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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  n.23 São Paulo dez. 2006

 

A escolha na orientação profissional: contribuições da psicologia sócio-histórica

 

Professional orientation and the choice process: a reflection using the socio historic perspective

 

La orientación profesional y los procesos de elección: una reflexión desde la perspectiva sociohistórica

 

 

Wanda Maria Junqueira de Aguiar

Doutora em Psicologia Social pela PUC-SP. Professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Psicologia da Educação da PUC-SP. E-mail: pedpos@pucsp.br

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é, em primeiro lugar, expor algumas reflexões que a psicologia sócio-histórica tem realizado sobre os pressupostos teóricos e metodológicos orientadores da prática de orientação profissional, e, a seguir, como os processos de escolha são entendidos por essa abordagem.
Com relação ao primeiro ponto destacado, sua relevância se dá por acreditarmos que a discussão sobre a orientação profissional não pode se resumir à apresentação de um conjunto de estratégias e atividades. Vemos como fundamental, na discussão do "como fazer", ou seja, na discussão da prática, a reflexão sobre os pressupostos que orientam a prática, indicando assim a ética que aí está contida.
No bojo dessa discussão, vamos apresentar o sujeito como aquele que é único, singular, mas social e histórico ao mesmo tempo. Como aquele que transforma o social em psicológico,como aquele que vive a unidade contraditória do simbólico e do emocional, como aquele que produz sentidos subjetivos e dessa forma, com certeza - escolhe.
Apresentaremos a seguir, como a psicologia sócio-histórica entende o processo de escolha, sem negar o papel ativo e criador do sujeito, mas sem cair nas armadilhas que tal discussão encerra, quando pautadas pelas concepções naturalizantes, atravessadas pelo liberalismo, com uma concepção de sujeito descolada do social, do processo histórico que o constitui.

Palavras-chave: orientação profissional; escolha; psicologia sócio-histórica.


ABSTRACT

Firstly the aim of this article is to express some thoughts, that socio historic psychology is developing about theoretician and methodological presuppositions that guide the professional orientation practice. After that we will see how the choice process is understood by this approach.
We consider the first issue relevant because we believe that discussions about professional orientation can't be summarized by a set of strategies and activities. We see the essential focus being on "how to do" discussions, or better, in the practical discussions, a reflection about the presuppositions that guide the practice, pinpointing, in this way the ethics relating to that.
During this discussion we will present the subject as unique and singular, but at the same time social and historical, as the one that transforms the social into psychological, also as the one that lives the contradiction of the symbolic and the emotional and as the one that produces subjective senses and for this reason, for sure can choose.
After that we will present, how the socio historic psychology understands the choice process. By doing that we don't intend to deny the active and creative way of the subject. This will be done without falling into the trap that this discussion can raise, when it is lead by conceptions, crossed by neo-liberalism, which separates the subject from the social and historical process that constitutes it.

Keywords: professional orientation; choice; socio historic psychology.


RESUMEN

El objetivo deste artículo es, en primer lugar, exponer algunas reflexiones que la Psicología Sociohistórica ha realizado sobre los presupuestos teóricos y metodológicos orientadores de la práctica de Orientación Profesional, y entender los procesos de elección desde este abordaje.
Con respecto al primer punto destacado, su relevancia se da, porque creemos que la discusión sobre la Orientación Profesional, no se puede resumir a la presentación de un conjunto de estrategias y actividades. Vemos como fundamental en la discusión de "cómo hacer", o sea, en la discusión de la práctica, la reflexión sobre los presupuestos que orientan la práctica, indicando así, la ética allí contenida.
En esta discusión vamos a presentar al sujeto como aquel que es único, singular, pero social e histórico al mismo tiempo. Como aquel que transforma el social en psicológico, como aquel que vive la unidad contradictoria del simbólico y del emocional, como aquel que produce sentidos subjetivos y de esta manera, con seguridad - Escoge.
Presentaremos a continuación, como entiende la psicología sociohistórica el proceso de elección, sin negar el papel activo y creador del sujeto, pero sin caer en las trampas que encierra esta discusión, al ser pautadas por las concepciones naturalizantes, influenciadas por el liberalismo, con un concepto de sujeto despegado del social, del proceso histórico que lo constituye.

