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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.46 Canoas abr. 2015

 

ARTIGOS EMPÍRICOS

 

Violência no contexto da educação infantil: um olhar da psicologia escolar

 

Violence in the context of early childhood education: an educational psychology look

 

 

Cristiane Angst; Lisiane Machado de Oliveira-MenegottoI; Carmem Regina GiongoI

I Universidade Feevale

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RESUMO

Este estudo tem como objetivo analisar e discutir as contribuições da Psicologia Escolar diante da violência presente na relação professor-aluno no contexto da Educação Infantil. A coleta de dados foi realizada na turma do Maternal II, em uma escola de Educação Infantil do interior do estado do Rio Grande do Sul. Como instrumentos de pesquisa foram utilizados a observação de natureza participante e a análise documental do Projeto Político-Pedagógico. Duas professoras e 16 crianças participaram da pesquisa. A análise dos dados ocorreu por meio de análise de conteúdo e triangulação, considerando o Projeto Político-Pedagógico e os diários de campo. Os resultados apontaram para paradoxos e contradições entre a concepção de educação explicitada no Projeto Político-Pedagógico e o manejo das professoras, permeado pela violência. Os resultados foram discutidos a partir da Psicologia Escolar, e geraram diversas possibilidades de intervenção e transformação das relações escolares pautadas na violência.

Palavras-chave: Violência, Educação infantil, Psicologia escolar.


ABSTRACT

This article aims to analyze and discuss the contributions of Educational Psychology towards violence, present in teacher-student relations in the Kindergarten. Data collection was performed at Pre-K class, at a school of early childhood education, in the state of Rio Grande do Sul. The research tools used were the participant naturalistic observation and content analysis of the Political-Pedagogical project. Two teachers and 16 children participated in the research. Data analysis occurred through content analysis and triangulation, considering the Political-Pedagogical Project and fieldnotes. The results pointed at paradoxes and contradictions between the concept of explicit education in the Political-Pedagogical Project and the management of teachers, permeated by violence. Data were discussed from an Educational Psychology perspective, which generated various intervention possibilities and transformation of school relations based on violence.

Keywords: Violence, Early childhood education, Educational psychology.


 

 

Introdução

A Educação Infantil tem ocupado um importante lugar na agenda política nacional, visto que representa um espaço indispensável e atrelado ao desenvolvimento dos índices de educação, de crescimento econômico, de renda e trabalho da população. Nessa perspectiva, o PNE (Plano Nacional de Educação) possui como objetivo principal a universalização da pré-escola para crianças de 4 e 5 anos e a ampliação de, pelo menos, 50% da cobertura de creches para crianças de até 3 anos até 2020 (MEC, 2010). O investimento e a priorização deste espaço que deve articular o cuidado e a educação apontam para uma construção histórica que passou por inúmeras transformações desde o seu surgimento no século XIX. Inicialmente, as primeiras instituições criadas no país eram de cunho assistencialista, na medida em que prestavam suporte às famílias trabalhadoras. Com o passar dos anos, foi construída socialmente uma preocupação com o desenvolvimento integral das crianças (Flach & Sordi, 2007).

Em função desta nova demanda, foram implantados os "jardins de infância" e as crianças de 0 a 6 anos tiveram o direito à educação garantido pela Constituição Federal (Brasil, 1988), em seu Art.208, inciso IV (Nascimento, 2012). As creches começaram, então, a atender crianças de todas as classes sociais e a se preocuparem mais com a educação, para além da perspectiva assistencialista. Em 1990, foi aprovada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), que incluiu as creches e pré-escolas na categoria de instituições de ensino, estabelecendo um caráter pedagógico ao que era considerado, até então, assistencial. A concepção do desenvolvimento integral foi destacada na LDB de 1996 (Brasil, 1996), no seu Art. 29, que estabelece que a Educação Infantil possui o objetivo de desenvolver integralmente a "criança até seis anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade".

No cenário atual, portanto, considera-se que as escolas de Educação Infantil ocupam um lugar essencial no processo de subjetivação das crianças, inserção social, educação e aprendizado. A infância compreende uma etapa substancial do desenvolvimento relacionado à aquisição da linguagem e à construção da subjetividade e do laço social. A criança está numa condição de estreita dependência ao adulto, constituindo-se a partir do olhar desse agente fundamental, que cuida e educa, no sentido de humanizar (Jerusalinsky, 2011; Mariotto, 2009).

