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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia vol.49 no.1 Canoas jan./jun. 2016

 

ARTIGOS EMPÍRICOS

 

As percepções de um usuário de substâncias psicoativas em abstinência sobre os motivos de recaída: um estudo de caso

 

The perceptions of a user of abstinence psychoactive substances on the reasons for relapse: A case study

 

 

Ana Lúcia Ferreira1; Cassandra Borges Bortolon2

Centro Universitário da Serra Gaúcha – FSG

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Prevenção da recaída é a manutenção do processo de mudança de hábitos e automanejo. Tem como objetivo ensinar o indivíduo a lidar com seu problema e prever uma possível recaída, além disso se refere a mudança de qualquer comportamento relacionado ao problema. O objetivo deste estudo foi identificar de acordo com as percepções de um usuário em abstinência quais foram os motivos de recaída no consumo de substâncias psicoativas. Foi realizada uma pesquisa qualitativa por meio de um estudo de caso em uma instituição de apoio. A análise dos dados foi conduzida por análise de conteúdo que originou 5 categorias. Dentre elas, percepções dos motivos de recaída, a combinação de fatores de risco e proteção se mesclaram para os problemas apresentados por Gabriel e também para as resiliências que foram emergindo ao longo do percurso de vida. O processo de recuperação requer aprendizagem e manejo das adversidades que ocorrem em função dos TRSA. Neste estudo de caso, pode-se perceber que G. não se coloca em situações de risco no momento atual, pois aprimorou seus recursos de autoconhecimento e assertividade, dentre elas as estratégias de prevenção de recaída.

Palavras-chave: Transtorno relacionado ao uso de substâncias; Prevenção de recaída; Estratégias de enfrentamento; Estudo de caso.


ABSTRACT

Preventing relapse is the maintenance of the process of changing habits and self management. It aims to teach the individual to deal with their problem and predict a possible relapse, in addition it refers to changing any behavior related to the problem. The objective of this study was to identify according to the perceptions of a user in abstinence what were the reasons for relapse in the consumption of psychoactive substances. A qualitative research was carried out by means of a case study in a support institution. The analysis of the data was conducted by content analysis that originated 5 categories. Among them, perceptions of the reasons for relapse. The combination of risk and protection factors blended into the problems presented by Gabriel and also to the resiliencies that have emerged along the course of life. The recovery process requires learning and managing the adversities that occur due to TRSA. In this case study, one can see that G. does not place himself in situations of risk at the present moment, since he has improved his resources of self-knowledge and assertiveness, among them the relapse prevention strategies.

Keywords: Substance-related disorder; Relapse prevention; Coping strategies; Case study.


 

 

Introdução

A recaída é um processo que leva o sujeito a retomar ao uso abusivo de substâncias psicoativas e apresenta sinalizadores que podem ser interrompidos por estratégias e habilidades que, exploradas, fazem com que o usuário de drogas reverta o processo e retorne ao controle de sua recuperação (Serrat, 2001). Prevenção de recaída é a manutenção do processo de mudança de hábitos e automanejo. Tem como objetivo ensinar o indivíduo a lidar com seu problema e prever uma possível recaída. Além disso, refere-se a mudança de qualquer comportamento alvo (Marlatt & Donovan, 2009).

Para a prevenção de recaída é necessário modificações no estilo de vida, ou seja, o desenvolvimento de um conjunto de habilidades para evitar a recaída, que visa aquisições de práticas para manejar com situações de risco para enfrentá-las de forma positiva, buscando suporte psicológico, relações sociais e familiares saudáveis (Serrat, 2001).

No Transtorno Relacionado a Substâncias e Adição (TRSA) (American Psychiatric Association, 2014) ocorre uma ativação direta do sistema de recompensa cerebral e dopaminérgico, o que produz sensações de prazer que implica na produção de memórias e reforço positivo do comportamento. Desta forma, é direcionado para o comportamento compulsivo do uso de substâncias para o alívio da síndrome de abstinência, além de atividades triviais serem negligenciadas. Assim, o usuário de substâncias psicoativas enfrenta inúmeros conflitos que estão inseridos em diferentes contextos.

