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Imaginário

versão impressa ISSN 1413-666X

Imaginario v.12 n.13 São Paulo dez. 2006

 

 

 

Uma inserção dos migrantes nordestinos em São Paulo: o comércio de retalhos

 

An insertion of northeastern migrants in São Paulo: the patch fabric trade

 

Una inserción de los migrantes del Nordeste en São Paulo: el comercio de retazos

 

 

Sueli de Castro Gomes*

Departamento de Geografia Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O comércio de retalhos e resíduos é controlado, predominantemente, por migrantes nordestinos, formando uma rede de pessoas e mercadorias em torno dessa atividade. Desta forma, procuramos estudar como tais migrantes foram mobilizados para trabalhar nesse comércio nas ruas do Brás, em São Paulo. Ao identificar as conexões que esse espaço mantém com outros espaços, construindo uma malha de homens e mercadorias, optamos por seguir a circulação da mercadoria – retalho – até o seu destino final, qual seja, as feiras da sulanca de Pernambuco. Dentre as múltiplas problematizações que a pesquisa traz à tona, destacamos as redes sociais como um instrumento mobilizador do migrante comerciante autônomo de retalhos contribuindo para a ampliação do capital.

Palavras-chave: Migração, Nordestinos, Brás, Feiras da Sulanca, Santa Cruz do Capiberibe, Redes sociais, Trabalho autônomo.


ABSTRACT

The patch and remainder trade is mostly controlled by northeastern migrants, who form a network of people and merchandise based on this activity. Hence, this dissertation aimed at studying how these migrants were mobilized to work in this trade in the streets of Brás. In order to understand this process, the work also investigated the changes undergone by the district, from the Italian to the northeastern Brazilian occupation in the area. Once the connection between this and other areas was identified by the people/goods network evolution, the patch-goods circulation was followed by one of its ends, namely the “sulanca” fairs in Pernambuco. Among the several questions raised by this research, attention should be drawn to the social networks as a mobilizing means of the free-lance migrant, who trades patches that contribute to capital increase.

Keywords: Migration, Northeastern migrants, Brás, Sulanca’ Fairs, Santa Cruz do Capiberibe, Social Networks, Free- Lance Work.


RESUMEN

El comercio de retazos y residuos es controlado, predominantemente, por migrantes nordestinos, formando una red de personas y mercaderías alrededor de esa actividad. Así, procuramos estudar como dichos migrantes fueron mobilizados para trabajar en ese comercio en las calles del barrio Brás, en São Paulo. Al identificar las conexiones que ese espacio mantiene con otros, construyendo una malla de hombres y mercaderías, optamos por seguir la circulación de la mercadería – retazo - hasta su destino final: las ferias de sulanca (mantas o ropas confeccionadas de retazos) de Pernambuco. Entre las múltiples problematizaciones que la investigación resalta, destacamos las redes sociales como un instrumento mobilizador del migrante comerciante autónomo de retazos contribuyendo para la ampliación del capital.

Palabras clave: Migración, Nordestinos, Brás, Ferias da sulanca, Santa Cruz do Capiberibe, Redes Sociales, Trabajo Autónomo.


 

 

A migração de nordestinos compõe um dos maiores fluxos migratórios do processo de produção do território nacional. Nesse sentido, buscamos entender essa mobilidade e compreender como se dá a inserção e a permanência de um grupo de migrantes nordestinos na metrópole de São Paulo, por meio do comércio de retalhos.

 

Os nordestinos chegam em São Paulo

A imagem do Nordeste passou por um processo de construção, que atendia os interesses econômicos das elites nordestinas e interesses de grupos agrários e industriais de São Paulo (PAIVA, 2004). A representação do Nordeste associada ao atraso, à pobreza, à miséria, e na outra ponta, o Sudeste, que representava o motor da economia, a imagem da modernidade, camuflou a dinâmica regional que permite a compreensão da mobilidade dos nordestinos para São Paulo. O entendimento dessa presença maciça na metrópole só é possível quando estudamos o processo de formação econômica do espaço brasileiro e a reprodução ampliada do capital.

Tanto a compreensão das áreas de expulsão desses migrantes quanto da área de atração faz parte do mesmo processo. Para desvendá-lo, seguimos os passos de Oliveira (1981), sob a ótica da divisão regional do trabalho e criticando o conceito dos “desequilíbrios regionais”. A “região” é fundamentada na especificidade da reprodução do capital. Há

(...) uma tendência para a completa homogeneização da reprodução do capital e de suas formas, sob a égide do processo de concentração e centralização do capital, que acabaria por fazer desaparecer as “regiões”, no sentido proposto por essa investigação. Tal tendência quase nunca chega a materializar-se de forma completa e acabada, pelo próprio fato de que o processo de reprodução do capital é por definição desigual e combinado, (...) (OLIVEIRA, 1981, p. 27).

Esse marco teórico será a referência do autor para explicar o desenvolvimento desigual e combinado do Nordeste e do Centro-Sul, ressaltando que possuem formas diferentes de desenvolvimento do capital. A partir das transformações sofridas nessas regiões ele analisa essa complementaridade entre elas.

O Nordeste “açucareiro” se transforma em Nordeste “algodoeiropecuário” subordinado ao mercado internacional. Essa economia formou uma classe latifundiária, que possuía o controle político local, os chamados “coronéis”. “Nesse rastro é que surge o Nordeste das secas” (idem, p. 35). No Centro-Sul havia a oligarquia dos barões do café, que seguia a mesma estrutura de subordinação do Nordeste, viabilizando a reprodução do capital atendendo os interesses do mercado externo. “A ‘região’ do café passa a ser a ‘região da indústria: São Paulo é o seu centro, o Rio de Janeiro o seu subcentro,...’” (idem, p. 37). Tanto no Nordeste, como no Centro- Sul existe uma mudança nessa estrutura e há um enfraquecimento do poder local e das economias regionais. Os chamados “arquipélagos” ligados a uma economia externa são substituídos por uma economia integrada. Essas transformações ocorrem a partir de 1930 e são resultado de uma política centralizadora, fortalecendo o Estado unificado.

A concentração fundiária, concomitante à modernização do campo somada às mudanças nas relações de trabalho e de poder, provocam uma grande expropriação e estimulam a grande emigração, agravadas nos ciclos das secas. Nesse mesmo tempo, o Centro- Sul se transforma em um grande pólo de atração pela dinâmica de sua economia.

