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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicologia da educação  n.20 São Paulo jun. 2005

 

ARTIGOS

 

A pré-escola na visão de crianças de 1ª série

 

Preschool from the standpoint of elementary school first-graders

 

La enseñanza preescolar bajo el punto de vista de niños del primer año de la primaria

 

 

Regina Mary César Reis1

Universidade de Taubaté — Unitau

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo discute algumas lembranças de crianças de 1a série do ensino fundamental sobre as experiências vividas na pré-escola. Os sujeitos falaram sobre a escola de educação infantil, a professora, as atividades realizadas em sala, sobre as brincadeiras e os amigos. Os dados foram analisados à luz de referências teóricas de Piaget, Vigotsky e Wallon.

Palavras-chave: Ensino-aprendizagem, Pré-escola, Relação professor-aluno.


ABSTRACT

The present study discusses some recollections of elementary school first-graders about their preschool experiences. The subjects talked about the school, the teacher, the activities accomplished in the classroom, entertainment and friends. Data were analysed according to Piaget's, Vigotsky's and Wallon's theoretical references.

Keywords: Teaching-learning, Preschool, Teacher-student relationship.


RESUMEN

Este estudio investiga algunos recuerdos de niños del primer año de la enseñanza primaria, acerca de las experiencias vividas en la enseñanza preescolar. Los sujetos hablaron de la escuela, de la profesora, de las actividades ejecutadas en clase, de las diversiones y de los amigos. Los datos fueron analizados bajo las perspectivas de las referencias teóricas de Piaget, Vigotsky y Wallon.

Palabras claves: Enseñanza-aprendizaje, Enseñanza-preescolar, Relación profesor-alumno.


 

 

Considerando a expressiva contribuição da Psicologia da Educação para a compreensão do que ocorre com os alunos durante o processo de ensino-aprendizagem, entendemos que ouvi-los sobre suas idéias, opiniões, percepções é colocá-los no centro desse processo, portanto, como sujeitos do mesmo. Ao reconhecer a criança como sujeito do conhecimento, podemos dar voz a ela e procurar saber a sua forma de perceber, sentir e expressar suas experiências escolares atuais ou passadas. Assim, torna-se possível entender melhor a construção de relações sociais e afetivas, as interações, o exercício de papéis nas situações vivenciadas na escola e saber como essas lembranças, ao serem rememoradas, podem contribuir para a compreensão do processo de aprendizagem.

Com o objetivo de estudar como aparecem na memória de alunos do primeiro ano do ensino fundamental as suas experiências pré-escolares e o que suas expressões podem revelar, buscamos ouvir 60 crianças, resgatando algumas lembranças de como elas revelam perceber e como são capazes de verbalizar o que sentem em relação a essas experiências.

A pesquisa foi desenvolvida com 60 alunos de 1ª série de uma escola de ensino fundamental da rede pública estadual da cidade de Taubaté-SP. Trata-se de uma escola localizada num bairro residencial que atende crianças de nível socioeconômico e cultural médio e baixo.

As crianças que participaram da investigação foram sorteadas entre alunos de quatro classes de alfabetização e entrevistadas individualmente, na própria escola. A entrevista com as crianças foi, portanto, o instrumento básico para a captação dos dados deste estudo. Essas entrevistas, que levaram um período de dois meses para serem realizadas, foram gravadas e depois transcritas. Os dados receberam tratamento da análise de conteúdo proposta por Bardin (1988), foram descritos, sintetizados e analisados à luz de algumas referências teóricas de Piaget, Vygotsky e Wallon.

As visões que as crianças revelaram ter da pré-escola, as representações, emoções e afetos, trazem numerosas contribuições para a formação do professor de educação infantil. A compreensão do processo de ensino, da forma como é visto pela criança, traz questões importantes para a reflexão do professor alfabetizador e evidencia aspectos da intervenção pedagógica a serem considerados e que podem integrar programas de formação inicial e continuada de docentes.

Neste texto, apresentamos os resultados em termos quantitativos e análises qualitativas dos dados. Destacamos algumas expressões dos alunos sobre a pré-escola, sobre seus sentimentos de gostar ou não da escola, da professora, das atividades realizadas; sobre o que aprenderam, os amigos e as situações envolvendo o brinquedo ou as brincadeiras

Entre as crianças entrevistadas e indagadas se lembravam da pré-escola, do seu nome ou da sua localização, 30 se recordaram exatamente do nome de suas pré-escolas e 39 referiram-se ao local onde se localizavam:

— 15 disseram freqüentar uma pré-escola municipal no mesmo bairro e próxima da escola objeto deste estudo;

— 10 estudaram em outros bairros próximos;

— 5 freqüentaram creche municipal;

— 5 vieram de pré-escolas privadas que se encontram nas proximidades;

— 4 crianças vieram de outros municípios e estavam morando há pouco tempo em Taubaté.

Os demais alunos não souberam explicar ou fizeram referências vagas sobre o assunto.

A forma como as crianças percebem suas experiências são construções singulares de natureza social e cultural. Segundo Vygotsky (1991), o desenvolvimento de funções mentais como a memória depende em grande parte da mediação, da cooperação dos outros, especialmente dos adultos ou colegas mais experientes. No início da idade escolar, a criança desenvolve funções intelectuais cujas características são a consciência reflexiva e o controle deliberado. A atenção passa a ser voluntária e a depender cada vez mais do pensamento da criança. A memória, que era mecânica, torna-se mais lógica, e a criança começa a estruturar as suas percepções, orientada pelo significado que possa ter o evento, fato ou objeto.

Para Vygotsky, o controle de uma função depende da consciência que
se tem dela e muitas das funções mentais básicas tornam-se conscientes e deliberadas durante a idade escolar. Uma função só é controlada pela vontade e pelo intelecto quando o indivíduo já se apropriou dela.

