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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  n.24 São Paulo jun. 2007

 

Contribuições da teoria da atividade para o debate sobre a natureza da atividade de ensino escolar

 

Contributions of the activity theory to the debate about the nature of the activity of school teaching

 

Contribuciones de la teoria de la actividad para el debate sobre la naturaleza de la actividad de la educación y la enseñanza

 

 

Nadia Mara EidtI; Newton DuarteII

IDoutoranda em Educação Escolar pela Unesp/Araraquara, Brasil E-mail: nadiaeidt@uol.com.br
IIPós-Doutorado, University of Toronto, U.T., Canadá; Livre-docência pela Unesp/Araraquara, Brasil Docente, orientador de Pós-graduação e chefe do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Unesp/Araraquara E-mail: newton.duarte@uol.com.br

 

 


RESUMO

O presente trabalho integra uma pesquisa de doutorado em andamento e objetiva analisar a relação entre educação escolar e desenvolvimento psicológico à luz do referencial da teoria da atividade, também conhecida como psicologia histórico-cultural ou sócio-histórica. Nessa perspectiva, tem-se que uma correta organização da aprendizagem conduz ao desenvolvimento psicológico da criança e, ainda, que um ensino promotor do desenvolvimento depende do que se adquire e de como se adquire. Devido à relevância da educação escolar para o desenvolvimento da personalidade dos alunos, entende-se que tais postulados demandam estudos mais aprofundados; o que implica analisar, dentre outros aspectos: a qualidade do ensino escolar, a atividade de ensino escolar e a atividade de estudo.

Palavras-chave: teoria da atividade; psicologia histórico-cultural social; educação escolar; desenvolvimento psíquico.


ABSTRACT

This paper presents preliminary results from a doctorate research in course and intends to analyze the relationship between school education and psychological development according to the standpoint of Activity Theory - also called Historical-Cultural Psychology or Social-Historical Psychology. This theoretical perspective points that the correct organization of the educational process conducts to child psychological development. Besides, the promotion of psychological development as a result of instruction depends on what is acquired and how it is acquired by the child. Due to the significance of instruction for students' personality development process, we consider that these theoretical principles must be deeply investigated, including the analyses of aspects such as the quality of instruction, teaching activity and the activity of studying.

Keywords: Activity Theory; Historical-Cultural Psychology; School Education; Psychological Development.


RESUMEN

El presente artículo forma parte de una tesis de doctorado que se halla en curso, y cuyo objetivo es analizar la relación entre la educación escolar y el desarrollo psicológico del educando, teniendo como referencia, la Teoría de la Actividad, también conocida como Psicología Histórica-Cultural o Socio-Histórica. En esa perspectiva se afirma que, una correcta organización del aprendizaje, conduce al desarrollo mental del niño, y que la enseñanza motivadora del desarrollo psicológico depende, tanto de lo que se adquiere y de cómo se adquiere. Dada la relevancia de la educación escolar para el desarrollo de la personalidad de los alumnos, se entiende que tales postulados demandan estudios más profundos, lo cual implica analizar además de otros aspectos, la calidad de la enseñanza escolar y la actividad de dicha enseñanza, como así también la actividad de estudio.

Palabras clave: Teoría de la Actividad; Psicología Histórica-Cultural; educación escolar; desarrollo psicológico.


 

 

Introdução

O presente trabalho integra uma pesquisa de doutorado em andamento e objetiva discutir a natureza da atividade de ensino, visando a efetiva promoção do desenvolvimento psicológico da criança à luz do referencial da teoria da atividade, também conhecida como psicologia histórico-cultural ou sócio-histórica. Essa discussão assume grande importância na atualidade, especialmente se forem considerados os elevados índices de fracasso escolar verificados na realidade brasileira.

Vigotski1 (1991) deixa claro que não é qualquer ensino que promove o desenvolvimento psíquico. Defende a importância do "bom ensino", ou seja, aquele que se adianta ao desenvolvimento: "O ensino seria totalmente desnecessário se pudesse utilizar apenas o que já está maduro no desenvolvimento, se ele mesmo não fosse fonte de desenvolvimento e surgimento do novo" (ibid., 2001, p. 334).