Segundo Serrat (2001), a fragilidade egoica do usuário de drogas não permite que ele consiga lidar com sua angústia, ansiedade, frustração, impulsividade e agressividade. Esta dificuldade faz com que o dependente busque uma fuga de sua própria realidade e de seus problemas emocionais. Sabe-se que o usuário pode negar essa vulnerabilidade, pois assumir as suas fraquezas seria abandonar a fantasia do efeito mágico da substância. É comum a dificuldade no enfrentamento de sua própria realidade e aceitar as responsabilidades, bem como assumir as consequências de suas atitudes. Esta dinâmica facilita o uso abusivo de substâncias psicoativas e dificulta o processo de cessação de consumo (Bortolon, Ferigolo, Grossi, Kessler & Barros, 2010).

Os motivos que frequentemente desencadeiam o sujeito a buscar pelo uso abusivo de substâncias podem ser as frustrações, irritabilidade, curiosidade, tentativa de superar as suas próprias limitações, relações conflituosas, busca de prazer e carências afetivas. Os motivos de consumo variam de acordo com a subjetividade de cada um. Os sentimentos e situações não manejados adaptativamente fazem com que o usuário busque alívio em um ato abusivo (Santos, Rocha & Araujo, 2014).

Sabe-se da importância de o usuário de substâncias psicoativas buscar compreender os fatores intrapessoais e interpessoais envolvidos na recaída e ter consciência dos fatores de risco e de proteção (Marlatt & Donovan, 2009). Além da importância de identificar as dificuldades encontradas ao longo desse processo e utilizar os métodos de prevenção de um possível lapso ou recaída. Assim como a procura pelo suporte de tratamento fundamentado nos princípios da prevenção de recaída (Santos, Rocha & Araujo, 2014).

De acordo com Marlatt e Donovan (2009), a prevenção de recaída foi desenvolvida como uma necessidade operacional tanto para os profissionais da saúde como para os pacientes. Para os profissionais, foi possível obter melhores resultados, diminuição do esgotamento, desânimo e exposição a situação de frustração laboral. E para os pacientes, representou a possibilidade de conduzir um tratamento conforme suas necessidades e condição clínica. A prevenção de recaída visa desenvolver habilidades para o autoconhecimento, adesão ao tratamento e formas de enfrentamento na presença de uma possível recaída. Desta forma, o objetivo deste estudo foi identificar, de acordo com as percepções de um usuário em abstinência, quais foram os motivos de recaída no consumo de substâncias psicoativas.

 

Método

Foi realizada uma pesquisa qualitativa por meio de um estudo de caso de um usuário de substâncias psicoativas abstinente em uma instituição de apoio. Esta é uma entidade beneficente de assistência social e atua na prevenção, recuperação e reinserção social dos usuários de substâncias psicoativas e seus familiares. Além disso, oferece atendimentos, orientações, triagem e encaminhamentos para tratamento ambulatorial e internação. Possui duas Comunidades Terapêuticas, uma para adultos e a outra para adolescentes. Também administra uma Casa de Passagem. Ainda, a instituição conta com estratégias de prevenção, como palestras e grupos operativos.

A amostra deste estudo foi por conveniência. O participante do estudo foi um usuário de drogas em abstinência de álcool, maconha, ecstasy, cocaína e crack, pertencente a uma instituição que oferece tratamento voluntário para usuários de substâncias psicoativas e familiares.

Por questões éticas o nome do participante não será divulgado, foi usado o nome fictício de Gabriel. O participante da pesquisa apresentava diagnóstico de Transtornos Relacionados a Substâncias e Adição em remissão, de acordo com os dados do seu prontuário. Não havia informações a respeito de outras desordens psiquiátricas. Atualmente, é abstinente de álcool, maconha, cocaína inalada e fumada, maconha e ecstasy.