Segundo Wallon (1986), é o uso do simbólico e da representação que permite prolongar a lembrança no presente. O domínio da linguagem revela, portanto, o nível de desenvolvimento psíquico da criança.

Conhecimentos de natureza social, como a denominação de sua pré-escola e a sua localização no espaço, são apropriações feitas pelas crianças que sinalizam a emergência de funções mentais importantes para o processo de escolarização.

Ao falar a respeito de sua pré-escola, as crianças ouvidas neste estudo foram capazes de rememorar sentimentos que estão ainda presentes em suas lembranças e verbalizá-los. Sobre se gostavam ou não da pré-escola, elas assim se manifestaram: 56 disseram gostar de sua pré-escola; três, que não gostavam muito, e apenas uma criança explicou que não gostava do pré.

Quando interrogamos sobre por que elas gostavam ou não da pré-escola, as respostas foram as seguintes:

— 26 crianças responderam que gostavam da pré-escola e justificaram por que achavam "legal":

Lá era legal. Gostava ... porque lá eu brincava, assistia teatro, fazia desenho... (N.)

— Seis gostavam do pré e fizeram referência à professora:

Eu gostava. Gostava da minha professora, da minha diretora, dos meus amiguinhos, de ir no parquinho e... só isso. (T.)
Porque lá, a tia era legal. Quando a gente tinha roupa, a gente trazia, do pai, da mãe, se vestia e saía brincando na sala. Tinha um monte de brinquedo prá brincar... (N.)

— Seis disseram que no pré tinham bom relacionamento com colegas:

Lá era legal... porque eu tinha bastante amiguinhos. (J.)

— Quatro gostavam porque lá era muito bom e justificaram que o ambiente era bom:

Gostava porque lá era muito bom. (W.)

As demais crianças referiram-se aos espaços da escola ou às atividades realizadas ou não em sala de aula: sete gostavam da pré-escola porque brincavam no recreio, no parquinho, assistiam desenhos; cinco porque gostavam de fazer um monte de coisas, desenhar, pintar, ler, escrever, recortar, fazer teatro; e duas crianças explicaram que gostavam porque a professora dava coisas legais como pintar, colar e fazer desenho.

Se eu gostava? Eu adorava o pré. Porque a tia dava coisa legal, dava desenho pra gente pintar, um monte de coisas... (P.)
Fui em duas, primeiro na creche, depois na pré-escola lá perto do ginásio. Gostava mais da segunda do que da primeira. A minha professora da primeira, da creche, era brava, só que nem tanto. A outra professora, ela fazia um punhado de coisa legal com a gente. A gente brincava na classe e no parquinho. (K.)

Três crianças se referiram dizendo que gostavam mais ou menos e uma criança disse que não gostava da pré-escola.

Não gostava muito não. Porque era chato. Segunda-feira era muito chato. A tia era chata, ela chamava a gente de cabeça de tomate, de melancia... (D.)
Não gostava muito não... por causa da professora... (J.)
Não gostava não. Porque... os colegas enchiam o meu `saco'... mexia, brigava... (E.)

As experiências vivenciadas pelas crianças nas instituições educativas (creche, pré-escola ou escola) trazem em si sentimentos, afetos, valores, representações que podem favorecer ou dificultar o processo de escolarização.

Entre as crianças participantes da pesquisa, percebemos que 94% se referiram positivamente à experiência pré-escolar: 40% gostavam das atividades que realizavam em sala de aula; 40% se referiram ao que faziam nos espaços escolares, como parquinho, recreio, assistir a filmes, peças de teatro; 10% se referiram à pessoa da professora, e 10% aos amiguinhos com os quais brincavam. As duas crianças que afirmaram gostar mais ou menos, fizeram referências à professora e a única criança que disse não gostar de sua pré-escola disse que era por causa dos colegas.

A professora de educação infantil aparece, em 90% das respostas das crianças, como a pessoa que tem possibilidades de criar ambiente favorável a uma experiência pré-escolar bem-sucedida, não apenas no que se refere à sua interação com os alunos, carregada de afetividade, mas também ao seu papel de profissional e de educadora, ao criar as condições facilitadoras do acesso a vivências com os conhecimentos socioculturais valorizados socialmente e ao criar ambiente e espaço para a concretização dessas experiências.

O gostar da professora aparece na memória da criança por meio de duas expressões predominantes: porque "ela era legal", "ela era boazinha". A expressão "legal" ou "boazinha" foi atribuída à pessoa da professora, às atividades que ela dava, ao que ela permitia que se fizesse.

Algumas crianças fizeram referências às qualidades pessoais da professora, por exemplo:

A professora do pré era boazinha, muito gentil. (D.)
Porque ela gostava de mim. Porque eu sei, ela era boazinha pra mim, né?... (D.)
Ela era bonita e boazinha. (P.)
Ela era boazinha e era linda. (E.)
Eu gostava do cabelo dela, era preto e ela era bonitinha. (T.)

Outras crianças disseram gostar da professora pelo que ela fazia: "dava coisa legal", "ensinava um monte de coisas", "brincava com a gente", "arrumava o erro da gente", "dava desenho", "dava brinquedo", "deixava ir no banheiro".

Assim elas se expressaram:

Eu adorava o pré. Porque a tia dava coisa legal , dava desenho pra gente pintar... (P.)
Gostava dela porque ela me ensinava um monte de coisas. (V.)
Gostava sim, porque quando a gente fazia alguma coisa errada, ela deixava ou ela arrumava o erro da gente. (De.)
Ela deixava eu ir no banheiro quando eu pedia. Um monte de vezes (fazendo gesto com a mão). (T.)
Gostava porque ela era legal. A gente brincava dentro da sala. Ela dava sulfite pra gente desenhar, ditado, um monte de coisas. (M.)
Gostava mais da segunda do que da primeira. A minha professora da creche era brava, só que nem tanto. A outra professora, ela fazia um punhado de coisa legal com a gente. A gente brincava na classe e no parquinho. (K.)

