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Imaginário

versão impressa ISSN 1413-666X

Imaginario v.13 n.14 São Paulo jun. 2007

 

 

 

Estudantes moçambicanos no Rio de Janeiro, Brasil: sociabilidade e redes sociais

 

Mozambican Students in Rio de Janeiro, Brazil: sociability and social networks

 

Estudiantes mozambiqueños en Río de Janeiro, Brasil: sociabilidad y redes sociales

 

 

Carlos Subuhana*

Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objeto de estudo deste trabalho é a presença de estudantes moçambicanos no Estado do Rio de Janeiro, Brasil, com a proposta de investigar uma experiência de imigração temporária. Nosso objetivo não deixa de estar relacionado a trabalhos de outros especialistas em Ciências Sociais e Humanas que abordam questões relativas a estudos de etnografia urbana. A pesquisa vai nessa mesma direção, sendo que no presente caso constitui um desafio para o próprio emigrante e/ou imigrante o fato de ser, ao mesmo tempo, observador e parte integrante do objeto de estudo, ou seja, um imigrante refletindo sobre si mesmo e sobre seus compatriotas, usando termos antropológicos. Os dados/ evidências coletados para a elaboração da tese se relacionam a: (i) projetos de vida e a escolha do Brasil; (ii) identidade e sistemas classificatórios; (iii) sociabilidade e redes sociais; e, por último, (iv) a expectativa do retorno (ou seja, como esses acadêmicos pensam aplicar os conhecimentos adquiridos no Brasil à realidade do país de emigração – Moçambique). Esse material foi coletado em entrevistas (por meio de questões abertas e fechadas) com estudantes moçambicanos cursando universidades (públicas e particulares) do Rio de Janeiro. Esse grupo forma uma rede de relações ampliada, a qual acolhe também indivíduos de outras nacionalidades, possibilitando não apenas a vivência de contatos face a face como também a interação por meio de redes virtuais. Cabe destacar ainda que a expectativa do retorno ao país de origem se faz presente entre os nossos interlocutores.

Palavras-chave: Migrações internacionais, Relações raciais, Sociabilidade.


ABSTRACT

This research’s subject matter is the presence of Mozambican students in the State of Rio de Janeiro, Brazil, focusing on their experience of temporary immigration. Our target is related to a certain extent to the work of other specialists in Human and Social Sciences engaged in studies of urban ethnography. In spite of following the same line, the present study faces a challenge, as the immigrant and/or emigrant himself is both an observer and an integral part of the study’s subject matter, that means, an immigrant reflecting on himself as well as on his fellow countrymen, using anthropological terms. The data and instances collected for this dissertation refer to: i) life projects and the choice of Brazil; ii) identity and classifying systems; iii) sociability and social networks and finally; iv) the expectation of returning home (in other words, how these students intend to apply the knowledge acquired in Brazil to the reality of the emigration country, Mozambique. This material has been gathered by means of interviews (composed of open and closed questions) with Mozambican students at public and private universities in Rio de Janeiro. This group constitutes an amplified network of relationships receiving also individuals of other nationalities, enabling not only face-to-face contacts but also the interaction through virtual networks. It is also worth emphasizing that the expectation of returning home is always present in our interlocutors’ speeches.

Keywords: International migrations, Racial relations, Sociability.


RESUMEN

El objeto de estudio de este trabajo es la presencia de estudiantes mozambiqueños en el estado de Río de Janeiro, Brasil, cuya propuesta es investigar una experiencia de migración temporal. Nuestro objetivo está relacionado, de cierta forma, con trabajos de otros especialistas en Ciencias Sociales y Humanas que abordan temas de etnografía urbana. Esta investigación sigue la misma línea, sin embargo, en este caso, enfrenta un desafío: el hecho de que el emigrante y/o inmigrante sea al mismo tiempo un observador y parte integrante del objeto de estudio; es decir, un inmigrante reflexionando sobre sí mismo y sus compatriotas, usando términos antropológicos. Los datos recogidos para la elaboración de la tesis se relacionan con: I) proyectos de vida y la elección de Brasil; II) identidad y sistemas clasificatorios; III) sociabilidad y redes sociales; y IV) la expectativa del retorno (es decir, cómo esos académicos piensan aplicar los conocimientos adquiridos en Brasil a la realidad del país de origen, Mozambique). Ese material fue recolectado a través de entrevistas (cuestiones abiertas y cerradas) con estudiantes mozambiqueños de universidades públicas y privadas de Río de Janeiro. Este grupo constituye una red de relaciones amplia que acoge también a individuos de otras nacionalidades, permitiendo no sólo contactos frente a frente sino también interacción a través de redes virtuales. Cabe destacar que la expectativa de retorno al país de origen está siempre presente en nuestros interlocutores.

Palabras clave: Migraciones internacionales, Relaciones raciales, Sociabilidad.


 

 

Introdução

“Quem não viaja vai casar com a[o] própria[o] irmã[o]” (Ditado bantu).

 

O presente trabalho é uma versão resumida da tese de doutorado defendida no Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSS/ESS/UFRJ).

A pesquisa enfoca a presença de estudantes moçambicanos em universidades e instituições de formação profissional – públicas e particulares – do Estado do Rio de Janeiro, Brasil, visando a análise de uma experiência de imigração temporária.

Trinta moçambicanos estudam em universidades públicas e particulares do Estado do Rio de Janeiro dentro de uma faixa etária que varia de 18 a 42 anos, havendo um ligeiro equilíbrio entre o número de homens e mulheres. Desse total, 19 estão na graduação e 11 estão na pós-graduação. Vinte e oito são solteiros. São poucas as famílias constituídas de marido, mulher e filhos. Durante as entrevistas identificamos três casais, a saber: um casal de moçambicanos e dois casais constituídos de moçambicano e brasileira. Os estudos desses alunos são financiados por seus próprios pais e parentes1, por organizações não-governamentais (ONGs)2, pelo Governo de Moçambique (via ministérios) e pelo Governo Brasileiro (CAPES/MEC, CNPQ e Itamaraty).

Em termos de origens sociais, os pais e parentes desses estudantes são, em sua maioria, membros de altos escalões do governo (como ministros e diretores nacionais, por exemplo), empresários, funcionários dos setores público, privado e de ONGs, ou seja, de famílias de alto status sócio-econômico e político. Os poucos filhos de camponeses ou de funcionários que auferem salários baixos conseguem entrar no Brasil para prosseguirem com seus estudos universitários através de bolsas de estudos, basicamente em nível de pós-graduação (mestrado e doutoramento).

Esses estudantes se identificam a partir de classificações distintas que se referem a distinções étnico-raciais e lingüísticas que podem ou não se cruzar, como negros, mestiços, indianos, mulatos e brancos; macuas, chuabos, senas, changanas, rongas; são bilíngües e/ou multilingües, ou seja, falam português, emakhwa, ciyao, bitonga, cichangana, xironga, echwabo, inglês e francês, entre outras línguas.

Se durante a vigência do socialismo real os moçambicanos ingressavam em universidades estrangeiras através de afetações (enquadramento), hoje os estudantes prosseguem com seus estudos por intermédio de concursos. Há uma valorização da carreira, da vocação e do indivíduo.

 

Questão teórica

A principal questão teórica que foi escolhida para a elaboração da tese é a da e/imigração – no caso presente, e/imigração temporária. Preferimos usar o termo “imigração temporária” por acreditar que o conceito “imigração” stricto sensu seria definitivo demais, uma vez que esses estudantes entram no Brasil com o “Visto Temporário IV”. É um visto que pode ser renovado e prorrogado anualmente, bem como transformado em Visto Permanente. Como deixou bem claro Sayad (1998), a imigração consiste no deslocamento de populações por todas as formas de espaço socialmente qualificadas (o espaço econômico, político, cultural, sobretudo em suas dimensões simbolicamente mais “importantes”, o espaço lingüístico e religioso, entre outros).