Já teve duas internações em Comunidades Terapêuticas (CT), de acordo com seu relato. A sua primeira internação foi cumprida aos 14 anos. Realizou tratamento por um período de nove meses. Nos primeiros 28 dias teve intervenção medicamentosa para desintoxicação, posteriormente não usou medicamentos.

O motivo da internação foi devido a uma ordem de prisão, onde judicialmente foi decretado cumprimento de três anos na FEBEM, devido a envolvimento em assalto a mão armada. Desta forma, fez um acordo e aceitou realizar o tratamento de dependência química em regime de CT. Gabriel, neste período morava na rua. Não tinha o desejo de interromper o consumo de substâncias, todavia a opção era aceitar o tratamento ou entrar para o sistema penitenciário.

Após completar o tratamento, foi morar em uma instituição de apoio e, aos 16 anos, decidiu ir morar sozinho. Com 17 anos, reatou a relação com os familiares e voltou residir com eles. Ficou um ano abstinente do álcool e seis anos abstinente das demais drogas.

A segunda internação de Gabriel foi aos 24 anos. Permaneceu nove meses em tratamento em uma CT sem fazer o uso de medicamento. Solicitou internação espontaneamente, pedindo ajuda aos seus familiares. Neste período, estava envolvido no tráfico de drogas para sustentar seu consumo. Percebia que a sua situação estava piorando com o passar do tempo. Desta forma, sentiu o desejo de mudar de vida e, assim, se fortaleceu para buscar tratamento.

Gabriel relata que completou nove meses de tratamento. Após, realizou um estágio na comunidade terapêutica, também fez um curso e ficou trabalhando como monitor até os dias atuais.

Para a coleta de dados, houve a pesquisa na instituição dos prontuários que estavam disponíveis no arquivo. Neste, continha dados de identificação dos pacientes, como sexo, idade, drogas consumidas, se permaneciam em consumo ou em abstinência, diagnóstico de TRSA, de acordo com DSM-V, e quanto tempo em atendimento na instituição. Não continha nenhum registro a respeito de outras comorbidades psiquiátricas no prontuário da instituição. Também não foi avaliada pelas pesquisadoras a ocorrência de comorbidades psiquiátricas no participante do estudo.

O instrumento utilizado foi uma entrevista semiestruturada desenvolvida pelas pesquisadoras, que explorava os possíveis motivos de recaída enfrentados pelo participante do estudo ao longo de sua vida. As entrevistas foram gravadas, transcritas e conduzidas em quatro encontros presenciais por um período aproximado de 1 hora e 30 minutos. Foram conduzidas durante o horário de expediente da instituição de apoio em um local reservado durante os meses de agosto e setembro de 2016.

A interpretação dos dados foi conduzida por análise de conteúdo das transcrições das entrevistas. De acordo com Bardin (2011), a análise de conteúdo se estrutura em três partes: primeiro, a pré-análise; posteriormente, a exploração do material; e, por fim, o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação.

Este estudo foi aprovado pelo o Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Centro Universitário da Serra Gaúcha – FSG, de acordo com as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos (Res CNS 510/16), sob o parecer consubstanciado nº 1.730. 846. Foi entregue o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE ao participante da pesquisa.

 

Resultados

O participante Gabriel tem 29 anos de idade, natural do interior do estado do Rio Grande do Sul e possui ensino médio incompleto. Solteiro, não tem filhos, reside com os pais. Trabalha como monitor em Comunidade Terapêutica desde o término da segunda internação. Iniciou como estagiário e posteriormente foi promovido a monitor, permanecendo assim até os dias atuais. Apresentava registro no prontuário da instituição de dependência de álcool, maconha, ecstasy, cocaína e crack, informações que foram confirmadas na entrevista.

Possuía boa aparência e facilidade para comunicar-se, porte físico saudável. Demonstrou interesse e disposição durante sua participação na pesquisa. Foi atencioso, prestativo e colaborou com informações precisas em relação a sua história. Conforme seu relato, referiu que está abstinente há quatro anos e cinco meses.