Palabras clave: orientación profesional; elección; Psicología Sociohistórica.


 

 

Concordamos com Vygotski (1991a) quando afirma que a psicologia é impotente para enfrentar suas tarefas práticas, caso não disponha de uma infraestrutura lógico-teórica e metodológica. Assim, para que possamos falar de orientação profissional como um processo em que indivíduos vivenciam situações de escolha para ocupar um posto de trabalho na sociedade, temos que nos deter em algumas questões: nossa concepção de indivíduo e de como vemos sua relação com o mundo social; como se dá seu processo de escolha; qual é nossa meta/objetivo ao realizarmos a orientação profissional.

Nosso objetivo, com este artigo, é apresentar algumas reflexões que a psicologia sócio-histórica tem realizado sobre os pressupostos teóricos e metodológicos direcionadores da prática em orientação profissional, tendo como eixo o processo de escolha, tal como entendido por esta abordagem.

Com relação aos pressupostos teóricos e metodológicos, sua relevância se dá por acreditarmos que a discussão sobre a orientação profissional não pode se resumir à apresentação de um conjunto de estratégias e de atividades. É fundamental a discussão do "como fazer", ou seja, a discussão da prática e dos processos que aí ocorrem, bem como a reflexão sobre os pressupostos que orientam a prática, indicando, assim, a ética que aí está contida.

 

Concepção de indivíduo e sua relação com o mundo social

O homem é, assim, visto como um ser social, de carne e osso e, como tal, constituído nas e pelas relações sociais. Este homem, além de produto da evolução biológica das espécies, é produto histórico, mutável, pertencente a uma determinada sociedade, estando em uma determinada etapa da evolução histórica.

Este homem, constituído na e pela atividade, ao produzir sua forma humana de existência, revela - em todas as suas expressões - a historicidade social, a ideologia, as relações sociais e o modo de produção, ao mesmo tempo em que expressa sua singularidade, o novo que é capaz de criar, os significados sociais e os sentidos subjetivos.

Homem e sociedade vivem uma relação de mediação, em que um expressa e contém o outro, sem se diluírem e sem perderem sua singularidade. Vivem a dialética inclusão-exclusão, ou seja, vivem uma relação na qual indivíduo e sociedade se incluem e se excluem ao mesmo tempo. Afirmamos que se incluem por entender o indivíduo, como lembra Vygotski (2001a), como "quase o social", como aquele que em todas as suas ações tem sempre uma colaboração anônima. Quando afirmamos que se excluem, entendemos que eles se diferenciam e, com isso, reiteramos a singularidade do sujeito que, ao se manter assim, cria a possibilidade de colocar o novo no social.

Dessa forma, a constituição do plano individual não se dá como mera transposição, plano social-plano individual, mas como resultado de um processo de configuração, em que indivíduo e sociedade não mantêm uma relação isomórfica entre si, mas uma relação na qual um constitui o outro. Vigotski (1999) afirma que o processo de internalização deveria ser chamado de processo de revolução, pressupondo, com isso, uma radical reestruturação da atividade psíquica. Esse processo, denominado por nós configuração, só é possível na e pela atividade, entendida como vital para a existência humana.

Portanto, vamos entender o sujeito como aquele que é ao mesmo tempo único e singular, mas também social e histórico, como aquele que transforma o social em psicológico, como aquele que vive a unidade contraditória do simbólico e do emocional e como aquele que produz sentidos subjetivos. Por isso, com certeza, ele certamente, escolhe.

 

Como se dá o processo de escolha

Temos clareza, no entanto, das armadilhas que podem nos enredar ao fazermos tal afirmação. Ao afirmamos que o homem escolhe, não estamos nos pautando nas concepções liberais, que destacam o aspecto da liberdade humana, da autonomia, sempre calcadas no individualismo, valorizando o indeterminismo. Não estamos nos referindo, como bem colocam Bock, Gonçalves e Furtado (2001), à existência de uma natureza humana aprioristicamente concebida, que permitiria ao indivíduo trazer consigo, à revelia da história e do social, aptidões, habilidades e gostos. Sendo coerente com a concepção de homem apresentada, essa possibilidade é negada.