Algumas crianças se expressaram dizendo também, que gostavam da professora pelo que ela não fazia: "não xingava", "não brigava com a gente". Como exemplo:

Gostava porque ela dava pouca tarefa, não xingava, deixava a gente brincar.
(M. CL1)
Ela era boa, ensinava a gente, não brigava com a gente. (R. CL2)

As crianças que afirmaram não gostar da professora expressaram o porquê da seguinte forma: "porque ela era muito brava, xingava, punha de castigo", "porque não falava nada quando brigavam", "porque ficou com o meu dinheiro", "porque ela brigava, puxava a minha orelha". Exemplos dessas falas:

Não gostava não. Porque ela era muito brava, xingava, punha de castigo. Eu não fui de castigo, mas meu colega foi. (D.)
A primeira era boazinha. A outra, não gostei não. Ela puxava a minha orelha. (W.)
Não gostava não. Os outros brigavam, ela ficava quieta, não falava nada. (E.)

As respostas indefinidas foram dadas por crianças que assim se expressaram:

Gostava mais ou menos da professora. Ela era brava. Eu gostava da tarefa que ela dava, mas ela era brava. (S.)
Gostava mais ou menos... Porque tinha dia que ela gritava com as pessoas, brigava com as pessoas. (W.)
Não gostava muito, não. A tia era chata... (D.)

A interação professor-aluno que ocorre em sala de aula é um processo relacional perpassado pela afetividade, por sentimentos e emoções que afetam os sujeitos e podem favorecer ou não as aprendizagens. Segundo Wallon (1949/1995), a afetividade, enquanto expressão simbólica, está na origem da interpretação e da representação, por meio das quais o sujeito dá significado ao seu mundo. A afetividade não é apenas uma dimensão da pessoa, mas a primeira fase de seu desenvolvimento. As relações de um recém-nascido com o ambiente são de natureza afetiva-emocional. São de emoção as primeiras manifestações sociais da criança, que permitem o desenvolvimento da linguagem e tornam possíveis as representações. As manifestações de emoção resultam de relações interindividuais e possuem um caráter contagioso. Entretanto, o sujeito não sofre pura e simplesmente o contágio das emoções expressas em seu meio, mas reage aos parceiros da relação, na medida em que desenvolve maior capacidade de discernimento.

Para Wallon (1945, 1986), a simpatia é uma forma de reação da criança aos outros e tem origem na imagem mental, na representação e na linguagem. Durante muito tempo o pensamento da criança permanece dominado por impressões sincréticas, e ela é incapaz de analisar, de diferenciar as relações existentes entre as coisas. Como sua percepção é inicialmente afetiva, a criança confunde imagem e objeto. No momento em que a percepção infantil torna-se mais discriminadora e perspicaz, aparece uma certa oposição entre a representação e a intuição afetiva. Quando pode comparar, escolher e rejeitar o que não lhe agrada, a criança aprende a diferenciar o objeto de sua representação. A possibilidade de fazer diferenciações reduz o sincretismo, permite a formação de categorias de pensamento, a distinção entre sujeito e objeto, qualidade e coisa. A linguagem presente no ambiente oferece os meios para a representação, favorece o desenvolvimento da simpatia, garante a harmonia entre os membros do grupo social e sua expressão revela o nível do desenvolvimento infantil.

Na teoria de Piaget, ainda que sob um outro ângulo, a afetividade também está presente e ocupa lugar privilegiado.

Ao discutir a afetividade na teoria de Piaget, Wadsworth (1993) aponta que a representação e, em particular, a linguagem falada, constituem instrumentos para o desenvolvimento dos sentimentos sociais. A representação possibilita que as imagens das experiências sejam criadas, o que inclui as experiências afetivas. É dessa forma que os sentimentos podem ser representados e recordados.

Para Piaget (1981, apud Wadsworth, 1993), a representação e a linguagem permitem que os sentimentos adquiram maior estabilidade e duração, podendo ser reconstruídos e representados pela criança. Antes desse momento, a criança pode, por exemplo, gostar de um objeto ou pessoa hoje, mas não amanhã. Com o desenvolvimento, o comportamento vai tornando-se mais estável e produtivo, e os sentimentos, mais consistentes. Assim, o gostar e o não gostar referindo-se ao passado é evocado e considerado no momento presente. O gostar de outras pessoas é visto como reciprocidade de atitudes e valores, que pode levar cada um a valorizar o outro, gerando o respeito mútuo. Quando um aprecia o outro, os valores que derivam das ações recíprocas são representados e podem ser recordados nas interações posteriores. Nos intercâmbios futuros, as experiências afetivas podem ser mais positivas ou negativas, dependendo dos valores que foram retidos.

Neste estudo, a lembrança da professora da educação infantil apareceu na memória das crianças como a de alguém que suscitou a simpatia de 87% delas. Algumas crianças referiram-se às características pessoais da professora, como bondade e beleza. Outras crianças fizeram referências ao gostar da professora "porque ela era legal", "porque gosto", não conseguindo apresentar argumentos nem justificar esse gostar.

Cerca de 50% das crianças que afirmaram gostar da professora fizeram referências às atividades de sala de aula como motivos que as levaram a esse sentimento. Pelas suas falas, percebe-se que, quando começa a superar o sincretismo inicial, a criança torna-se capaz de analisar o trabalho da professora e a diferenciar suas atitudes e ações. Como exemplo: "ela me ensinava", "arrumava o erro", "dava desenho pra gente pintar", "dava coisa legal".

