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Aletheia
versão impressa ISSN 1413-0394
Aletheia vol.52 no.2 Canoas jul./dez. 2019
ARTIGOS TEÓRICOS - PSICOLOGIA
Contratransferência: origem, evolução histórica do conceito e aplicabilidade clínica
Countertransference: origin, historical evolution of the construct and clinical applicability
Lívia Fração Sanchez1, I, II; Fernanda Barcellos Serralta2, II
ISociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA)
II(UNISINOS).
RESUMO
O conceito da contratransferência (CT) talvez seja um dos mais controversos da técnica psicanalítica. De obstáculo ao tratamento à ferramenta importante para a compreensão dos pacientes, a CT é atualmente considerada por muitos autores imprescindível à técnica psicanalítica. O presente trabalho tem como objetivo revisar a origem, evolução conceitual, manejo e aplicabilidade clínica da CT na psicoterapia psicanalítica de adulto. Para isso, foi realizada uma revisão narrativa da literatura a respeito dessa temática, com consulta a autores clássicos e estudos empíricos sobre o tema. Conclui-se que, apesar da evidente evolução e metamorfose da CT, ainda há questões abertas e divergências, entre os teóricos, em relação ao seu manejo e sua aplicabilidade clínica, o que reforça a necessidade de mais estudo sobre o tema a fim de preencher tais lacunas.
Palavras-chave: Psicanálise; Psicoterapia psicanalítica; Contratransferência.
ABSTRACT
The countertransference (CT) is perhaps one of the most controversial in the psychoanalytic technique. From an obstacle to treatment to an important tool for the understanding of the patients the CT is being currently considered by many authors as an important tool of the treatment. The present study provides a brief theoretical review of the origin, evolution of the concept and clinical applicability of CT. In order to do so, a narrative review of the literature on this topic was done with consultation of classic authors as well as empirical studies on the subject. In conclusion, it is noticed that despite the evident evolution and metamorphosis of the CT over the years, there are still divergences, among authors, regarding its handling and clinical applicability and many questions regarding this subject are still open which demonstrates the need for further studies on this topic in order to fill these gaps.
Keywords: Psychoanalysis; Psychoanalytic psychotherapy; Countertransference.
Introdução
Ao demonstrar cada vez mais interesse pelo aspecto relacional do processo terapêutico – o que inclui a compreensão da transferência, contratransferência, resistência e interpretação – a psicanálise contemporânea progressivamente vem tornando-se uma teoria que considera os fenômenos psicológicos da dupla e não mais só os relativos ao paciente (Eizirik, Aguiar, & Schestatsky, 2015). Conforme Favalli (2016), pelo viés da teoria das relações objetais, os modelos que sustentam as intervenções psicanalíticas atuais são predominantemente interpessoais (ao invés de bi-pessoais, como no enfoque tradicional), indicando uma mudança paradigmática: "o que era uma psicologia de um torna-se uma psicologia do vínculo que une dois" (Zaslavsky & Santos, 2006), ou seja, a transferência se estabelece a partir dos conflitos internos do paciente e também por influência e intervenções do terapeuta (Eizirik et al., 2015).
O campo analítico integra aspectos transferenciais e contratransferenciais oriundos da fantasia inconsciente criada pela díade paciente-terapeuta (Katz, Cassorla, & Civitarese, 2017) e, embora antigos padrões relacionais se repitam, almeja-se que cada dupla consiga desenvolver modos próprios de ir além de uma repetição do passado, que possibilite também a construção de novas formas de relação no aqui e agora da sessão. Nesse sentido, a transferência é produzida conjuntamente pelo paciente e pelo terapeuta, sendo influenciada também pelos comportamentos e atitudes do terapeuta (Eizirik et al., 2015).
O material do paciente e sua transferência mobiliza no terapeuta uma experiência emocional própria que lhe permite compreender o que está sendo recriado no campo pela dupla. Sendo assim, a figura do terapeuta de orientação analítica, distante, abstinente e neutra, tornou-se utópica, visto hoje entender-se que a subjetividade deste influencia decisivamente no processo analítico, cuja natureza é interacional (Eizirik et al., 2015). Nesse sentido, a compreensão da contratransferência (CT) como um conjunto de reações emocionais despertadas no terapeuta assume valor fundamental na prática clínica, especialmente quando utilizada adequadamente como ferramenta técnica de observação e obtenção de informações sobre o paciente, o que depende da extensão e da profundidade da análise pessoal do terapeuta (Zaslavsky & Santos, 2006).