A leitura de Singer (1973) reforçou a teoria das desigualdades regionais como o motor das migrações internas, as quais acompanham a industrialização das regiões mais desenvolvidas. A divisão regional do trabalho aponta para a interdependência dessas regiões. Há uma subordinação econômica das regiões que exportam matéria- prima e mão-de-obra (o chamado exército de reserva) e importam os produtos industrializados de outra região. Singer discute a migração interna a partir dessa reflexão e faz uma leitura da urbanização brasileira, principalmente de São Paulo. A cidade de São Paulo concentrou um grande número de indústrias. O ciclo do café trouxe à cidade alguns elementos, como a ferrovia, bancos, mãode- obra, mercado regional, entre outros, que vão servir de apoio para as primeiras indústrias nacionais.

Não há dúvida que a integração do espaço nacional, por meio de ferrovias e rodovias, acelerou e estimulou a migração interregional, aumentando deliberadamente o número de nordestinos em São Paulo. Outros elementos contribuíram para a expansão dessa migração, como a política trabalhista de Getúlio Vargas que regulamentava algumas reivindicações do operariado, entre elas o salário mínimo. Os salários nas áreas urbanas eram um atrativo à migração interregional, pois os ganhos salariais, apesar da legislação federal, eram e são diferenciados. Outro fator significativo é a política migratória, em 1930, para a qual Getúlio Vargas propõe uma lei de cotas, que desestimula a imigração externa. Ele assina um decreto que limita “... em 1/3 o número de trabalhadores estrangeiros por empresa, é dado um passo decisivo para que os trabalhadores nacionais superem em número os estrangeiros na composição da classe operária” (ALBUQUERQUE JR., 1990, p. 28).

Outro aspecto que devemos destacar nesse processo é evidenciado no documento elaborado pelo governo em um projeto apresentado à República Federal Alemã (In: SUDENE - Boletim Econômico, v. 1, 1962) - “a crescente pressão demográfica que se destaca no Nordeste tem suscitado problemas sociais e políticos de suma gravidade...” (VAINER, 2000, p. 25, citado por OLIVEIRA, 1981, p. 114). O texto segue citando o aparecimento de associações camponesas, ou seja, havia uma pressão social para a distribuição de terras, que se não fosse “resolvida” poderia estourar em grandes movimentos sociais, reivindicando a reforma agrária. A válvula de escape que o governo encontrou foi estimular a emigração, desafogando e desarticulando possíveis movimentos sociais. Assim, “as migrações internas apareciam antes como solução do que como problema” (idem, p. 25).

A teoria da mobilidade do trabalho, formulada por Gaudemar (1977), cujo enfoque está na produção e na circulação da força de trabalho, nos ajuda a compreender melhor a migração de nordestinos para São Paulo. O processo de produção capitalista se viabiliza na medida em que ocorre o deslocamento espacial. Esse grupo forma o denominado exército industrial de reserva, que é um excedente de mão-de-obra, mantendo os salários baixos, devido o excesso de contingente. Gaudemar elabora sua teoria a partir das análises de Marx sobre a reprodução do capital. Denomina-se mobilidade do trabalho na medida que há um uso capitalista dos corpos dos trabalhadores. Esse uso permite um deslocamento espacial, bem como o uso dos corpos em diferentes condições de intensidade e ritmos de produção com o propósito de extrair a máxima produção de valor.

O capital mobiliza um exército de homens para a sua reprodução, o que explica os deslocamentos populacionais, os grandes fluxos de pessoas que buscam “melhores condições de vida”. A mobilidade não é apenas espacial, pode ser também social. Quando dimensionamos o contexto histórico no qual os nordestinos estão inseridos, vemos as condições políticas econômicas e sociais que “excluem” grande parcela dessa população dos elementos vitais de sua sobrevivência. Constatamos que essa migração é uma mobilidade forçada, uma estratégia que o capital usa para a sua reprodução. O capital acaba designando a esse grupo as áreas de destino, ou os chamados pólos de atração, que no nosso caso é São Paulo.

Os migrantes nordestinos incentivados pelo Estado se alojavam na mesma estrutura que muito foi usada para a recepção dos imigrantes estrangeiros, a Hospedaria dos Imigrantes, construída na gestão de Antonio de Queiroz Telles como presidente da Província, inaugurada em 1887, no bairro do Brás (ANDRADE, 1991). A edificação enorme, com capacidade de alojar cerca de 4 mil pessoas1, documenta a política pública de incentivo ao fluxo, arregimentando a mão-de-obra barata para suprir o rápido crescimento da cafeicultura, embora muitos fiquem na capital para atender às necessidades urbanas em expansão. Na Hospedaria, os nordestinos pernoitavam por um ou dois dias, eram submetidos a uma triagem que consistia em verificar seus documentos, suas condições de saúde e o local de destino.

Atendendo às necessidades dos cafeicultores, o Estado cria em 1939 o Departamento de Imigração e Colonização, vinculado à Secretaria de Indústria e Comércio. O objetivo era o de conduzir os imigrantes nacionais às fazendas de café. Estima-se que no ano de 1939 ingressaram no Estado paulista 100 mil nordestinos e mineiros. Há uma queda nesse fluxo na década de 1940, em virtude de um novo ciclo extrativo da borracha na Amazônia. Essa diminuição continua em 1950, pois tanto a economia cafeeira declinou quanto as necessidades econômicas de São Paulo se transformaram. Jordão Neto relata em entrevista realizada em 1995, pelo grupo de estudos do Labur – USP/CEM:

Iniciamos o trabalho no Departamento e ainda havia algum movimento de imigrantes. A partir de 1960 foi arrefecendo, e hoje, a migração decaiu. Quase todas as correntes migratórias passavam pelo Departamento de Migração e colonização. O pessoal vinha, desembarcava de trem na estação Roosevelt, estação do Norte, e os imigrantes que vinham de Santos já desciam diretamente no Departamento, pois ali havia uma estação. Até aquele momento tinha um significado, o Departamento de Migração e Colonização. Ocupava um papel relevante, pois era um termômetro da própria economia. Media o circuito, os círculos migratórios, registrava o movimento e sabíamos quando significava uma situação de crise lá no Nordeste com a diminuição da população; mas também podia estar significando um fator de atração momentânea, relacionada ao círculo vegetativo das culturas do estado de São Paulo. Sempre no início do ano o afluxo era grande por causa das colheitas, mês de julho caía bastante, depois, a partir de setembro/outubro, começava a crescer outra vez” (Jordão Neto –18-08-95).