Falamos, assim, em condição humana como forma de imprimirmos uma visão dialética da constituição do humano, rompendo com visões subjetivistas ou objetivistas, considerando as mediações sociais e históricas como constitutivas. Como lembra Bock:

As condições biológicas hereditárias do homem são a sustentação de um desenvolvimento sócio-histórico que lhe imprimirá possibilidades, habilidades, aptidões, valores e tendências historicamente conquistadas pela humanidade e que se encontram condensados nas formas culturais desenvolvidas pelos homens em sociedade. (2001, p. 28)

No entanto, ainda com a preocupação de nos afastarmos de visões, entendidas por nós como naturalizantes, vemos a necessidade de discutirmos a concepção de vocação. Ao buscarmos sua definição, encontramos: "disposição natural e espontânea que orienta uma pessoa no sentido de uma atividade, uma função ou profissão" (Houaiss, 2001, p. 2877). Freqüentemente, em trabalhos de orientação profissional realizados por nossa equipe,1 ouvimos os adolescentes afirmarem que todos temos que seguir nossa vocação e que devemos descobri-la, como algo que está inscrito e naturalmente dado.

Tal concepção se opõe à visão da construção histórica do sujeito, colocando-o como obra da natureza. E, mais do que isso, ao adotarmos a concepção de vocação, anulamos do homem a condição de sujeito ativo e criamos uma ilusão que provoca a sujeição social. Como colocam Emmanuele e Cappelletti:

[...] a crença na existência tangível de uma vocação oferece resguardo ante a insegurança que gera a busca de um lugar e uma posição a ocupar no futuro, em um mundo supostamente adulto, cuja cultura regula a produção de bens mediante a aparência de uma eficiente distribuição do trabalho. (2001, p. 48)

Colocadas tais ressalvas, voltamos a afirmar que o sujeito escolhe e que o ato de escolher é uma das expressões únicas, singulares, sociais e históricas do sujeito, revelador de sua subjetividade. Segundo Vygotski (1991b), o que mais caracteriza o domínio da própria conduta humana é a escolha, e essa é a essência do ato volitivo. Para o autor, falar de escolha significa falar de um processo complexo e fundamental para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Assim, coerentes com as proposições do autor, que afirma que a compreensão do homem se dá pela busca da gênese social do individual, se quisermos apreender o processo de escolha, temos que focar as mediações sociais e históricas constitutivas de tal processo e observar como o sujeito configura tais determinações. A discussão sobre escolha só pode ser enfrentada se situada na trama de um debate que considere o histórico, o social, o ideológico e o subjetivo como elementos, ao mesmo tempo, diferenciados e inseparáveis.

Temos a clareza, também, de que existem diferentes qualidades de escolha. Assim, para compreendê-las, precisamos, no processo da orientação profissional, saber o conhecimento que o sujeito tem, o conhecimento que pensa que tem, o conhecimento que não tem, aquele que acredita que não tem, o que escolhe e o que deixa de escolher e, é claro, apreender as condições vividas pelo sujeito. Concordamos com Savateur (2003), quando afirma que não se pode negar que existam escolhas e, portanto, vontade, mas em alguns momentos a vontade é "forçada" a optar por algo que, em outro contexto, jamais seria escolhido. A história dá exemplos do que poderíamos denominar "escolhas forçadas"; com isso não estamos negando que todas as escolhas implicam conflito, perdas, alguma tensão para o sujeito. No entanto, a forma como é vivida, ou seja, o sofrimento, a tensão, as dúvidas, as perdas, varia de intensidade, dependendo de muitos fatores, como a qualidade e a quantidade das informações obtidas sobre os elementos envolvidos - gerando maior ou menor segurança para o sujeito que escolhe -, as condições subjetivas do sujeito no momento da escolha, as conseqüências da escolha, as condições sociais em que a escolha se dá, etc.