A análise dos dados resultou em cinco categorias: Consumo prévio de substâncias na família e interações com conflito; Consequências do consumo de substâncias; Percepções dos motivos de recaída; Estratégias de prevenção de recaída e Importância do suporte familiar de acordo com Tabela 1.

 

 

Discussão

Consumo prévio de substâncias na família e interações com conflito

Gabriel teve contato com álcool precocemente a partir da convivência de consumo por parte do padrasto e mãe. Estudos demonstram que em famílias onde o consumo de álcool é comum, aumenta-se a chance de consumo de álcool e outras substâncias por parte de outros integrantes (Bittencourt, França & Goldim, 2015). Desta forma, compreende-se que as regras e rotinas da família quanto ao consumo de substâncias podem estimular a experimentação e ou a continuidade do uso de substâncias (Seleghim & Oliveira, 2013). Neste cenário é comum a existência de mais um integrante da família que também apresenta problemas com uso de substâncias quando se investiga a história familiar de pessoas com problemas dessa ordem (Mosqueda-Diaz & Ferriani, 2011). Este contexto é frequentemente identificado como comportamentos que se repetem ao longo das gerações denominados como padrão transgeracional, onde ocorre a transmissão de modelos de atitudes, do que é valorizado na família, além de crenças que permeiam as diversas áreas da vida (Zordan, Falcke & Wagner, 2005). Pois se sabe que a família é o alicerce do desenvolvimento das pessoas, além de ser a responsável por modelos que comumente são seguidos (Bortolon & Barros, 2016).

Todavia, vale ressaltar que a interação de outros fatores também é crucial neste processo devido a dependência química se tratar de uma condição biopsicossociocultural (Bortolon, et. al, 2010). Desta forma, outro fator que aumenta o risco e também estava presente na vida de Gabriel foram conflitos familiares acentuados, identificados em outro estudo de forma similar (Bittencourt, França & Goldim, 2015). As interações com conflito na família frequentemente antecedem o consumo de substâncias e, depois que o problema se instala, os conflitos se acentuam em função dos problemas relacionados à convivência com um familiar com TRSA (Bortolon, Ferigolo & Barros, 2017). A decisão de Gabriel de morar nas ruas intensificou o rompimento de vínculos familiares, o que pode ter influenciado na substituição dos laços afetivos familiares e construção de novas relações com pessoas que Gabriel encontrou nas ruas por onde circulava (Marchi, Carreira & Salci, 2013). Entretanto, este convívio nas ruas e, consequentemente, afastamento da família agravou sua situação de vulnerabilidade social (De Moraes, Rafaelli & Koller, 2012). De acordo com Marchi, Carreira e Salci (2013), a família representa a estrutura primordial para o desenvolvimento completo do sujeito. É responsável pela relação afetiva, material, sobrevivência e proteção. Em contrapartida, quando o indivíduo se encontra em situação de rua, pode ocorrer carência do contato familiar, perda de referência, o que gera sofrimento emocional aos envolvidos.

Consequências do consumo de substâncias

A dependência química expõe o indivíduo a diversos riscos e vulnerabilidades tanto em nível psicológico, neurobiológico como social (Ganev & Lima, 2011). Gabriel passou por situações delicadas em decorrência do seu consumo. O envolvimento com a criminalidade através de furtos, roubos e assaltos a mão armada se relaciona com a sua história de vida. Em decorrência de problemas graves do consumo de substâncias, o que é intensificado quando ocorre o rompimento com vínculos familiares e moradia em situação de rua (De Moraes, Rafaelli, Koller, 2012). Desta forma, o Sistema Judicial recebe diariamente adolescentes em situações de criminalidade. Nestes casos, ocorre a identificação que o consumo de drogas pode ter sido um intensificador das condutas inadequadas e, assim, é direcionada a pena para uma medida compulsória de tratamento. Esta forma de tratamento comumente é a forma utilizada quando o usuário de substâncias está com um comprometimento acentuado em diversas esferas de sua vida. Entretanto, não percebe a necessidade de mudança e nem tão pouco consegue mudar (Prochaska, Diclemente & Norcross, 1992).