Nessa entrevista, o sociólogo Jordão Neto destaca o grande fluxo no “alvorecer dos anos 30”, com a expansão dos cafezais e também da cultura do algodão, que estava requisitando mais mão-de-obra. Esse relato conta que até 1919 havia uma crise violenta de “braços”, e então o Estado vai estimular a imigração interna. “Em 1919, o próprio governo do estado chegou a mandar uma missão para o Ceará, para recrutar mão-de-obra”. Já em 1935, o governo do estado de São Paulo celebra contratos com companhias particulares de imigração, de colonização, com o objetivo de aumentar o número de migrantes nacionais, “mediante uma subvenção oficial”. Essas companhias iam aliciar no Nordeste e Norte de Minas Gerais pessoas interessadas em vir para São Paulo. “Pagavam a passagem e 60 mil réis por migrante avulso, maior de 12 anos, e 30 mil réis por menores de 3 a 12 anos”.

Em 1939, o próprio Estado faz esse aliciamento, criando a Inspetoria de Trabalhadores Imigrantes. Os funcionários da Secretaria de Migração e Colonização ficavam instalados nos terminais ferroviários de Montes Claros e de Pirapora, nas localidades portuárias, ao longo do percurso dos gaiolas no rio São Francisco. Muitos problemas ocorriam, como o favorecimento e o assédio sexual. De lá, embarcavam as famílias, que seriam recebidas na Hospedaria do Imigrante. Ali os fazendeiros recrutavam os migrantes para irem trabalhar na lavoura no interior de São Paulo. “Havia uma orientação de que os migrantes não poderiam ficar na capital”.

Esse aliciamento pelo Estado ocorrerá até 1943, pois nesse período, a Hospedaria passa para o Ministério da Aeronáutica. “Embora a inspetoria continuasse a funcionar, a coisa era caótica, porque as pessoas que ali chegavam eram alojadas em pensões, ali da própria região do Brás”. Essa situação perdurou até 1952. Depois disso há uma alteração no quadro de registros desses migrantes, que necessariamente passam pela Hospedaria, porque já têm outros pontos de apoio, como os familiares. A orientação de mandar a pessoa para o interior deixa de existir e elas acabam permanecendo na capital, pois o quadro econômico também é outro. A situação no campo também se modifica: em 1965, vigora o Estatuto do Trabalhador Rural e não há mais interesse em trazer gente para morar na fazenda, os expulsos tornam-se os bóias-frias, que vão engrossar as periferias das cidades.

O estudo do Centro de Estudos Migratórios faz uma síntese sobre a migração dos nordestinos, na qual registra “a partir da década de 50, o fluxo de migrantes orienta-se fundamentalmente em direção às cidades, sobretudo para a região metropolitana de São Paulo” (CEM, 1988, p. 8).

Então, o Departamento de Migração e Colonização começa a atuar na capital com o sentido de atender também os indigentes e os desempregados. Essa mudança na política de atendimento ao migrante, como bem disse em entrevista Jordão Neto: “O problema surgiu quando a migração deixou de ser uma solução para ser um problema (...). O Estado investiu, a economia investiu. No momento que deixou de ser uma solução para ser um problema, ‘deixou’ de haver os serviços”.

Outro fator importante nesse deslocamento é a mudança do meio de transporte: ferroviário para o rodoviário. “Para se ter uma noção da importância da Rio-Bahia como via de ‘êxodo’, basta atentar para o fato de que em 1950, somente 12% dos migrantes, entravam em São Paulo por via rodoviária; em 1961, cerca de 34%” (BOSCO, 1967: 26). Foram bastante utilizados os chamados “paus-de-arara”, caminhões e depois os ônibus. O relato dessas viagens e desse cotidiano encontramos na pesquisa de Estrela (1999), revelando os diferentes percursos, a alimentação, as bagagens, o vestuário, e as diversas dificuldades dessa vinda para São Paulo.

O crescimento urbano de São Paulo está relacionado diretamente ao fenômeno migratório, e este, aos processos de urbanização e industrialização. O fluxo migratório nacional de maior destaque foi o dos nordestinos para São Paulo. Segundo Baptista (1998), a participação dos migrantes nordestinos, no total de imigrantes em São Paulo em 1950 era de 27,8%, em 1974 de 49%, em 1982 de 56% e em 1997 de 46%.

Para se ter uma dimensão desse universo, Ângelo (1996) afirma que existem mais de 200 pontos de encontro de nordestinos na capital paulista. Eles estão espalhados por toda cidade, incluindo os restaurantes e casas noturnas. O autor faz um levantamento minucioso dos restaurantes, casas noturnas, e até de lojas que vendem discos, cds e livros ligados à cultura nordestina. A primeira casa no gênero a ser inaugurada foi o Forró de Pedro Sertanejo, no começo dos anos 1960. Outro local de destaque é:

Na zona Norte (rua Jacofé), há o concorrido Centro de Tradições Nordestinas (CTN); na zona Leste, o tradicional Forró de Pedro Sertanejo e o Espaço do Forró mantido pela prefeitura, com entrada grátis. No bairro de Santana, há Um Cantinho do Nordeste e a lanchonete Boa Viagem...(...). Nesses pontos reúnem-se até 20 mil pessoas a cada fim de semana, chova ou faça sol, frio ou calor. É uma barulheira dos diabos, mas os freqüentadores não ligam, parece até que não se importam muito com o desconforto, que, aliás, é grande (ÂNGELO, 1996, p. 119-120).

Existem atualmente a rádio Atual que funciona no CTN, além de outros programas, em outras rádios, como a Imprensa, Bandeirantes, Tropical, Capital, assim como alguns programas de televisão voltados para o público nordestino.

(...) a Capital paulista, aliás, transformou-se nesta segunda metade do século numa espécie de extensão do Nordeste, tanto que estatisticamente é a cidade brasileira que maior número tem de nordestinos residentes ou em trânsito: cerca de 6 milhões, incluindo descendentes (ÂNGELO, 1995, p. 69).