A partir de sentimentos contratransferenciais, o terapeuta escuta, através de seus próprios sentimentos, não só o que o paciente diz, mas também o que ele não diz, por desconhecê-lo no plano do consciente, bem como se faz de instrumento para inferir a realidade psíquica do paciente (Zaslavsky & Santos, 2006). Ainda que as descrições clínicas a respeito da CT sejam frequentes na literatura psicanalítica (Hayes, Nelson & Fauth, 2015) – tanto sua denominação original "contratransferência" ou conceitos correspondentes, como identificação projetiva, campo analítico, role-responsiveness, encenação, intersubjetividade, entre outros (Zaslavsky & Santos, 2006) – ainda são limitados os estudos com dados sistemáticos e empíricos (Laverdière, Beaulieu-Tremblay, Descôteaux & Simard, 2018), devido à complexidade em operacionalizar, definir e mensurar esse construto e a não familiaridade de terapeutas de orientação psicanalítica com a pesquisa empírica (Hayes, Gelso & Hummel, 2011; Tishby & Wiseman, 2014).
Em uma revisão sistemática sobre a CT na psicoterapia de adultos, sem restrição de idioma e data de publicação, Machado et al. (2014) encontraram: predomínio de estudos na abordagem psicanalítica; desenvolvidos nos Estados Unidos; com escalas do tipo likert para mensuração; desenvolvidos em ambulatórios de universidades com terapeutas em formação; predomínio de reações emocionais positivas no terapeuta. Tais achados denotam a necessidade de mais investigações da CT em nível nacional, especialmente em settings psicanalíticos tradicionais com terapeutas experientes, a fim de aproximar pesquisa empírica e psicanálise (Zaslavsky & Santos, 2006; Machado et al., 2014).
Além disso, muitos trabalhos empíricos sobre o tema não têm como objetivo especificamente a clínica psicanalítica, inaugurando uma tendência entre autores de outros referenciais teóricos, como os de orientação cognitivo-comportamental, por exemplo, em atentar para as reações emocionais do terapeuta e para a utilidade clínica da sua revelação ao paciente em algumas situações (Ellis, Schawartz & Rufino, 2018). Seja utilizando essa nomenclatura ou outras correlatas, como resposta ou reação emocional do terapeuta (Colli, Tanzilli, Dimaggio & Lingiardi, 2014).
Assim, tal como ocorreu com o conceito de aliança terapêutica, embora a CT seja um conceito originalmente desenvolvido pela teoria psicanalítica e intimamente relacionado à transferência, sua utilidade clínica e científica levou-a a ser considerada um construto transteórico (Hayes et al., 2015), ampliando o interesse por ela na mesma medida que reduz a sua especificidade e complexidade. Com base nestas considerações, o presente artigo trata-se de uma revisão narrativa da literatura que busca revisar a origem e o desenvolvimento do construto da CT, especialmente no que tange a sua aplicabilidade e manejo clínico atual. Para tanto, foram consultados autores clássicos e estudos empíricos mais recentes sobre o tema.
Origem e evolução do conceito
O termo contratransferência foi mencionado pela primeira vez no artigo "As perspectivas futuras da terapia psicanalítica", de Sigmund Freud (1910/2006a). O autor tratava o fenômeno como um obstáculo ao tratamento, considerando-o o resultado da transferência do paciente nos conflitos inconscientes do analista, devido a questões particulares (pontos cegos) que não estavam bem resolvidas.
As outras inovações na técnica relacionam-se com o próprio médico. Tornamo-nos cientes da "contratransferência", que, nele, surge como resultado da influência do paciente sobre os seus sentimentos inconscientes e estamos quase inclinados a insistir que ele reconhecerá a contratransferência, em si mesmo, e a sobrepujará. (Freud, 1910/2006a, p. 150).