Além disso, Vigotski (1998) postula que "(...) uma correta organização da aprendizagem da criança conduz ao desenvolvimento mental" (p. 115). E ainda: "O aprendizado adequadamente organizado resulta em desenvolvimento mental e põe em movimento vários processos de desenvolvimento que, de outra forma, seriam impossíveis de acontecer" (ibid., p. 118). Disso compreende-se que a qualidade do desenvolvimento psicológico não é inerente a qualquer ensino, mas depende de como ele é organizado. Ou seja, todo o ensino escolar promove, em alguma medida, as capacidades psicológicas da criança; porém, a qualidade dessas capacidades deve ser analisada à luz do modo como se organiza e desenvolve a atividade docente.

A prática pedagógica coloca a tarefa de aperfeiçoar o conteúdo e os métodos de trabalho didático educativo com as crianças, de maneira que exerça uma influência positiva no desenvolvimento de suas capacidades (por ex., do pensamento, da vontade, etc.) e que, ao mesmo tempo, permita criar as condições indispensáveis para superar os atrasos, frequentemente observados nos escolares, de uma ou outras funções psíquicas. (Davidov, 1988a, p. 47)

A citação de Davidov contraria o discurso hegemônico na psicologia tradicional, em que o aluno se torna refém de suas próprias limitações cognitivas ou emocionais - seja por meio de disfunções cerebrais ou de personalidade -, o que cercearia, portanto, o processo de desenvolvimento e de aprendizagem de uma grande parcela de alunos na idade escolar. Na passagem acima, o autor postula que é justamente por meio da atividade de ensino corretamente organizada que são colocadas as condições para superação do desenvolvimento parcial de alguma das funções psicológicas superiores, compreendidas como um produto sócio-histórico, ou seja, engendrado pelas relações de objetivação e apropriação do patrimônio cultural construído pela humanidade através dos tempos. O substrato orgânico, biológico, é a base do desenvolvimento mental, mas de modo algum determina esse desenvolvimento. Nas palavras de Leontiev (apud Golder, 2004) "não é o cérebro que faz a vida, mas sim a vida que faz o cérebro" (p. 42).

Nessa direção, dando continuidade aos postulados vigotskianos, Leontiev (1975) ocupou-se em investigar sob quais condições a aprendizagem dos conteúdos escolares se dá de forma consciente para as crianças. Ele afirma que a efetiva aprendizagem depende de duas questões fundamentais: o que a criança conscientiza daquilo que lhe é ensinado e como esse conteúdo se torna consciente para a criança. O autor afirma que essas questões parecem ser demasiadamente simples, e, justamente por isso, geralmente poucas atenções lhes são dispensadas, o que sugere a necessidade de maiores investigações acerca do assunto. Insistindo acerca do mesmo aspecto, Kostiuk (1991) postula que um ensino promotor do desenvolvimento depende "do que se adquire e de como se adquire" (p. 24), o que, em nosso entender, implica analisar, dentre outros aspectos: a qualidade do ensino escolar, a atividade de ensino escolar e a atividade de estudo.

 

O que se adquire: a qualidade do ensino escolar e o desenvolvimento psíquico

Na sociedade de classes, a apropriação da riqueza produzida pela humanidade se dá de forma privada. Uma das contradições do capitalismo é que seu desenvolvimento permitiu que as possibilidades para a humanização do gênero humano se ampliassem como nunca na história, produzindo uma existência humana cada vez mais rica e universal. Porém, essa existência tem sido gerada às custas da desumanização de grande parte da população (Marx, 1986). Leontiev (1978) afirma que a maioria esmagadora das pessoas só tem acesso à apropriação das aquisições produzidas pela humanidade dentro de limites miseráveis. Em decorrência da divisão social do trabalho, o desenvolvimento das faculdades humanas e da personalidade se dá de modo parcial, unilateral, já que há uma cisão entre a riqueza material e intelectual produzida pela humanidade ao longo da história e as possibilidades de apropriação dessa riqueza por todos os indivíduos.