O importante desse inventário é lembrar que muitas vezes a paisagem se repete, as barracas de “camelôs”, as comidas típicas e, principalmente, a paisagem sonora, pois há sempre alguém comercializando música. Para vender cds, fitas cassete e discos, é colocada uma pequena caixa de som ligada no volume máximo, o que 05 Uma possibilita identificar ritmos e estilos do público nordestino. Outro aspecto fundamental é que os espaços de lazer são, simultaneamente, espaços de trabalho. Nesses locais, realizam-se compras, vendas, trocas, encontros, informações de emprego, e, principalmente, onde o desemprego se materializa, e proporciona várias outras formas de inserção do migrante na cidade, no Sistema Produtor de Mercadorias.

Os nordestinos, na maior parte, residem nos centros deteriorados, nos cortiços, nas diversas favelas da metrópole, por serem estas alternativas de moradia barata. Lembrando a pesquisa de Baptista (1998) que estudou uma rede social de nordestinos na favela de Jardim Colombo (Zona Sul). Os migrantes nordestinos residem nas periferias em razão dos preços baixos dos terrenos, em loteamentos clandestinos e em áreas de risco e insalubres, e nos conjuntos habitacionais. Segundo pesquisa Datafolha, 41% dos moradores da área Sé/Brás (distritos do Brás, Bom Retiro, Cambuci, Pari e Sé) são nordestinos. É o maior índice das 19 áreas do município pesquisadas (Folha de São Paulo, 25-01-2004).

Esses estudos (BISON, 1995; BAPTISTA, 1995; ESTRELA, 1999; RIGAMONTI, 2001; PAIVA, 2004) falam do migrante que chega em São Paulo com pouca ou nenhuma escolaridade; que chega para, na maior parte das vezes, trabalhar na construção civil ou no serviço doméstico, e que vai morar em pensões, cortiços ou favelas, que enfrenta as dificuldades de andar na grande cidade e sente saudades do local de origem.

Os dados referentes ao censo demográfico de 2000, divulgados pelo IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística -, apresentam 3.641.148 nordestinos, que representam 20% da população da região metropolitana paulista. Esses dados consideram o lugar de nascimento da população residente na metrópole. Conseguimos, também, os dados preliminares do censo 2000 (IBGE), em que considera que migrante são aquelas pessoas não residentes no município em 01-09-1991, com 4 anos ou mais de idade, ou seja, que migraram para a metrópole há menos de 10 anos.

Em nossa pesquisa consideramos como migrante nordestino, não apenas o recém-chegado, mas toda comunidade nordestina, incluindo os seus descendentes, os quais mantêm as manifestações culturais, mesmo que apresentadas de forma residual. O critério determinado pelo IBGE, que considera o migrante a pessoa não residente no município em 01-09-91, restringe o conceito de migrante. Outro problema apresentado nesse universo é o fato de o instituto considerar migrante aquele que muda de residência de um município vizinho a outro, mesmo que seja a curta distância. Nesse caso devemos relativizar esses indicadores obtidos pelo IBGE. Apesar do quadro de subjetividade e de diferenças conceituais, não devemos desprezar totalmente essas informações estatísticas, que podem ser um dos referenciais.

Não podemos deixar de abordar a recepção dada aos nordestinos em São Paulo. Desde o início até os dias atuais, sempre foi carregada de muita discriminação e preconceito, estigmatizando-os como “baianos” ou “cabeça chata”. O estudo de Maura Penna (1992) trata da identidade do nordestino em São Paulo e aborda o preconceito que ele enfrenta. A autora faz um levantamento, na imprensa, de diversos artigos e situações, na época em que a paraibana Luísa Erundina venceu as eleições para a prefeitura, que mostram a xenofobia dos paulistanos.

Os migrantes nordestinos aparecem no plano do visível e do invisível, ocupam os poros da metrópole. Eles não estão somente nos espaços de aglutinação, concentração, mas aparecem na forma de trabalho e não trabalho no processo de formação da metrópole.

A pesquisa de Sandra Lencioni (1991) mostra que há uma ampliação da metrópole, que segue em um raio de 150 quilômetros a partir do pólo da capital paulista. As unidades fabris, atraídas por terrenos baratos, favores fiscais, proximidade do mercado consumidor vão se instalar nessa metrópole expandida, provocando uma desconcentração industrial. A autora, apoiada em Negri, mostra como o número de empregos segue essa reestruturação da indústria: no período de 1980 a 1985, o interior paulista criou cerca de 6 mil novos empregos industriais, enquanto a metrópole perdeu cerca de 144 mil postos de trabalho. Além da dispersão industrial, há o avanço tecnológico, que provoca o chamado desemprego estrutural. O migrante, portanto, possivelmente está sendo mobilizado por essa reestruturação espacial, haja vista o crescimento acelerado da região de Campinas. O nordestino continua migrando para a capital paulista, mas em maior número desloca-se para a metrópole expandida. O crescimento da economia informal é constante e segue o avanço do desemprego. Assistimos diariamente o aumento de vendedores ambulantes nos semáforos, nas ruas, nas calçadas, nas portas das casas, com as mais diversas mercadorias. Nesse contexto da migração de nordestinos para São Paulo, surge a necessidade do migrante criar novas formas de inclusão na metrópole. Um grupo de nordestinos vai então criar e se inserir, em um segundo momento, em uma dessas formas de inclusão, o nosso objeto de estudo – o comércio de retalhos no bairro do Brás.

 

O comércio de retalhos

O comércio de retalhos e resíduos está localizado nas ruas do Brás, antigo bairro industrial e operário da cidade de São Paulo. Esse bairro concentra hoje um grande número de indústrias e lojas de confecções, que vendem no atacado e no varejo para as “sacoleiras” de todas as partes do Brasil. O comércio de retalhos vai nascer nos interstícios das antigas indústrias têxteis e, posteriormente, se alimentar do rejeito das confecções, as quais fornecem diariamente toneladas de resíduos e retalhos para serem comercializados pelos “retalheiros”. Esses retalhos e rejeitos são comercializados uma parte para as costureiras da Grande São Paulo e até mesmo para as “sacoleiras”, sendo que a maior parte da mercadoria é enviada para Santa Cruz do Capiberibe – cidade do interior pernambucano, que possui um pólo de confecções de “sulanca”. São vestuários de qualidade considerada inferior, consumida predominantemente por uma população de baixa renda. Esse comércio acaba representando a interdependência econômica entre as regiões Nordeste e Centro-Sul tratada por Oliveira (1981) e Singer (1974) em seus estudos. O nordestino passa a ser consumidor do “lixo”, do rejeito das confecções do Centro e do Sul. Dessa maneira, iniciase nossa teia de investigações, pois entre os retalhos de informações, percebemos uma rede de pessoas e mercadorias em torno desse comércio.