Para Freud, tais reações emocionais deveriam ser reconhecidas e dominadas e para isso ele recomendava a análise pessoal do analista, a fim de superar deficiências psicológicas decorrentes de seus conflitos inconscientes (Zaslavsky & Santos, 2006). Esta forma clássica de compreender a CT perdurou por décadas, sendo, para alguns autores, uma motivação subjacente ao desejo de Freud de superar a CT a todo custo a sua preocupação com a violação das fronteiras sexuais nos relacionamentos entre analistas homens e pacientes mulheres, além da sua visão unipessoal e não intersubjetiva dos fenômenos psicológicos (Zaslavsky & Santos, 2006).
A partir de 1940 o conceito da CT passou a receber mais atenção e ser aprofundado. Em O ódio na contratransferência, Winnicott (1947/2000) alerta que em atendimento de pacientes psicóticos capazes de despertar tamanha carga emocional, o analista deve estar profundamente consciente de sua CT, especialmente em relação a sentimentos negativos, como o ódio, que deve ser reconhecido e guardado para interpretações futuras.
Na mesma época, Paula Heimann (1950) possibilitou uma mudança paradigmática na psicanálise ao transformar substancialmente a noção freudiana da CT como obstáculo ao tratamento. Além de afirmar que a supressão da CT poderia levar a um empobrecimento da capacidade interpretativa do analista, a autora reconheceu que as reações emocionais despertadas no terapeuta poderiam ter relevância diagnóstica e clínica, o que facilitaria o tratamento. Para ela, a CT seria a totalidade das respostas emocionais do terapeuta em relação ao paciente, quer sejam derivadas dos seus conflitos ou provocadas mais diretamente pelo paciente. Quando adequadamente utilizada, a CT seria um instrumento. importante para a compreensão dos conflitos inconscientes do paciente. Com base nessa concepção, denominada de visão totalística, a fonte da CT estaria no paciente.
[...] que o inconsciente do analista entende o inconsciente do paciente – esse relacionamento no nível profundo chega à superfície sob forma de sentimentos que o analista percebe em resposta a seu paciente, em sua "contratransferência". Esta é a via de acesso mais dinâmica pela qual a voz do paciente atinge o analista. Na comparação entre os próprios sentimentos provocados nele mesmo, e as associações e o comportamento do paciente, o analista dispõe do melhor meio de verificar se compreendeu, ou não, seu paciente (Heimann, 1950, p. 82).
Racker (1957) considerava a CT uma ferramenta útil para a prática clínica, alertando para os perigos se não adequadamente utilizada. Para o autor, a CT seria o guia mais confiável para que o analista compreenda as comunicações e atitudes dos pacientes e assim possa respondê-las. Ele a classificou como direta/indireta e concordante/complementar, de acordo com suas características: CT direta seria os sentimentos do analista em relação ao paciente; CT indireta seria os sentimentos do analista em relação a pessoas significativas para o paciente; CT concordante seria a identificação do analista com o que é ativado no paciente; e CT complementar seria a identificação do analista com um objeto interno do paciente ou seu superego. A identificação concordante na transferência é considerada a fonte da empatia comum, quando o paciente se encontra mais reflexivo na sessão. Já na identificação complementar, paciente e analista provisoriamente encenam representações do self e de objeto de uma determinada relação objetal internalizada pelo paciente (Racker, 1957). Sendo assim, o entendimento de Racker sobre a CT contribuiu para o seu uso como importante instrumento para a compreensão das relações objetais dos pacientes (Zaslavsky & Santos, 2006).
Entre as décadas de 50 e 60, portanto, houve um aumento considerável no número de publicações clínicas e teóricas sobre a CT, inclusive a concepção relacional do construto como parte de fenômenos bipessoais desenvolvidos ao longo do tratamento (Hayes et al., 2011), com destaque para Willy e Medeleine Baranger, que consideravam a CT uma visão mais ampla do processo analítico concebido como campo dinâmico. Este, conforme os autores, é composto por fantasias inconscientes compartilhadas que surgem após a troca de identificações projetivas entre paciente e analista (Favalli, 2016).
Historicamente, a CT abandonou um papel secundário e passou a assumir na técnica psicanalítica utilidade no trabalho do psicoterapeuta (Walters, 2009). Diferentemente da visão totalística, a visão relacional compreende a CT como uma criação inédita e conjunta entre a dupla paciente-terapeuta, formando uma estrutura com características próprias derivadas da interação entre dois indivíduos (Hayes et al., 2011).