Schutz (1974) focaliza o modo como o padrão cultural de um grupo é interpretado por um estrangeiro quando ele se aproxima e procura orientar-se dentro desse mesmo grupo. O autor define o estrangeiro como um ser humano adulto de uma civilização contemporânea, que procura ser aceito permanentemente ou pelo menos tolerado pelo grupo do qual ele se aproxima. De acordo com Schutz, o imigrante seria um exemplo paradigmático de tal estrangeiro. Por conta da quantidade de especificações requeridas, ele exclui dessa consideração, “a visita ou o convidado que pretendem estabelecer um contato meramente transitório com o grupo” (SCHUTZ, 1974, p. 95).

 

Metodologia

A presença dos estudantes moçambicanos em universidades do estado do Rio de Janeiro (Brasil) foi analisada à luz das transformações – como o contexto de mudanças e reestruturação econômicosocial – pelas quais a sociedade moçambicana tem passado nas últimas décadas e que vem trazendo um novo diálogo sobre as políticas públicas e educacionais.

O material aqui analisado foi coletado em entrevistas (com questões fechadas e abertas) com estudantes moçambicanos que estão fazendo cursos em universidades (públicas e privadas) do Rio de Janeiro. No total foram dezessete entrevistas, e a escolha dos entrevistados foi aleatória. Em se tratando de estudantes, procuramos respeitar os que alegaram não ter tempo de nos atender porque tinham provas ou porque tinham uma carga de leitura maior. Os métodos quantitativo, qualitativo e a observação participante se fizeram presentes durante a pesquisa.

 

Projetos de vida e a escolha do Brasil

Em termos conceituais, a noção de projeto, assim como da sua objetividade e subjetividade, por muito tempo recebeu pouca atenção por parte dos sociólogos, como bem reconheceu Leandro (2004). De acordo com Leandro, foram os filósofos, como Sartre (1986), Merleau-Ponty (1971) e Husserl (1983), entre outros, que inicialmente se debruçaram sobre essa problemática.

No Brasil são muitos os autores que atualmente se dedicam ao estudo de projeto. Um dos mais renomados é Velho (1994), que vê o mundo moderno como palco da valorização do indivíduo, o que possibilitaria a elaboração de projetos individuais que na sociedade tradicional. Na sociedade complexa e moderna a família aparece mais como rede de apoio. Barros (2000) diz que o projeto é pensado em condições sócio-culturais especificas e está ligado aos valores da sociedade. É o aspecto socializado do conhecimento (SCHUTZ, 1974) ou o aspecto público da linguagem (VELHO, 1979) que dá ao projeto a possibilidade de existência.

A pesquisa nos indicou que os projetos desses interlocutores estão mais atrelados à família, embora alguns cheguem a afirmar que suas trajetórias e seus projetos de vida sejam individuais. Para muitos desses compatriotas, a família constitui o núcleo central e fonte de equilíbrio.

É importante frisar que, nas tradições culturais moçambicanas, de origem bantu, a idéia de coletividade é muito presente. Para um bantu, “ser”, é fundamentalmente “estar em relação com os outros” (TEMPLES, 1965). Com isso não queremos afirmar que num país de economia de mercado, como é o caso de Moçambique, não se faça presente o “individualismo”. Ele existe, mas os resquícios das sociedades simples, que por sua coalizão deram origem à sociedade moçambicana, acabam prevalecendo nas famílias, sejam elas nucleares ou alargadas. Como diria Macamo (2005), em Moçambique “todos [vivem] num contexto social moderno, mas na base de referências sociais tradicionais. É um contexto extremamente individualista, mas a (...) resposta a essa condição é a família e a comunidade”. Hoje, quando o diploma universitário vem se tornando o principal passaporte de construção do futuro das jovens gerações moçambicanas, as famílias se vêem na obrigação de se mobilizar para ter um doutor no seio da família, o que lhes permitirá aceder ou não a outra posição social.

Entre os nossos interlocutores, alguns fizeram seus estudos universitários em Moçambique e no exterior (África do Sul e Portugal), outros chegaram a tentar ingressar em universidades moçambicanas sem sucesso e há aqueles que já tiveram o desejo de estudar em outros países, como EUA, África do Sul, França e Espanha, por exemplo. Dentro do país o maior sonho dos moçambicanos é estudar na Universidade Eduardo Mondlane - UEM3. Muitos são os que fazem várias tentativas para ver se conseguem uma vaga na UEM. Não conseguindo, há duas alternativas para os que têm dinheiro: (1) ingressar em uma universidade particular; (2) enviar os filhos para o exterior, realizando o sonho de conseguir um diploma universitário em uma universidade conceituada. Há aqueles que nunca fizeram exame de admissão em uma universidade moçambicana ou porque vieram para o Brasil logo depois do término do nível médio ou porque lá não havia o curso superior almejado.

Ao escolher um país para prosseguir os estudos, o Brasil acaba apresentando vantagens por causa dos laços de amizade que unem os dois países com ênfase em suas especificidades históricas, sociais, econômicas, educacionais e culturais. A língua portuguesa, que é oficial nos dois países, acaba sendo um dos atrativos para esses estudantes. Vale notar que, em termos de custos, sai mais barato mandar um filho prosseguir seus estudos em uma universidade brasileira do que matriculá-lo numa universidade particular moçambicana ou mesmo mandá-lo para uma instituição de ensino européia, australiana ou dos EUA, por exemplo. O custo de vida do Brasil seria mais baixo que os países citados. A oportunidade também é apontada como um dos fatores que traz esses estudantes ao Brasil.

Há casos de estudantes que preferiram escolher o Brasil porque uma parte da família estava aqui, reforçando a idéia de que os projetos de estudos desses estudantes são familiares. E tem mais: hoje é “moda” mandar um filho ao Brasil para prosseguir seus estudos universitários. Muitos são os que escolhem fazer um curso no Brasil sem terem nem sequer uma idéia do que seja esse curso.

No Brasil os moçambicanos, na sua totalidade, preferem escolher o Rio de Janeiro para prosseguir seus estudos universitários por acreditarem ser uma cidade mais dinâmica, “onde tudo acontece”. Daí existirem moçambicanos que depois de morarem e estudarem, por alguns meses em outros estados, preferem pedir transferência para o Rio de Janeiro. Algumas Instituições de Ensino Superior (IES) brasileiras aceitam transferência de estudantes-convênio; outras não. No caso de o estudante-convênio desejar transferir- se para outra IES, somente poderá fazê-lo depois do final do primeiro ano de estudos, para o mesmo curso, para uma IES de outro Estado e por uma única vez. Para tal, deverá justificar, adequadamente, os motivos dessa pretensão e cumprir, rigorosamente, as exigências da IES recebedora, que aceitará a transferência se observado o limite de vagas oferecidas anualmente ao PEC-G, computando, para a integralização do curso, o tempo despendido pelo estudante na IES de origem” (Cf. Protocolo). Outros escolheram o Rio por influência de amigos ou parentes que moram ou moraram no local.

Uns chegaram a imaginar que o Brasil fosse um “paraíso social”, sinônimo de desenvolvimento e progresso, portanto, de uma vida farta e de oportunidades incomensuráveis para todos, chegando a pensar que o estilo de vida e o Brasil mostrado nas telenovelas da Rede Globo de Televisão e da Rede Record (Miramar, em Moçambique) era o Brasil real, ou seja, o Brasil que eles haveriam de encontrar. Existe aqui “uma contradição muito grande entre mídia e o que o país exatamente é” (Faz-tudo). Mas há aqueles que já conheciam a realidade brasileira por meio de “e/imigrantes ativos”4, amigos, parentes, ou mesmo por leituras e por outras fontes de informação, como os telejornais dos canais de TV citados.