A escola de Educação Infantil, por sua vez, costuma demarcar uma importante separação com relação aos pais, introduzindo um cuidado para além da família e tendo um papel fundamental na constituição dos laços sociais. Sendo assim, torna-se imprescindível um olhar atento e especial à inserção (Sartori, 2001) e ao desenvolvimento das crianças na escola de Educação Infantil. Afinal, sempre que se trabalha com a infância, opera-se na perspectiva da prevenção.

O presente artigo propõe-se a colocar em pauta a discussão sobre a violência na escola de Educação Infantil. Considerando a especificidade do ambiente escolar, o manejo do professor pode ocorrer permeado por diferentes modos de violência, sobretudo quando ele submete os alunos às regras e à rotina escolar sem respeitar seus aspectos subjetivos e relativos ao desenvolvimento. Quando as regras não são cumpridas pela criança, o professor pode utilizar advertências verbais, que podem chegar a se tornar agressões físicas e psicológicas, tais como expor a criança a situações humilhantes e constrangedoras perante a turma (Carlindo & Silva, 2011). Assim, a violência faz parte do contexto escolar e, mais especificamente, da relação professor-aluno, podendo se manifestar de forma mais explícita, por meio de agressão entre indivíduos, ou de modo simbólico, por meio das regras, normas e hábitos culturais de uma sociedade desigual (Stelko-Pereira & Williams, 2010).

Justamente por representar um espaço de fundamental importância e complexidade, são relevantes os estudos e debates acerca da função, condições e papel assumido por estas instituições no país. Iniciativas como pesquisas nacionais acerca de indicadores de qualidade da educação infantil, como teses e dissertações sobre o tema, como formação de professores, como garantia de orientação pedagógica aos professores, entre outras ações, são indispensáveis e têm atuado na busca pelas melhorias necessárias (MEC, 2009).

Diante disso, uma área com importante potencial de auxílio na busca pela problematização e pela qualidade da Educação Infantil é a Psicologia Escolar. Apesar de uma origem pautada em intervenções clínicas, perspectivas individuais e voltadas para a culpabilização ora do aluno, ora da família, ora do professor, a Psicologia no campo da Educação sofreu diversas transformações nas últimas décadas. Atualmente, sabe-se que para contribuir com a transformação do espaço escolar o psicólogo deverá entender e apropriar-se do funcionamento da escola, inserindo-se no cotidiano da mesma, interferindo no dito e não-dito, proporcionando situações onde as práticas sociais tenham condições de ser ressignificadas (Andrada, 2005; Martins, 2003). Desta maneira, a estruturação do trabalho deverá envolver o coletivo escolar e a instituição como um todo, assegurando e proporcionando a participação de todos os segmentos que vivenciam aquele espaço.

Além disso, espera-se que as intervenções neste âmbito ocorram em contextos não tradicionais, como na construção do Projeto Político Pedagógico, nas reuniões de conselho de classe, nas discussões pedagógicas, nas conversas com pais e alunos, no relacionamento com os professores e com a comunidade, entre diversos outros (Patto, 2002; Kupfer; 1997; Maluf, 1994). Para Andrada (2005), o grande desafio da escola e do psicólogo escolar, é o de encarar os "problemas escolares", a partir de um modelo circular e não mais a partir de um modelo linear. Isso porque esse último modelo situa a problemática como centrada no aluno e sua família, desconsiderando os determinantes sociais e da própria instituição escolar.

Nessa perspectiva, este estudo tem como objetivo analisar e discutir as contribuições da Psicologia Escolar diante da violência presente na relação professor-aluno no contexto da Educação Infantil. Através disso, pretende contribuir com o debate acerca desta importante temática e suas interfaces com a saúde mental de todos os atores presentes no contexto da educação infantil. Acredita-se que este debate ocupa um espaço essencial na formulação de políticas públicas e na problematização do papel da psicologia frente ao modelo de educação infantil brasileiro.

 

Método

Esse estudo possui um delineamento exploratório-descritivo e foi desenvolvimento a partir do método qualitativo. A coleta de dados ocorreu em uma escola municipal de Educação Infantil (EMEI) de uma cidade do interior do estado do Rio Grande do Sul. Para realizar esta pesquisa, a direção da escola foi consultada e convidada a participar. Foi solicitada autorização para observar a turma de Maternal II e para consultar o Projeto Político-Pedagógico da instituição. Mediante o aceite, as professoras responsáveis pela turma foram convidadas para participarem desta pesquisa, as quais, imediatamente aceitaram. Nesse sentido, a pesquisa contou com a participação de 16 crianças e duas professoras de uma turma de Maternal II. As crianças que participaram dessa pesquisa possuem, em média, três anos de idade. Quanto às professoras, uma delas, a titular da turma, possui Ensino Médio completo e está cursando Pedagogia, enquanto a outra, possui Magistério completo e sua função na escola é a de auxiliar da turma.