Manejo e aplicabilidade clínica da contratransferência
Além de apresentar papel importante no processo da psicoterapia por afetar a relação e os resultados terapêuticos (Hayes, Gelso, Goldberg & Kivlighan, 2018), a CT parece ser uma fonte para conhecer o estilo de apego, aliança terapêutica, sintomas e personalidade do paciente (Machado et al., 2014; Westerling et al., 2019). Contudo, para.ue a CT auxilie no tratamento e não o obstaculize, o terapeuta deverá reconhecê-la, tolerá-la, trabalhá-la e contê-la ao invés de atuá-la na sessão mediante o gerenciamento em si destes sentimentos, o que se denomina manejo da CT (Hayes et al., 2011).
Recentemente passou-se a se preocupar com o manejo da CT no treinamento e supervisão de psicoterapeutas de orientação analítica (McMain, Boritz & Leybman, 2015). Se estudos empíricos apontam que o manejo adequado da CT influencia nos resultados positivos da psicoterapia (Gelso, Latts, Gomez, & Fassinger, 2002; Hayes et al., 2011), o que faz com que alguns terapeutas sejam considerados bons em gerenciar seus sentimentos contratransferenciais e outros não? Brody e Farber (1996) observaram que terapeutas iniciantes são mais propensos a sentirem que suas emoções são muito fortes e frequentes, necessitando se defender contra elas. Esse achado corrobora a consideração feita por Heimann (1960) de que terapeutas com menos experiência clínica percebem a sua CT como um empecilho ao tratamento e, em comparação com colegas mais experientes, tendem a não estimar seu valor terapêutico. Em contrapartida, terapeutas mais experientes se permitem com mais segurança reagir, experimentar e relatar sentimentos intensos em relação a seus pacientes (Seligman, 2003). Nesse sentido, Gelso e Hayes (2001) elencaram cinco fatores que podem influenciar a capacidade do terapeuta em manejar sua CT: a capacidade de perceber a origem dos seus próprios sentimentos, a capacidade de diferenciar os limites do seu ego e o do paciente (integração do self), a habilidade interna no manejo da ansiedade, a empatia e a habilidade para compreender a relação terapêutica com base no referencial teórico psicodinâmico. Conforme os autores, quanto maior a habilidade do terapeuta em gerenciar estes fatores, menor é a chance de atuar a CT na sessão.
Para o êxito da psicoterapia, Eizirik et al. (2015) enfatizam a importância de o psicoterapeuta conhecer profundamente a origem de seus próprios sentimentos, seu funcionamento mental, seus principais conflitos psíquicos e sua personalidade. Este conhecimento ajuda de forma significativa na compreensão do paciente, principalmente no que diz respeito aos sentimentos transferenciais e contratransferenciais desenvolvidos pela dupla paciente-terapeuta ao longo do tratamento, além de favorecer a diminuição dos chamados pontos cegos do psicoterapeuta em relação ao material trazido pelo paciente (Freitas, 2018).
Grande parte dos terapeutas considera alguns pacientes difíceis de se trabalhar por evocarem sentimentos muito intensos, como os pacientes do Cluster B, especialmente os com transtorno de personalidade borderline. Estudos demonstram que eles podem gerar sentimentos contratransferenciais negativos, como os de inadequação, sobrecarga e desorganização (McMain et al., 2015) e evocar reações emocionais mais negativas e turbulentas no terapeuta, como raiva e irritação, do que outros pacientes (Colli et al., 2014).
Problemas contratransferenciais são comuns também em pacientes em que a valorização de si mesmo é grandiosamente enaltecida, como no atendimento de pacientes com transtornos de personalidade narcisista em que sentimentos de raiva, exclusão, crítica e inutilidade costumam ser evocados (Tanzilli, Muzi, Ronningstam, & Lingiardi, 2017). Tais pacientes são um desafio para os terapeutas por suscitarem sentimentos muito intensos, que dificultam o estabelecimento de uma boa relação terapêutica (Tanzilli et al., 2017).