Antes do desenvolvimento da representação simbólica pela criança, a afetividade manifesta-se mais pelo contato físico, pelo toque, pelo abraço ou pela voz do parceiro da relação. No momento em que o pensamento simbólico já se desenvolveu, a atenção, o cuidado e a compreensão da professora podem ser percebidos como manifestações de afeto. Assim, por exemplo, quando as crianças falam "deixava ir ao banheiro", "dava coisa legal", "dava brinquedo pra gente brincar", "brincava com a gente", "quando a gente errava...".

O gostar como reciprocidade, que gera o respeito mútuo, seria um nível mais elevado, mais maduro, de compreensão: o gostar por causa de alguma coisa ou o fazer algo em benefício de outra pessoa. Por exemplo: "ela ensinava a gente", "não brigava com a gente", "eu gostava da tarefa que ela dava".

Nas falas das crianças é possível perceber que, desde muito cedo, elas já manifestam a possibilidade de analisar o trabalho da professora e perceber a sua competência e preocupação com a aprendizagem dos alunos. O desempenho pedagógico pode ser percebido e interpretado pela criança como manifestação afetiva. A criança parece responder com reciprocidade, aprendendo a gostar do que faz na escola e daquela pessoa que lhe manifesta afeto, nesse caso, a professora:

Ela era brava, mas eu gostava da tarefa que ela dava. (S.)
A outra professora, ela fazia um punhado de coisa legal com a gente. (K.)

Algumas crianças de nosso estudo revelaram gostar da professora pelo que ela não fazia, o que pode ser uma forma de se opor a situações negativas já vivenciadas: "não xingava a gente", "não brigava com a gente".

As crianças que revelaram não gostar da professora da pré-escola evidenciaram uma experiência negativa, vivenciada por elas próprias, por seus colegas de classe ou em situações de sala de aula, como os gritos e castigos. Essas
experiências, ainda que em apenas 6% dos casos, estão retidas na memória das crianças como sentimentos de desrespeito e desvalorização, e podem gerar antipatias, aversões e desmotivação para a aprendizagem.

Ela ficou com o meu dinheiro. Eu pedia para ela trazer e ela não trazia. Daí eu não gosto dela porque ficou com o meu dinheiro. (J.)
Eu não fui de castigo, mas meu colega foi. (D.)

Sobre as atividades que realizaram na pré-escola, as crianças se recordam das que mais gostavam de fazer: as atividades de escrita (letras, tarefas, lições, ditado, escrever, fazer exercícios na apostila) aparecem na preferência de 33 crianças; atividades de matemática (números, continhas) foram escolhidas por nove crianças; brincar (na sala, no parque, no recreio) obteve 13 respostas; pintar e fazer desenho, seis respostas; a atividade de ler e de contornar apareceram duas vezes, respectivamente; cada uma dessas preferências: comer, jogar bola e recortar apareceu na resposta de uma criança. Outras respostas foram: estudar (três crianças) e fazer o dever (quatro crianças).

Algumas das expressões das crianças ao se referirem às atividades realizadas na pré-escola:

Eu gostava de fazer Matemática. Números era fácil... fácil... (A.)
A lição de lá era fácil. Só que tinha muito problema assim: a tia falava: — É o `b' da barriga? Eu ia lá e falava: — Não, é esse aqui. Eu ia lá e fazia. (G.)
A professora dava continha pra nós, ninguém sabia fazer, só eu lá que sabia. Então eu gostava... (T.)
A professora, ela fazia um punhado de coisa legal com a gente. A gente brincava na classe e no parquinho. (K.)
Gostava de escrever e falar o que a tia pedia. Ela mandava, daí eu fazia, falava... (Jo.)
Eu gostava de escrever meu nome... brincar no parque... (M.)

Levadas a falar sobre as atividades que realizavam na pré-escola, as crianças destacaram aquelas que elas mais gostavam de fazer. 55% das crianças manifestaram preferência por atividades de linguagem escrita, como escrever letras, ditado, tarefas escritas, exercícios na apostila e outras. Atividades envolvendo o movimento, como as brincadeiras e os jogos, foram preferidas por 20% das crianças; 15% delas revelaram gostar mais de atividades de matemática, como a escrita de numerais e as operações (continhas); 10% disseram gostar de desenhar; e as demais deram respostas variadas, como recortar, fazer o dever, estudar, contornar e comer.

Esses dados permitem uma reflexão sobre o fato de que a criança parece aprender a gostar daquilo que ela realiza com mais freqüência e que, provavelmente, lhe traz maior satisfação em termos de ser bem-sucedida. As propostas pedagógicas das pré-escolas que essas crianças freqüentaram revelam uma formalização excessiva em termos do ensino da língua escrita, em detrimento de um processo educativo que privilegie o direito da criança a um desenvolvimento integrado em todas as suas dimensões.

O ensino pré-escolar freqüentado pelas crianças de nosso estudo parece visar o cumprimento do objetivo de preparar para o ensino fundamental, e o processo pedagógico revela-se centrado mais no conteúdo do que no aluno. As atividades lúdicas, a exploração e a construção não aparecem nas falas das crianças quando se referem à escrita, cujo conhecimento parece ser concebido como reprodução. Mesmo vivenciando uma situação de aprendizado da língua que parece desconsiderar a função social da escrita, a criança provavelmente entende a sua importância, relacionando-a à valorização da atividade de escrita pela escola, pela professora e por sua própria família. A fala da criança revela que ela possui uma certa clareza em relação ao que deve aprender na escola. Como as atividades de escrita são mais valorizadas pela professora, a criança parece percebê-las como sendo o objetivo da pré-escola, passando também a valorizar esse conhecimento.