As escolhas, assim entendidas, mesmo que com qualidades e com formas diferentes, sempre acontecem. Estamos, com isso, dizendo que atuar é escolher. Como lembra Heller: "o sentir - seja positiva ou negativamente, sempre significa estar implicado em algo, a implicação vai assim ser vista como um fator constitutivo e inerente do atuar e do pensar" (1985, p. 74). E por que não dizer isso também do escolher? O homem sempre tem, portanto, uma avaliação sobre o mundo, avaliação essa que orienta sua ação e, assim, suas escolhas, que, como afirma Savateur, "consistem em conjugar adequadamente conhecimento, imaginação e decisão no campo do possível" (2003, p. 35).

Para melhor apreendermos a complexidade dessa questão, lembramos a discussão realizada por Vigotski (2001a) sobre a importância das "tendências afetivo-volitivas" para a compreensão das ações humanas. Com isso, pretendemos evidenciar que, para compreendermos o processo de escolha e suas formas de constituição, devemos buscar aquilo que mobiliza o sujeito, aquilo que, segundo o autor, teria o poder de explicar os "porquês" das ações humanas.

Dessa forma, na nossa prática de orientação profissional, não vamos olhar o sujeito numa perspectiva positivista, que se contenta com as aparências, nem numa perspectiva racionalista, que nega as emoções ou as colocam como epifenômenos da cognição. Ressaltamos, primeiramente, a necessidade de não nos determos na aparência, mas na apreensão do processo de constituição das escolhas. Como lembra Vigotski (2000), não devemos nos deter na compreensão dos objetos, mas dos processos. Assim, nossas perguntas são: Por que ele sente, age e pensa assim? Por que ele faz esta escolha? Qual o processo de constituição desta escolha? Com essas perguntas, podemos desvelar as verdadeiras relações que subjazem aos processos.

No que se refere à negação da perspectiva racionalista, vemos como fundamental, para a compreensão das escolhas, o entendimento do significado e da importância do que denominamos a unidade contraditória entre o simbólico e o emocional. As emoções não são, portanto, compreendidas como efeitos, mas como elementos constitutivos da subjetividade humana, sendo assim, essenciais para a compreensão da escolha. Trabalhamos com a idéia da indissociabilidade entre objetivo/subjetivo e entre afetivo/cognitivo, correndo o risco de se fechar definitivamente o caminho para a explicação das determinações do próprio pensamento, caso isso não seja feito.

Dessa maneira, podemos afirmar que o sujeito escolhe, mas que esse processo é multideterminado e emocionado, frisando que determinação, aqui, é entendida como elemento essencial e constitutivo do ser e não como numa relação de causa e afeito. Mas como apreender esse processo? Como apreender as tendências afetivo-volitivas?

Como primeiro passo para a compreensão do processo de escolha, destacamos a necessidade de considerarmos a relevância da esfera motivacional. Vygotski (2001), Leontiev (1978), Rey (2003) e Maura (1995) são alguns dos autores que afirmam que a análise do pensamento - sempre emocionado - pressupõe, necessariamente, a revelação das necessidades e dos motivos que orientam seu movimento. Assim, para que possamos apreender a escolha, mediação e mediadora desse pensamento, agregamos, inicialmente, nestas reflexões, a categoria "necessidade".

As necessidades estão sendo entendidas como um estado de carência do indivíduo, que o mobiliza e que leva a sua ativação com vistas a sua satisfação, dependendo, é claro, de suas condições de existência. As necessidades, desse modo, jamais podem ser compreendidas como naturais e a-históricas, mas engendradas no e pelo movimento histórico, social e político. Temos, assim, que as necessidades se constituem e se revelam a partir de um processo de configuração das relações sociais, processo esse que é único, singular, subjetivo e histórico ao mesmo tempo.

É fundamental ressaltarmos que, pelas características do processo de configuração, o sujeito não tem, necessariamente, o controle e, muitas vezes, a consciência do movimento de constituição de suas necessidades. Assim, tal processo só pode ser entendido como fruto de um tipo específico de registro cognitivo e emocional, ou seja, a constituição das necessidades se dá de forma não necessariamente intencional, tendo nas emoções um componente fundamental. Portanto, podemos afirmar que nossos desejos provêm de nossas necessidades, ainda que não elejamos o que nos é necessário e, em última instância, podemos dizer que pensar sobre nós mesmos significa pensar sobre nossas necessidades.