A combinação de vários elementos como a migração, a ferrovia, posteriormente, as rodovias, a indústria têxtil, a indústria de confecções e a ampliação de um mercado consumidor de baixa renda originam o comércio de retalhos e resíduos.

O bairro do Brás foi um pólo de atração da Grande Imigração, no início do século XX. Esses migrantes serviram de mão-de-obra operária nas indústrias, entre elas, a têxtil. Os grupos mais significativos foram os italianos, os portugueses e os espanhóis. Porém, em menor número vieram os libaneses, os turcos, os judeus e os sírios, que se especializaram no setor comercial. Estes povos trariam, com eles, a tradição do comércio de armarinhos, roupas, tecidos. Suas lojas localizavam-se, no passado, desde a antiga “Porteira do Brás” até a Igreja Matriz (REALE, 1982; VILLAÇA, 1978). Outros contingentes de migrantes vieram, posteriormente, ocupar o bairro, com maior intensidade. Na década de 1940, os nordestinos, e mais recentemente, os coreanos e os bolivianos, sendo os primeiros os proprietários das confecções e os últimos trabalhadores nas oficinas de costura.

O crescimento urbano acelerado transformou o bairro industrial em comercial, as indústrias tradicionais, principalmente têxteis, vão gradativamente desaparecendo, enquanto as indústrias de confecções se expandem.

A urbanização crescente de São Paulo vai transformando o Brás em área central, servida por várias vias de circulação como a avenida Celso Garcia e a ferrovia, a Radial Leste e o Metrô. A terceirização vai dominando o bairro, principalmente, com artigos têxteis, como o vestuário, cujas lojas, além de vender no varejo e no atacado, são também indústrias de confecções.

Enquanto o Brás se torna uma área comercial, no município de Santa Cruz do Capiberibe, em Pernambuco, vai se formando a concentração de oficinas de confecções especializadas na industrialização de retalhos para produção de roupas. Desde os anos 1930, sabia-se do uso de retalhos de tecidos na confecção. No primeiro momento, as confecções buscavam os retalhos em Recife e a partir dos anos 1960, em São Paulo. Vejamos o registro abaixo2:

Todavia, vale ressaltar a importância dos anos sessenta para o impulso que a atividade tomou, quando se partiu para comprar retalhos em São Paulo. Esta é a fase de integração do espaço nacional através da abertura das estradas, lançando os caminhoneiros ao transporte de mercadorias para as localidades mais distantes. Inicia-se aí o intercâmbio comercial entre Santa Cruz do Capiberibe e a região Sudeste do país. Começam a chegar toneladas de retalhos para a cidade, ensejando a mobilização crescente de pessoas na atividade de produção de comercialização de confecções. Quase todos os feirantes desta década viajaram a São Paulo para comprar retalhos e revendêlos em Santa Cruz do Capiberibe. A compra de retalhos e peças de tecidos em grande quantidade e a baixo custo, promoveu a acumulação do capital para estas empresas e viabilizou o estabelecimento de armazéns para a venda do produto. A grande quantidade de matéria-prima que chegava intensificou a fabricação da confecção de segunda categoria, (...) (CAMPELO, 1983, p. 73-74).

O crescimento dessa atividade no município ocorre nos anos 1960, entretanto a consolidação ocorre a partir dos anos 1970.

“Mas somente em 1966 é que comecei a comprar retalhos nas fábricas de Recife (Paulista, Othon e Camaragibe). Logo depois comecei a comprar também em São Paulo. De início no caminhão dos outros, depois comprei um ‘Jipe’ e depois um caminhão...Quando comecei neste trabalho foi como ajudante de motorista nos caminhões dos outros. Eu tinha um dinheirinho e quando cheguei em São Paulo comprei tudo de pano” (idem, p. 78).

Embora já fosse comercializado no Nordeste, os resíduos não eram vendidos pelas indústrias de confecção. De acordo com uma antiga moradora do Brás - descendente de italianos e retalheira -, até 1960, não se dava importância a essa mercadoria. Assim, os resíduos eram jogados no lixo ou amontoado nas esquinas. No fim do expediente, os indivíduos, com carrinhos, recolhiam o material, como fazem atualmente os catadores de papel e sucatas. Dessa maneira, a matéria-prima sai de graça, demarcando um período em que os comerciantes de resíduos ganharam muito dinheiro com a atividade.

Simultaneamente aos processos anteriores identificamos o domínio dos coreanos na indústria de confecções demarcando um novo período. Conforme eles trabalham intensamente e modernizam a produção, propiciam o aumento das confecções e, conseqüentemente, o aumento do volume de rejeitos, ou seja, dos resíduos (CHOI, 1991). Em geral, as lojas de confecções têm balconistas nordestinos. Com o crescimento do comércio amplia-se a inserção de nordestinos, mobilizados para este trabalho. São balconistas, vigias e outras funções. Soma-se a esse contingente o trabalhador por-conta-própria, principalmente, no comércio informal, como os camelôs e serviços, voltados, também, para a comunidade nordestina. Nesse processo em que os nordestinos buscam a sua inserção em São Paulo, ocorre a criação e o desenvolvimento do comércio de retalhos.

Enfim, existiu um conjunto de elementos que possibilitaram a criação desse comércio no Brás:

- Processo de migração, que fez com que grande número de nordestinos buscasse novas formas de inserção.

- O pólo de concentração no Brás das confecções e sua modernização acelerada pelos coreanos, criando fartas quantidades da matéria-prima - retalho, mercadoria.

- A existência prévia de um mercado no Nordeste, que após os anos 1960, foi impulsionado pelas rodovias, havendo maior escoamento das mercadorias.

