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Aletheia
versão impressa ISSN 1413-0394
Aletheia vol.49 no.1 Canoas jan./jun. 2016
EDITORIAL
Caro leitor, é com satisfação que apresento este número temático da Aletheia como editor convidado. Quando recebi o convite, elegi o tema de Transtornos Aditivos como o foco do número especial. Minha escolha foi fundamentada em função da necessidade de melhor conhecimento pelo público geral, que ainda possui conhecimentos enviesados a respeito de tais patologias, bem como em função de recentes mudanças na caracterização dessas patologias. A própria classe científica necessita de reconceitualizações e atualizações no volume de produção acadêmica acerca do tema, principalmente em virtude de modificações aderidas nos últimos anos.
Historicamente a caracterização de transtornos aditivos sofre mudanças constantes, seja em função das novas descobertas científicas ou da necessidade de clarear à sociedade a natureza patológica dos quadros. Hoje, sabe-se que transtornos aditivos envolvem mudanças psicossociais, mas também o padrão de funcionamento de diferentes circuitos cerebrais (Volkow, Baler, & Goldstein, 2011; Volkow, Koob, & McLellan, 2016). Entretanto, ainda há visões que consideram estas patologias um traço de corrupção moral sustentada por vícios de caráter. Muito dessa visão maquiavélica deve-se à grande disfuncionalidade social que os portadores de tais doenças possuem, somando incidentes desagradáveis no campo legal e interpessoal (Sanvicente-Vieira et al., 2017). Nessa linha, neste editorial destaco os seguintes pontos que, felizmente, são, de certa forma, contemplados pelos artigos incluídos na edição: (I) importância do ambiente social; (II) alterações em circuitos neurobiológicos relacionados ao meio social com funcionamento cerebral e (III) os transtornos aditivos e seu curso com o desenvolvimento.
O ambiente social
Neste número temático você encontrará ao menos três diferentes artigos que valorizam o ambiente social em portadores de transtornos aditivos: "Percepções de usuários de cocaína/crack sobre sua rede de apoio", "Estresse ocupacional e estratégias de enfrentamento utilizadas por monitores de comunidades terapêuticas para abuso de substância" e "O papel da reabilitação psicossocial no tratamento de usuários de crack". Este último, em particular, valoriza a importância da reestruturação psicossocial para os tratamentos, o que é extremamente alinhado com dados de diferentes naturezas. Entre usuários de drogas, por exemplo, redes cerebrais de processamento de informações sociais e afetivas estão alteradas (Volkow, Tomasi, et al., 2011), o que é coerente com o pior desempenho comportamental em tarefas de cognição social (Sanvicente-Vieira et al., 2017) e a amplitude dos problemas psicossociais (Uekermann & Daum, 2008). Nessa linha, é interessante perceber que a nova proposta da Associação Americana de Psicologia inclui, como fator determinante para a diferenciação da gravidade dos transtornos relacionados a substâncias, o impacto psicossocial (Proctor, Kopak, & Hoffmann, 2013). Além dos trabalhos de nossa edição, convido o leitor a atentar para outras publicações que indicam uma série de aspectos que podem predizer o sucesso terapêutico, desde a integridade das redes sociais, bem como características individuais como a confiança ou, mais destacadamente, a confiança do sujeito nas suas capacidades de vencer a doença – a autoeficácia (McKay et al., 2013; Mutschler et al., 2013).
Neste número, o leitor tem também um trabalho que contempla tal variável. No artigo "Avaliação da autoeficácia e tentação em dependentes de cocaína/crack após tratamento com o modelo transteórico de mudança (MTT)", a característica é avaliada e testada juntamente com um modelo teórico clássico de motivação em usuários de cocaína/crack. Além da autoeficácia, a recaída e o curso do uso de substâncias também são tema do artigo "As percepções de um usuário de substâncias psicoativas em abstinência sobre os motivos de recaída: um estudo de caso".
Alterações em circuitos neurobiológicos relacionados ao meio social
Ao convidar o leitor para observar dados de fatores que podem predizer um curso mais grave de uma patologia relacionada ao uso de uma substância, ressalta-se algo que por muito tempo intriga a sociedade: "como pode alguém que perde família, dinheiro, por vezes a liberdade ou até que chega à beira da morte, decidir de livre-arbítrio continuar perpetuando o comportamento que ele sabe ter causado todos os problemas: o comportamento aditivo?". Já se acreditou que fossem as alterações biológicas causadas pelas drogas, ou comportamentos aditivos, que causassem, através de mudanças no funcionamento cognitivo, as alterações sociais. Contudo, hoje é também reconhecido que a etiologia e o curso de transtornos mentais, não apenas aqueles aditivos, podem ser precipitados ou ter interações com variáveis sociais, com especial impacto relacionado ao histórico de traumas (Koob, 2003; Viola, Tractenberg, Pezzi, Kristensen, & Grassi-Oliveira, 2013). Neste nosso número especial, a cognição ganha destaque, através da investigação da cognição de idosos consumidores de álcool: "Avaliação da cognição de idosos que consomem álcool".
Ainda ressaltando as interações dos aspectos cognitivos, da exposição a traumas e transtornos aditivos, temos um interessante caso clínico que possui um curso claramente mediado pela traumatização: "Post-traumatic stress disorder and substance use following traumatic brain injury: A clinical and neuropsychological case study". Entre os autores desse estudo, destaca-se a participação de autor filiado à Universidade de Zurique, que possui outra importante publicação na área que ressalta como as etapas do desenvolvimento podem ter uma interferência grande com o uso de drogas. No caso, seu estudo indica a adolescência como uma fase de vulnerabilidade cognitiva para o início dos transtornos aditivos. Seus resultados indicam que adolescentes saudáveis possuem padrão de tomada de decisão mais arriscado do que mulheres usuárias de crack adultas (Kluwe-Schiavon, Viola, Sanvicente-Vieira, Pezzi, & Grassi-Oliveira, 2016).