Como instrumento para a coleta de dados foram utilizados diários de campo elaborados após cada observação participante (Laville & Dionne, 1999; Martins, 2002), que ocorreu por meio de acompanhamento das crianças e das professoras em todas as suas rotinas. As observações foram conduzidas pela primeira autora desse artigo. A coleta de dados foi realizada no mês de fevereiro de 2014, e contou com oito encontros de observações, de uma hora cada, sempre no mesmo dia e horário. Além disso, foi utilizada a técnica de análise documental para o entendimento do Projeto Político-Pedagógico da escola.

A análise dos dados foi realizada por meio de análise de conteúdo, conforme método proposto por Laville e Dionne (1999). Sendo assim, após a leitura exaustiva de todos os diários de campo, foi elaborado um resumo de cada observação e foram criados eixos de discussão temática, considerando o objetivo do estudo em questão. Foi adotado o modelo misto de definição de eixos temáticos, situado entre o modelo aberto e o modelo fechado, na medida em que parte de categorias pré-estabelecidas, mas permite modificá-las em função do que a análise apontar. Posteriormente, foi realizada a análise dos dados, por meio de emparelhamento, associando os dados recolhidos a um modelo teórico com a finalidade de articulá-los.

Cabe destacar que esta pesquisa faz parte de um estudo maior, coordenado pela segunda autora desse artigo, intitulado "Infância, escola e saúde mental na perspectiva dos cuidados primários", aprovado no Comitê de Ética, da Universidade Feevale, no dia 28 de agosto de 2012, sob o parecer número 83400. Além disso, as professoras e a escola assinaram, respectivamente, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e o Termo de Compromisso para a Utilização de Dados. Para preservar a identidade dos participantes, foi utilizado o recurso de codinomes.

 

Análise e discussão dos resultados

A partir da análise dos resultados foram diversas as temáticas emergentes, como por exemplo, o processo do brincar na educação infantil, a concepção e o processo de desumanização da educação, as características da relação professor-aluno, entre outras. No entanto, buscando atender ao objetivo proposto por este artigo, o objeto principal desta discussão terá como recorte a violência observada no manejo das professoras com relação às crianças e as interfaces deste fenômeno com as questões institucionais e com o papel da Psicologia Escolar.

Violência no contexto da Educação Infantil e suas interfaces institucionais

Ao longo da inserção da pesquisadora na escola participante deste estudo, foi possível evidenciar a violência no manejo das professoras manifestava-se ora sutil, sob a forma de humilhação, retaliação, repressão e abandono, ora explícita, em forma de ameaças verbais, desrespeito e punições, corroborando o que Stelko-Pereira e Williams (2010) propõem acerca da manifestação da violência escolar de modo explícito ou simbólico. A maior parte destas práticas era justificada pela manutenção de uma rotina e organização escolar. Este cenário, permeado pela violência simbólica e explícita, pode ser percebido no relato:

A professora Tatiane interveio em uma briga, exigindo um pedido de desculpa entre as crianças, ameaçando castigar o menino, considerado por ela agressor, caso não pedisse desculpas: "pede desculpa ou tu vai sentar um pouquinho". Paulo, com uma expressão triste, defendeu-se e falou que não tinha batido e, em seguida, começou a chorar. A professora Tatiane não escutou o que Paulo tinha a dizer e logo ordenou que ele sentasse um pouquinho. Ele ficou sentado em um canto da parede quieto, triste e "esquecido" pelas professoras até a hora em que foram fazer a fila para ir ao banheiro. Nessa hora, ele levantou por conta e seguiu a turma. (Diário de Campo, 2ª Observação, 05/02/2014)

Além de ameaças verbais, as professoras também utilizavam práticas punitivas, tirando a liberdade da criança de brincar. A maneira de punir merece ser destacada, pois elas utilizavam como "cadeirinha de pensar" a parede da sala de aula ou um canto do pátio. Quando a criança recebia tal castigo, não raramente acabava sendo esquecida, sem que tivesse um espaço educativo para falar e ser escutada sobre o que aconteceu e ter seus atos mediados pela compreensão de um adulto. Tais episódios relatados pela observadora denunciam a falha das professoras em propor aquilo que Vokoy e Pedroza (2005) sustentam como uma importante prática educacional: a transformação dos acontecimentos que geram conflitos em momentos pedagógicos. Outros exemplos de punição e violência podem ser citados como o fato de obrigar as crianças a comerem determinado alimento, mesmo sabendo que elas não gostam do tipo de comida, sendo tal prática justificada como pedagógica, no sentido de coagir a criança a respeitar e aceitar as regras e normas da escola. Este processo pode ser observado no relato,

