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Aletheia
versão impressa ISSN 1413-0394
Aletheia no.45 Canoas dez. 2014
ARTIGOS EMPÍRICOS
Prevalência de transtornos mentais comuns e fatores associados em usuárias de um Centro de Referência de Assistência Social de Canoas/RS
Prevalence of common mental disorders and associated factors in women attending a Social Assistance Reference Center of Canoas/RS
Letícia da Silva Kaspper; Lígia Braun SchermannI
I Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Canoas, RS
RESUMO
Estudo transversal para verificar a prevalência e fatores associados aos transtornos mentais comuns (TMC) em usuárias de um Centro de Referência de Assistência Social da cidade de Canoas/RS. A coleta de dados ocorreu através de questionário sociodemográfico e do Self Report Questionare (SRQ-20). A amostra constou de 94 usuárias com idade entre 19 e 84 anos (média 44,5 anos), renda familiar de até um salário mínimo (76,6%), 1º grau incompleto (58,5%), de raça branca (73,4%), solteira (41,5%) e casada (35,1%) e com média de 3,3 filhos. A prevalência de TMC foi de 52,1%, não sendo encontrados fatores de associação significativos, dentre os estudados. A alta prevalência de TMC indica que as características gerais das mulheres pesquisadas, como baixa escolaridade, baixa renda e não possuir companheiro, potencializam a possibilidade de desenvolver TMC, reforçando a necessidade de mecanismos que o identifiquem e que direcionem a devida atenção a essa população.
Palavras-chave: Transtorno mental comum, Centro de Referência de Assistência Social, Mulheres.
ABSTRACT
Cross-sectional study to estimate the prevalence of Common Mental Disorders (CMD) and associated factors in women attending a Social Assistance Reference Center of Canoas/RS. Data were collected by a sociodemographic questionnaire as well as by the Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20). The sample consisted of all 94 women with ages between 19 and 84 years (mean=44,5 years), family income up to one minimal salary (76,6%), less than first school grade (58,5%), Caucasian (73,4%), single (41,5%) and married (35,1%), with a mean of 3,3 children. The prevalence of common mental disorders was 52,1% and there were not significant association with the risk factors included in the study. The high prevalence of common mental disorders suggests that socioeconomic conditions, as low income, low education and lack of partnership, are potentially strong stressors to develop common mental disorders reinforcing the need to focus on specific health problems and risk groups to improve the impact of care.
Keywords: Common mental disorders, Social Assistance Reference Center, Women.
Introdução
O Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) é uma unidade pública estatal descentralizada da Política Nacional de Assistência Social (PNAS). O CRAS é responsável pela organização e oferta de serviços de proteção social básica nas áreas de vulnerabilidade e risco social.
O serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF), vinculado ao CRAS, é de execução obrigatória e exclusiva àquelas famílias que são beneficiadas com o programa bolsa família por possuírem renda per capita mensal inferior a cento e cinquenta e quatro reais. O PAIF visa fortalecer a função protetiva das famílias, prevenindo a ruptura de vínculos, promovendo o acesso e usufruto de direitos e contribuindo para a melhoria da qualidade de vida (Ministério Desenvolvimento Social, 2014).
A equipe do CRAS é constituída por profissionais (assistente social, psicólogos, advogados, psicopedagogos, dentre outros) responsáveis pela gestão territorial da proteção básica e pela oferta do serviço do PAIF. Sendo assim, o CRAS possui informações sociodemográficas que podem ser utilizadas para auxiliar na identificação da prevalência de transtornos mentais comuns (TMC) em seus usuários (Oliveira et al., 2013).
Transtornos mentais comuns, assim definidos por Goldberg e Huxley (1992), estão relacionados a sintomas como sofrimento psíquico, insônia, cefaleia, fadiga, irritabilidade, esquecimento, dificuldade de concentração, tristeza, ansiedade e preocupação somática. A prevalência de TMC situa-se entre 12% e 50%, dependendo da população estudada e dos critérios diagnósticos utilizados (Gonçalves & Kapczinski, 2008) sendo cerca de 90% constituído por transtornos não psicóticos (Maragno et al., 2006).