Ao serem interrogadas sobre o que aprenderam a fazer no pré, as crianças deram respostas bem diversas, como as que se seguem:

Aprendi a desenhar, pintar e... números. (W.)
Primeiro eu aprendi o a, e, i, o, u e depois aprendi o da, o ca, o na e o ma. (P.)
Aprendi um monte de coisas, fazer letras, palavras, números... (F.)
Eu aprendi a escrever tudo o que a tia punha na lousa. (C.)
Aprendi no pré a fazer letrinhas e número até 9. (A.)
A fazer um monte de folhas da apostila. Letras e palavras. (D.)
Ler e escrever, eu aprendi no pré. (R.)

As aprendizagens que as crianças recordaram terem feito na pré-escola evidenciam a ênfase nas atividades de escrita. Um terço das sessenta crianças interrogadas refere-se às vogais e, algumas, às famílias silábicas, palavras e frases. Na matemática, quando as crianças faziam referências a essa área, falavam sobre o aprendizado dos números. O desenho e a pintura foram citados, por 30% das crianças, como atividades que aprenderam a realizar no pré. Apenas duas crianças disseram ter aprendido a ler, e não houve referências a músicas, danças e outras formas de expressão. Mesmo aquelas que deram respostas vagas como "muitas coisas" ou "bastantes coisas" que aprenderam, possivelmente estavam se referindo aos mesmos conteúdos já citados pelos demais colegas.

É provável que ainda hoje, em grande parte de nossas pré-escolas, as crianças passem um, dois ou três anos escrevendo letras, números, desenhando e brincando, sem que essas atividades estejam articuladas a um projeto mais amplo que privilegie o desenvolvimento de suas capacidades cognitivas, da expressividade e das condições facilitadoras para suas aprendizagens.

As manifestações das crianças ouvidas por este estudo, acerca das atividades realizadas e dos conteúdos adquiridos na pré-escola, evidenciam a necessidade de se repensar a formação do professor de educação infantil, de se refletir sobre a sua prática, no sentido de uma nova pedagogia para um novo tempo. Uma pedagogia que considere a infância como uma etapa particular do ciclo vital do ser humano e a criança como um sujeito social e histórico, como um cidadão de pouca idade, constituído de dimensões múltiplas e diferenciadas, com direito a um processo de desenvolvimento pleno e harmônico.

Para Kramer (1989), as atividades escolares podem ser fonte de gozo e prazer para a criança, ainda que consideradas como "tarefa" e, portanto, trabalho.

Quando as crianças se referiram a coisas de que não gostavam de fazer na pré-escola, elas assim se manifestaram:

— 21 referiram-se às brigas, "gente que briga", "que os outros fiquem me xingando";

— 14 não gostavam de "bagunça", de "fazer arte", correr, atrapalhar;

— 6 crianças responderam "nada", isto é, que gostavam de tudo;

— 5 não gostavam "de fazer coisa difícil";

— 4 não gostavam de conversar na sala de aula;

— 2 não gostavam de escrever;

— 2, que a professora gritasse com elas. Outras respostas foram dadas por apenas uma criança, tais como: "não gostava de sentar perto de gente chata", "não gostava muito de pintar", "de fazer muito ditado"; "não gostava.... que a diretora nunca estava lá", "quando a tia passava lição no caderno, porque eu gosto da lousa". Exemplos de suas falas:

A diretora não fazia nada. Só ficava viajando pra lá, pra cá. Quando a gente perguntava:... — "Ela está viajando!" Disso eu não gostava... que a diretora nunca estava lá. (A.)
Às vezes tinha coisas que eu não gostava de fazer, coisa difícil. O quê? Não me lembro... Ah!. Fazer números... era difícil. (R.)
Não gostava de fazer coisa difícil, que eu não sabia... (J.)
Eu não gostava de sentar perto de gente chata. (E.)
Não gostava de gente que briga. (J.)
De fazer arte, correr e atrapalhar, isso eu não gostava. (D.)
De conversar e fazer bagunça, isso eu não gostava. (W.)

Dos alunos envolvidos em nosso estudo, 35% disseram não gostar de brigas ou de colegas que brigavam; 30%, que não gostavam de bagunça, correria, conversa, fazer "arte" ou atrapalhar; 10% disseram que não havia nada de que eles não gostassem, pois gostavam de tudo; 8% deles fizeram referências às atividades difíceis, e os demais deram respostas diversas, referindo atitudes da professora, atividades que não gostavam de fazer e colegas. Uma das crianças fez referência à constante ausência da diretora, que quase nunca se encontrava na escola, como uma coisa de que ela não gostava. É interessante constatar que até a própria criança, numa escola de educação infantil, já é capaz de perceber a indispensável presença do diretor para acompanhar as atividades desenvolvidas na escola. O diretor da escola ocupa uma posição importante na estrutura do ensino, sendo responsável pelo bom funcionamento da instituição, pela animação do trabalho pedagógico dos professores e pela articulação da escola com a comunidade.

Na escola, e principalmente na sala de aula, os alunos estão em constante interação entre si e com a professora. Nesse ambiente, os desentendimentos, a briga e a agressão são também formas de relação, de expressão das emoções.

As crianças percebem muito cedo que os adultos, em especial a professora, não aprovam as desavenças, as brigas, os comportamentos agressivos manifestados por crianças, e passam a expressar também reprovação a esse tipo de comportamento.

Na perspectiva de Piaget (1932/1994), em dado momento de sua vida a criança desenvolve a heteronomia, que permite um julgamento moral que legitima regras, atitudes e valores externos, colocados geralmente por adultos nos quais ela confia. O desenvolvimento dessas regras morais pela criança é fortemente influenciado pelo comportamento dos pais e de adultos com quem ela se relaciona e que desempenham papel de modelo, em especial pelo impacto das técnicas disciplinares utilizadas por eles. Sendo um sistema de regras, o juízo moral envolve a capacidade de a criança determinar se alguma ação é correta ou incorreta, se alguém é ou não inocente. A natureza do relacionamento entre pais e filhos e os padrões de comportamento deles influenciam o nível de consciência da criança em relação ao julgamento que ela faz, podendo ser mais benevolente ou mais rígida e punitiva.