Portanto, deve-se atentar à CT frente a pacientes com funcionamento mais regressivo ou com patologias da personalidade, já que oferecem dificuldades como perturbações na atenção, concentração e resposta comportamental intensa do terapeuta (Dahl et al., 2014). Do contrário, os terapeutas correm o risco de atuarem sozinhos conflitos seus não resolvidos durante o trabalho terapêutico ou ainda, conforme Gelso et al. (2002), quando a CT é descoberta tardiamente, o desinvestimento do terapeuta no paciente pode ameaçar o tratamento.
Outro aspecto relevante sobre o manejo da CT diz respeito à questão de confessar/ revelar ou não os sentimentos contratransferenciais para o paciente. Freud, ao desenvolver a psicanálise, já apontava com a "metáfora do espelho" em "Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise" para os potenciais riscos de tais revelações ao processo analítico: "O médico deve ser opaco aos seus pacientes, e como um espelho, não lhes mostrar nada, exceto o que lhe é mostrado" (Freud, 1912/2006b, p. 157). Para o autor, a reciprocidade na autorrevelação não funcionaria bem, denotando a sua apreensão frente à possibilidade da prática psicanalítica ser confundida com uma prática sugestiva, não sendo a sugestão um método da verdadeira psicanálise.
Embora haja certo consenso entre terapeutas de orientação analítica de que deve haver neutralidade para se trabalhar com o paciente, terapeutas tendem a fazer autorrevelações mais frequentemente do que gostariam de admitir (Howe, 2011). Moller, Serralta, Bittencourt e Benetti (2018), na avaliação do primeiro ano de tratamento de uma paciente borderline em psicoterapia psicanalítica, observaram que a revelação de informações da terapeuta ao longo do processo associou-se positivamente à expressão de sentimentos de inadequação ou inferioridade e negativamente à expressão de sentimentos de raiva na paciente. As autoras pontuaram tais revelações como benéficas para o relacionamento terapêutico e formação da aliança. Este resultado corrobora estudos recentes que apontam para a necessidade de adaptações técnicas no atendimento psicanalítico de pacientes mais regressivos, como os borderline, o que inclui as autorrevelações do terapeuta como uma conduta mais presente e necessária também para o desenvolvimento de uma AT, visto que o terapeuta deve adquirir uma postura autêntica (real) e responsiva (empática) (Howe, 2011).
Achados empíricos (Cordioli & Giglio, 2008) apontam que os benefícios do tratamento estão mais relacionados à pessoa real do terapeuta do que à sua abordagem teórica, um contraponto à visão psicanalítica de que o terapeuta deveria ser uma figura neutra que pouco interferia no processo terapêutico. Assim, a prática de autorrevelações deve ser pensada caso a caso, de modo a refletir sobre os possíveis ganhos (instalação de esperança, redução da vergonha, por exemplo) e prejuízos (percepção do terapeuta como deficiente, por exemplo) que podem gerar no processo terapêutico, dependendo do uso que se faça delas (Howe, 2011).
Autores pós-freudianos divergem sobre o momento e o grau de revelação dos sentimentos contratransferenciais na sessão de acordo com o tipo de funcionamento mental do paciente (Heimann, 1950). Contudo, a oposição ainda predomina entre autores psicanalíticos que argumentam sobre o risco de onerar os pacientes ou gratificá-los em demasia com tal revelação (Heimann, 1950; Zaslavsky & Santos, 2006).
A autorrevelação está entre as intervenções terapêuticas de menor ocorrência, mas estudos empíricos indicam que pode apresentar efeitos positivos nos pacientes. Estas podem ser de natureza pessoal (valores ou sexualidade) ou emergentes durante a terapia (reações contratransferenciais e reconhecimento de erros) (Skytte-Glue & O'Neill, 2010). Knox e Hill (2003) propõem a seguinte divisão: (a) fatos, (b) sentimentos, (c) insight, (d) estratégias, (e) reasseguramento/suporte, (f) desafios e (g) imediatismo. Há indicativos de que os diferentes tipos de autorrevelações diferem em termos de relevância clínica, sendo a revelação de fatos associada a uma pior aliança e a revelação de sentimentos e de insights a um melhor relacionamento com o terapeuta na perspectiva do paciente (Pinto-Coelho, Hill & Kivlighan, 2016).