Evidencia-se, desse modo, a complexidade desse processo, marcado especialmente pela força dos registros emocionais, geradores de um estado de desejo e tensão que mobiliza o sujeito, cria experiências afetivas e, como atividade psíquica, tem papel regulador.

Essas necessidades, vividas como estado dinâmico, que provocam e sustentam a atividade, ainda não dão uma direção ao comportamento. Maura (1995) analisa tal questão, afirmando que as necessidades só adquirem conteúdo específico no mundo circundante, isto é, na relação com o social elas conquistam seu conteúdo específico. Esse processo, de ação do sujeito no mundo a partir das suas necessidades, só vai se completar quando o sujeito significar algo do mundo social como possível de satisfazer suas necessidades. Nesse momento, tal objeto/fato/pessoa vai ser significado e vivido como algo que impulsiona e direciona, sendo denominado motivo para ação do sujeito na direção da satisfação de suas necessidades. Como alerta Vigotski (1991, v. III), ao discutir "O domínio da conduta", o que está em jogo não é uma luta entre estímulos; os fatos e os fenômenos da realidade devem ser vistos como motivos, porque são assim significados pelo sujeito ou, poderíamos dizer, porque adquirem um determinado sentido subjetivo2 para o sujeito. Importante frisar, para que não compreendamos tais categorias de maneira dicotômica ou de maneira causal, que necessidades e motivos são elementos de um mesmo processo que culmina na ação do sujeito. Destacamos, inclusive, que a separação e a distinção desses dois elementos apenas ocorre para que possamos apreender e iluminar com mais precisão o movimento que leva o sujeito à ação de escolher. Esse processo é, sem dúvida, extremamente complexo, marcado por uma multiplicidade de possibilidades de configuração de motivos e, portanto, de sentidos, claro que sempre dependendo das condições subjetivas e objetivas. Desse modo, o homem constitui formas de enfrentar a realidade confrontando-a, comparando-a, significando-a a partir das suas condições subjetivas, que, sem dúvida, são mediadas pela realidade social e, nesse movimento, constitui motivos e sentidos contraditórios, frágeis muitas vezes, mas que impulsionam e marcam suas atividades.

A possibilidade de realizar uma atividade que vá na direção da satisfação das necessidades modifica o sujeito, criando novas necessidades e novas formas de atividade. Reafirmamos, dessa forma, que a necessidade não conhece seu objeto de satisfação, ela completa sua função quando "descobre" na realidade social tal objeto. Esse movimento define-se, segundo Rey (2003), como a configuração das necessidades em motivos. Com isso, estamos dizendo que tais motivos constituem-se como tal somente no encontro do sujeito com a realidade social a ser significada, isto é, no momento em que o sujeito a configurar como possível de satisfazer suas necessidades.

Nossa experiência com orientação profissional tem permitido uma aproximação e apreensão - ainda que parcial - desse processo, no qual necessidades constituídas subjetiva e historicamente pelos jovens, fluídas e pouco claras para eles próprios e, conseqüentemente, para os orientadores, configuram-se em motivos. Vemos tal processo como fundamental, pois se constitui num momento privilegiado para que o sujeito (com a ajuda do orientador) se aproprie de suas determinações, vivências, história, processo de significação e, por conseguinte, da eleição de motivos para a ação.

Correndo o risco de simplificarmos um processo bastante complexo, dinâmico e dialético, apresentamos a seguir alguns exemplos que talvez ilustrem o processo acima comentado. A partir do contato com os jovens, inclusive, por conta de atividades que estimulam tais reflexões, verifica-se, muitas vezes, falas que expressam, mesmo que de maneira pouco clara e confusa, conteúdos reveladores de necessidades de afeto, de atenção, de reconhecimento, de conhecimento, etc. Tais necessidades que, obviamente, são vividas de forma singular por cada um, os mobilizam e criam estados de tensão e de desejo, mas é numa situação concreta, ante as informações disponibilizadas, as experiências vividas e as estratégias especificamente organizadas, que o sujeito, por meio de um processo de significação, elege objetos, situações e atividades como aqueles que podem satisfazer algumas de suas necessidades e, aí, as necessidades ganham cara, cor, conteúdo e se configuram em MOTIVOS para ação.