[...] as professoras solicitaram que todos sentassem no tapete "com perninhas de índio", para então distribuir a fruta já descascada para as crianças. Todos pegaram uma fruta para comer e a professora Tatiane lembrou-se de que Pedro ainda estava de castigo. Ela olhou para ele falando ironicamente e, ao mesmo tempo, ameaçando-o: "tu vai comer fruta aí, tu pode levantar, senão tu vai ficar aí mais tempo". Pedro, todo encabulado, concordou em comer uma banana. Então, a professora não se absteve e veio me contar alegremente a sua vitória: ele não gosta de comer frutas, mas tem que aprender. (Diário de Campo, 5ª Observação, 17/02/2014)

Além de utilizar esse tipo de punição, as professoras também expunham as crianças a humilhações diante da turma, não respeitando a individualidade e o tempo de aprendizagem das crianças. Na segunda observação, foi possível visualizar uma cena na qual a professora Tatiane manejou de maneira disciplinadora. Nesse encontro,

As crianças fizeram uma fila para irem ao banheiro. Uma a uma usava o vaso sanitário, João, que é o menor da turma, fez um pouco de xixi fora do vaso. Diante disso, a professora Tatiane, em vez de acolhê-lo, já que eles estão na fase de desfraldamento, pegou-o pela mão, puxou-o para fora do banheiro e ordenou, em tom de punição, que buscasse um pano com a higienizadora. João, muito assustado, envergonhado, exposto e com medo da professora, foi procurar Bruna (higienizadora da creche, todas as crianças têm medo dela, por ela ser muito braba) e pediu um pano. A professora Tatiane acompanhou-o e, em seguida, o fez limpar o chão na frente de todos os outros coleguinhas. O menino pareceu apático e assustado. Estava com a aparência pálida, possivelmente, de medo. A professora Tatiane olhou para mim e, com naturalidade, comentou que tinha que ensinar as crianças desde pequenas, senão, depois de grandes, não aprenderiam mais. (Diário de Campo, 2ª Observação, 05/02/2014)

A partir destes excertos de observação, percebe-se que a professora Tatiane não se sensibilizou com a criança que está em pleno processo de desfraldamento e está aprendendo a utilizar o sanitário de maneira adequada. Em vez de acolher e ensinar essa criança, ela a castiga e a humilha diante da turma, emergindo ali, a violência em forma de desrespeito ao tempo de desenvolvimento e de aprendizagem da criança. No entanto, justifica seus atos permeados pela violência, como pedagógicos e benéficos ao aprendizado da criança. Assim, em busca da ordem e da disciplina, as professoras agem exercendo violência na relação com as crianças, retirando sua liberdade de brincar e de interagir com os colegas, se utilizando da punição como uma forma de "corrigir a infração" cometida pela criança.

Diante destes diferentes relatos, percebe-se que estes manejos estão impregnados pelo caráter disciplinador, podendo ter como efeito o aniquilamento da criatividade das crianças, que, em geral, caladas, acabavam aceitando as humilhações, as repressões e os castigos. Por vezes, demonstravam apatia, outras vezes, sintomas que podem ser considerados uma espécie de contestação e que acabavam, novamente, sendo oprimidos pela escola. Isso remete ao que Foucault (2005) destacou em sua obra, intitulada, Vigiar e Punir, no que se refere ao tema da "Sociedade Disciplinar", que consiste em um sistema de controle social através de várias técnicas institucionais. Na perspectiva apontada por Foucault, o que está em pauta é a punição, a docilização dos corpos e o adestramento.

Articulando estes dados com a análise do Projeto Político-Pedagógico, pôde-se perceber que existem importantes contradições entre o que a escola propõe como sendo seu ideal de ensino e a maneira como as relações acontecem na prática. Tais contradições revelam que a escola de Educação Infantil é um terreno fértil para condutas higienistas (Mariotto, 2009), de modo que as atitudes disciplinadoras das professoras podem ser, nessa perspectiva, produtoras de violência. Segundo Martins (2002, p.98), "o paradoxo de um projeto educativo voltado para a autonomia, para a autorização, consiste no fato de que ele deve ajudar os seres humanos a aceder à autonomia ao mesmo tempo em que interiorizam as instituições existentes". Na escola em questão, a proposta do Projeto Político-Pedagógico, sustentada por um modelo de escola capaz de construir espaços nos quais as crianças possam brincar e desenvolver diversos aprendizados bem como a independência, a criatividade e a autoconfiança, era, constantemente corrompida pela ordem e pela disciplina. Isso aponta para uma espécie de abismo entre o saber e o fazer na escola em questão.