Esses estudantes não partem numa situação de total desconhecimento acerca da nova realidade social que os recebe. De fato, há toda uma vasta rede de relações que se vai tecendo e re-atualizando entre os primeiros que partem e os que ficam, que faz com que estes possam elaborar certa constelação de elementos avaliativos em relação à sua provável situação futura. Contudo, agora que conhecem o Brasil, muitos dos nossos interlocutores voltariam para prosseguirem com seus estudos porque o ambiente de estudos encontrado é considerado bom. Cá os professores são “muito legais” e “dispostos a ajudar”. Muitos são os que afirmam que a experiência que estão tendo é mais “gratificante” do que dolorosa e o Brasil oferece um ambiente universitário que incentiva o crescimento científico. A experiência “sempre tem um pouco de dor e de gratidão também. Mas eu acho mais gratificante que dolorosa. Porque eu tenho uma aproximação maior com a instituição onde estudo, e a acessividade é maior, há sempre uma vontade maior de ajudar” (Muatreze). Outros gostariam de prosseguir seus estudos em outros países, como a África do Sul, por exemplo, por causa da língua, o inglês, que é cada vez mais valorizado no mercado moçambicano.

De acordo com os nossos entrevistados, os cursos mais procurados no Brasil são arquitetura e urbanismo, engenharia, ciências sociais e humanas e biblioteconomia, ao lado de outros com menor representatividade, tais como enfermagem, economia, biologia, medicina e direito. Durante as entrevistas procuramos identificar as principais causas que fazem com que as escolhas se concentrem num determinado curso em detrimento de outros. Muitos procuram o curso de arquitetura por acreditarem ser um curso da elite e por saberem que, chegando a Moçambique, terão retorno imediato, com boas posições no mercado de trabalho e status correspondente.

 

Relações raciais: Brasil e Moçambique

Há uma freqüente indagação sobre como é ser negro em outros lugares, forma de perguntar, também, se isso é diferente de ser negro no Brasil. As peripécias da vida levaram-nos a viver em quatro continentes: Europa, Américas, África e Ásia (...). Desse modo, tivemos a experiência de ser negro em diversos países e de constatar algumas das manifestações dos choques culturais correspondentes. Cada uma dessas vivências foi diferente de qualquer outra, e todas elas diversas da própria experiência brasileira. As realidades não são as mesmas (...). Ser negro no Brasil é freqüentemente ser objeto de um olhar vesgo e ambíguo. Essa ambigüidade marca a convivência cotidiana, influi sobre o debate acadêmico, o discurso individualmente repetido é, também, utilizado por governos, partidos e instituições (SANTOS, 7/5/2000).

No Brasil, já no século XVIII, a miscigenação era prática e tática para o estabelecimento da dominação. A partir de 1755 e em toda legislação pombalina, “o Estado promove a miscigenação, recomendando casamentos entre brancos e índias e até favorecendoos com regalias” (CUNHA, 1985). Não só era incentivado o casamento entre brancos e índias mas também entre negros e índios. A miscigenação, apesar de ter sido mais contundente no Brasil, também aconteceu nas colônias portuguesas na África, inclusive Moçambique.

Vale assinalar que no dia 31 de agosto de 2004 os governos do Brasil e de Moçambique celebraram um protocolo de intenções na área de combate à discriminação e promoção da igualdade racial, no qual acordam:

(1) desenvolver e aprofundar as relações de cooperação técnica no campo dos direitos sociais, do combate à discriminação racial e de promoção de igualdade racial;

(2) fazer intercâmbios bilaterais entre as diferentes estruturas de estudo e pesquisas nacionais, regionais e locais relacionadas às questões raciais, historiografia, cultura, identidade negra e aos novos desafios da globalização;

(3) monitorar e avaliar as legislações quanto ao combate à discriminação e ao acesso à justiça;

(4) fazer análises comparativas das diferentes visões da história contemporânea africana e da diáspora, dos planos de ação nacional de combate à discriminação e dos mecanismos institucionais criados para assegurar os seus programas, bem como avaliar seu impacto na promoção de igualdade.

Para a implementação desses programas, os dois governos “poderão estabelecer parcerias com instituições do setor público, organismos e instituições nacionais e internacionais, bem como associações e organizações não governamentais” (Protocolo, 2004, artigo 5).

 

Relações raciais em Moçambique: interpretações a partir da perspectiva de um emigrado

Do país de emigração, as obras de Mondlane (1995), Machel (1995), Fry (2001) e Mazula (1995) foram indispensáveis nesse debate. Por meio desses autores mostraremos, nos próximos parágrafos, os desdobramentos das relações raciais desde o tempo colonial aos dias atuais, sem deixar de lado o corte que se deu em 1975 com o colapso do sistema colonial português, seguindo-se a proclamação da independência de Moçambique, quando as relações sociais tomam outros rumos.

Importa ressaltar que Moçambique não é um país que vive uma obsessão de definir sistemas de classificação – sejam elas etnolingüísticas, raciais, regionais, sexuais etc. – nem de lamentar as desigualdades sociais observáveis entre tais categorias. Segundo Mia Couto, em uma palestra proferida na Universidade Cândido Mendes (RJ-Brasil) em agosto de 2004, o moçambicano, no seu dia-a-dia, se esquece da sua “raça”. Haveria uma possibilidade de se esquecer da cor de pele. Para esse escritor, isso acontece porque Moçambique passou por um processo de socialização que faz com que até hoje as pessoas se identifiquem mais como moçambicanas e não pertencentes a um determinado grupo racial e/ou etnolingüístico. Os moçambicanos celebram a unidade na diversidade étnica, racial, cultural e lingüística.

Em Moçambique, durante a colonização, os portugueses viram as sociedades africanas com bastante desprezo e nada fizeram para protegê-las da dominação da sociedade e cultura portuguesas. Muito pelo contrário, era dada ênfase à conversão dos colonizados não apenas para o catolicismo mas também para a cultura portuguesa. Para tanto, novos batizandos eram tirados de suas famílias de origem e incorporados como afilhados em famílias da metrópole.

Essa política chegou ao auge no início do Estado Novo, quando foi promulgado o Regime do Indigenato, por meio do qual os nativos das “províncias africanas” teriam de “optar” entre duas espécies de cidadania. Poderiam se manter como “indígenas” ou poderiam se tornar cidadãos de Portugal. Os primeiros, falando sua língua materna ou, como diziam estranhamente os portugueses, seu “dialeto”, continuariam seguindo os preceitos nativos, sob a jurisdição dos chefes ou régulos. Para entrar na categoria de assimilado, o “africano” teria de abandonar sua língua e cultura materna para adotar inteira e exclusivamente o modo de vida português. O sistema português procurava a sua conversão definitiva de uma sociedade à outra. Os portugueses iniciaram um processo cujo resultado final seria a criação de um país de portugueses negros, mulatos e brancos, e a extinção total das sociedades africanas (FRY, 1991).

Sobre a qualidade da vida urbana de Moçambique, sobretudo no que diz respeito às relações entre pessoas de tonalidades de pele diferentes, embora não se possa negar uma crescente e visível desconfiança entre negros, mulatos e brancos, a vida social celebra mais diferenças de status socioeconômico do que afiliações raciais, regionais ou étnolingüísticas. Assim, as elites branca, indiana, mulata e negra compartilham os mesmos interesses culturais e lingüísticos e são vistas convivendo regularmente nos bons restaurantes e teatros tanto de Maputo quanto de outras cidades do país.

 

As relações raciais brasileiras interpretadas pelos moçambicanos que estudam no Rio de Janeiro

O “preconceito de cor” e/ou “preconceito racial” é apontado como a principal causa do mal-estar de um número considerável de nossos interlocutores em terras brasileiras. Há que reconhecer que os brancos, alguns mestiços e poucos negros afirmam que não se sentem discriminados por causa do “tom de pele”. Entre os que reconhecem ter passado pessoalmente por essa experiência no Brasil, há aqueles que dizem que, aqui, o preconceito seria mais socioeconômico que racial. As diferenças seriam mais influenciadas pelo “dinheiro” que pelo “tom de pele”.