Estamos dizendo que a realidade não só é o elemento fundamental que constitui as necessidades, como também suas formas de satisfação. Mas não podemos deixar de frisar que é o sujeito que significa e, assim, elege o objeto/situação que tem a possibilidade de satisfazê-lo. Nesse momento, necessidades, que eram históricas, subjetivas, fluídas, genéricas e sem conteúdo específico, configuram-se em motivos para a ação, impulsionam e orientam o sujeito para determinadas escolhas.

Como um exemplo, apontamos um jovem que expressa, de maneira mais intensa, a necessidade de cuidar do outro e de fazer o bem. Esse jovem, no processo de orientação, após as discussões e as informações recebidas, aponta a atividade de advogado como uma de suas possibilidades de escolha, revelando, mesmo que de forma não muito clara, que tal profissão atende àquilo que deseja, poderíamos dizer, que necessita.

Podemos levantar como hipótese, a ser investigada e trabalhada no processo de orientação, que tal necessidade (apesar de sua fluidez e de sua complexidade, que definimos como "cuidar do outro") encontra na profissão de advogado a possibilidade de sua satisfação. Nossa tarefa resume-se, então, a desvelar os porquês, os fundamentos dessa relação, além de outras possíveis relações que possam vir a se configurar. Advocacia, nesse caso, pode surgir para o sujeito e ser significada por ele como uma profissão que cria as possibilidades de cuidar do outro, significação essa carregada de muita valoração e que talvez traga em si uma complexidade de vivências emocionais constituidoras de sentidos. Desse modo, a profissão de advogado tornar-se-ia um motivo para a ação.

O que estamos propondo é que, ante as colocações de um jovem que, como no exemplo dado, anuncia uma aproximação com determinada carreira, devemos levá-lo a refletir sobre os porquês dessa aproximação. Freqüentemente, ouvimos respostas como: porque gosto, porque é legal, porque me realizo, porque gosto de ajudar os outros. No entanto, desejamos que ele vá além dessa impressão imediata, dessa justificativa, muitas vezes sem maior reflexão ou fundamento. Esperamos que ele entre num processo de múltiplas indagações, questionando-se por que gosta, por que quer ajudar o outro e por que acredita que seguindo esta ou aquela profissão satisfaz tal necessidade.

Vemos, nesse movimento, as possibilidades do sujeito apropriar-se de parte (pois esse processo é sempre parcial) da história da constituição de suas necessidades. Acreditamos que esse processo de apropriação, tendo como elemento importante a oferta de novas informações, pode significar a desconstrução de concepções ideologizadas, fantasias e impressões mal definidas e sem sustentação. Pode significar a apropriação, por parte do sujeito, de sentidos pouco claros até então ou mesmo a constituição de novos sentidos, ou seja, que aspectos da realidade, objetiva e subjetiva, passem a ser afetiva e cognitivamente vividos de outra forma.

Segundo a definição de Vigotski (2001) sobre sentidos, isto é, que novos e diferentes eventos psicológicos sejam suscitados na dinâmica psicológica do sujeito a partir do processo de apropriação, fica claro que, ao propormos esta atividade de questionamento das necessidades, são questionadas, também e simultaneamente, as formas, até então pensadas pelos jovens, de satisfação delas. Esse é um aspecto muito importante, pois entendemos como fundamental o estabelecimento de uma visão crítica e fundamentada sobre o mundo do trabalho, suas ofertas, contradições e armadilhas, para que o jovem possa fazer escolhas que não só expressem um movimento de transformação dele mesmo, mas que gerem transformações na realidade social.

É necessário ter a clareza de que o processo de constituição das necessidades, motivos e sentidos, ocorre simultaneamente, num processo de mútua determinação, de forma complexa e contraditória, tensionado pelo afetivo e pelo simbólico, e sempre apropriado parcialmente pelo sujeito.