O embrião do comércio do retalho apareceu nas ruas do Brás, primeiramente, nas mãos de um pequeno grupo de espanhóis que aproveitavam o resíduo das confecções do bairro para produzir estopas, ou no preenchimento de colchões. Assim contam os retalheiros precursores da atividade:

... Nóis foi os primeiro... O primeiro era uma filerinha, retalho com uma filerinha. Lá na Maria Joaquina, no número 72. O primeiro depósito existe até hoje, no número 40, no número 54. Aí veio, aí veio, aí veio o Otávio que é meu parente, por intermédio dele que eu entrei no ramo. O ponto dele foi ele. Foi o primeiro, foi ele, diferente do espanhol, ele não vendia isso. O espanhol trabalhava, era diferente, ele era só pra moê, ele comprava à quilo e moía. Pra estopa. Agora ele morreu... Tem o maquinário... Ele deu trabalho... Tem otro espanhol que era... Era número 76 o depósito... Já faiz três ano já... (Sr. Pajeú).

Os espanhóis picotavam esse rejeito em dois tipos de máquinas, as “tesourinhas” e a “Máquina do Diabo” que ocasionavam muitos acidentes, em que os trabalhadores perdiam os dedos. Eles vendiam esse produto como estopa, ou para fazer “enchimento” de colchão, banco de automóvel, pois nesse tempo, por volta dos anos 1950, não existia a espuma. Em um segundo momento, já na década de 1960, o aproveitamento desses resíduos é feito predominantemente por um grupo de nordestinos, que no caso não picotavam, mas revendiam para seus conterrâneos, que aproveitavam para costurar uma confecção mais popular, a chamada sulanca. Nesse momento esses resíduos eram considerados lixo das confecções e eram “catados” nas calçadas pelos retalheiros com carrinhos de madeira, como vemos hoje os catadores de papelão e de latinhas. Nos anos 1970, esses rejeitos passam a adquirir valor e acabam sendo vendidos por um preço mínimo por muitas confecções.

O comércio de retalhos criado pelo grupo de migrantes nordestinos consiste em adquirir das confecções do Brás o seu rejeito. As peças maiores são chamadas de retalhos e as menores, de resíduos. Os retalhos podem ser bobinas inteiras de tecidos com defeitos ou com a cor fora de moda; enquanto os resíduos são os tecidos que podem já ter sido usados nas confecções e tornam-se sobras. Hoje, esse comércio, que já acontece há mais de 30 anos, compra os retalhos não só das confecções (boa parte controlada por coreanos), mas também das indústrias têxteis. Essas estavam concentradas no Brás e hoje estão dispersas. Assim, essa atividade envolve cada vez mais outros espaços, pois os comerciantes também mantêm relações comerciais com Americana, Campinas, Santos, assim como Goiás, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e, principalmente, Pernambuco. Forma-se uma grande rede de pessoas e mercadorias, que tem como ponto de apoio ou o nó, o Brás.

Esses resíduos são vendidos por um preço mínimo por muitas confecções ou doados para os “catadores”. Às vezes, são doados, às vezes, são vendidos pela indústria da confecção. Essa relação depende do tamanho do resíduo, do volume envolvido, do tamanho da própria indústria de confecção. Se for um volume irrisório, esse resíduo é desprezado pela indústria de confecção. Encontramos situações em que o proprietário da confecção deixa esses resíduos para seus funcionários, como um incentivo. Esses funcionários, então, vendem, como uma complementação salarial, a chamada “caixinha”. Essa forma desobriga o dono da indústria de confecção de arcar com maiores salários e também estimula o funcionário a produzir mais, aumentando a quantidade de resíduos. Vejamos o depoimento do sr. Dudu:

Doava não. Não havia doação nenhuma. Tudo era comprado, naquele tempo era comprado. Já em 60. [...] Naquele tempo, não comprava ninguém, então quando eu peguei a comprar, aí tinha gente, aí o dono do retalho (perdeu o visto). Não dava mais a ninguém. Antigamente, aquele retalho era até dado, antes de mim, dava, butava no lixo, mas depois, eu peguei a comprar, aí depois, e eles começaram a vender, vender. Aí... [...] Não peguei nada de graça. Nada de graça chegou pra mim. Só comprava.” “Era o resíduo, Bobina era peça. Dá-se o nome de resíduo, mesmo. O retalho, só. depois eu deixei o ramo do resíduo e peguei a trabalhar com o retalho porque o resíduo não dava lucro, também, deixou de dar lucro. Eles pegaram a vender muito caro na loja, vender muito caro. Eu peguei e deixei de comprar, deixei de comprar o retalho. peguei a trabalhar o retalho grande, pano grande, tecido. Ainda continua até hoje.” (...) “Pegava no carrinho, Pegava no carrinho. Às veiz, trabalhava direitinho pra mim, às veiz vendiam pra mim, às veiz, aquele povo que trabalhava. Depois abria um depósito, também, e trabalhava para eles, mesmo. Porque o retalho vendia...a pessoa.... Hoje mais não, antigamente, o retalho dava a cata, catava o retalho. [Seu filho Moacir diz ‘hoje, ainda cata.’] Hoje ainda tem. Muita gente vive catando retalho, compra o resíduo e do resíduo retalho e daquele retalho, vende prá colcha, roupa de mulher (buneca)” (Sr. Dudu).

O comércio de retalhos e resíduos instala-se próximo à grande concentração de indústria de confecções. A localização facilita o acesso à compra e à venda. Essas unidades comerciais se diferenciam no tipo de mercadoria que oferecem e na ocupação da edificação: são depósitos3, são lojas e são residências, onde apenas se separam os retalhos. Em alguns casos, essas edificações têm dupla função, servem de local de trabalho e também de moradia.

Identificamos aproximadamente 330 unidades, entre as lojas e depósitos. Muitas vezes, a mesma unidade possui características mistas. A caminhada pelo conjunto das ruas levou-nos a identificar a distribuição do comércio de retalhos e resíduos; grande parte dessas unidades estão concentradas nas rua Joly e Almirante Barroso, e dali há um espraiamento em direção ao Pari, distrito mais distante do centro da cidade.

Uma parte dos atuais proprietários iniciaram e iniciam o comércio apenas comprando e revendendo os retalhos; depois eles conseguiam uma instalação própria, às vezes emprestada e sem firma registrada. Quando conseguem a própria firma, alugam um salão maior que o inicial para o depósito, como podemos verificar nos depoimentos:

Comprando aparas menores de tecido, não tinha estabelecimento, depois aluguei um comodozinho, abaixo do nível da rua, foi aí que comecei. Fui aumentando, estabeleci uma firma, aí continuei (Sr. Ismael).