Em um dos extremos da sociedade, a divisão entre o trabalho intelectual e o físico, a separação entre a cidade e o campo, a exploração cruel do trabalho da criança e da mulher, pobreza e a impossibilidade de um desenvolvimento livre e completo do pleno potencial humano, e no outro extremo, ócio e luxo; disso tudo resulta não só que o tipo humano originalmente único torna-se diferenciado e fragmentado em vários tipos nas diversas classes sociais que, por sua vez, permanecem em agudo contraste umas às outras, mas também na corrupção e distorção da personalidade humana e sua sujeição a um desenvolvimento inadequado, unilateral em todas estas diferentes variantes do tipo humano. (Vygotsky, 2004)

A unidade da espécie humana parece ser praticamente inexistente não em virtude das diferenças de cor da pele, da forma dos olhos ou de quaisquer outros traços exteriores, mas sim das enormes diferenças nas condições e no modo de vida, da riqueza da atividade material e mental, do nível de desenvolvimento das formas e aptidões intelectuais. (Leontiev, 1978, p. 274)

Na passagem acima, Vigotski e Leontiev chamam a atenção para o fato de que a personalidade não pode ser corretamente entendida como um processo universal, igual para todos os homens, já que, lembrando Marx (1986) "a verdadeira riqueza espiritual do indivíduo depende da riqueza de suas relações reais" (p. 46). Em uma sociedade de classes, o acesso a essa riqueza espiritual está condicionado ao lugar que o indivíduo ocupa no interior das relações sociais de produção da vida material.

Leontiev (ibid.) alerta para o fato de que a psicologia tradicional colocou o problema ao contrário, na medida em que considerava, por exemplo, que as aptidões científicas eram condição para a apropriação do conhecimento científico, ao invés de considerar que a apropriação dos progressos da ciência é que seria responsável pela formação das aptidões científicas. Ou ainda, o talento artístico seria a condição para a apropriação da obra de arte. A partir de uma perspectiva materialista histórica e dialética, entende-se que a apropriação da arte é justamente a condição para o desenvolvimento do talento artístico. Na síntese realizada por Leontiev (ibid.) temos que

O verdadeiro problema não está, portanto, na aptidão ou inaptidão das pessoas para se tornarem senhores das aquisições da cultura humana, fazer delas aquisições da sua personalidade e dar-lhe a sua contribuição. O fundo do problema é que cada homem, cada povo tenha a possibilidade prática de tomar o caminho de um desenvolvimento que nada entrave. (p. 283)

Para Leontiev (1967), a criança se encontra com um mundo criado e transformado pela atividade humana das gerações precedentes. Ela não pode simplesmente "estar" neste mundo, precisa viver e atuar sobre ele, usando instrumentos, o idioma e a lógica já elaborados pela sociedade, além de não permanecer indiferente às criações artísticas. Ele evidencia que a criança não possui "aptidões preparadas de antemão" para realizar essas tarefas, como, por exemplo, falar um determinado idioma ou perceber relações geométricas. A formação dessas aptidões acontece em consonância com o processo de apropriação, ou seja, de domínio, pelo indivíduo, do patrimônio cultural criado pela humanidade ao longo do processo histórico.

O processo principal que caracteriza o desenvolvimento psíquico da criança é um processo específico de apropriação das aquisições do desenvolvimento das gerações humanas precedentes (...). Esse processo realiza-se na atividade que a criança emprega relativamente aos objetos e fenômenos do mundo circundante, nos quais se concretizam estes legados da humanidade. (Leontiev, 1978, p. 323 - grifos nossos)

Nesse sentido, para a teoria da atividade, a função da escola é a de socialização do conhecimento científico, filosófico e artístico produzido pela humanidade através dos tempos, em suas formas mais elevadas. A atividade de ensino escolar deve, portanto, visar uma ampliação dos horizontes culturais dos alunos, mediante a apropriação dos conhecimentos científicos, produzindo novas necessidades (Marx, 2004) e tendo como meta o desenvolvimento da sua personalidade como um todo (Duarte, 2001a).

Pela ausência de uma adequada compreensão acerca da influência do conhecimento científico transmitido pelo professor na formação do psiquismo da criança, generalizou-se o preconceito segundo o qual uma educação escolar que priorizasse a transmissão-assimilação dos conhecimentos científicos pelo professor se converteria em uma educação "bancária", "conteudista" e teria como conseqüência a formação de indivíduos acríticos e passivos.