Esses momentos de configuração de sentidos e de motivos para a ação, constituem-se numa síntese integradora, num momento novo, numa nova configuração; quando uma subjetividade (com suas necessidades historicamente constituídas) depara-se, na atividade, com uma situação particular, com toda sua riqueza ou não de informações e decide por um caminho.

Temos aí motivos configurados que impulsionam o querer e o agir em direção a alguma escolha, que, ao mesmo tempo, altera a realidade social e o sujeito.

Além disso, é importante considerar que o processo de constituição dos motivos depende, tanto das condições objetivas, das informações disponíveis, das condições de acesso, etc., como das condições subjetivas - as formas próprias do sujeito de configurar o real neste momento. Vygotski (1991b) afirma que a luta dos motivos é intensa e começa muito antes da ação de escolha propriamente dita. Nessa luta, muitas vezes, quando a dificuldade de escolher é grande, quando os objetos significados como motivadores têm, para o sujeito, o mesmo peso, ele pode recorrer a motivos "auxiliares" e, assim, se dispõe, por exemplo, a confiar na "sorte", que seria o motivo auxiliar. Nessa situação, o sujeito atribui a um estímulo neutro, no caso a "sorte", o poder e a força dos motivos; portanto, o que vai impulsionar sua ação é a "sorte", sendo ela que motiva a ação.

 

Objetivos da orientação profissional

Colocados esses exemplos, torna-se fundamental tecermos alguns comentários sobre o papel, entendido por nós, que deva ser cumprido pelo orientador profissional. Os exemplos colocados apontam significados e sentidos expressos pelos jovens que, com certeza, têm a ideologia, os valores sociais, as condições econômicas e políticas, e a história de vida como elementos constitutivos. Desse modo, cabe ao orientador criar condições para que o sujeito possa se apropriar das mediações constitutivas das suas necessidades, ou seja, que se aproprie afetiva e cognitivamente dos elementos que o constituem, tendo claro que essa apreensão é sempre parcial. Pretende-se, com isso, desencadear um processo que também favoreça a reflexão sobre os fatos, objetos, fenômenos que podem ser significados como possíveis de satisfazer suas necessidades, desenvolvendo assim uma visão crítica ante a realidade social e as próprias necessidades constituídas.

Isso posto, vemos na orientação profissional a possibilidade de criarmos uma intervenção que permita ao sujeito, a partir de informações, de reflexões e de vivências sobre determinadas questões - tais como que trabalho escolher? que futuro quero para mim? o que é uma boa escolha? o que eu gosto? por que gosto? -, a constituição de um processo de apropriação de suas determinações e necessidades, de produção de novos sentidos e ressignificação de outros.

Alertamos aqui para a complexidade do que denominamos processo de ressignificação ou constituição de novos sentidos. Como já afirmamos, tal processo é extremamente complexo e não pode ser entendido como simplesmente racional, dicotômico, linear. A constituição de novos sentidos ocorre, senão por uma "descoberta do indivíduo" de algo que já estava de alguma forma posto, presente em sua subjetividade, como uma nova síntese afetiva e cognitiva, que surge a partir de uma nova configuração que se articula ante novas experiências.

Para apreender tais sentidos, é fundamental que consideremos a dialética objetividade-subjetividade como facilitadora ou não desse processo. Como afirma Aguiar, "num processo de ressignificação, a realidade social encontra múltiplas formas de ser configurada, com a possibilidade de que tal configuração ocorra sem desconstruir velhas concepções e emoções" (2000, p. 180). Temos situações em que o indivíduo, mesmo que num processo de apropriação, tanto de novas informações sobre a realidade social como sobre si mesmo (suas necessidades, contradições, afetos), não consegue imprimir novas formas de agir e de escolher que sejam coerentes com o novo movimento que se esboça. Como nos lembra Aguiar, "poderíamos dizer que esse indivíduo vive uma cisão entre o pensar, agir e sentir, cisão essa constituída a partir de uma nova configuração, marcada pela tensão entre a possibilidade do novo e da permanência" (2000, p. 180).