Dependendo das práticas disciplinares exercidas pelos pais, ou da presença de manifestações de violência na família, as crianças podem desenvolver atitudes mais ou menos agressivas em seus relacionamentos.

Em nossa sociedade, é comum a aplicação do método disciplinar do ataque, da desforra, da coerção física e verbal, no lugar da persuasão, do diálogo, do exemplo, o que acaba por criar uma certa imprecisão entre a indispensável necessidade de impor limites e as ações de maus tratos por parte dos adultos. A violência doméstica que é mantida por um modelo parental agressivo, baseado na coação e no poder, acaba sendo internalizada pelas crianças, que se tornam também agressivas (Loos et alii, 1999).

Na medida em que, na sala de aula, as crianças percebem que as regras são passíveis de serem discutidas e questionadas, podem desenvolver maior autonomia e reciprocidade, coordenar seus pontos de vista e ações com os de outros membros do grupo. Ao se basearem no respeito mútuo, elas serão mais capazes de expressar sentimentos de aprovação ou de reprovação com relação aos comportamentos manifestados pelos seus colegas de classe.

Há momentos, na sala de aula, em que reina uma certa desordem, como quando a professora alterna as tarefas ou se ausenta da classe por alguns minutos, e as crianças os denominam, em geral, "bagunça". O aumento do ruído, pela movimentação, quando alguns ficam em pé, andam ou correm pela sala, falam em voz alta, conversam entre si, riem e brincam, constitui o que os alunos chamam de bagunça. Estas são formas de expressão que respondem a uma necessidade das crianças de estarem sempre interagindo e que fazem parte de seu processo de socialização.

Nessa fase de escolaridade, as crianças estão construindo a autonomia e, portanto, ainda não desenvolveram a auto-organização. Como a disciplina é, muitas vezes, conseguida por meio de atividades que mantêm a criança ocupada, no instante em que a situação escapa do controle do professor há maior perturbação no ambiente. Essa desorganização do ambiente é entendida pela criança como momento de bagunça.

A falta de organização do trabalho pelo professor, o não estabelecimento de uma rotina que ordene e oriente as atividades são fatos percebidos pela criança. Em um processo pedagógico em que os alunos passam a maior parte do tempo realizando atividades interessantes e desafiadoras, dificilmente se envolvem em situações destrutivas ou maldosas em relação aos colegas. Quando compreendem o objetivo das atividades que realizam, quando o nível de exigência está adequado à sua capacidade intelectual, elas se envolvem sem demonstrar desânimo ou apatia. Os ruídos ou os barulhos em sala de aula, quando produzidos pelo próprio envolvimento nas tarefas, não constituem motivo de distração para as crianças, mas uma saudável conseqüência de seu trabalho.

Algumas crianças, em nosso estudo, fizeram referências às atividades difíceis que deveriam realizar na pré-escola como coisas de que elas não gostavam de fazer. Uma exigência demasiado alta para o nível de desenvolvimento da criança pode tornar a atividade desmotivadora, gerando o desinteresse e a distração. Ser bem-sucedida na realização de uma tarefa é gratificante para a criança e funciona como estímulo para novos desafios. Quando a criança não é capaz de realizar determinada tarefa, o professor pode perceber o nível de possibilidade da criança, na seqüência de seu processo de desenvolvimento e propor atividades no nível mais baixo, em que seu sucesso seja garantido para, partindo desse ponto, ir elevando as exigências. Por meio da interação com outros colegas, da cooperação e partilha de conhecimentos, a criança poderá superar seus próprios limites.

Quando perguntamos sobre seus amigos na pré-escola, 57 crianças afirmaram que tinham amigos; uma criança disse que tinha apenas um amigo, e uma criança falou que não tinha amigos.

Assim algumas delas se manifestaram:

Eu tinha muitos amigos. A gente brincava de um monte de coisas. (A.)
Eu tinha bastante amigos... (Fazendo gesto com os dedos) (P.)
Eu não tinha amigos. Não sei por que:... Em casa... eu brinco com meus irmãos. (J.)
Eu tinha um amigo, só o Adilson, que não veio para cá. (E.)

Segundo Wallon (1986), a escola, enquanto instituição, não é um grupo para a criança, mas um meio em que grupos de tendências variadas são constituídos e podem estar em harmonia ou em oposição a seus objetivos. Os grupos são formações particulares, indispensáveis à aprendizagem social da criança, ao desenvolvimento da consciência de sua identidade. No desenvolvimento psíquico da criança, o papel dos vínculos grupais começa por volta dos três anos, quando diminuem as ligações exclusivamente afetivas e o sincretismo, favorecendo a diferenciação entre o sujeito e outros indivíduos de seu grupo. No grupo familiar, a criança ocupa determinado lugar na constelação formada pelos pais, irmãos e familiares. Nesse grupo, a criança realiza uma aprendizagem que pode favorecer ou não o estabelecimento de relações com os outros e de sentimentos sociais. Na escola, as relações da criança diversificam-se e ela vai se tornando mais livre para estabelecer ligações, relações variadas com outros e para combinar seus atos com os de colaboradores. A capacidade da criança de se relacionar com outras depende das oportunidades de interação e da diversidade de situações experimentadas. Pela prática da participação em atividades interativas, e por influência delas, a criança aprende a discernir diferentes tipos de relações que irá experienciar na vida em sociedade, tanto de união quanto de confronto. Para o sujeito, a relação que estabelece tem valor categorial, uma vez que lhe permite classificá-la conforme as diferentes ações exercidas no meio social. Ao discernir diferentes categorias de relações com os outros, as interações grupais favorecem uma organização íntima da pessoa.

