicente comenta que, no início, quando resolveram casar, tinham o objetivo de "crescer profissionalmente, alguns não concretizamos, mas o casamento continuou". Vicente e Maria Júlia estão em um relacionamento íntimo há cerca de oito anos, sendo que, no decorrer desse período, passaram por duas separações.
Verificou-se, ao longo da entrevista, que as questões profissionais e financeiras eram um pilar de desentendimentos na relação, visto que esse foi um dos principais motivos que resultou na primeira separação vivenciada por eles. Ao ser questionada sobre os motivos, Maria Júlia falou que: "Agente separou pela história que ele não parava nos lugares [era, seguidamente, demitido], não se adaptava em lugar nenhum e eu cansei [...]". Poderia ser essa uma forma de repetição dos padrões familiares vivenciados por Vicente, em que o referencial aprendido foi do pai não trabalhar e a casa ser sustentada pela mãe. Contudo, observou-se que Vicente também analisava que as questões relacionadas com dinheiro eram motivos de recorrentes discussões. Ele referiu que: "O que eu não gosto que ela faz é gastar demais. Eu acho que a gente podia ter uma vida melhor, com o mesmo salário que a gente tá ganhando". Pela descrição que o mesmo fez sobre essas questões, o casal repetia o estilo de relacionamento dos pais de Maria Júlia, em que um acabava aceitando as condições do outro, mesmo não concordando: "A gente brigou porque eu abri a boca e disse que eu achei que tava errado o que ela fez. Aí a gente brigou, aí eu fiquei quieto e ela continuou gastando. Simples assim". Vicente falou que nunca houve violência física, mas, ao ser questionado, relatou que as divergências eram resolvidas no silêncio e no grito "Eu não converso, fico quieto no meu canto, ela, última vez [...] ela começou gritar e gritar muito, eu não gostei muito, mas a minha estratégia é ficar quieto".
Embora ele tentasse transparecer tranquilidade com o manejo da situação, quando questionado sobre os aspectos positivos proporcionados pelo casamento, Vicente não conseguiu responder. Após algum tempo, o mesmo refere: "estamos juntos, só isso". Em seguida, volta a reforçar que atualmente fatores negativos da relação estavam vinculados com os problemas financeiros do casal. Se permaneciam juntos, na visão dele era pela "comodidade, praticidade, deixa eu ir levando a vida assim que está bom, só isso".
Quando Maria Júlia foi questionada sobre os conflitos do casal, a mesma argumentou: "Olha, no início a gente teve conflitos sérios. Motivos? Filhos, tanto do meu lado, quando do dele". No momento em que foi indagada sobre esses conflitos com os filhos, ela referiu o motivo da segunda separação do casal: "Diz que, há seis anos atrás, quando eu tava grávida do Paulinho, ele teria meio que mexido com a Renata (filha mais nova de Maria Júlia, na época com 17 anos). Ela nunca me falou nada disso". A participante falou de um possível "envolvimento" entre o marido e a filha mais nova, e o quanto a situação foi muito desgastante para ela, de intensas brigas com o marido e os familiares. Ela referiu o evento como um dos motivos para uma depressão que viria posteriormente e argumentou: "Eu me senti muito, muito mal. Não sabia o que fazer, não sabia se voltava, voltei acho que mais pela necessidade e pela solidão".
No momento da participação na pesquisa, as brigas do casal tratavam-se da questão dinheiro, da instabilidade de Vicente nos empregos e do peso do sustento da casa que reincidia sobre Maria Júlia: "Eu fico e fico e na hora que explode eu falo coisas que nem queria falar e grito e depois já passa e ponto [...]. Cheguei a dizer que era pra ele pegar a mala e arrumar outro lugar pra viver".
O casal parecia viver uma relação de pouca troca de afeto, pois Maria Júlia comentou: "Eu espero de uma relação é uma vida tranquila, não ligo muito pra questão do amor". Sobre o que ela considera positivo na relação: "Ele é uma pessoa carinhosa, atencioso até demais, que eu não sou metade do que ele é".