Vale notar que mesmo entre os negros há aqueles que afirmam ter mais facilidade de detectar que estão sendo discriminados em relação aos outros moçambicanos. De um lado estariam os que vieram estudar no Brasil depois de terem morado na África do Sul, ex-colônia inglesa. Os “míopes” seriam aqueles que saíram de Moçambique, uma ex-colônia portuguesa, direto para o Brasil. Os primeiros acusam os segundos de não se aperceberem de imediato que estão sendo discriminados, “a ficha não cai” (Salema). Talvez sejam vítimas de “discriminação sofisticada” (SANTOS, 2002, p. 36). Segundo Hélio Santos, muitas das vezes, quando a pessoa está sendo vítima de “discriminação sofisticada” raramente consegue aperceber. Esse tipo de discriminação, difícil de captar, seria o mesmo que sofre a classe média negra brasileira. O que notamos em quase todas as entrevistas é o reconhecimento de que o ser universitário e estrangeiro atenua a experiência negativa que representa descobrir-se em desvantagem social pela simples pigmentação da pele. Uns, quando se preparam para ir à rua, passam por um processo ritual que inclui “fazer um penteado típico” (Ziza) e sair com uma roupa que os identifique como diferentes, ou seja, estrangeiros.

 

Como o moçambicano percebe o olhar do brasileiro

Durante a pesquisa descobrimos que a imagem que o brasileiro constrói sobre o negro estrangeiro varia de acordo com a sua proveniência. O negro norte americano seria visto como uma pessoa rica e com mais dinheiro. Essa reverência abrange o negro europeu.

As representações construídas sobre os negros africanos são bem negativas. Quando vêem um negro africano “começam a imaginar que vivemos na selva, subimos em árvores e andamos no meio de elefantes”. A África é associada a guerras, “selva, pobreza e miséria”. Isso faz com que o negro africano, muitas das vezes, seja sujeito a discursos e ações preconceituosas e estigmatizantes, sendo comum o uso da categoria “angolano” para se referir a todo indivíduo oriundo do continente africano, independentemente de sua nacionalidade. Essa generalização é tão arraigada que perpassa em indivíduos de todos os níveis socioeconômicos e até acadêmicos.

 

“Angolano”: uma categoria englobante e estigmatizante

Ao decidir incluir a categoria “angolano” durante a elaboração do questionário me inspirei em fatos que têm sido recorrentes no meu dia-a-dia, bem como de meus compatriotas. Em janeiro do ano corrente, por exemplo, eu estava numa fila na Caixa Econômica Federal e, quando chegou a minha vez, o atendente perguntou-me se eu era angolano. Respondi que não era de Angola, e sim de Moçambique. Ele se justificou dizendo que achou que fosse angolano pelo fato de ter me comunicado com ele na língua do “angolano”, personagem do Zorra Total, um programa humorístico da Rede Globo de Televisão exibido aos sábados. Os adjetivos atribuídos ao personagem “angolano” são: esperto, simpático, “171”5, e, “nada discreto no jeito de se vestir”. Ou seja, o fato de ser negro e falar um português diferente fez com que o atendente me denominasse de angolano.

Não era a primeira vez que isso acontecia comigo. No dia 19 de janeiro de 1999 parti do Rio de Janeiro para o Paraguai a fim de obter um novo visto de entrada, no Consulado Geral do Brasil na Cidade de Leste. Percorridas umas horas de viagem, na Via Dutra, três passageiros armados se levantaram de suas poltronas e anunciaram o assalto exigindo que o motorista levasse o ônibus para fora da estrada e logo em seguida começou o saque. A maioria dos passageiros era do tipo “sacoleiros”. Após o assalto fomos fazer registro de ocorrência numa delegacia de polícia em Seropédica (RJ).

Éramos quatro estrangeiros: eu, um casal de italianos e um francês. Chegando à delegacia o policial que estava de plantão anotou os números dos nossos passaportes, bem como os pertences que tinham sido roubados. O policial também procurou saber de nossas nacionalidades. Eu falei que era de Moçambique, porém na hora de digitar a ocorrência escreveu “angolano”. Ou seja, ele deduziu que sendo negro africano e falando português só poderia ser angolano. Foi preciso fazer um registro de aditamento, porque a Polícia Federal só poderia ajudar-me a regularizar a situação se na ocorrência aparecesse a nacionalidade correta.

Achar que todo africano tem a mesma nacionalidade não ocorre apenas em delegacias de polícia. Depois de regularizado o fato narrado no parágrafo anterior, fui ao Consulado Geral do Paraguai no Rio de Janeiro para solicitar a anulação do visto para solicitar outro similar. Lá foi expedida uma declaração na qual estava escrito: “O cidadão africano natural de Moçambique [...] declara que seu passaporte [...] foi roubado [...] e solicita anulação do visto para solicitar posteriormente outro similar”. Como vemos, para a funcionária do consulado citado, eu era cidadão africano e não moçambicano. Achei estranho porque, em se tratando de um setor que trabalha com relações internacionais e/ou diplomáticas, ela tinha a obrigação de saber que Moçambique é um país soberano e África é um continente composto por várias nacionalidades. O passaporte que eu trazia era propriedade da República de Moçambique e não da África, e em nenhuma página estava escrito África.

Os meus compatriotas também passam por experiências similares, como mostra o trecho seguinte:

Já me chamaram de angolano. Brasileiros já me chamaram de angolano e aí eu chamo-lhes de argentinos. Aí dizem: ‘não, não é a mesma coisa. Argentina é um país e o Brasil é um outro país”. Eu digo que Moçambique é um país e Angola também é outro’. E eles dizem: ‘mas é tudo a mesma coisa lá na África’. E aí eles param para pensar. De fato, alguns brasileiros não têm conhecimento de história (...) não têm conhecimento de geografia. Eles vêem a África como um país e a África são 52 ou 53 países, sendo que cada país tem uma diversidade étnica que acompanha a sua diversidade lingüística. Dei o exemplo da Argentina e Brasil só para lhes ajudar a pensar, não que existisse alguma rivalidade entre eu e os angolanos, mas é apenas para distinguir que os angolanos são angolanos, moçambicanos são moçambicanos, etíopes são etíopes, brasileiros são brasileiros e argentinos são argentinos (Faz-tudo).

No Rio de Janeiro, a categoria “angolano” muitas vezes se refere ao negro africano, duma maneira geral; e ao negro africano falante da língua portuguesa, duma maneira específica. Essa categoria é estigmatizante. De acordo com Regina Petrus (2001), cá “paira uma grande desconfiança sobre as atividades que [os angolanos] realizavam, agravadas pelo fato de terem o hábito de andar bem vestidos, com roupas da moda e de forma vistosa demais para os padrões masculinos brasileiros” (PETRUS, 2001, p.144/5).

Petrus diz que os próprios angolanos “buscam uma representação mais positiva em relação às representações negativas construídas sobre os angolanos residentes no complexo da Maré”. Esses seriam os angolanos brancos e mulatos que emigraram para o Brasil no calor dos acontecimentos que se seguiram à independência de Angola (os chamados “intelectuais”), chegados a partir de meados de 1980; os estudantes universitários; os grupos de refugiados vistos “como mais fechados” e compostos principalmente pelos chamados regressados, de etnia bakongo; o Consulado de Angola (PETRUS, 2001, p.161).

 

Sociabilidade e redes sociais

As questões-chaves que os antropólogos tentam responder em suas análises sobre redes são: de que forma estão as relações sociais vinculadas umas com outras? Como se compara a situação em que duas pessoas em contato direto têm conhecidos comuns com aquela situação em que têm diferentes conhecidos?

A análise de redes começou a ser objeto de vários trabalhos desde meados dos anos 50 – por exemplo, de Barnes (1972), Whitten e Wolfe (1973), Mitchell (1969; 1974), Boissevain; Mitchell (1973), Boissevain (1974) e Wolfe (1978).