Durante as observações também foi possível evidenciar a insegurança por parte das professoras, que buscavam a aprovação e amparo da observadora, sendo que justificavam algumas de suas atitudes e esperavam um retorno da observadora de como proceder com as crianças. Na segunda observação, por exemplo, fazia muito calor, e, as crianças brincavam alegremente no pátio, não se importando com as condições climáticas. No entanto, a professora Tatiane ordenou para pararem de correr, ameaçando que quem não obedecesse sentaria para pensar. Logo após dar essa ordem para as crianças, a professora justificou sua atitude autoritária, buscando a concordância da observadora.

[...] "imediatamente, olhou-me como quem busca uma aprovação, justificando que estava muito quente para correr. Concordei com o calor, pois estávamos em pleno verão e, naquele dia, estava extremamente quente àquela hora da manhã, mas tal restrição parecia incoerente, considerando a fase de desenvolvimento das crianças. (Diário de Campo, 2ª Observação, 05/02/2014)

Além disso, as observações demonstram que as professoras se encontravam desamparadas para exercer sua profissão, sendo que, em alguns momentos, inconscientemente, pareciam estar fazendo uso da punição e da violência para "proteger" a criança dos "perigos" por elas considerados reais. Esta hipótese pode ser evidenciada no excerto da segunda observação. Nesse dia, a professora buscou proteger as crianças do calor. No entanto, sem o devido conhecimento, acabou se utilizando de ameaças para fazer com que as crianças cooperassem, buscando auxílio e aprovação da observadora. Esta, entre outras cenas observadas, indica o quanto essas professoras fazem uma espécie de apelo e denúncia de seu desamparo, necessitando de ajuda profissional, que possa abrir um espaço para reflexão de seu fazer.

Embora, em muitos momentos, tornou-se difícil o acompanhamento e observação dos inúmeros manejos permeados pela violência na escola, este estudo apontou que as professoras, na realidade, estão desamparadas pela instituição e isso acaba se refletindo nos atos e nas atitudes com as crianças. Diante dos cuidados prestados por essas professoras, é preciso refletir sobre a seguinte questão: que lugar é esse de educador, que não produz mais desejo? É importante problematizar o lugar do professor de Educação Infantil, na medida em que é raro vermos alguém buscar o magistério nessa etapa escolar como profissão. Seria esse um lugar desvalorizado? Esses interrogantes reforçam os resultados da pesquisa de Mezzalira e Guzzo (2011), que destacam a opressão dos educadores, no contexto da Educação Infantil, pela postura centralizadora da equipe gestora nas tomadas de decisões, além de um sentimento de desmotivação nos educadores, diante da gestão que sustenta uma posição pouco empática e carregada de críticas. As observações levam a crer que, embora esse seja o espaço e o tempo escolar mais importante para a constituição psíquica de um sujeito, é um lugar pouco desejado pelos professores e, raramente, é objeto de atenção da gestão escolar.

Com a nova Lei de Diretrizes e Bases, Lei nº 9.394/96 (Brasil, 1996), a educação da criança pequena passou a ser exercida por creches e pré-escolas. As creches, que até então tinham a função assistencial, passaram a ser incluídas no novo método de ensino nacional. Porém, ainda existe o estigma de que a creche é um lugar onde apenas se cuida de crianças, de modo que não raramente o professor de Educação Infantil é chamado de cuidador, tendo essa expressão, muitas vezes, um caráter pejorativo. Essa falta de reconhecimento do professor, como alguém que, além de cuidar também educa, acaba fragilizando o papel e a importância deste profissional. Outro fator que contribui é a pouca escolaridade exigida para esse profissional e os baixos salários oferecidos (Veríssimo & Fonseca, 2003). Nesse sentido, ao discutir a Educação Infantil e os cuidados exercidos pelos professores com as crianças, Mariotto (2009, p.129) afirma que "cuidar, educar e prevenir são funções que não podem ser aprendidas de forma separada". Sendo assim, ao cuidarmos de um corpo, estamos educando um sujeito.