Sabe- se que o TMC é uma das maiores causas de incapacidade funcional e que acometem em maior número as mulheres e populações economicamente mais desfavorecidas (Fonseca, Guimarães, & Vasconcelos 2008; Aquino, Nicolau, & Pinheiro 2011). Eventos de vida estressantes e desempenho insatisfatório de papéis sociais podem acarretar baixa autoestima, aumentando assim a suscetibilidade de transtornos mentais comuns. Outros fatores relevantes ao aumento do TMC são internações hospitalares, problemas interpessoais, mudanças de moradia, acesso desigual aos cuidados de saúde, problemas de saúde, desemprego, condições inadequadas de habitação e ser vítima de violência e criminalidade (Fonseca et al., 2008).
Jansen et al. (2011) apontam que o uso do tabaco, álcool e sedentarismo também mostram associações com transtornos mentais comuns. O uso da nicotina pode tanto levar ao desenvolvimento do TMC quanto ao aumento da probabilidade de tornar-se um fumante, uma vez que o seu uso pode ser utilizado como "automedicação" para baixar o nível de ansiedade.
Segundo Fonseca et al. (2008), os transtornos mentais comuns podem se manifestar através de múltiplos sintomas, tais como queixas somáticas inespecíficas, irritabilidade, insônia, nervosismo, dores de cabeça, fadiga, esquecimento, falta de concentração, assim como uma infinidade de manifestações que poderiam se caracterizar como sintomas depressivos, ansiosos ou somatoformes. Estudos apontam que as queixas somáticas inespecíficas, que não são classificáveis nos manuais diagnósticos médicos ou psiquiátricos, podem estar relacionados às relações sociais, familiares, laborativas e econômicas (Costa & Ludermir, 2005).
Neste sentido, pesquisas têm sido realizadas em âmbito nacional e internacional visando analisar a ocorrência de TMC na população e os resultados indicam que a associação de fatores sociodemográficos (socioeconômico e a baixa escolaridade) tem apresentado grande relevância para o risco de ocorrência de TMC, bem como o uso de medicações (Moreira et al., 2011).
Fonseca, Guimarães e Vasconcelos (2008) atentam para o fato de que o TMC é uma das mais importantes causas de morbidade na atenção primária de saúde (Coutinho, 1995). Tem sido observado que indivíduos com transtornos mentais comuns apresentam, em média, duas vezes mais queixas de saúde física do que aqueles sem TMC (Araújo et al., 2003).
Embora os transtornos mentais não sejam causa significativa de mortalidade, são responsáveis por mais de 12% da incapacitação decorrente de doenças, principalmente em mulheres, tanto em países desenvolvidos como naqueles em desenvolvimento (Andrade, Viana, & Silveira, 2006).
No Brasil, o TMC tem apresentado grande impacto econômico em função das demandas nos serviços de saúde e do absenteísmo no trabalho. Neste sentido, a Organização Mundial da Saúde (2002) aponta para a importância de monitorização da saúde mental das comunidades, através de indicadores que incluam o número de indivíduos que apresentem este problema e a qualidade de cuidados que os mesmos recebem.
Lima et al. (2008), em estudo desenvolvido com médicos em dois municípios do Rio Grande do Sul, ressaltam a dificuldade em diagnosticar e tratar pacientes com TMC e comentam que os cuidados com estes pacientes deveriam ser prestados por especialistas e não no contexto de atenção primária, enfatizando assim a importância da saúde mental nas comunidades. Moreira et al. (2011) apontam que no Brasil poucos estudos foram realizados para investigar a prevalência de transtornos mentais comuns em populações assistidas, considerando a importância do assunto para a organização e planejamento de serviços de saúde mental.
Isto demonstra que parte dos profissionais da área da saúde carece de maior preparação e informações sobre TMC, pois geralmente esta demanda é classificada como pacientes poliqueixosos, psicossomáticos, funcionais, psicofuncionais, histéricos e pitiáticos (Fonseca et al., 2008). O TMC é um problema de saúde pública que merece ações preventivas devido às consequências sociais, econômicas e psicológicas, sendo necessária sua identificação precoce para auxiliar e orientar os profissionais nas intervenções.
Neste sentido, o presente estudo pretende verificar a prevalência e fatores associados ao TMC em usuárias adultas de uma unidade do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) da cidade de Canoas/RS.
Método
Estudo transversal, realizado com 94 mulheres usuárias de um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) da região Nordeste de Canoas/RS. Amostra foi constituída por todas as usuárias, com idade acima de 18 anos, que buscaram atendimento no CRAS por um período de 15 dias consecutivos em novembro de 2014. Foi aplicado um questionário sociodemográfico, desenvolvido para este estudo, investigando as variáveis: idade, raça, escolaridade, estado civil, número de filhos e renda familiar.