Desta forma, a decisão judicial foi de que Gabriel fizesse tratamento em regime de Comunidade Terapêutica, local onde se salienta a importância de mudanças de rotinas diárias de vida ancoradas em disciplina, oração e recuperação (De Leon, 2003). Neste estudo de caso se verifica a importância de determinadas decisões de medidas compulsórias de tratamento, ou seja, que não aguardam a decisão de aceitar tratamento do dependente. No início de seu tratamento em CT, quando Gabriel não estava motivado em cessar o consumo de substâncias, concordou contra a sua vontade e por considerar que teria menos prejuízos na CT que na prisão. Após, um período de aproximadamente 09 meses conseguiu considerar a necessidade de mudança e se engajou em um processo de recuperação (Prochaska, Diclemente & Norcross, 1992).

Percepções dos motivos de recaída

É comum a tendência de pessoas com problemas com uso de substâncias tentarem manter o consumo de substâncias que consideram mais leve comparada as demais drogas que utilizam. Todavia, sabe-se que o consumo do álcool é considerado como um fator de recaída (Sanches, Almeida & Magalhões, 2015), afirmativa legitimada por Gabriel, quando este referiu que retomou com o consumo de álcool e após, um período voltou a consumir maconha, cocaína inalada e fumada (crack) e ecstasy. Vale ressaltar que, em determinados momentos, dependentes químicos relacionam as recaídas com fatores extrínsecos, como falta de suporte familiar e envolvimento com companhias que fazem uso de substâncias psicoativas (Sanches, Almeida & Magalhães, 2015). Todavia, ignoram o retorno do uso do álcool como um fator desencadeante. Para tanto, é necessário a psicoeducação a respeito da importância da não utilização de nenhuma substância no processo de recuperação (Lyman, Braude, George, Dougherty, Daniels, Chose & Delphin-Ritmon, 2014).

Outro fator importante também identificado por Gabriel se refere à intensidade dos sintomas advindos da síndrome de abstinência, tanto físicos, como sudorese e tremores, quanto emocionais, como o manejo do humor disfórico (American Psychiatric Association, 2014). Estes sintomas podem direcionar o usuário a identificá-los como uma premência de consumo. Neste sentido, percebe-se a presença do fator intrapessoal, denominado estados emocionais, considerando o afeto negativo como reforçador do uso de substâncias psicoativas (Almeida, 2015).

O fator de recaída percebido por Gabriel, também descrito por Marlatt e Donavan (2009), é o efeito esperado da substância que, em se tratando de Gabriel, as buscava para ficar anestesiado, foi identificado como expectativa de resultado, um determinante intrapessoal. No processo de recaída as expectativas de resultados positivos direcionam o usuário ao consumo das substâncias, o que pode ser mais importante que os efeitos reais advindos do uso de substâncias psicoativas (Marlatt & Donavan, 2009).

Outros fatores também podem contribuir para o indivíduo ter uma recaída. Gabriel salientou discussões com a família, distanciamento em função do consumo, e estados emocionais negativos, os quais já foram identificados em outros estudos (Bortolon, Machado, Ferigolo & Barros, 2013; Bortolon, Signor, Moreira, Figueiró, Benchaya, Moreira, Ferigolo & Barros, 2016). Existem vários determinantes que podem acarretar uma recaída: pressão social com características negativas; sintomas de abstinência; emoções negativas; situações consideradas difíceis; problemas físicos e psicológicos (Alves, 2015). Para Sanches, Almeida e Magalhães (2015), a recaída é considerada parte do processo de recuperação. Outros aspectos são: dificuldade de autocontrole diante da vontade de fazer o uso de drogas, desgosto com determinadas situações, necessidade de ser visto e de ser aprovado em seu meio social. Ainda, outro aspecto salientado por Gabriel se refere à importância do engajamento voltado para a mudança do comportamento problema. Ele salientou que inicialmente não tinha esta motivação. Compreende-se que Gabriel estava no estágio de mudança pré-contemplação, momento que o indivíduo não percebe a necessidade de modificar, mesmo que outras pessoas ou sistemas identifiquem a necessidade (Prochaska, Diclemente & Norcross, 1992).