No final do quarto encontro, a vice-diretora abordou a observadora, realizando diversas perguntas sobre o trabalho exercido pelas professoras, demonstrando uma preocupação para com as crianças. Segundo ela, há algum tempo, estava analisando a interação das professoras para com as crianças, não aprovando certas atitudes. No entanto, se contradiz na oitava observação, quando apoia a atitude disciplinadora e produtora de violência das professoras. Nesse encontro,

[...] na hora de entrar na sala para lanchar, Roberto lembrou a professora de seu brinquedo. A professora Tatiane, que tinha acabado de voltar, intrometeu-se no assunto, falando que todos estavam avisados para não jogarem brinquedos no ralo e que, agora, ele ficaria lá. Ela olhou para mim com um olhar de deboche, justificando sua atitude, ao falar que eles tinham que aprender e que, mais tarde, pegaria o brinquedo. Roberto, porém, começou a chorar alto. A vice-diretora entrou na sala de aula e solicitou uma explicação sobre o que estava acontecendo. Informada sobre o motivo do choro, apoiou a posição da professora, reforçando que deviam aprender desde pequenos. (Diário de campo, 8ª Observação, 26/02/2014)

Assim, foi possível perceber que intervenções disciplinadoras e pautadas na violência com relação aos alunos foram encorajadas pela vice-diretora, permitindo sugerir que estas relações não estavam localizadas somente no manejo das professoras, mas em todo o ambiente escolar. Apoiado no paradigma libertador da pedagogia, Alves (2010) propõe que as escolas deveriam se tornar espaços onde as crianças pudessem desenvolver sua criatividade e os professores, por sua vez, devessem ser um provocador da curiosidade e do desejo de aprender. Para além disso, as escolas também deveriam se transformar em locais, onde os educadores pudessem colocar sua criatividade e subjetividade no trabalho, com apoio, orientação e espaços coletivos de fala e escuta. Afinal, não basta um olhar apenas sobre a escola ou os profissionais que nela atuam, é preciso problematizar conjuntamente o significado destes espaços, o trabalho, o funcionamento institucional escolar e as relações ali instituídas, propondo análises e intervenções coletivas que possam produzir transformações sociais e institucionais através das pessoas.

O espaço e as contribuições da Psicologia Escolar

Sabe-se que o trabalho do psicólogo no contexto escolar deve estar pautado em uma perspectiva grupal e institucional, buscando romper com intervenções e análises individualizadas e descontextualizadas institucionalmente. Nesse sentido, para trabalhar em escolas, o psicólogo deve investigar o clima da instituição, a interação dos professores com os alunos, bem como as relações de poder que se estabelecem neste ambiente (Patias & Abaid, 2014). Processo que se configura como um desafio permanente, visto que a psicologia necessita, constantemente, planejar e propor novas práticas de intervenção, para amenizar as marcas históricas que ficaram registradas na memória das instituições através das intervenções clínicas-individuais (Giongo & Oliveira-Menegotto, 2011).

Apesar disso, os dados apresentados acerca das demandas direcionadas para o psicólogo no contexto escolar apontam para resquícios da concepção e do papel inicial assumidos pela Psicologia Escolar no Brasil, o qual se pautavam no ajustamento dos alunos considerados um problema na sala de aula (Andrada, 2005). Diante disso, embora sejam inegáveis as transformações ocorridas na área, a literatura demonstra que a presença do psicólogo, no cotidiano das escolas gera expectativas de que este terá, também, um papel de auxiliar na manutenção da ordem e da disciplina dos alunos (Martins, 2002; Patias & Abaid, 2014). Corrobora estes dados, uma pesquisa realizada em escolas municipais do interior do Rio Grande do Sul, que apontou que grande parte dos professores acreditam que o psicólogo está no ambiente escolar para solucionar os problemas ali existentes e consertar os alunos (Giongo & Oliveira-Menegotto, 2011).

Ao longo das observações realizadas foi possível perceber que existe a perspectiva de que o psicólogo é o profissional que "conserta" as crianças com "problemas de ajustamento" e as devolve disciplinadas para a sala de aula. Em uma das observações a professora Tatiane, não conseguindo controlar os atos do aluno Paulo, desabafou com a observadora, comentando que ele, além de não obedecer às ordens, também se recusava a comer na hora das refeições, tornando-se um problema para a turma. Na mesma observação, pôde-se perceber que a professora Tatiane buscou apoio na observadora para rotular as crianças, quando comentou que era bom ela "estar ali para ver como são as crianças". A suposição das professoras parece ir ao encontro da responsabilização do aluno pelos problemas. Não há um entendimento das relações e do processo do desenvolvimento infantil. Tampouco há a compreensão de implicações dos fatores institucionais e culturais no comportamento das crianças.