Para avaliar a prevalência de transtornos mentais comuns foi utilizado o Self Report Questionare (SRQ-20) elaborado por Harding et al. (1980). O SRQ-20 foi validado no Brasil para o rastreamento de transtornos mentais não psicóticos. As respostas são do tipo sim/não e resposta positiva equivale a um ponto. Para que seja caracterizada a presença de TMC é necessário que o sujeito atinja a pontuação acima de 7 pontos independente do sexo. Este instrumento é recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para estudos coletivos por apresentar critérios como facilidade de aplicação e custo reduzido (Gonçalves, Stein, & Kapezinski, 2008).
Após obter a autorização da Diretoria de Proteção Especial Básica responsável por coordenar os CRAS, as entrevistas foram realizadas individualmente em uma sala fornecida pela coordenação do local. As participantes da pesquisa assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), sendo informados os objetivos e procedimentos do estudo, bem como assegurado o sigilo das informações fornecidas.
Os dados coletados foram digitados em planilha Excel® e inseridos no software SPSS 18,0 for WINDOWS (Statistical Package for the Social Sciences). Os dados foram submetidos à análise univariada para descrição da amostra e análise bivariada (teste quiquadrado para variáveis qualitativas; teste t de student para variáveis quantitativas) para verificar a associação entre as variáveis sociodemográficas com TMC. Foi considerado o nível de significância P≤ 0,05.
Esta pesquisa foi submetida pelo Comitê de Ética em pesquisa da Ulbra/Canoas com o protocolo de número 890.956 de acordo com as normas vigentes expressas na Resolução N° 196/1996 do Conselho Nacional de Saúde/ Ministério da Saúde.
Resultados
Foram estudados 94 mulheres com idade entre 19 e 84 anos. A maioria era de raça branca (73,4%), estudou até o primeiro grau incompleto (58,5%), apresentou renda familiar inferior a um salário mínimo (76,6%), sendo 41,5% solteiras e 35,1% casadas. A média de idade foi 44,5 anos (DP=15,5) e a média de filhos foi 3,3 (DP=2,2) (Tabela 1). A prevalência de transtornos mentais comuns foi de 52,1%. Na comparação entre as mulheres com e sem TMC, não foram encontradas diferenças significativas em relação às variáveis estudadas.
Discussão
A prevalência de TMC nesta pesquisa foi de 52,1%, o que indica uma elevada taxa na população alvo investigada. Estudos internacionais mostram uma prevalência de TMC entre 24,6% e 45,3% na população geral (Ribeiro et al., 2009). No cenário brasileiro, as pesquisas sobre TMC demonstraram taxas de prevalência que variaram de 17 a 35% (Gomes, Miguel, & Miasso 2013). Vidal et al. (2013) mencionam que a prevalência mundial e nacional de transtornos mentais na atenção básica é relevante, chegando a um terço da demanda, taxas essas que alcançam e até ultrapassam os 50%. Em pesquisa realizada no CRAS da cidade de São Lourenço do Sul- RS, foi encontrada prevalência de 48,3% de TMC em mulheres, estando este resultado próximo ao do presente estudo (Moreira et al., 2011).
Em relação aos fatores associados ao TMC, é consenso na literatura que baixa escolaridade, baixa renda e sexo feminino aumentam a tendência dessas manifestações (Fonseca, Guimarães, & Vasconcelos, 2008; Gomes, Miguel, & Miasso, 2013). Costa e Ludermir (2005) encontraram em sua pesquisa 36% de índice de TMC, relacionando os resultados à fatores como pobreza e baixa escolaridade.
As mulheres experimentam taxas mais elevadas de transtornos do humor e transtornos de ansiedade que os homens, estando associado a variáveis relativas às condições de vida, às características sociodemográficas e à estrutura ocupacional (Araújo, Pinho, & Almeida. 2005; Martin, Quirino, & Mari. 2007). Nas últimas décadas, ocorreram mudan ças consideráveis no papel da mulher na so ciedade o que pode ter contribuído para o aumento dos problemas de saúde mental nessa população (Rocha et al., 2010).