A análise de redes não seria apenas um instrumento de investigação urbana, segundo Hannerz (1980, p. 188) ela começou a ganhar importância graças ao interesse antropológico pelas sociedades complexas. O primeiro a empregá-la com um sentido mais específico foi John Barnes em seu estudo sobre Bremnes, pequena comunidade norueguesa de pescadores e agro-pecuários (BARNES, 1954 citado por HANNERZ, 1980). Barnes buscava descrever o sistema social em Bremnes. Pensava que seria útil considerar Bremnes composta de três campos sociais analiticamente separados. Um deles era o sistema territorial. O segundo campo se baseava na pequena indústria. O terceiro campo estava constituído pelo parentesco, pela amizade, e as relações, com vínculos continuamente mutáveis e sem grupos estáveis ou coordenação global. Cada pessoa estava em contato com um número de outras pessoas, algumas das quais estavam em contato direto entre si e outras não estavam. Este último seria o tipo de campo para o qual Barnes propunha o termo rede.

A imagem que tenho [de rede] é a de um conjunto de pontos, alguns dos quais estão unidos por linhas. Os pontos são pessoas ou, às vezes, grupos, e as linhas indicam que pessoa interatua com cada uma das outras. Podemos certamente pensar que todo o conjunto da vida social gera uma rede deste tipo (BARNES, 1954, p. 43 citado por HANNERZ, 1980).

Ao desenvolver essa idéia, Barnes notou que entre a sociedade tradicional em pequena escala (sociedade simples) e a sociedade moderna (sociedade complexa) havia uma diferença na malha da rede. A distância em torno de cada orifício (sic) da rede moderna é maior, já que as pessoas não têm nela tantos amigos e conhecidos em comum como nas sociedades de pequena escala (BARNES, 1954 citado por HANNERZ, 1980, p. 189).

Na realidade, segundo a observação de Hannerz, o estudo sobre Bremnes não chegou a desenvolver muito o conceito de rede, mas uma leitora que encontrou inspiração no trabalho de Barnes converteu-o em centro de um livro que apareceu poucos anos depois. Trata-se de Family and Social Network (A Família e a Rede Social), de Bott (1957), e com ela a análise de rede chegou à cidade. O trabalho de Bott formava parte de um estudo interdisciplinar sobre as “famílias comuns e correntes” em Londres; mais exatamente, era um estudo sobre as relações matrimoniais. Bott notou a existência de redes abertas e fechadas e que, dentro de uma mesma rede, existiam diferenças internas. Os casais poderiam participar juntos em algumas atividades e se separavam em outras (BOTT citado por HANNERZ, 1980, p. 193).

Depois do trabalho de Bott, as conceitualizações de diverso tipo em torno das redes se fizeram cada vez mais freqüentes na antropologia. Outros trabalhos mais conhecidos sobre essa problemática, nessa primeira geração, são os estudos de Philip Mayer e Adrian Mayer, que afinal “mostram formas importantes de considerar a vida social em termos de redes” (HANNERZ, 1980).

Os antropólogos teriam adotado a análise da rede porque estavam preocupados em fazer uma análise relacional mais adaptável ao estudo de um conjunto de estruturas sociais cada vez mais variadas. E, quanto maior se tornou o interesse pela vida urbana e pelas sociedades complexas em geral, maior importância adquiriu essa análise.

A idéia de redes na antropologia serve para extrair de um sistema mais amplo e com propósitos analíticos, conjuntos mais ou menos complexos de relações, sendo que a análise de rede supõe um tipo particular de abstração, mais que um tipo particular de relação. Portanto, “os usos dessas abstrações podem variar” (HANNERZ, 1980, p. 198).6

Em estudos anteriores, tanto as conceitualizações de Rhodes- Livingstone7 sobre o urbanismo centro-africano, como os trabalhos de Mitchell (1974), relacionavam igualmente as idéias de rede especialmente com as relações pessoais. Uma pessoa cujos contatos incluíssem gente dos mais diversos tipos – definidos por idade, classe, etnicidade etc. – teria, segundo Hannerz (1980, p. 206), uma rede de maior alcance do que alguém com o mesmo número de relações, todavia compreendendo um conjunto menos heterogêneo de pessoas.8

A sociedade em geral, segundo Simmel, se refere à interação entre indivíduos. Em seu entender, essa interação sempre surge com base em certos impulsos ou em função de certos propósitos. Os instintos eróticos, os interesses objetivos, os impulsos religiosos e propósitos de defesa ou ataque, de ganho ou jogo, de auxílio ou instrução e incontáveis outros fazem com que o homem viva com outros homens, aja por eles, com eles, contra eles, organizando assim reciprocamente as suas condições – em suma, “para influenciar os outros e para ser influenciado por eles” (SIMMEL, 1983, p.165). A importância dessas interações estaria no fato de obrigar os indivíduos que possuem aqueles instintos, interesses etc., a formarem uma unidade – precisamente, uma “sociedade”.

E a “sociedade” propriamente dita seria:

(...) o estar com um outro, para um outro, contra um outro que, através do veículo dos impulsos ou dos propósitos, forma e desenvolve os conteúdos e os interesses materiais ou individuais. As formas nas quais resulta esse processo ganham vida própria. São liberadas de todos os laços com os conteúdos; existem por si mesmas e pelo fascínio que difundem pela própria liberação desses laços (SIMMEL, 1983, p. 168).

É esse precisamente o fenômeno que Simmel chama de sociabilidade. A sociedade designaria, segundo esse teórico, “uma reunião sociável”, visto que ela “não admite atritos” (idem, p. 169).

Mas devemos ampliar nesse trabalho o conceito de Simmel com obras contemporâneas e, assim, com Resende (2001) pretendemos “explorar a possibilidade de a sociabilidade, como prática de confraternização, simultaneamente realçar diferenças e realizar separações, principalmente quando está em questão a afirmação de certas identidades” (REZENDE, 2001, p. 163).

Neste trabalho, a questão da sociabilidade e das redes sociais, assim como o seu significado, recebeu uma atenção especial. Partindo de entrevistas procuramos desvendar como os estudantes moçambicanos em universidades fluminenses formam suas redes de relações, identificando como essas redes se organizam, suas estratégias, desde o país da emigração – no momento do afastamento do ambiente familiar – até o país de imigração (Brasil).

Em termos de residência há uma maior concentração de estudantes moçambicanos na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, basicamente nos bairros de Copacabana, Botafogo, Flamengo, Glória e Catete9. Uns moram em Lins, Madureira, Maracanã, Piedade e Ilha do Governador e ainda outros moram em Niterói. A escolha do lugar de moradia, muitas vezes, está condicionada à proximidade da universidade, facilidade de transporte,10 valor do aluguel e segurança.

As visitas são mais regulares entre os que moram próximos e muitas vezes as relações são mais individualizadas. Há aqueles que têm contato constantemente e outros passam meses sem se verem. Por causa das afinidades, é comum que os que nutrem os mesmos gostos se vejam mais e freqüentem os mesmos lugares. Uns preferem passar o tempo livre viajando pelo Brasil afora, outros passam suas noites livres em boates e ainda outros reservam o tempo livre para conviver com amigos e compatriotas, entre tantas preferências. Uns preferem morar sozinhos – domínio da privacidade –, outros dividem moradias com moçambicanos, brasileiros ou com colegas de outras nacionalidades, como os oriundos da Argentina, Cabo Verde, Peru, entre outros, havendo uma negociação do uso do espaço compartilhado.

Dentro de uma mesma residência existem espaços e/ou objetos públicos (sala, banheiro, cozinha, fogão, geladeira) e privados (quartos com suas respectivas camas e quarda-roupas). Nas residências compartilhadas normalmente há uma escala de faxina. Em meu apartamento, por exemplo, nós mesmos fazemos a faxina duma maneira rotativa, ou seja, cada morador se encarrega de limpar a casa num fim de semana. Essa escala para fazer faxina apenas se refere aos espaços públicos. Cada um limpa o seu quarto do seu jeito. O mesmo acontece com a cozinha. Cada um de nós prepara sua própria comida, não existindo a obrigação de cozinhar para os outros e de consumir produtos contra a sua vontade. Dos quatro moradores do meu apartamento, todos colegas da universidade, dois são moçambicanos, um é peruano e o outro brasileiro.

De acordo com os meus interlocutores, existe uma diferença entre morar com moçambicanos e com pessoas de outras nacionalidades. Entre os moçambicanos existiria uma compatibilidade nos hábitos. Mesmo assim, nem todos vêem a experiência de morar com pessoas de outras nacionalidades como uma experiência negativa, pois há uma troca de elementos culturais.