Vejamos outro retalheiro:

(...) depois de escolher papelão, escolhi retalho pros outros, foi indo, escolhendo, quando as condições da gente era difícil – eu também trabalhei, catando retalho pros outros... aí quando eu tava na quinta série, aí eu escolhia retalho aí meu pai foi subindo, escolhendo. Primeiro alugou um abrigo, uma casinha, um negócio de retalho, bem pequeno mesmo, do tamanho de um banheiro, né, escolhia, lá eu (...). Depois alugou um depósito na Silva Teles... (Tania).

 

Quem são os retalheiros?

A grande parcela das pessoas que trabalham nessa atividade é de migrantes nordestinos. Podemos dividi-los pela origem: o primeiro grupo é uma família da cidade de Ibirajuba - PE, que tem uma dimensão dez vezes maior que o segundo grupo, o da família de Iguatu - Ceará; e o terceiro grupo, que tem outro percurso, são os migrantes de Santa Cruz do Capiberibe - PE - e cidades vizinhas. O último grupo de migrantes surge seguindo o fluxo desse comércio, pois todos os dias saem caminhões levando toneladas de resíduos e retalhos para Santa Cruz, e no retorno serviam de transporte para o migrante. Conforme afirmam em depoimentos: “cada caminhão de tecido trazia cinco ou seis”.

Assim, a formação desse comércio está, também, mediada por redes sociais de parentesco ou apadrinhamento entrelaçadas por redes econômicas, no caso as famílias de Iguatu e Ibirajuba. Na busca de entender o comércio de retalhos como uma das formas de inserção de migrantes em São Paulo, encontramos essas redes sociais, que nos fornecem elementos para analisar o seu papel como apoio ao migrante que acaba de chegar e como contribuinte na ampliação desse comércio.

Uma vez expulsos do mercado de trabalho formal regulamentado, os migrantes procuram no comércio de retalhos o seu próprio negócio para se inserir como autônomo na economia de São Paulo. Observamos que existe uma hierarquia entre esses migrantes, dependendo da função que exercem na atividade - uns mais capitalizados, outros pouco ou sem nenhum capital. Os comerciantes procuram aumentar o seu capital, por pequeno que seja, e assim ascender socialmente. Identificamos três fatores que levam esse migrante a se inserir na atividade: a baixa escolaridade; a remuneração acima do trabalho regulamentado, considerando o salário mínimo; e o pequeno ou nenhum capital exigido para o exercício da atividade.

O comércio de retalhos guarda, em si, mecanismos de acumulação e ascensão social. Esses migrantes carregam contradições, pois enquanto trabalhadores autônomos, negam o assalariamento, no entanto, se subordinam à mobilidade imposta pelo capital. O comerciante de retalhos nega o capitalismo quando recusa o assalariamento, porém, o afirma viabilizando a ampliação e a reprodução do capital na circulação da mercadoria. As contradições presentes no migrante movem o processo produtivo no modo de produção capitalista e é dessa maneira que ele busca a sua inserção em São Paulo.

 

A economia da sulanca e a mobilidade do trabalho

Assim, o destino dessa mercadoria retalho e resíduo possui uma grande diversidade e complexidade. Então, resolvemos fazer um recorte e seguir o circuito da mercadoria, optando apenas pelos retalhos, deixando de seguir o destino dos resíduos, que daria uma outra pesquisa. Como o maior consumo dos retalhos é realizado pelos comerciantes de Santa Cruz do Capiberibe, resolvemos seguir essa trajetória.

Segundo os depoimentos, o Nordeste contribui com a maior participação nas compras de retalhos. Só a cidade de Santa Cruz do Capiberibe consome cerca de 80% dos retalhos do Brás. Os retalheiros e a transportadora afirmam que saem de lá, todos os dias, aproximadamente cinco a seis caminhões, o que representa 320 toneladas de tecido diariamente. Vejamos:

Mando pra Pernambuco, aqui da Maria Joaquina, assim..., caminhão sai 2, 3, 4, 5, 8, 10 caminhão. Quando tempo tá bom, sai 30 ou 40 caminhão para Santa Cruz, que é o lugar que mais sustenta São Paulo. Uma cidade desse tamanhozinho... (Sr. Zuca).

Essa mercadoria é vendida em Santa Cruz do Capiberibe para as pequenas confecções que predominam na cidade. O retalho é industrializado, e se torna uma confecção (vestuário) de menor custo para toda a população de baixa renda, mantendo assim, por meio do vestuário, o baixo custo da manutenção e reprodução da população. Essa confecção de baixo custo e qualidade “inferior”, é mais conhecida como sulanca. O retalho e o resíduo são fundamentais na produção da sulanca. O aproveitamento da sobra das indústrias de confecções permite o seu barateamento, para abastecer a população excluída de um consumo de artigos de luxo, entretanto, inclusa no mundo das mercadorias.

Os caminhoneiros trouxeram, nos anos 1960, para Santa Cruz do Capiberibe, a helanca, então um dos tecidos da moda no Sul do país. Conforme Souza (1996) existem três versões para o termo sulanca:

A primeira refere-se a uma corruptela das palavras do ‘sul’ e ‘helanca’ para determinar a ‘helanca que vinha do sul’. A segunda liga-se a um episódio que ocorreu entre um comerciante que transportava as mercadorias e um fiscal governamental. Quando solicitado a apresentar a documentação dos produtos que transportava, o comerciante teria se referido pejorativamente aos mesmos como produtos de baixa qualidade, chamando-os de SULANCA. O fiscal aquiesceu na obrigatoriedade de documentação e este de fato rapidamente se tornou conhecido por todos os que comerciavam com aquelas mercadorias. Todos passaram a utilizar a denominação, pois ela significa a não ocorrência de portes tributários. Uma terceira versão não aponta elementos mais precisos, tendo a denominação vindo a ser utilizada por todos apenas para determinar os produtos locais que ficaram conhecidos como símbolo de produtos simples e de baixa qualidade (SOUZA, 1996, p. 17).