Embora seja inegável a existência generalizada de formas de ensino inadequadas ao objetivo de promoção do desenvolvimento psíquico dos alunos, seria um equívoco concluir-se que exista uma insuperável identidade entre transmissão do conhecimento e aprendizagem mecânica, superficial e passiva. Há necessidade do aprofundamento dessa discussão visando uma maior precisão dos conceitos empregados. Por exemplo: no nosso entender, o "bom ensino", na perspectiva da teoria da atividade, pode ser considerado um processo no qual a transmissão do conhecimento científico transformado em conteúdo curricular pelo professor e sua apropriação ativa pelos alunos, formam uma unidade dialética, cujos pólos do ensino e da aprendizagem relacionam-se pela mediação da atividade de pensamento "condensada" no conhecimento científico.

Para tratar da natureza da apropriação do conhecimento escolar, faremos uma analogia com o processo de apropriação de instrumentos, tal como postulado por Marx (1986) e posteriormente por Leontiev (1978). Ao se apropriar de um instrumento, o homem incorpora as necessidades e capacidades humanas ali objetivadas por gerações anteriores. Isso significa que os objetos humanos não são somente físicos, mas neles há atividade, experiência humana acumulada. A apropriação dessa riqueza acumulada nos objetos é um elemento fundamental no processo de humanização dos indivíduos.

Do mesmo modo, o conhecimento científico não equivale a um mero somatório de classificações e conceituações das várias ciências, mas é uma síntese da atividade material e intelectual produzida pelas gerações anteriores. Sua apropriação está estritamente ligada uma efetiva reorganização dos processos psíquicos das crianças, ou seja, a um aumento na qualidade de generalizações conceituais que a aprendizagem confere ao pensamento, ao surgimento de formas especiais de conduta, à modificação da atividade das funções psíquicas e à criação de novos níveis de desenvolvimento humano (Vigotski, 1995). Para Kostiuk (1991), o domínio de conceitos cada vez mais complexos favorece o desenvolvimento da abstração e da generalização, leva à formação e ao aperfeiçoamento de operações lógicas e ao desenvolvimento da curiosidade e independência na apropriação do conhecimento.

Portanto, se, para Leontiev (1978), "A aptidão para o pensamento lógico só pode ser resultado da apropriação da lógica, produto do objetivo da prática social da humanidade" (p. 169-170), podemos inferir que o mesmo valha para as demais funções psicológicas superiores. Elas também têm sua base na apropriação do produto objetivo da prática social da humanidade e, assim sendo, devem conter as mais elevadas objetivações humanas ao longo da história, transformadas em conteúdos curriculares e ensinados a todos os alunos. A atividade de ensino não pode se restringir a transmitir ao aluno "determinados conhecimentos, a formar um mínimo de aptidões e de hábitos" (Kostiuk, 1991 p. 25), mas deve visar o desenvolvimento do pensamento dos alunos, sua capacidade de analisar e generalizar os fenômenos da realidade material, bem como de raciocinar corretamente. O autor afirma que, em síntese, a escola deve desenvolver "no todo" as funções psicológicas dos alunos. Luria (1991) também postula que a educação escolar transcende em muito uma relação utilitarista com o conhecimento ao afirmar que

Quando a criança aprende a ler, na escola, a escrever, a fazer contas, quando aprende os fundamentos das ciências, assimila uma experiência humano-social, da qual não poderia assimilar nem sequer uma milionésima parte se seu desenvolvimento fosse apenas determinado pela experiência que pode alcançar mediante uma interação direta do ambiente. (pp. 79-80)

Mesmo resguardadas as grandes diferenças entre a realidade social da União Soviética e a de países da periferia do capitalismo contemporâneo, como é o caso do Brasil, vale ressaltar que não parece ser esse o objetivo das "pedagogias do aprender a aprender"2 ao postularem que o ensino deve se adequar aos interesses e necessidades imediatos e pragmáticos dos alunos, fazendo com que seu cotidiano alienado conquiste cada vez mais espaço no interior das escolas, em detrimento do ensino dos conhecimentos científicos. Tal substituição é feita em nome de um suposto respeito à individualidade e à cultura local e particular dos alunos, mas, em essência, priva-os da possibilidade de acesso à cultura humana em suas formas mais desenvolvidas.

Queremos frisar que essa educação escolar esvaziada de conteúdo não é, entretanto, destinada a todas as classes sociais. Como nos mostra Moraes (2003), na sociedade capitalista, a transmissão de conhecimentos é feita de maneira absolutamente desigual entre os membros das diferentes classes sociais.