Quando Maria Júlia foi indagada sobre os aspectos negativos da relação, surgiram questões relacionadas à sexualidade do casal. A mesma referiu sofrer com a obrigação de manter relações sexuais com o esposo, evitando assim a ocorrência de brigas. "Às vezes fazia a coisa obrigada pra não tá discutindo, pra não tá brigando e saía magoada, já teve muito disso [...]. Aí acabo magoada por semanas por causa disso, isso é bem pesado".
Tanto ou mais que ele, a participante resistiu para falar sobre os motivos que a levavam a permanecer nesta relação. Após um período de silêncio, Maria Júlia comentou: "O filho, eu acho pela necessidade [...] de ter alguém, de me ajudar, eu não dirijo, mais foi pela necessidade mesmo, mas até hoje me sinto mal por causa disso, eu procuro não pensar, porque é uma coisa que ainda me machuca bastante".
Com relação à presença de violência mensurada pela CTS2, os cônjuges pontuaram a ocorrência de violência psicológica, quando assinalaram já ter perpetrado e já ter sofrido xingamentos, ofensas, situações em que um virou as costas e deixou o outro falando sozinho, alterações no tom de voz e outros. O casal não pontuou para a presença de violência física, porém no que se refere à coerção sexual, Maria Júlia assinalou que já sofreu com a insistência do esposo em fazer sexo, mesmo sem uso da força física.
Discussão
O casal repete alguns padrões de relacionamento vivenciados nas famílias de origem. Embora Vicente refira não haver violência física como no relacionamento de seus pais, fica compreensível que a violência se repete na relação conjugal com Maria Júlia, seja pela existência de violência psicológica, através de muitos gritos e ofensas, ou pela coerção sexual que ele exerce com a esposa. Em vistas disso, percebe-se que a violência se perpetua transgeracionalmente nessas relações (Falcke, 2006) ainda que com manifestações diferentes. O mesmo ocorre com Maria Júlia, que também repete um padrão de relacionamento dominador, como era o do pai com sua mãe. Há várias hipóteses explicativas sobre como ocorre a transmissão transgeracional da violência sendo observada a repetição de padrões por modelagem (Baptista et al., 2012), bem como pela transmissão de mitos e legados familiares (Almeida et al., 2014), que promovem a naturalização do fenômeno, na medida em que a violência passa a ser compreendida por quem foi vítima direta ou testemunha como inerente a todo e qualquer relacionamento (Marasca et al., 2013).
Observa-se, no relacionamento do casal, a ocorrência de repetidos episódios violentos, por meio de agressões psicológicas, coerção sexual e até mesmo o suposto abuso sexual de Vicente com a filha mais nova de Maria Júlia, que, embora não seja considerada uma violência conjugal direta, foi o pilar desencadeador da ocorrência de episódios violentos entre o casal. Neste caso, especificamente, ambos os cônjuges praticam alguma forma de violência na relação, o que poderia levar a uma compreensão de que as práticas violentas ocorrem de forma interacional ou intercalada, conforme o conflito se estabelece (Alvim & Souza, 2005; Colossi & Falcke, 2013).
As agressões psicológicas ficam explícitas no depoimento da esposa, evidência que corrobora alguns achados da literatura segundo a qual as mulheres possuem uma tendência maior de utilizar-se de estratégias de agressão psicológica como tentativa de resolução de seus conflitos com o cônjuge (Alvim & Souza, 2005; Lee et al., 2014). Neste caso, pertinente considerar que existem diferentes manifestações de poder, seja exercida por ela, quando faz referência que o sustento da casa cabe a ela, colocando-a no comando, ou por ele, quando utiliza-se da coerção sexual como uma forma de demonstrar que também pode exercer domínio na relação. A violência, exercida por Vicente, nesse caso, pode ser pensada como uma tentativa de igualar o poder na relação (Gomes & Diniz, 2008).