Para os que escolhem morar sozinhos, o que pesa mais é a autonomia, já que morando sozinhos adquirem mais liberdade. Muitos desses estudantes compartilharam, durante muito tempo, um espaço residencial com vários membros da família, e a nova experiência não deixa de constituir uma vantagem apreciável, já que podem ter um lugar próprio, decorado a seu gosto. Os espaços residenciais desses estudantes, normalmente, comportam um ambiente de estudos (com uma escrivaninha, um computador, prancheta) e um ambiente de lazer (com aparelho de som, televisão e até mesmo DVD). Quase todos têm telefone fixo e/ou móvel (celular)11. Assim esses estudantes conseguem gerir suas relações pessoais e receber os amigos. Os que moram sozinhos são os que têm mais liberdade de receber suas visitas em casa. Como bem notou Clarice Peixoto (PEIXOTO, 2000, p. 104) “normalmente não nos hospedamos em casa de quem não somos próximos ou com quem mantemos relações tensas”.

Os moçambicanos que estudam no Rio de Janeiro, quando procuram suas parceiras ou seus parceiros para ficar12, namorar ou casar, não dão muita importância aos fatores raça, religião ou origem socioeconômica e sim à “compatibilidade”.

Os namoros são mais comuns entre os homens moçambicanos com as brasileiras. Preferem as brasileiras. As principais motivações por mim identificadas entre os meus interlocutores seriam a receptividade, a simpatia e a beleza da mulher brasileira.

O Brasil é um país de mulheres bonitas (...) muito famosas por serem mulheres lindas, [formosas e cheias de curvas]. Então é uma forma de tentar ter outras experiências, tentar conhecer outras culturas, se envolver com outras pessoas (Diutiane).

Essa frase foi dita por uma mulher moçambicana. Apenas posso acrescentar que as moçambicanas, também, são mulheres lindas, simpáticas, sempre com um sorriso nos lábios. Vejamos o que os homens moçambicanos dizem:

Quando eu vim ao Brasil, na minha passagem de avião, na capa tinha exatamente uma mulher brasileira nua, exatamente, como se fossem aqueles postais, cartões postais que são vendidos com as mulheres em Ipanema, Copacabana, todas de biquíni. Aquilo cria algumas fantasias, iludem e você acredita que está indo para um antro de perdição, você está indo para um inferninho. Quando você chega aqui, você começa a perceber que afinal das contas aquilo que eles mostram de fato existe, mas não são todas as brasileiras. (...) Aquilo é uma realidade específica de um determinado momento, de um determinado lugar. Tem muita mulher brasileira séria. (...) A maior parte dos moçambicanos, quando vêm para cá, estão na fase da adolescência ou já passou dela, já teve várias namoradas em Moçambique, então ele acaba variando (...) conhecendo um pouco mais da diversidade que a situação nos permite na condição de estudantes (Faz-tudo).

É raro encontrar moçambicanas namorando brasileiros, visto que preferem ter um compatriota, “alguém da terra” (Windila) como namorado. Em certos momentos elas preferem namorar estrangeiros de outras nacionalidades africanas. Se não conseguem um moçambicano aceitam “cabo verdiano, angolano (...) alguém de África”. Uma de nossas entrevistadas chegou a ter um namorado de Cabo Verde, o que não deu certo, e hoje namora um moçambicano.

As moçambicanas evitam se envolver com homens brasileiros por serem conotados de “agressivos”, “malandros” e por não respeitarem suas companheiras. Mas também há moçambicanas que não descartam a possibilidade de namorar brasileiros desde que preenchessem suas exigências. “A mulher escolhe muito, tem prérequisito, (...) elas têm receio de irem sem saber como é que a pessoa é”. Elas “gostam mais de ter os moçambicanos (...)”, querem “compromisso” (Windila).

Situação semelhante foi observada por Belhadj (2000) em seu estudo sobre as filhas de pais magrebinos13. No trabalho citado a autora descobre que as escolhas matrimoniais, basicamente para o caso das mulheres, não passavam de um ajuste entre aspirações pessoais e expectativas familiares. Isso se daria porque haveria uma vontade de preservar os laços familiares e de manter a coesão da família. Lá, a escolha do cônjuge resultaria, segundo a autora, de um ajuste entre suas próprias aspirações e as experiências familiares. Se de um lado a tal escolha era percebida como estritamente pessoal, do outro “ela é ainda tributária de certas condições impostas pelos pais, como o fato de que o futuro cônjuge deve pertencer à população muçulmana e magrebina.

Contudo a autora reconhece que hoje, mesmo nas sociedades modernas, a escolha do cônjuge continua a obedecer, de maneira consciente ou inconsciente, a certos tipos de determinismos sociais, culturais e religiosos que contribuem para reduzir a liberdade individual. Tais normas, segundo M. Berlhadj, obrigariam essas jovens, com freqüência, a desenvolverem estratégias visando a conciliar as próprias aspirações com as de sua família (BERLHADJ, 2000, p. 68).

Se um moçambicano é disputado por duas mulheres – brasileira e moçambicana – a primeira acaba vencendo a batalha. De acordo com os nossos interlocutores, a brasileira não espera de mãos cruzadas. Usando a simpatia e receptividade, entre outras armas, facilita a conquista. Ela mostra o interesse participando do jogo da sedução. A moçambicana, pelo contrário, prefere não ceder de antemão, resiste. Ela de imediato pensa no compromisso e não no “ficar”.

Entretanto, muitos são os que acreditam que, chegando ao Brasil, tendo a facilidade de namorar, seja com um homem ou uma mulher, há uma possibilidade de crescimento ímpar. “Namorar não é só amor e carinho, (...) é troca de experiências, culturas, tradições, conversas também” (Windila).

Na hora de procurar ajuda, o que pesa mais são a amizade, a confiança e o “tipo de possibilidades que as pessoas que fazem parte do seu rol de amizades podem te ajudar” (Faz-tudo), seja entre os moçambicanos quanto com amigos, vizinhos e colegas brasileiros ou de outras nacionalidades. Os problemas e as soluções são categorizados em função da possibilidade, proximidade ou distanciamento, “você vai dizer que para esse problema o fulano de tal é mais indicado, ele consegue resolver isso para mim e o fulano de tal consegue resolver isso para mim” (Faz-tudo).

Nesse momento da vida, as mulheres mais do que os homens, quando estão no Brasil, valorizam a sua própria autonomia frente aos pais, que ficaram em Moçambique. A casa é Moçambique e o “outro” é o estrangeiro. Outrossim o fato de serem imigrantes confere aos estudantes moçambicanos novas formas de tolerância que terão significado na volta à terra natal, uma vez que quem vem de fora é aberto para o diferente.

 

As festas

Falar de festas é falar de identidade. Ela nos revela com quem os moçambicanos andam e nos mostra como é que essa geração de moçambicanos preserva as tradições do país de origem. Como referiu Macamo (1998), a nação moçambicana é tanto tradicional quanto moderna. Ela seria mais moderna do que tradicional, pois o estudo do processo de formação do conceito Moçambique é o estudo da “moçambicanização” da sociedade tradicional.

Nessas festas é na comida, nos pratos típicos, como mukapata, por exemplo, que essa geração deixa transparecer a preservação das tradições moçambicanas: “na roupa e na música não tanto”. Como disse uma de minhas entrevistadas, “se nós não escutamos a música moçambicana lá, não vai ser no Brasil que vamos aprender a gostar da nossa música. Nas vestes, idem. Nós gostamos da comida tradicional moçambicana, mas gostamos de música norteamericana” (Diutiane).

As festas organizadas anualmente para a comemoração da independência de Moçambique, além de serem “momentos de descontração”, servem também para reunir os moçambicanos. Nelas, o estar perante os compatriotas não deixa de ser uma forma de superar a saudade. Nessas festas a comida e a música lembram a “moçambicanidade” comum que existe em cada um dos compatriotas. O conceito da “moçambicanização”, segundo Elísio Macamo, não se refere a um retorno às raízes e sim ao estudo da forma como indivíduos negociam a sua relação com o meio social e participam do processo de imaginar, através da interação, “um conceito de nação moçambicana transcendente” (MACAMO, 1998, p. 59-60).