Apesar do impacto potente das revelações da CT, muitos terapeutas são treinados para não manifestar seus sentimentos ou para fazê-lo com moderação (Hill et al., 1988). Henretty, Berman, Currier e Levitt (2014), em uma revisão de estudos quantitativos sobre o tema, concluíram que a autorrevelação do terapeuta apresenta um impacto pequeno, mas favorável nos participantes. Já Pinto-Coelho et al. (2016), ao investigarem 185 eventos de autorrevelações em tratamentos psicoterápicos de abordagem psicodinâmica/ interpessoal, encontraram que quando relacionadas a sentimentos e insights apresentam maior relevância para os materiais trazidos por pacientes.
Como não há consenso entre os estudos revisados – o tema das autorrevelações ainda apresenta divergências na literatura internacional e tem poucas publicações empíricas na área na literatura nacional (Henretty et al., 2014) – os benefícios destacados para o tratamento possibilitados por tal atitude ainda são contraditórios. Levitt et al. (2015), por exemplo, ao examinar a relação entre autorrevelações (de diferentes orientações teóricas) nas sessões iniciais e aliança terapêutica e resultados do tratamento não encontraram associações significativas entre o número de autorrevelações e as variáveis de interesse. Já Myers e Hayes (2006) examinaram como percepções sobre o terapeuta e sobre a sessão são afetadas pelas autorrevelações pessoais e contratransferenciais e a contribuição da aliança para estas percepções, constatando que a revelação da CT se mostrou menos favorável para o processo quando realizada em um contexto de uma fraca AT e mais favorável frente a uma forte AT.
É razoável supor que as discordâncias encontradas se devam, em parte, à heterogeneidade das amostras pesquisadas (pacientes com distintos diagnósticos e/ou estruturas de personalidade). Nesse sentido, as autorrevelações parecem requerir um conjunto diferente de diretrizes com pacientes mais disfuncionais e são mais aceitas/ permitidas ao lidar com pacientes com maior comprometimento da personalidade (não neuróticos), devendo o terapeuta se mostrar de forma mais real e ativa.
Considerações finais
A partir da revisão conceitual e de estudos empíricos sobre a CT, nota-se a sua evolução na teoria e técnica psicanalítica. Na psicanálise contemporânea, grande parte dos terapeutas exploram a CT como ferramenta técnica de observação e obtenção de informações sobre o paciente, a qual, se bem empregada, pode contribuir para entender o funcionamento mental do paciente e gerar resultados positivos ao tratamento.
Considerando as reações emocionais do terapeuta como uma construção conjunta entre paciente e terapeuta, o tratamento pessoal e a supervisão são espaços importantes para que o terapeuta possa aprofundar o conhecimento de seu funcionamento mental. Tal conhecimento possibilitará ao terapeuta diminuir eventuais pontos cegos que possam obstaculizar o andamento do processo terapêutico e, com isso, obter êxito no tratamento que venha a conduzir.
O uso da CT entre terapeutas/analistas iniciantes e/ou em formação, é particularmente desafiante por apresentarem menos recursos para lidar e identificar em si sentimentos contratransferenciais potencialmente intensos, especialmente os negativos. Portanto, é importante estimular a identificação de tais sentimentos no atendimento de pacientes manejando efetivamente a CT, sobretudo em seminários clínicos, supervisão individual ou coletiva e no próprio tratamento pessoal. Apesar da sua centralidade na clínica contemporânea, a CT é um campo ainda em desenvolvimento, com divergências em relação à sua aplicabilidade clínica e principalmente forma de manejo, necessitando mais estudos empíricos na área.
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Endereço para correspondência
E-mail: livia_sanchez@hotmail.com
Recebido em: abril de 2019
Aceito em: agosto de 2019
1 Lívia Fração Sanchez: Psicóloga. Especialista em Psicoterapia Psicanalítica (IEPP). Doutora em Psicologia Clínica (UNISINOS), e Membro Aspirante da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA). Endereço: Rua Tobias da Silva 120/602. CEP: 90570020.
2 Fernanda Barcellos Serralta: Psicóloga. Especialista em Psicoterapia Psicanalítica (IEPP). Doutora em Ciências Médicas: psiquiatria (UFRGS). Professora e Pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Psicologia (UNISINOS).