Para alguns, exige níveis sempre mais altos de aprendizagem, posto que certas "competências" repousam no domínio teórico-metodológico que a experiência empírica, por si só, é incapaz de garantir. Para a maioria, porém, bastam as "competências" no sentido genérico que o termo adquiriu hoje em dia, e que permitem a sobrevivência nas franjas do núcleo duro de um mercado de trabalho fragmentário, com exigências cada vez mais sofisticadas e níveis de exclusão jamais vistos na história. Como se sabe, o capitalismo tornou-se um espetáculo global para a minoria. (p. 159)

Nessa mesma direção, Davidov (1988b) afirma que o conteúdo do ensino da escola burguesa tem dois níveis distintos:

O primeiro inclui uma série de aptidões e hábitos culturais gerais. Embora esse nível contenha alguns elementos de conhecimentos teóricos, em conjunto está dirigido à preparação utilitária e prática das crianças que pertencem, no geral, às camadas não privilegiadas da população. O segundo nível está ligado de uma ou outra maneira aos conhecimentos científicos e artísticos e aponta para a preparação teórica dos alunos que pertencem, em geral, aos setores privilegiados. (p. 164)

Assim sendo, entendemos que uma das tarefas de uma psicologia e de uma pedagogia comprometidas com o processo de humanização dos indivíduos é a denúncia da ampla difusão, no meio educacional, das "pedagogias do aprender a aprender" e da distância existente entre os objetivos reais e os objetivos proclamados da educação (Saviani, 1980), ou, para Kosik (2002), a não coincidência entre essência e fenômeno. Dizendo com outras palavras, essas pedagogias apresentam-se como revolucionárias e inovadoras, na medida em que criticam e até ridicularizam a pedagogia tradicional e apresentam novos pressupostos para a prática educativa. Esse suposto avanço no contexto educacional tem sido aceito como verdadeiro, sem que seja analisado em profundidade como tal educação interfere no desenvolvimento das funções psicológicas superiores e da personalidade dos alunos.

Outra tarefa de uma psicologia e uma pedagogia comprometidas com a formação plena dos seres humanos é da realização de estudos e pesquisas que forneçam as bases teóricas para o planejamento, a realização e a avaliação de propostas educacionais caracterizadas pela tentativa de superação, tanto da pedagogia tradicional (seja em sua vertente laica, seja em suas vertentes confessionais) como das "pedagogias do aprender a aprender".

 

O como se adquire: algumas considerações sobre a atividade de ensino escolar

Para Davidov (1988b), a tese que sustenta a atividade de ensino deve ser o conteúdo a ser ensinado, do qual são derivados os métodos, ou seja, os procedimentos para organizar o ensino. Ao explicitar tal postulado, o autor demonstra também a unidade existente entre os autores dessa escola de psicologia, mencionando uma passagem na qual Elkonin (apud Davidov, 1988b, p. 172) afirma que "Para nós (...) uma importância fundamental teve sua (de L. Vigotski - V. D.) idéia de que o ensino realiza seu papel principal no desenvolvimento mental, antes de tudo, através do conteúdo dos conhecimentos assimilados" (grifos do autor). Concordamos com tal postulado e entendemos que Leontiev (1975, 1978) ofereceu importantes contribuições acerca do modo como pode ser organizada a atividade de ensino, como procuraremos mostrar a seguir.

Apoiando-se nos estudos realizados por Leontiev (1975, 1978), Davidov (1998a) afirma que a atividade deve ser entendida como "uma unidade de vida do homem que abarca em sua estrutura integral as correspondentes necessidades, motivos, finalidades, tarefas, ações e operações" (p. 59).

Por motivo Leontiev (1960) define "aquilo que se refletindo no cérebro do homem excita-o a atuar e dirige essa atuação à satisfação de uma necessidade determinada" (p. 346). Destacamos que, para o autor, as necessidades, ou seja, os motivos e interesses humanos não são dados a priori desde o nascimento, mas são históricos e sociais, ou seja, são desenvolvidos nas crianças pela sociedade, a partir das condições de vida e educação. Desse modo, os interesses dos alunos não devem ser entendidos como algo natural e imutável, ao contrário, eles podem ser modificados e novas necessidades podem ser criadas ao longo do processo de escolarização.