Os transtornos aditivos e seu curso com o desenvolvimento
A evidência desse autor traz à tona a interação entre o desenvolvimento e os transtornos aditivos. É claro que socialmente, em função de características de aceitação grupal, a adolescência já seria uma fase de risco para o engajamento em comportamentos perigosos ao surgimento de uma adição. Somado a uma vulnerabilidade cognitiva, isso fica ainda mais forte. Entretanto, é interessante também que, com o tempo, os prejuízos se avolumam, de maneira que o envelhecimento e suas relações com os transtornos aditivos também merece destaque. Há evidências de, que entre portadores de transtornos aditivos, algumas funções neuropsicológicas, bem como alguns circuitos biológicos, parecem ter um declínio mais acelerado que o esperado (Sanvicente-Vieira, Kommers-Molina, De Nardi, Francke, & Grassi-Oliveira, 2016). Não apenas o envelhecimento é um fator relevante para compreender as patologias, mas também ele traz à tona riscos para manifestações comórbidas, bem como sintomatológicas.
Nosso número contempla artigo sobre ideação suicida em usuários de serviço de teleatendimento: "Ideação de suicídio em um serviço de teleatendimento para usuários de drogas", bem como outro trabalho tenta identificar fatores de risco associados a sintomas depressivos: "Fatores de risco para episódios e sintomas depressivos em usuários deálcool e ou cocaína".
Do aspecto sintomático mais tradicional nos transtornos aditivos, o craving, ou fissura, é também sabidamente influenciado por variáveis psicossociais, por características psicobiológicas, cognitivas e do desenvolvimento. Nessa linha, um interessante estudo que conta com participação de coautora do exterior investiga a relação da fissura com os sonhos de pacientes em desintoxicação: "Dreams and craving in crack/cocaine addicted patients in the detoxication stage".
Um número temático
A proposta deste editorial foi apresentar alguns dos aspectos relevantes relacionados a transtornos aditivos. Entretanto, é relevante ressaltar que, embora os trabalhos incluídos na edição felizmente valorizem a parte social, o impacto cognitivo e a influência psicossocial e do desenvolvimento, há lacunas de conhecimento que merecem destaque. Faz anos que diferenças de gênero vêm sendo identificadas nos transtornos aditivos. Diferenças que incluem alterações cognitivas singulares, funcionamento neurobiológico peculiar, interferência distinta do desenvolvimento, bem como vulnerabilidade e impacto psicossexual gênero-dependente (Becker, McClellan, & Reed, 2017). Este editorial, portanto, ressalta a importância de futuros estudos na área dos transtornos aditivos, pois há ainda muito a se avançar, mas com um cuidado na parte relacionada às diferenças de gênero, infelizmente não contempladas no nosso número.
Finalmente, além de apontar a relevância do tema, ressaltando aspectos que, através da literatura, identifico como pertinentes, bem como uma possível fragilidade, com vias de evolução de futuras publicações, finalmente formalizo a apresentação do nosso número temático. A Aletheia, em sua edição 49, apresenta um número temático sobre transtornos aditivos.
Breno Sanvicente-Vieira
Editor Convidado
Referências
Becker, J. B., McClellan, M. L., & Reed, B. G. (2017). Sex differences, gender and addiction. J Neurosci Res, 95(1-2), 136-147. [ Links ]
Kluwe-Schiavon, B., Viola, T. W., Sanvicente-Vieira, B., Pezzi, J. C., & Grassi-Oliveira, R. (2016). Similarities between adult female crack cocaine users and adolescents in risky decision-making scenarios. J Clin Exp Neuropsychol, 38(7), 795-810. [ Links ]
Koob, G. F. (2003). Neuroadaptive mechanisms of addiction: studies on the extended amygdala. Eur Neuropsychopharmacol, 13(6), 442-452. [ Links ]
McKay, J. R., Van Horn, D., Rennert, L., Drapkin, M., Ivey, M., & Koppenhaver, J.(2013). Factors in sustained recovery from cocaine dependence. J Subst Abuse Treat, 45(2), 163-172. [ Links ]
Mutschler, J., Eifler, S., Dirican, G., Grosshans, M., Kiefer, F., Rössler, W., & Diehl, A.(2013). Functional social support within a medical supervised outpatient treatment program. Am J Drug Alcohol Abuse, 39(1), 44-49. [ Links ]
Proctor, S. L., Kopak, A. M., & Hoffmann, N. G. (2013). Cocaine Use Disorder Prevalence: From Current DSM-IV to Proposed DSM-5 Diagnostic Criteria With Both a Two and Three Severity Level Classification System. Psychol Addict Behav. [ Links ]
Sanvicente-Vieira, B., Kommers-Molina, J., De Nardi, T., Francke, I., & Grassi-Oliveira, R. (2016). Crack-cocaine dependence and aging: effects on working memory. Rev Bras Psiquiatr, 38(1), 58-60. [ Links ]
Sanvicente-Vieira, B., Romani-Sponchiado, A., Kluwe-Schiavon, B., Brietzke, E., Araujo, R. B., & Grassi-Oliveira, R. (2017). Theory of Mind in Substance Users: A Systematic Minireview. Subst Use Misuse, 52(1), 127-133. [ Links ]
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