É notório que a dependência química requer tratamento em longo prazo, não apenas no que se refere ao processo de desintoxicação. Pois, uma das características essenciais dos transtornos por uso de substâncias é a alteração básica nos circuitos cerebrais, o que pode persistir em efeitos comportamentais de recaídas frequentes e fissura quando os sujeitos estão expostos a estímulos relacionados às substâncias psicoativas (American Psychiatric Association, 2014). Desta forma, a recaída é considerada como um processo de aprendizagem onde a pessoa pode aprender quais as influências internas e ambientais que estimularam a sua recaída (Marlatt & Donavan, 2009).

Estratégias de prevenção de recaída

Segundo Almeida (2015), o treinamento de habilidades interpessoais ocorre por meio de aprendizado do manejo das situações diárias como: o usuário deve evitar frequentar lugares onde sabe que existe o uso frequente de drogas, aprender a dizer não aos amigos que consomem substâncias, além do controle dos estados emocionais negativos e os pensamentos voltados ao consumo.

As principais estratégias de prevenção de recaída relatadas por Gabriel como consciência frente ao problema, reconhecimento dos erros, disciplina, participar de atividade de espiritualidade e grupo de mútuo ajuda, envolvimento com atividades relacionadas à dependência química e frequentar instituição de apoio, apresentam características do fator intrapessoal motivação positiva voltado à mudança do comportamento problema (Marlatt & Donavan, 2009). Sabe-se que a motivação interna tem forte influência para a interrupção do consumo de substâncias, além da manutenção da abstinência. Gabriel estabeleceu perspectivas para a mudança como administrar seus próprios conflitos, desenvolver vínculos de amizades saudáveis, ter controle emocional, compartilhar sentimentos, se aproximar dos familiares, colocando-as em prática. Desta forma, obteve uma melhor performance diante das dificuldades e preveniu as possíveis recaídas. Para tanto, evocar a motivação dos indivíduos com problemas de TRSA é de fundamental apoio (Sim, & Khong, 2009; Fernandes, Bortolon, Signor & Moreira, 2013).

De acordo com a história de Gabriel a iniciativa de recuperar sua autonomia foi preponderante em seu processo de recuperação, o que se pode relacionar com o fator intrapessoal autoeficácia. Este atributo é caracterizado pela percepção que o sujeito tem sobre sua própria confiança e capacidade para suportar e manejar com situações de alto risco, o que envolve as conquistas do sujeito em termos de aquisição de repertório de desempenho (Marlatt & Donavan, 2009).

Conforme Ganev e Lima (2011), o processo de reinserção social inicia no momento que o indivíduo tem o desejo de realizar um tratamento. Assim, a reinserção deve ser contínua, pois a condição do usuário de substâncias é crônica. Também, é importante a autoinserção associada às crenças pessoais, a compreensão de sua própria história de vida, mudanças de hábitos e pensamentos, fortalecimento para enfrentar as adversidades externas, evitar manter-se isolado, frequentar grupos de apoio e proteger sua própria recuperação.

Marlatt e Donovan (2009) identificaram um fator considerado como determinante, o enfrentamento que é a capacidade que o sujeito tem para lidar com situações de alto risco para reduzir os fatores de uma possível recaída, além de intensificar as habilidades de enfrentamento. E a partir das habilidades intrapessoais engajar-se a aprender o manejo das emoções, diante de um sentimento de raiva, assim como mudanças no estilo de vida. E também visa a importância do incentivo ao usuário praticar atividades de seu desejo, com a finalidade de diminuir a vontade de usar drogas e evitar que ocorra uma possível recaída (Almeida, 2015).