No que se refere ao objetivo da atividade, o agir humano é sempre teleológico, dirige-se para um fim. Esse fim precisa objetivar-se em um objeto, seja ele material ou ideal. O objetivo, portanto, equivale ao resultado final da atividade.

As atividades humanas são, em sua grande maioria, atividades complexas, constituídas por várias ações conectadas umas às outras, relacionadas entre si. A ação é um processo no qual o motivo não coincide diretamente com o objetivo da atividade. Para ilustrar a relação existente entre atividade e ação, Leontiev (1975) cita o exemplo de uma pessoa que se dirige à biblioteca. Ir até a biblioteca constitui uma ação e, como tal, está dirigida, orientada para um objeto direto, concreto e determinado, ou seja, chegar até a biblioteca. Entretanto, não é esse o objetivo que impulsiona a ação desse indivíduo. Ele vai à biblioteca motivado pela necessidade de estudar uma obra literária. O autor esclarece que esse motivo é o que impulsiona a pessoa a determinar o objetivo (apropriar-se do conteúdo do livro) e, para tanto, cumprir uma ação capaz de, mesmo que indiretamente, realizá-lo (ir até a biblioteca apanhar o livro).

Além dos conceitos de atividade e ação, Leontiev (1978) utiliza um terceiro conceito, o de operação. Ele define operação como a maneira de se executar uma ação, maneira essa que depende das condições nas quais a ação é realizada.

Por operação, entendemos o modo de execução de uma ação. A operação é o conteúdo indispensável de toda a ação, mas não se identifica com a ação. Uma só e mesma ação pode realizar-se por meio de operações diferentes, e, inversamente, ações diferentes podem ser realizadas pelas mesmas operações. Isso explica-se pelo fato de que enquanto uma ação é determinada pelo seu fim, uma operação depende das condições em que é dado este fim. (pp. 303-304)

Leontiev (ibid.) exemplifica essa questão com a situação de uma pessoa que precisa memorizar um poema. Sua ação será memorizá-lo ativamente. Entretanto, como fazê-lo? Se o indivíduo está em casa, pode copiar o texto várias vezes, mas, se está andando pela rua, será necessário repetir o conteúdo do poema internamente. Em ambos os casos, a ação será a memorização, entretanto, os modos de execução dessa ação, ou seja, as operações serão diferentes, dependendo justamente das condições em que a ação é realizada.

Toda ação consciente, para se concretizar, necessita de um conjunto de operações que, anteriormente, foram ações. Em outra passagem, Leontiev (ibid.) afirma que chamamos de operação "a fusão de diferentes ações parciais numa ação única que constitui a sua transformação em operações" (p. 103). Como exemplo, podemos citar o ato de escrever. Podemos dizer que no início da apropriação da linguagem escrita, a atividade da criança consistia em uma soma de ações não automatizadas, ou seja, exigindo a constante mediação da consciência para a reprodução de cada uma das letras. Mediante a prática, o treinamento, elas se converteram em operações, tornando-se automatizadas, e dispensando, portanto, essa constante mediação da consciência.

Depois de esclarecidos os conceitos fundamentais utilizados por Leontiev (1975, 1978), apresentaremos a discussão do autor acerca de como deve ser organizado o ensino, visando a efetiva apropriação do conhecimento. Trata-se aqui da questão da formação, no aluno, da consciência de qual seja o objeto de conhecimento para o qual se dirige sua atividade de estudo, bem como da consciência dos motivos e dos fins dessa atividade.

O autor afirma que, para que haja a aprendizagem consciente, é fundamental que a criança mantenha a atenção dirigida na atividade proposta. Porém, isso não é suficiente para que a aprendizagem se processe a contento. Leontiev (1975) comprova tal afirmação com o exemplo de um aluno que deve aprender ortografia. Buscando assegurar a realização consciente dessa atividade, é solicitado que a criança execute-a da seguinte forma: leia uma adivinhação, adivinhe-a, desenhe o adivinhado e escreva debaixo do desenho o texto da adivinhação. A justificativa de tal procedimento é a de que, em princípio, o aluno deve tomar consciência do sentido da adivinhação, assim como da significação das palavras utilizadas na sentença, pois de outro modo não seria possível resolver a adivinhação. Em seguida, deve conscientizar também o conteúdo adivinhado, para poder representá-lo na forma de um desenho.