Uma forma mais simplificada seria o destaque da combinação do Sul e a helanca originando o termo. A sulanca seria a confecção de menor qualidade, voltada para a população de baixa renda. As entrevistas de Campelo (1983) definem sulanca como “mercadoria de combate, de grito, de pobre, de camelô”. O cordel de Isaura de Oliveira, ex-sulanqueira de Panelas - PE, vai representar o contraste dos vestuários, como bem de consumo, e as diferenças e desigualdades sociais e o seu poder de consumo.

A moça rica só anda, Esticada e na panca, Só usa tanga Duloren, De preferência, cor branca, E a coitada da pobre, Usa tanga da Sulanca. (fragmento do cordel “O Rico e o Pobre – a diferença entre os dois” de Isaura de Melo Souza - Panelas - PE)

Existe uma conexão de feiras da Sulanca, envolvendo algumas cidades. A primeira feira surgirá em Santa Cruz do Capiberibe, nos anos 1970. Depois, em 1983, aparece outra feira em Caruaru, somando- se a tradicional Feira de Caruaru, que tem 160 anos. E mais recentemente, em fins dos anos 1990, a cidade de Toritama também organiza a sua feira. Ainda temos registro de Feira da Sulanca em Aracaju, Recife, Palmares, João Pessoa, Maceió, Paulo Afonso e Calumbi (SOUZA, 1996), Fortaleza, Tobias Barreto, conforme depoimento de motoristas dos ônibus de sacoleiros. Essas feiras formam uma rota para os feirantes que levam a mercadoria do pólo da região de Santa Cruz do Capiberibe. Até os dias da semana são ordenados da seguinte forma: segunda-feira, ocorre a feira em Toritama; na terça-feira, em Caruaru, e na quarta-feira, em Santa Cruz do Capiberibe. Essas feiras são as mais significativas por suas especificidades. A feira de Santa Cruz do Capiberibe mobiliza 20 mil pessoas entre camelôs e sacoleiros.

Tanto o Brás como o pólo da sulanca formado pelos municípios de Santa Cruz do Capiberibe, Caruaru, Toritama e Brejo da Madre de Deus são espaços transformados que se conectam, fruto do processo de modernização que a racionalidade do capital impõe, quando mobilizam homens e mercadorias.

 

Considerações finais

A força de trabalho dos migrantes mobilizada pelo capital faz com que sejam produzidas várias formas de inserção na cidade; entre elas está o comércio de retalhos no Brás. O capital que gera o processo de metropolização mobilizou muitos nordestinos, como força de trabalho que ocupou as ruas do Brás, e trouxe elementos do seu local de origem. O Brás caracteriza-se por ser um centro atacadista interligado, inclusive via Internet, com diversas partes do país. O comércio de retalhos se dá com a venda de matéria-prima. Esse pólo por sua vez produz uma confecção mais barata que retorna ao Brás como sulanca. A expansão do pólo industrial da confecção - sulanca está relacionada com a matéria-prima, retalho, oriunda de São Paulo, e um mercado consumidor precarizado que vem principalmente do Norte e Nordeste. O aproveitamento do refugo da indústria do Centro-Sul barateia o vestuário e possibilita a reprodução de uma população excluída do consumo de artigos de luxo, entretanto, inclusa no mundo das mercadorias. Assim, o Brás e Santa Cruz do Capiberibe são verdadeiros nós que interligam essa malha de homens e mercadorias, uma racionalidade que a modernidade impõe.

Há uma subordinação da indústria de confecção pernambucana com a indústria do Centro-Sul, na compra de equipamentos de produção e matéria-prima. Essa subordinação é fruto de um processo de desenvolvimento desigual e combinado. O comércio de retalhos tem a sua gênese na combinação de três elementos fundamentais: a migração de nordestinos para São Paulo; a expansão da indústria de confecção, controlada pelos coreanos, propiciando farta oferta de resíduos e retalhos; e, por último, a existência prévia de um mercado consumidor tanto em São Paulo quanto no Nordeste, dinamizado pela integração do espaço nacional. Assim, essa atividade comercial ocupa as brechas que o capital deixa para a sua ampliação.

Enfim, tanto a economia da sulanca, como uma parte do comércio de retalhos e resíduos estão fora do controle do Estado. Essa atividade faz parte do circuito inferior que coexiste, de forma hierárquica, com o superior. Nossos estudos perceberam a interligação desses circuitos que têm a mesma origem: a modernização e a expansão da força de trabalho.

O comércio de retalhos e de sulanca mantém a desigualdade e sustentabilidade social, aparecendo como um instrumento no processo de “inclusão”, uma inclusão precária e diferenciada.

A formação do comércio de retalhos está também entrelaçada por redes sociais de parentesco ou de apadrinhamento, por redes econômicas e territoriais. Nesse processo de inserção, a rede social é um apoio para os migrantes. No comércio de retalhos ela é difusora de informação, estratégia importante para a entrada do migrante no mercado comercial, além do apoio “logístico” proporcionado pelo conterrâneo. As redes sociais trazem em si contradições como a solidariedade e a concorrência. Muitos de seus elos são rompidos com conflitos e quebra de confiança diante da concorrência comercial. São mecanismos de mobilização dos migrantes como força de trabalho, proporcionando-lhes um acúmulo de capital individual. O comércio de retalhos amplia-se na medida em que as redes sociais atuam, servindo de apoio, principalmente, com as informações próprias desse mercado. Essa ampliação redefine uma nova configuração espacial, na qual a rede de mercadorias e de pessoas se confunde. O processo econômico incorpora as redes sociais para a reprodução e a ampliação do capital.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: suelicgomes@itelefonica.com.br

Recebido em 28/06/2006
Aceito em 20/08/2006

 

 

* Departamento de Geografia FFLCH-USP. do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
1 Segundo Reale (1982), a hospedaria passa a abrigar 2 mil pessoas. O catálogo publicado pelo Memorial do Migrante (1997) afirma que sua capacidade é para receber 3 mil pessoas. “Em ocasiões especiais chegou a abrigar até 8 mil de uma só vez” (p. 5)
2 Na pesquisa de Campelo (1983) há o registro dos primeiros indícios da comercialização entre Santa Cruz do Capiberibe e São Paulo
3 Existe uma diferenciação entre o conceito de depósitos e lojas, entre os retalheiros. A loja comercializa, principalmente, os retalhos, enquanto o depósito comercializa os resíduos. Ás vezes, eles são mistos (SOUZA, et al., 1996; VAINER, 2000; VILLAÇA, 1978) .

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