Galvão et al. (2007) destacam que, em estudos com populações femininas, há uma maior prevalência dos transtornos mentais comuns em mulheres com piores níveis educacionais. No caso específico da pesquisa ao se considerarem os indivíduos com 1º grau incompleto estes representam o maior número de indivíduos com TMC, reforçando as tendências apresentadas em outros estudos.
Júnior (2010) destaca que a baixa escolaridade pode resultar em uma diferença significativa da capacidade de lidar com adversidades, assim como nas possibilidades de desempenho socioeconômico, como ocupação, renda, condições de moradia, posse de bens fundamentais, entre outros aspectos relacionados à saúde física e mental. Estas comparações são observadas principalmente nos países desenvolvidos, onde a maioria expressiva da população tem altos índices de escolaridade.
Considerando que o baixo nível escolar propicia menor possibilidade de inserção no mercado de trabalho, essas duas variáveis, muitas vezes, estão associadas. A amostra do presente estudo foi constituída exclusivamente por mulheres provenientes de um centro de atendimento para pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade social. Em sua grande maioria, a amostra apresentou renda familiar de até um salário mínimo e baixo nível educacional (até o primeiro grau), além de ser constituída unicamente por mulheres. Esses fatores, conforme mencionado na literatura, podem ter potencializado a ocorrência de TMC.
Famílias numerosas podem aumentar a possibilidade de desenvolvimento de TMC. Araújo, Pinho e Almeida (2005) entrevistaram 2055 mulheres maiores de 15 anos na Bahia e obtiveram uma relação diretamente proporcional entre o número de filhos e a prevalência de TMC (30,9%), aumentando a tendência de desenvolvimento em função da sobrecarga de trabalho, atividades domésticas e pela falta de apoio. A média do número de filhos obtida na presente pesquisa (3,3) não contribuiu para diferenciar mulheres com e sem TMC.
Em relação à raça, o presente estudo encontrou percentuais iguais de TMC em mulheres brancas e não brancas, contrariando achados de outros estudos. A pesquisa de Araújo, Pinho e Almeida (2005), mencionada anteriormente, revelou maior presença de TMC em mulheres de cor de pele negra ou parda. Estes autores igualmente mostraram associação entre estado civil e TMC. A maioria das mulheres por eles estudadas declararam ser solteira, separada ou viúva o que pode contribuir no aumento da jornada de trabalho e consequente sofrimento mental proveniente da intensidade destas atividades (Araújo, Pinho, & Almeida, 2005).
A idade da mulher pode ser considerada um fator preponderante para o desenvolvimento de TMC em função do climatério, que representa o período de vida da mulher em que ocorre a transição da fase reprodutiva para a não reprodutiva. Esta fase é caracterizada por profundas mudanças físicas e emocionais, as quais sofrem influência de fatores inerentes à história de vida pessoal e familiar, ao ambiente, à cultura, aos costumes e ao psiquismo, dentre outros (Galvão et al., 2007). A média de idade das mulheres do presente estudo foi semelhante entre aquelas com e sem TMC (45,4 e 43,6 anos, respectivamente).
Considerações finais
A presente pesquisa permitiu verificar o perfil de mulheres que utilizaram o CRAS no período em que os dados foram coletados e a prevalência de TMC. Embora nenhuma das variáveis sociodemográficas estudadas tenha apresentado associação com o TMC, considera-se que características específicas dessa população, como sexo feminino e pertencer ao estrato populacional com maior vulnerabilidade social, contribuíram para a alta prevalência do TMC.
Neste sentido, há evidências de que estas mulheres necessitam de atenção especial no que se refere à promoção e proteção de sua saúde mental, fomentando a discussão em torno da inclusão de políticas públicas e sociais que minimizem as possibilidades de desenvolvimento de TMC.
Existe a necessidade de mecanismos efetivos que identifiquem as pessoas com TMC e que realizem intervenções efetivas para evitar prejuízos físicos e psicológicos a populações menos favorecidas,
Como limitações do estudo, pode-se mencionar a amostra relativamente pequena, sugerindo-se pesquisas mais amplas, neste mesmo contexto, que ofereçam maior possibilidade de indicar a presença de fatores associados ao transtorno mental comum.
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Recebido em setembro de 2015
Aceito em outubro de 2015
Letícia da Silva Kaspper: Acadêmica do Curso de Psicologia. Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Canoas, RS.
Lígia Braun Schermann: Orientadora, professora do curso de Psicologia – ULBRA, Canoas, RS.