A importância do suporte familiar e da retomada de vínculos com os familiares

O fator interpessoal definido como apoio social positivo apresenta importância significativa para a abstinência (Marlatt & Donavan, 2009; Almeida, 2015). Por outro lado, o apoio social negativo caracterizado por conflito nas interações e a pressão para o consumo de substâncias se relacionam com maiores índices de recaída. Desta forma, os conflitos familiares na infância e adolescência de Gabriel de certa forma auxiliaram para uma maior probabilidade de vulnerabilidade para a busca de substâncias psicoativas (De Moraes, Rafaelli & Koller, 2012). Ainda, o convívio social com usuários de substâncias psicoativas pode influenciar o indivíduo a ter uma possível recaída, sendo necessário renovar as redes sociais.

Todavia, a família pode tanto influenciar para a iniciação de consumo como pode ser extremamente relevante no processo de tratamento. Durante o processo de recuperação de Gabriel, foi salientada a relevância de a família apresentar uma postura firme, direcionada a mudança do comportamento problema, apesar da não aceitação por ele da urgência da necessidade de tratamento (Boarini, 2003). Desta forma, tanto o usuário em consumo de substâncias e ou abstinente quanto a família precisam receber suporte de profissionais especializados na área (Bortolon et al, 2010). Laranjeira, Ratto e Zaleski (2003) identificam como um critério estratégico do tratamento o oferecimento de orientações e suporte à família. O ensaio clínico randomizado, conduzido com familiares, corroborou a efetividade do apoio ao familiar do usuário de substâncias. Familiares codependentes que receberam acompanhamento fundamentado nos estágios de mudança e entrevista motivacional em um período de 06 meses, obtiveram redução nos índices de comportamentos codependentes (Bortolon et al, 2016).

Entre as limitações do estudo está o fato de não ter sido avaliado a co-ocorrência de outros diagnósticos, pois se sabe que a existência de comorbidades implica em maior dificuldade em manter-se em tratamento e abstinente (Madigan; Egan, Brennan, Hill, Maguire, Horgan, & O’Callaghan, 2012). Além disso, ter usado somente o autorrelato do usuário quanto à abstinência e as suas percepções a respeito dos motivos de recaída, o que pode não ser totalmente fidedigno. Entretanto, é comum estudos com usuários de substâncias que utilizam o autorrelato e apresentam similaridade do autorrelato e o exame de screening de uso de substâncias (Kedzior, Badcock & Martin-Iverson, 2006). Para estudos futuros sugere-se conduzir estudo de série de casos e o controle das limitações observadas neste estudo.

Neste estudo, a combinação de fatores de risco e proteção se mesclaram para os problemas apresentados por Gabriel e também para as resiliências que foram emergindo ao longo do percurso de vida (Melilo & Ojeda, 2005). O processo de recuperação requer aprendizagem e manejo das adversidades que ocorrem em função dos TRSA (Marlatt & Donavan, 2009).

 

Considerações Finais

Foi possível observar em Gabriel as estratégias de prevenção de recaída que representaram o seu engajamento no tratamento e que fortaleceram a motivação interna direcionada a mudança comportamental. A partir do desenvolvimento de habilidades de enfrentamento ocorreu a reinserção social, inicialmente no trabalho na Comunidade Terapêutica e, posteriormente, na família. Neste estudo de caso pode-se perceber que Gabriel não se coloca em situações de risco no momento atual, pois aprimorou seus recursos de autoconhecimento e assertividade, dentre elas as estratégias de prevenção de recaída.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: cassandra.bortolon@gmail.com

Recebido em outubro de 2016
Aprovado em agosto de 2017

 

 

1 Ana Lúcia Ferreira: Psicóloga. Graduada no Centro Universitário da Serra Gaúcha – FSG.
2 Cassandra Borges Bortolon: Psicóloga. Professora do Curso de Psicologia do Centro Universitário da Serra Gaúcha – FSG. Doutora em Ciências da Saúde – Farmacologia e Toxicologia. Diretora da Acurarte – Psicologia, ensino e saúde. Trustee Addiction and the Family International Network.

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