Na escola de educação infantil, a criança amplia suas relações sociais e interações, estabelece novas formas de comunicação, de expressão, e troca idéias com outras crianças e adultos. Nesse contexto, os meios usados para o estabelecimento de vínculos com outras crianças podem ser a imitação e a brincadeira. Por meio da imitação a criança realiza o processo de diferenciação entre o eu e o outro, observa e aprende com os outros. O brincar desenvolve a socialização na medida em que favorece a imitação pela experimentação de regras e pelo exercício de papéis sociais, em especial na brincadeira de faz-de-conta.

Em nosso estudo, quando a criança disse ter muitos amigos ou mesmo quando falou que não tinha amigos na escola infantil, fez referência ao brincar como atributo da relação de amizade. Ter amigos para a criança pode significar ter um colega para o jogo ou para a brincadeira.

Os amigos, para pré-escolares, são geralmente colegas do mesmo sexo, mas é possível encontrar crianças de ambos os sexos envolvidas em brincadeiras coletivas. Além da participação conjunta em jogos e brincadeiras, a cooperação e ajuda são também comportamentos que revelam a amizade entre as crianças.

Conforme López (1995), o desenvolvimento da capacidade de relacionar-se com outras crianças, o qual faz parte do processo de socialização, depende das oportunidades de interações em situações diversificadas, favorecidas pelo meio. O processo de socialização resulta da interação da criança com os recursos de seu meio e depende tanto das características da própria criança, quanto das formas de agir dos parceiros da relação. A socialização é, neste sentido, um processo interativo por meio do qual a criança satisfaz suas necessidades básicas e assimila a cultura do seu grupo.

A escola de educação infantil constitui um contexto de socialização para a criança, diferenciado da família no que se refere aos padrões de comportamento exigidos dos sujeitos e que são característicos da instituição, como exemplo, as regras de interação, as formas de comunicação, o estabelecimento de vínculos, os procedimentos por meio dos quais as informações são transmitidas e tantos outros.

Para Wallon (1986), e também para Vygotsky (1989), o desenvolvimento do indivíduo decorre de ações sobre o meio e das mudanças contínuas que resultam da interação sujeito-mundo, especialmente das relações interpessoais nas quais ele se envolve. As interações estão, portanto, na gênese das estruturas mentais e permitem que os indivíduos se apropriem dos conhecimentos e se constituam como sujeitos.

De acordo com Vygotsky (ibid.), é na atividade de brinquedo que a criança se desenvolve. O brinquedo, ao fornecer estruturas básicas para mudanças das necessidades e da própria consciência, pode ser considerado como atividade que determina o desenvolvimento da criança pré-escolar.

Neste estudo, procuramos interrogar os alunos envolvidos, sobre o brincar na escola de educação infantil. Vejamos as respostas sobre brinquedos e brincadeiras de que elas gostavam na pré-escola:

A gente brincava no parquinho e na sala, de um montão de coisa. A gente brincava assim, de joguinho, passa-passa, cai-no-poço... (D.)
Brincava com a professora e os colegas. De corre-cotia e esconde-esconde. (J.)
Brincava de casinha. Aquele brinquedinho que a gente monta e daí fica uma casinha. (M.)
A gente brincava de montar, a gente brincava no parquinho, pendurava, trepava e tudo quanto é coisa. (K.2)
A gente brincava de escolinha e no parque. (C.)
Brincava de esconde-esconde, pega-pega e fazer "bolinho" de areia... (P.)
Eu tinha um monte de amiguinhos lá. A gente brincava de Barbie. Punha água e fazia a boneca nadar. (N.)

As crianças deste estudo, ao fazerem referências às brincadeiras de que mais gostavam na pré-escola, deram respostas variadas, envolvendo, além das brincadeiras, brinquedos e jogos. Cerca de um terço das crianças (35%) disse gostar de brincar no parquinho, e algumas especificaram o balanço. Brincadeira de pega-pega foi escolhida também por cerca da terça parte das crianças, seguida pelo brincar de esconde-esconde. A brincadeira de boneca e de casinha (mamãe e filhinha) recebeu um total de onze respostas entre as sessenta crianças respondentes. A seguir, os joguinhos (pega-vareta, dama, dominó), o futebol (e bola queimada), corre-cotia, roda-roda. Pular amarelinha apareceu duas vezes na preferência das crianças, e demais brincadeiras e brinquedos, como bolinho de areia, massinha, pular corda, passa-passa, cai-no-poço, basquete, carrinho e cavalinho, apareceram apenas uma vez.

Segundo Vygotsky (ibid.), os brinquedos preenchem necessidades fundamentais da criança, entendidos enquanto motivos para a ação infantil. Além de ser um incentivo capaz de colocá-la em ação, a criança, por meio dessa atividade, satisfaz certas necessidades de caráter especial, como os seus desejos não realizados, que podem ser atendidos por meio de brinquedos. Na criança pré-escolar, a imaginação é o brinquedo em ação; é este que cria as situações imaginárias para as suas atividades. Ao final dessa fase, têm início os jogos de regras, que se desenvolvem durante a idade escolar. Entretanto, para Vygotsky, não há brincadeiras sem regras, considerando-se que toda situação imaginária envolve regras, ainda que não seja um jogo com regras elaboradas previamente. No brinquedo simbólico, as regras não são formuladas a priori, mas se originam na própria situação imaginária. A relação da criança com o brinquedo envolve paradoxos, porque nessa atividade ela é capaz de separar o significado do objeto sem saber que o fez; ao fazer o que mais gosta, segue o caminho do menor esforço e aprende, também, a subordinar-se às regras. A criança desenvolve o autocontrole quando a satisfação das regras no brinquedo torna-se desejo e fonte de prazer. Em competições esportivas, por exemplo, o propósito do jogo é o principal aspecto e o objetivo de vencer é reconhecido previamente pela criança.