Tal situação, dependendo das condições objetivas e subjetivas, pode caminhar para a superação das contradições presentes no momento, gerando o aumento da potência do sujeito para a ação e, assim, para uma escolha mais fundamentada no conhecimento de si e do outro ou para o não desvelar das determinações, para o estereótipo, o ideológico e o familiar. Não podemos nos esquecer de que o pensamento, sempre emocionado, não pode ser entendido como algo linear, fácil de ser captado, pois não é algo pronto e acabado. É interessante quando Vigotski (2001a) afirma que o pensamento, muitas vezes, termina em fracasso, não se converte em palavras. Com essa afirmação, podemos entender que vivências ocorrem, que um processo está acontecendo, mas que não se expressa claramente ou nem é significado clara e objetivamente e, assim, podemos concluir que as vivências são muito mais complexas e ricas do que parecem.

No tipo de intervenção proposta, mais do que a possibilidade de se apropriarem de novos conhecimentos e fazerem uma escolha profissional, cria-se a condição para que se descubram através do outro, ressignificando a si mesmos e a realidade. Como lembra Adorno (1995), entre o homem e aquilo que deveria ser experimentado existe uma camada estereotipada, à qual é preciso se opor. Temos, assim, que romper com a repetição e com a mera apropriação, criando condições para que esse processo seja efetivamente educacional, entendendo educação como Vygotski, ou seja, "refundição do ser", uma educação para a contradição e para a resistência (2000, p. 458).

Reafirmamos mais uma vez que o indivíduo escolhe, mas nunca livre das necessidades, dos motivos e, assim, das determinações. Vygotski, citando Hegel, afirma que a liberdade não consiste em uma independência imaginária a respeito das leis da natureza, senão no conhecimento dessas leis e na possibilidade, baseada em tal conhecimento, de o sujeito fazer com que essas leis da natureza atuem para determinados fins (1991b, p. 300). Tal concepção, certamente, não nos impede de afirmar a importância da autonomia como algo que, como lembra Paulo Freire (1996), vai se constituindo na experiência de várias decisões que vão sendo tomadas no processo e no vir-a-ser. Falamos, assim, de uma escolha livre, não das determinações, mas de qualidade, que se aproprie das contradições, que revele resistência e emancipação, que siga a lógica da não uniformização.

Para finalizar, vemos como importante destacar que acreditamos num processo de orientação profissional em que seja fundamental a reflexão sobre a relação utopia e escolha. Como bem coloca Dussell (2000), a utopia nos possibilita a crítica à factibilidade, ao conjuntural, nos possibilita romper com os horizontes dados.

Vemos o processo de escolha de uma profissão como uma possibilidade de ruptura, de transformação de valores, de crenças e de formas de ação. E, assim, utópico, porque talvez contenha elementos e expectativas que ainda não sejam possíveis, como afirma Mannheim: "muitas vezes as utopias são verdades prematuras" (1986, p. 227). Assim, como afirma Bock (2002), "a escolha é um ato de coragem", pensar uma escolha é pensar no futuro. Certamente, nunca se tem certeza antes, "pois o curso da realidade histórica que determinará esta vitória repousa ainda no futuro" (Savateur, 2003, p. 284).

A escolha, de um modo geral, e, nesse caso, a profissional, seguramente, é atravessada pela ideologia e pelo ocultamento. Cabe a nós, como orientadores, tensionar tal processo e injetar realidade na sua dinâmica, ao mesmo tempo questioná-la, questionando a ordem social dada e apontando a utopia, ou seja, aquilo que até o momento parece irrealizável. A escolha de uma profissão pode vir a ser mais do que a decisão sobre que carreira seguir, pode se constituir num projeto pessoal, mas que se constitui nas e pelas relações sociais e históricas e que, dessa forma, integra-se num projeto maior de transformação social.

 

Referências

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Recebido em novembro de 2005.
Aprovado em agosto de 2006.

 

 

1 Pesquisa realizada por Ozella e Aguiar em 2003. Entre os 857 adolescentes pesquisados, a categoria mais presente, considerando-se as classes sociais, gênero e raças, foi a que apontava a adolescência como algo natural do ser humano.
2 A categoria "sentido subjetivo" encontra-se mais profundamente discutida em Rey (2003).

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