Nessas festas, esses estudantes também reconstroem suas memórias individuais, que se conjugam a memórias coletiva e oficial – daí a presença da bandeira e do hino nacional. As lembranças não se limitam às suas trajetórias individuais nem à vida familiar; seus relatos falam de acontecimentos políticos e sociais assim como da evolução das cidades e da sociedade moçambicana.

A festa que mais nos chamou atenção e que escolhemos para servir de exemplo foi a de 2003, que teve lugar em Piedade, na casa de um de nossos compatriotas, em comemoração aos 28 anos da Proclamação da Independência da República de Moçambique. Naquela festa foi entoado o hino nacional; havia duas bandeiras de Moçambique: uma na porta de entrada e a outra no salão de festas, bem perto da mesa em que estavam pratos típicos da culinária moçambicana (chima, couve, feijoada à moçambicana, mukapata entre outras especialidades), preparados para essa ocasião; houve declamação de poemas de escritores e poetas moçambicanos, como José Craveirinha, Eduardo White e Armando Artur João, entre outros.

Nessa festa estavam presentes moçambicanos (21) acompanhados de seus convidados de várias nacionalidades, a saber: angolanos (2), brasileiros (26), cabo-verdianos (6), chilena (uma), gaboneses (5), panamenha (uma), peruano (um) e português (um).

Entretanto, o desenrolar da pesquisa nos fez crer que não só existe uma circularidade cultural nos projetos desses estudantes, como também se manifesta a vontade de preservar a herança cultural pela manutenção de hábitos culinários e estéticos e da celebração da festa da independência de Moçambique, assim como por uma identificação com a “colônia moçambicana”, com os africanos, com os PALOPs, CPLOPs14 e com os de outras nacionalidades e comunidades regionais ou transfronteiriças.

 

Mozucas: uma rede virtual

Além dos contatos face a face, há interações nas redes virtuais. O Mozucas15 – site16 e comunidade17 – foi criado em 2001 com o princípio de encurtar as distâncias entre os estudantes e residentes moçambicanos no Brasil. Tem como principal objetivo facilitar o convívio e a troca de idéias entre eles sem qualquer tipo de formalidades. Decidimos incluir o Mozucas neste trabalho por acreditar que ele nos revela como os moçambicanos que estudam no Rio de Janeiro têm suas redes de relações com outros moçambicanos que também moram no Brasil, com os amigos em Moçambique, com os amigos brasileiros e demais contatos em outros cantos do mundo. O site citado nos habilita a concluir que os estudantes moçambicanos que moram no Rio de Janeiro formam uma rede de relações ampliada, a qual acolhe também indivíduos de outras nacionalidades, possibilitando não apenas a vivência de contatos face a face como também a interação por meio de redes virtuais.

 

A expectativa do retorno

Para quem regressa, o lar ao qual retorna não é de modo algum o lar que deixou ou o lar que recordava e de onde sentia saudades durante sua ausência. E, pela mesma razão, quem volta ao lar não é o mesmo homem que o abandonou. Não é ele, nem para ele mesmo nem para aqueles que esperam seu retorno. Este tipo de enunciado é válido para qualquer tipo de volta ao lar (SCHUTZ, 1974).

Além do compromisso diplomático assumido, que é de “retornar a seu país de origem em período não superior a três meses” (Protocolo, seção X, Cláusula 23) após o término dos estudos, quase todos manifestam o interesse de regressar para contribuir para o progresso do país, trabalhando ou dando aulas, e formar família, ou seja, “sair-se bem” (Diutiane). Normalmente, os moçambicanos voltam depois do término de seus estudos. Se comparados com os de outras nacionalidades africanas, estatisticamente, os angolanos são os que mais optam por ficar no Brasil.

Eis como um dos nossos entrevistados comenta seu possível retorno:

Depois do término do curso eu moraria no Brasil, em contrapartida eu tenho compromisso com o país. Sou estudante aqui de Mestrado e depois de dois anos, depois de vinte e quatro meses, eu tenho que voltar para Moçambique. Tenho acordos (...), tenho que voltar para Moçambique, trabalhar no mínimo dois anos, depois, aí voltarei (...) para fazer Doutorado. Nesse caso, provavelmente sim. Mas agora não (Sábado).

Sábado já se encontra em Moçambique. É importante acrescentar que depois do retorno acabou sendo despedido do emprego. Não temos nenhum dado que sustente a sua despedida, apenas sabemos que chegando a Moçambique os seus chefes chegaram à conclusão de que aquele recém-mestre teria de ir procurar emprego em outro lugar. O agravante é que depois da defesa da dissertação voltou animado para Moçambique, abrindo mão de duas propostas que lhe permitiriam prosseguir seus estudos em nível de doutoramento.

Parafraseando o trecho de um entrevistado, diria que quando você volta, as pessoas acham que você “pensa que sabe muito, quer um cargo maior que o meu”. Como acabamos de escrever, os moçambicanos que estudam no Rio de Janeiro raramente manifestam o interesse de morar no Brasil. Há aqueles que não morariam no Brasil por acharem ser um país “um pouco agitado” (Windila). Apesar de haver “facilidades de compra, a vida aqui não é muito fácil” (Ziza).

Nossos interlocutores imaginam dar o máximo de si e esperam ter um “enquadramento” que lhes facilite “transmitir” os conhecimentos adquiridos no Brasil. Mas há aqueles que reconhecem que nem tudo será maravilhoso e têm suas reservas, pois hoje em dia o mercado moçambicano tornou se muito competitivo. De uma maneira geral esperam aplicar os conhecimentos adquiridos no Brasil na realidade moçambicana, dando aulas, se envolvendo em organismos governamentais e não governamentais ou criando “o seu organismo para você fazer valer as idéias que (...) tem” (Faz tudo).

Um dado interessante que a pesquisa aponta é referente ao lugar de moradia depois do retorno. Digo interessante porque as pesquisas feitas até hoje apontam que muitos dos estudantes universitários, depois que se formam em universidades localizadas na cidade de Maputo, preferem procurar emprego e fixar residência na cidade capital, sejam eles provenientes do norte, centro e sul do país. Muitos dos nossos entrevistados esperam morar e trabalhar em qualquer canto de Moçambique, desde que consigam um emprego.

Os que fazem arquitetura, um dos cursos com mais moçambicanos no Rio, são os que mais demonstram esperar enfrentar dificuldades.

O curso de arquitetura ainda é visto como curso de elite. Eu acho que a arquitetura moçambicana até hoje é elitizada [e os mais velhos] não dão espaço aos que estão a sair do curso para se inserirem no mercado (Oriana).

Para os que se formam noutras áreas, como ciências sociais e biblioteconomia, por exemplo, essa preocupação é reduzida. Isso se explica porque o curso de Ciências Sociais é recente, e o mercado de trabalho moçambicano consegue absorver os quadros formados nessa área. Já no caso de biblioteconomia, a questão é bem mais favorável. Até hoje Moçambique não tem nem sequer uma Faculdade de Biblioteconomia, e os poucos formados conquistaram seus diplomas universitários em universidades estrangeiras. Muitos deles estudaram no Brasil, basicamente na UFF e na UFMG.

Quanto à interpretação ou à imaginação desses compatriotas em relação a outros moçambicanos formados em universidades moçambicanas, há certa unanimidade em reconhecer que os que se formam lá “têm uma bagagem cultural de Moçambique que nós não temos” (Faz-tudo), “a visão de Moçambique que eles têm a gente não tem” (Windila) e “têm informações mais atualizadas sobre o país que nós” (Diutiane). Esses “serão colegas, serão amigos, grandes amigos, teremos trocas apaixonantes” (Faz-tudo).