As crianças ouvidas neste estudo ressaltaram a atividade de brincar no parquinho como aquela de que mais gostavam na pré-escola, seguidas da brincadeira de pega-pega e esconde-esconde.

O brincar no parque é considerado, muitas vezes, como recreação. Nesses momentos, as crianças brincam individualmente ou em grupos, explorando os espaços e equipamentos e os materiais disponíveis. Os brinquedos existentes num parquinho infantil tanto podem ser explorados de forma individual, quanto em grupos. Ainda que as crianças possam ser acompanhadas de perto nessa exploração, o adulto nem sempre intervém naquilo que elas fazem.

De acordo com Vygotsky (ibid.), nas brincadeiras, a própria criança cria formas de descobrir e utilizar os recursos existentes no ambiente. No parque da escola elas sobem, descem, escorregam, correm, são desafiadas na sua força, na resistência, equilíbrio e movimentos; lidam com emoções, sensações, percepções e podem construir, reconstruir, aguçar a curiosidade e a criatividade. Ao desejarem realizar atividades em grupo ou concomitantemente, as crianças podem estabelecer regras tais como formar filas, esperar a vez, fazer competições, inventar jogos e brincadeiras de forma espontânea e criativa. A interação grupal proporciona situações para o exercício da cooperação e da solidariedade, da autonomia e do respeito mútuo. O caráter lúdico dos brinquedos do parquinho é conferido pela criança, na forma de utilização dada por ela ao criar jogos e brincadeiras como produtos de sua expressão individual e grupal.

Nas situações sociais de brincadeiras, as crianças explicitam formas de relacionamento interpessoal que vivenciam no seu meio. O brincar de pega-pega e de polícia-e-ladrão, que envolve situações de perseguição, pode revelar níveis de violência que estão presentes no mundo dos adultos. Essas situações necessitam ser problematizadas pelas professoras e discutidas com os alunos.

Em nosso estudo, poucas crianças fizeram referências à brincadeira simbólica de faz-de-conta, como mamãe e filhinha, escolinha e casinha, na pré-escola. É provável que hoje, nessa fase do desenvolvimento, a maior parte das crianças já esteja mais ligada aos jogos e brinquedos de regras que, segundo Vygotsky, são mais freqüentes à medida que a idade avança.

Os alunos entrevistados revelaram que costumavam levar alguns brinquedos para a sala de aula da pré-escola, como boneca, carrinho, cavalinho e o "tazo". De acordo com Vygotsky, no brinquedo, o pensamento da criança está separado dos objetos e a ação surge das idéias, e não do objeto em si. A criança opera com significados desligados dos objetos e ações, criados pela sua imaginação. Para esse autor a brincadeira, caracterizada pela situação imaginária e por regras surgidas na própria atividade de brincar, é fundamental para que o pensamento abstrato se desenvolva. Como espaço de socialização, a brincadeira permite que a criança internalize idéias, valores, regras e padrões de comportamento de seu grupo social.

Na escola, os momentos de recreio oferecem espaço para as atividades lúdicas que envolvem as crianças em grupos. Além de mobilizar as ações pelo gozo e prazer que proporcionam, esses momentos implicam trocas, partilhas, confrontos e negociações que favorecem o desenvolvimento infantil.

Neste estudo, os brinquedos e as brincadeiras na pré-escola apareceram nas falas das crianças como atividades lúdicas e de recreação mobilizadoras de satisfação e gosto. Nas formas pelas quais as crianças expressaram essas vivências, não foi possível perceber algum tipo de intencionalidade pedagógica, nem o emprego daquelas como recurso para a construção de conhecimentos.

Os alunos pesquisados deixaram evidente o prazer nas atividades que eram realizadas e sentimentos afetivos em relação à professora e aos colegas da pré-escola. Por suas respostas, entretanto, não nos parece que as atividades lúdicas, tão importantes nessa fase do desenvolvimento, tenham merecido uma atenção especial na proposta pedagógica das escolas de educação infantil das crianças
entrevistadas. É preciso que o professor de pré-escola leve em consideração a função essencial do brinquedo e da brincadeira no desenvolvimento infantil, como estratégia para a construção dos conhecimentos e da individualidade, no sentido da inserção da criança na cultura a que pertence.

Ao concluir este estudo, não podemos deixar de reconhecer que as lembranças das experiências pré-escolares foram muito positivas para a maior parte das crianças, embora para algumas não tenham sido tão felizes.

Em relação ao trabalho pedagógico com crianças pequenas, apesar da existência e da divulgação de numerosos estudos sobre o desenvolvimento da escrita na criança, sobre a construção do raciocínio lógico-matemático, sobre os jogos e as brincadeiras enquanto recursos fundamentais ao desenvolvimento infantil, estes nem sempre estão se revelando como inspiradores de estratégias didáticas a serem privilegiadas em salas de aula.

O estudo aponta para a importância de se ouvir o aluno para conhecer melhor suas expectativas, necessidades e interesses, suas formas próprias de pensar, sentir e agir, como aspectos fundamentais no planejamento da tarefa pedagógica.

Entender o processo de ensino-aprendizagem a partir das percepções do sujeito que aprende continua sendo uma forma de abordagem fecunda para a produção de conhecimentos em Psicologia da Educação.

 

 

Referências

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Endereço para correspondência
Regina Mary César Reis
E-mail: reginamcreis@aol.com

Recebido em março de 2004
Aprovado em outubro de 2004

 

 

1 Professora do Departamento de Pedagogia — Universidade de Taubaté — Unitau. E-mail: reginamcreis@aol.com

 

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