Diante de tal argumentação, Leontiev chama a atenção para a seguinte questão: afinal, em que consistia a tarefa proposta, qual era seu objetivo, o que visava? Por certo, não se tratava de ensinar a criança a adivinhar nem a desenhar, mas sim que, com a atividade proposta pelo professor, a criança aprenda ortografia. Porém, o exercício dado termina por favorecer a conscientização de outras questões, auxiliando muito pouco no domínio consciente de uma escrita correta.

O autor afirma ainda que se trata de um engano pensar que essa forma de organização da atividade de ensino constitui uma exceção no que tange à regra geral. Cita outra situação bastante ilustrativa, em que se objetiva ensinar aos alunos que nomes próprios são escritos com letra maiúscula. Porém, para tanto, lhes é dada a tarefa de escrever separadamente o nome de vacas e de cachorros. No transcorrer da tarefa proposta pelo professor, a questão central torna-se escolher quais nomes são mais adequados para cada tipo de animal. Assim, a criança pode ficar em dúvida acerca de se o nome "Matilda" é mais apropriado para uma vaca ou para uma cachorra. Leontiev (1975) afirma que, lamentavelmente, durante tal atividade, o aluno termina por conscientizar aspectos totalmente distintos do objetivo inicial da atividade proposta. Esse autor traz importantes contribuições à Psicologia Escolar e a Educação ao afirmar que

O fenômeno da não-coincidência entre o conteúdo proposto e o realmente conscientizado pela criança no processo de sua atividade didática nos situa diante de uma tarefa psicológica de maior significação geral, a tarefa de determinar qual é o objeto da consciência, o que o homem conscientiza e sob quais condições. (p. 198)

Do ponto de vista didático-pedagógico é necessário que o professor tenha clareza dos aspectos essenciais do conteúdo ensinado para, a partir disso, buscar as formas mais adequadas de condução da atenção do aluno para tais aspectos. A reprodução dos "traços essenciais da atividade (...) acumulada no objeto" (Leontiev, 1978, p. 268), em se tratando do conhecimento científico e artístico constante do currículo escolar, não ocorre de forma espontânea, requerendo a condução consciente do processo pelo professor. Nesse aspecto, são decisivas as contribuições da psicologia desde que ela desenvolva estudos voltados aos processos por meio dos quais um determinado objeto cultural torna-se alvo da consciência individual.

Diante do exposto, entendemos que cabe ao professor refletir acerca dos processos psíquicos que ele deseja mobilizar com determinado tipo de atividade e verificar se a metodologia utilizada nessa atividade é compatível com seu motivo, uma vez que, conforme Leontiev (1975)

[...] um conteúdo realmente conscientizado é aquele que se manifesta diante do sujeito como objeto para o qual está diretamente dirigida sua ação. Em outras palavras, para que um conteúdo possa ser conscientizado é mister que este ocupe dentro da atividade do sujeito um lugar estrutural de objetivo direto da ação e, deste modo, entre em uma relação correspondente com respeito ao motivo desta atividade. Este postulado tem validade tanto para a atividade interna como para a externa, tanto para a prática como para a teórica. (p. 203)

No que se refere à atividade de ensino, um outro importante ponto a ser discutido é a constituição de operações mentais. Retomando o exemplo da aprendizagem da escrita pela criança, Luria (1984) afirma que o ato de escrever depende da memorização gráfica de cada uma das letras. Esse processo ocorre por meio de uma cadeia de impulsos motores isolados que responde a apenas um elemento da estrutura gráfica. A prática faz com que essa estrutura seja radicalmente alterada, de modo que o ato de escrever se converte em uma "melodia cinética" única, pois ele não se utiliza mais da mediação da consciência para guiar o seu agir. Quando isso acontece, as ações se transformam em operações que compõem a ação de escrever. Entretanto, quando o indivíduo está aprendendo a escrever, cada uma das operações é na verdade uma ação, que contém um fim independente em si. As operações possibilitam o desenvolvimento de estruturas de pensamento cada vez mais complexas, bem como o surgimento de novas ações e, por conseqüência, de novas atividades. Para essa perspectiva teórica, portanto, o processo de aprendizagem não deveria se encerrar com o domínio da ação, mas avançar até a automatização de conjuntos de ações, formando as "operações conscientes" (Leontiev, 1978, p. 304).