Se formos comparar os sistemas de ensino nos dois países, notaremos que os que se formam no Brasil têm certa vantagem em termos de aquisição de conhecimentos. Cá há uma facilidade de acesso à tecnologia de ponta e ao acervo bibliográfico.

E mais,

A relação aluno professor nos dois países é extremamente diferente. Em Moçambique a gente trata ‘senhor professor’, nunca chamei o meu professor pelo nome (...). Nunca chamei o meu professor pelo primeiro nome. Aqui são muito liberais. Trocam telefones, E-mail, mandam E-mail, vão à casa dos professores entregar trabalhos (...). Isso jamais faria em Moçambique. (...) Aqui vários professores nos dão a liberdade de criar, ter novas idéias (Windila).

Concordo com os meus entrevistados. Lembro-me que quando estudava em Moçambique, há cerca de quinze anos atrás, o que reinava nas escolas era, basicamente, o que preferi denominar, na minha dissertação de mestrado, “a cultura do silêncio”. Ela se fazia presente no nosso dia-a-dia escolar. Para nós, o professor em sala de aula era a autoridade máxima do saber. O respeito e a disciplina autoritária se impunham de uma forma inquestionável. O professor falava e nós anotávamos tudo, no mais absoluto silêncio. Na transmissão do conhecimento e na formação do “homem novo” reinava passividade, submissão, obediência. O silêncio e a disciplina autoritária em sala de aula eram perturbadores, sobretudo levando se em conta a necessária interação e o diálogo indispensáveis na relação de ensino/aprendizado. A impressão era a de que não havia espaço para a criatividade, para o questionamento ou para a inquieta e saudável curiosidade infantil. Poucos professores valorizavam os nossos talentos. Assim, ao lado da cultura do silên-cio, coexistia uma cultura da repetição automatizada (SUBUHANA, 2001).

Quando perguntamos aos nossos interlocutores se os formados no Brasil teriam mais oportunidades de emprego do que os que se formam lá, as respostas vão no sentido de reconhecer que os formados em Moçambique, em nível de graduação, têm mais vantagens. Lá “eles esnobam muito os que vêm de fora e preferem dar emprego aos que estudam lá, isso nas instituições públicas” (Diutiane).

Eles valorizam o produto nacional. Esse pessoal que está na graduação não está preparado psicologicamente para enfrentar isso. Eu, como do mestrado, estou bem, mas para o pessoal da graduação têm que apertar cintos quando estiver a voltar (Muatreze).

Isso não acontece nas instituições não governamentais, que muitas vezes preferem os que vêm de fora. Por exemplo, “existem lá várias ONGs sul-africanas, holandesas, [australianas] que vêm de fora, que preferem empregar pessoas que têm o mesmo ritmo de trabalho que aprenderam fora” (Diutiane). Muitos dos técnicos que trabalham na Mozal18, por exemplo, estudaram no exterior. Nessa empresa conseguem ter “cargos altos”.

Existe certa hierarquia quanto à valorização do diploma conquistado no exterior. Muitos empregadores preferem admitir os que se formam na Inglaterra, África anglófona (estando em alta a África do Sul) ou os que estudam nos EUA e na Austrália. Hoje as pessoas procuram mais os países anglófonos para prosseguirem seus estudos porque precisam aprender o inglês, que é cada vez mais exigido no mercado moçambicano.

Entretanto, mesmo que uns acreditem que as oportunidades serão iguais para todos, já que elas se criam, prefiro concordar com um dos meus entrevistados, que chegou a afirmar que isso vai depender exclusivamente do nível de contatos que as pessoas tenham, “alguma coisa que gere um diferencial” (Faz-tudo). Prefiro acrescentar que, durante a criação dessas oportunidades, em certos momentos, pesam mais o parentesco, as redes de relações, o favoritismo e o dinheiro (ou melhor, o suborno). Para terminar, vale registrar que os moçambicanos que se formam no Brasil depois que retornam conseguem uma boa colocação tanto em instituições governamentais, quanto em não governamentais. Podem até ficar alguns meses procurando emprego, porém acabam conseguindo. Conheço moçambicanos que fizeram graduação e pós-graduação (especialização, mestrado e doutorado) em universidades brasileiras e hoje são professores universitários, reitores, diretores nacionais, assessores e chefes de departamento. Tenho amigos que dizem estar bem empregados, que não têm “nada a [se] queixar”. “Todos estão bem posicionados. Ninguém que estudou no Brasil e que está a passar mal em Moçambique” (Faz-tudo). A mesma sorte não tiveram muitos dos que voltaram de Cuba, antiga União Soviética e Alemanha (antiga RDA). Até hoje eles se organizam, fazem manifestações em público para reivindicar seus direitos.

Concluindo, vale ressaltar que faço parte dessa pesquisa. Destarte, nessa posição de observador do familiar, sendo um estrangeiro que estuda os seus compatriotas num outro país, acabo realizando um trânsito e uma mediação entre tradições culturais de dois mundos que mesmo tendo afinidades não deixam de ser diferentes. Espero que os resultados desta pesquisa incentivem outros especialistas em Ciências Sociais e Humanas a se interessarem por temas similares.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: subuhana@hotmail.com

Recebido em 16/07/2006
Aceito em 13/10/2006

 

 

*Universidade de São Paulo – DA/USP e Casa das Áfricas (SP)
1 Os pais e parentes têm como obrigação assinar um termo de compromisso no qual afirmam estarem em condições de custear os estudos de seu filho e/ou parente, sendo que o valor mínimo exigido é de 500$00 (quinhentos dólares americanos) mensais
2 The Ford Foundation, Banco Mundial, FNUAP, entre outras
3
A Universidade Eduardo Mondlane (ou UEM) é a maior universidade de Moçambique. Das 25 instituiçoes de ensino superior do país, a UEM é a mais procurada por oferecer boa qualidade de ensino
4
E/imigrantes ativos seriam aqueles que, sendo pioneiros na partida para um local inédito, foram capazes de desbravar um terreno mais ou menos desconhecido para os demais. Cf. M. E. Leandro, 2004
5 “171” vem do artigo 171 do VI capítulo do código penal brasileiro. “Artigo 171 [Estelionato] – Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento. Pena – reclusão de 1 (um) ano a 5 (cinco) anos, e multa”
6
Hannerz (1980, p. 198) considera qualquer sistema amplo, incluindo o mundo, como uma “rede total”
7 A Escola de Manchester, antes, durante ou mesmo imediatamente à era do Rhodes-Livingstone, esteve intimamente ligada ao desenvolvimento da análise de rede. Paralelamente, os trabalhos de Mitchel (1969, 1974), Barnes (1972), Bott (1971) e o próprio Max Gluckman deram grandes contribuições nessa temática
8 “A população urbana é demasiado grande para que cada pessoa conheça a todos os demais.”Weber, citado por, Hannerz, 1980
9Aqui não nos referimos apenas aos sujeitos da pesquisa, e sim aos 30 moçambicanos que moram no Rio de Janeiro
10Os que estudam no Fundão (UFRJ) preferem morar nas margens da Linha 485, um ônibus que passa por Copacabana, Botafogo e Flamengo, entre outros bairros, e pela Cidade Universitária, na Ilha do Fundão
11 O celular muitas das vezes facilita a comunicação instantânea com os parentes, amigos entre outros, através do envio de mensagens de texto (torpedos). A TIM, por exemplo, cobra 0,49 centavos por um torpedo internacional
12
Ficar: namorar sem compromisso, durante um curto espaço de tempo, às vezes por uma noite. Cf. AURÉLIO: Novo Aurélio. O dicionário da língua portuguesa, 2000
13 Na França, os países do norte da África (Argélia, Tunísia e Marrocos) são denominados de Maghreb. Daí o adjetivo maghrébin, em português magrebin
14 CPLOP: Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa
15 MOZUCAS = Mozes + brazucas
16 www.mozucas.run.to; h t t p : / / g e o c i t i e s . y a h o o . com.br/mozucas01
17 http://groups.yahoo.com/ group/mozucas
18 MOZAL: Mozambique Aluminium (Alumínio de Moçambique).

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