Diante disso, cabe ao psicólogo escolar romper com o modelo médico-higienista (Zucoloto, 2007). Esse modelo está ancorado no atendimento dos alunos indisciplinados que são considerados "problema", devolvendo-os "consertados" para a sala de aula. Romper com ele, implica criar espaços de escuta e discussão, considerando que os problemas são produzidos institucional, histórica e culturalmente. Estas expectativas podem representar uma possibilidade de intervenção e de transformação por parte do psicólogo. Afinal, se elas foram construídas socialmente, elas só serão transformadas socialmente, e através do cotidiano do psicólogo dentro da instituição. Intervenções como a apresentação do papel da psicologia na escola, inserção em espaços e relações além daquelas estabelecidas com os alunos, discussões e análises globais e institucionais das problemáticas vivenciadas, são elementos que podem contribuir para a quebra deste paradigma ainda vigente não somente na Educação Infantil, mas na Educação como um todo.

Em relação às professoras, era constante o pedido de ajuda endereçado à observadora. Mesmo que os pedidos tenham sido pela via da cumplicidade, entende-se que elas evidenciavam um desamparo. Nesse sentido, um trabalho que promova a escuta e formação das professoras parece ser fundamental. Nas atitudes da professora Deise, que é a titular dessa turma, foi possível constatar um intenso abandono e, por vezes, uma falta de interesse pelas crianças. Pode-se pensar que essa atitude pode ser resultado do desamparo institucional ao qual ela foi submetida. É importante mencionar que ela foi transferida de escola, sem seu consentimento, tendo que aceitar essa transferência por ser contratada e não ter opção de escolha. Outro aspecto que chamou atenção é que no primeiro encontro, a professora Deise parece acreditar que a presença da observadora contribuirá com seu trabalho, uma vez que busca auxílio no manejo com as crianças, comentando que está com algumas dificuldades na sua turma,

A professora Deise aproximou-se e começou a falar que 'minha presença traz uma segurança', pois não sabia como trabalhar com Bento, o menino com suspeita de autismo. Começou a relatar fatos que vinham acontecendo e a maneira como estava intervindo, buscando uma aprovação ou uma orientação sobre como proceder com a criança. Também comentou que estava com dificuldades na hora das refeições, pois os alunos Pedro e Paulo recusavam-se a comer. (Diário de Campo, 1ª Observação, 03/02/2014)

Diante dos importantes dados apresentados, entende-se que o psicólogo escolar poderá também, de acordo com Vokoy e Pedroza (2005, p.98), "contribuir para a formação pessoal do professor, numa perspectiva teórica e metodológica", possibilitando "a compreensão das relações de extrema complexidade e contradição que envolvem o cotidiano da escola". Esse trabalho é de fundamental importância junto ao professor. Não há como demandar que o professor cuide de crianças se ele não for cuidado. É importante que, durante a permanência da criança na escola, o educador ocupe-se de todos os cuidados de que ela necessita, estando disponível para brincar, mediar situações que carecem do corpo e das palavras e acolher a criança a qualquer momento, demonstrando laços afetivos (Mariotto, 2009). Nessa perspectiva, como podem essas professoras olhar pelas crianças, sem serem olhadas? Será possível, para elas, acolher essas crianças em seu desenvolvimento integral, se elas mesmas estão desamparadas pela instituição escolar? Para que se produza um novo olhar, é necessário que essas professoras sejam olhadas, para que, dessa forma, também possam produzir outro olhar e não aquele carregado de disciplina e moralismo.

Assim, caberá ao psicólogo, promover debates coletivos e individuais, que possam auxiliar o grupo na problematização do Projeto Político-Pedagógico, analisando se os ideais presentes no documento estão sendo construídos na prática, e se não estão, onde está a lacuna e como criar ações que possam ressignificar a prática. O psicólogo também poderá contribuir para a formação das educadoras e cuidadoras das crianças em relação ao desenvolvimento infantil, a fim de que possam compreender a importância de seu trabalho no desenvolvimento integral da criança (Mezzalira & Guzzo, 2011).

Além disso, conforme Mezzalira e Guzzo (2011, p.30), cabe ao psicólogo escolar propor direções e estratégias de trabalho que favoreçam a construção de relações afetivas e saudáveis entre os profissionais. Isso porque, a permanência desse tipo de conflito dificulta a efetivação de planejamentos e/ou intervenções que visem à promoção de um ambiente potencializador do desenvolvimento. De acordo com Martins (2002), no âmbito escolar, a relação entre o professor e o aluno costuma ser pautada na racionalidade e no método pedagógico. Nessa perspectiva, a Psicologia Escolar pode criar um espaço de trocas afetivas entre professor e aluno, ampliando a relação meramente pedagógica.