Relações conjugais ligadas à violência, certamente promovem alguma forma de sofrimento aos envolvidos, porém se observa que, em alguns casos, sair do contexto de violência pode ser mais difícil do que propriamente permanecer nele. A decisão de romper pode ser permeada por medos ainda maiores do que o de sofrer violência, como a questão cuidado com os filhos, as questões financeiras, possíveis retaliações e até mesmo o medo relacionado à dificuldade de recomeçar a vida (Silva, Araújo, Valongueiro, & Ludermir, 2012), o que permite compreender quando eles comentam que permanecem nessa relação por ser mais prático e cômodo.
Contextos violentos, na percepção de quem os vivenciam, nem sempre são a pior forma de viver, em especial pelo fato de que muitos indivíduos já estão habituados com esse modelo relacional (Razera & Falcke, 2014). Talvez essa seja uma possível forma de compreender os motivos que levam muitos casais a permanecerem nestas relações por longos períodos de tempo. O medo do desconhecido pode engessar muitas pessoas que não se permitem tentar novas experiências de vida e novas formas de resolução de conflitos, que não a violência. Nesse aspecto, os profissionais da saúde, em especial os psicólogos, possuem papel fundamental no auxílio a esses indivíduos ou casais quando buscam auxílio. Stith e McCollum (2011) traçam algumas diretrizes para o tratamento de casais que vivenciam experiências violentas, em especial aqueles que desejam permanecer juntos. Segundo as autoras, modelos convencionais de terapia não são suficientes e é importante buscar uma rede de apoio ao casal, sendo aconselhável a associação entre terapia individual e terapia conjugal.
Considerações finais
A compreensão de fenômenos violentos demanda um olhar amplo e livre de pré-conceitos, especialmente quando se trata de casais que, mesmo em situações de violência, permanecem juntos. Muitas vezes, indivíduos inseridos nesses contextos não compreendem que algumas atitudes de seus cônjuges podem ser consideradas violentas, menos ainda, identificam a necessidade de cessar esses comportamentos e até mesmo romper essas relações. Isso é bastante comum principalmente nos casos de agressão psicológica, que tem sua identificação dificultada por conter maior subjetividade e por ser uma forma de violência mais difícil de legitimar, assim como em casos de coerção sexual, ainda permeada pela ideia de que as esposas devem atender aos anseios dos maridos, mesmo que contrariem a sua vontade.
No caso investigado, verificou-se que o casal considera mais difícil uma separação do que propriamente permanecer em um contexto com violência. Acabam predominando preocupações com os filhos, com questões financeiras, com as questões relacionadas à moradia e até mesmo a insegurança de começar uma nova vida ou o medo da solidão.
O que se espera nesses casos é que o casal consiga encontrar meios de diminuir ou mesmo extinguir comportamentos violentos que são prejudiciais à saúde e ao bem estar deles e da família. A busca por ajuda psicológica pode melhorar a forma de relacionamento dos cônjuges, além de auxiliá-los na descoberta de novas estratégias de resolução de conflitos, sem violência, ou a efetivação da separação, se assim desejarem.
O presente estudo possui como limitações o fato de ter explorado a vivência singular de um único casal. Ainda assim, acredita-se que pode contribuir com a prática de profissionais que trabalham com violência intrafamiliar e também alertar para a necessidade de investigações futuras, que possam contemplar situações diferentes do que a apresentada neste espaço. A violência conjugal é um fenômeno complexo e por esse motivo possui uma demanda de investigações ampla, com vistas à promoção de melhores condições de vida aos casais e famílias enredados em relacionamentos violentos.
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Endereço para contato
E-mail: dfalcke@unisinos.br
Recebido em abril de 2015
Aceito em julho de 2015
Josiane Razera: Psicóloga pela Faculdade Meridional (IMED). Doutoranda e Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade do Vale dos Sinos (UNISINOS). Especialista em Dinâmicas das Relações Conjugais e Familiares pela Faculdade Meridional (IMED).
Denise Falcke: Psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica (PUCRS). Mestrado em Psicologia Clínica e Doutorado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica (PUCRS). Coordenadora e professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).