Para isso, o psicólogo, ao trabalhar nas escolas, precisa estar atento a tudo o que nela acontece. Ele deve ser um agente de mudanças para ressignificar esse contexto, ou nas palavras de Martins (2003, p.40), atuar como "um elemento centralizador de reflexões e conscientizador dos papeis representados pelos vários grupos que compõem tal instituição", centrando seu olhar sobre as relações estabelecidas, sem deixar de considerar os aspectos históricos e sociais em que se inserem. Destarte, assim como a análise, a intervenção na problemática deve ser ampliada, envolvendo todo o cenário escolar, inclusive as relações estabelecidas entre os profissionais que nela atuam, as relações construídas com os pais e com a comunidade, as condições e a organização de trabalho vivenciadas pelos professores. Para isso, sugere-se que o psicólogo escolar possa fazer uso de perspectivas provenientes de outras áreas do conhecimento, como da análise institucional e da saúde mental no trabalho.

 

Considerações finais

O presente estudo teve o objetivo de analisar e discutir as contribuições da Psicologia Escolar diante da violência presente na relação professor-aluno no contexto da Educação Infantil. Os resultados apontaram para a presença de diversos modos de violência na relação do professor com os alunos e para o desamparo do professor frente a complexidade de suas atividades e das características da organização do trabalho escolar. Além disso foi possível identificar contradições entre o Projeto Político-Pedagógico e as práticas de educação infantil e observar expectativas relacionadas a intervenções clínica-individuais do psicólogo junto a escola. Diante disso, concluiu-se que atuar a partir de uma perspectiva institucional e, portanto, que desconstrua o modelo clínico-individual significa analisar a violência observada a partir das relações instituídas no espaço escolar. Afinal, assim como não cabe ao psicólogo escolar "consertar" os alunos "problema", não cabe a ele, culpabilizar o professor desconsiderando o contexto sócio histórico e institucional no qual está inserido.

Nesse sentido, caberá ao psicólogo escolar atuar de modo coletivo na desconstrução da naturalização dos atos de violência já institucionalizados socialmente, sejam eles na relação professor-aluno, sejam eles na relação escola-professores. Trabalho esse construído através de perspectivas e métodos já consolidados na Psicologia Escolar, como a inserção no cotidiano escolar, a compreensão dos aspectos micro e macrossociais atrelados a educação, a análise das relações de trabalho e do funcionamento institucional e o estabelecimento de práticas, intervenções e debates coletivos.

Como limitações ou possível ampliação do estudo, o campo de observação e permanência do observador na escola poderiam ser estendidos, incluindo outros espaços da escola e da própria comunidade. Futuros estudos poderiam investigar com maior profundidade as relações de trabalho ali estabelecidas, a percepção dos pais com relação às práticas observadas e até mesmo a construção social da naturalização dos atos de violência na Educação Infantil. Apesar disso, entende-se que esta pesquisa contribuiu consideravelmente para a produção de conhecimento no campo da Educação e da Psicologia, problematizando uma temática ainda pouco explorada, e por vezes, considerada natural.

Finalmente, conclui-se que os resultados aqui apresentados devem ser analisados e discutidos através de uma perspectiva ampliada acerca da Psicologia Escolar, entendendo a violência como fruto das relações instituídas na escola, e que é sofrida também pelas professoras através das características da organização do trabalho. Assim, para intervir é necessário olhar para todo o funcionamento institucional, para o lugar ocupado socialmente pela escola e para o modo com que a relações foram construídas. Nesse sentido, a Psicologia Escolar pode contribuir, oferecendo um espaço para que a fala e a escuta circulem, no eixo direção/coordenação-professor, professor-aluno, escola-família. Esse é o espaço potencial de produção de saúde mental, deslocando a violência que perpassa nas relações para o diálogo, evitando, dessa forma, que o desamparo não se reproduza nas relações.

 

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Endereço para contato
E-mail: cristianeangst@gmail.com

Recebido em agosto de 2015
Aceito em janeiro de 2016

 

 

Cristiane Angst: Universidade Feevale. Psicóloga, graduada pela Universidade Feevale.
Lisiane Machado de Oliveira-Menegotto: Universidade Feevale. Psicóloga Clínica e Escolar. Mestre e Doutora em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS). Docente do Curso de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social da Universidade Feevale.
Carmem Regina Giongo: Universidade Feevale. Psicóloga do Trabalho e das Organizações. Mestre em Psicologia (Unisinos). Doutoranda em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). Docente do Curso de Psicologia da Universidade Feevale.

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