Defendendo posição similar, Saviani (2003) contraria as críticas escolanovistas aos processos escolares de memorização e aquisição de automatismos, afirmando que o desenvolvimento do automatismo na criança não teria como conseqüência a negação da sua liberdade, mas ele consiste justamente na condição da liberdade.

A liberdade só será atingida quando os atos forem dominados. E isto corre no momento em que os mecanismos forem fixados. Portanto, por paradoxal que pareça, é exatamente quando se atinge o nível em que os atos são praticados automaticamente que se ganha condições de exercer, com liberdade, a atividade que compreende os referidos atos. Então a atenção liberta-se, não sendo mais necessário tematizar cada ato. (p. 19)

Essa passagem de Saviani encontra sustentação na filosofia materialista histórica e dialética, que entende que

A liberdade é, pois, o domínio de nós próprios e da natureza exterior, baseado na consciência das necessidades naturais; como tal, é forçosamente, um produto da evolução histórica. Os primeiros homens que se levantaram do reino animal eram, em todos os pontos essenciais de suas vidas, tão pouco livres quanto os próprios animais; cada passo no caminho da cultura é um passo no caminho da liberdade. (Engels, 1979, p. 96 - grifos nossos)

Saviani (2003) aponta para a constituição de uma "segunda natureza" mediante o processo de domínio e apropriação das formas básicas da leitura e da escrita, de tal forma que elas passam a operar no interior da própria estrutura orgânica do indivíduo. Há aqui, de acordo com o autor, uma superação no sentido dialético da palavra, uma vez que os "aspectos mecânicos foram negados por incorporação e não por exclusão. Foram superados porque negados enquanto elementos externos e afirmados como elementos internos" (p. 20). Assim, só se aprende de fato quando o objeto da aprendizagem se converte em uma espécie de "segunda natureza" (p. 20). Essa expressão evidencia como aptidões verdadeiramente incorporadas na estrutura orgânica do indivíduo tornam-se quase "naturais" tendo sido, entretanto, adquiridas com esforço, empenho e disciplina e, portanto, não sendo resultado de um processo espontâneo nem produto do mero amadurecimento orgânico. As operações permitem ao homem desenvolver aptidões cada vez mais complexas, a partir daquelas que já se encontram automatizadas.

 

O como se adquire: algumas considerações sobre a atividade de estudo

Leontiev (1978) afirma que nem todas as atividades exercem a mesma influência sobre a personalidade da criança. Algumas atividades são chamadas de dominantes ou principais. Por atividade dominante, Leontiev (ibid.) entende o processo por meio da qual surgem as principais mudanças na personalidade da criança, observadas durante uma certa etapa do seu desenvolvimento e na qual surgem outras atividades. A passagem de um estágio do desenvolvimento a outro é determinada pela mudança na atividade dominante, isto é, pela mudança da relação da criança com a realidade. Quando surge uma contradição entre o modo de vida da criança e suas capacidades, que estão além das possibilidades de apropriação e domínio da realidade, há uma mudança no lugar que a criança ocupa no sistema de relações sociais. Sua atividade dominante é alterada, e, por conseqüência, ocorrerá uma mudança no estágio do desenvolvimento.

A atividade de estudo foi considerada pelos psicólogos soviéticos a atividade dominante no estágio de desenvolvimento por eles denominado "idade escolar", que corresponderia aproximadamente à faixa etária dos sete aos dez anos de idade.3 Essa atividade assume uma importância fundamental no processo de desenvolvimento mental, uma vez que a criança começa a se apropriar dos rudimentos das formas mais desenvolvidas da consciência social, isto é, a ciência, a filosofia, a arte, a moral, o direito. De acordo com Davidov (1988b) "A assimilação dos rudimentos dessas formas de consciência social e as formações espirituais correspondentes pressupõem que as crianças realizem uma atividade adequada à atividade humana historicamente encarnada nelas" (p. 158).

Ao tratar da atividade de estudo na passagem acima, fica explícita a vinculação do pensamento de Davidov (1988b) ao de Leontiev (1978). Este último postula que o mundo humano não é dado imediatamente ao indivíduo, mas se apresenta como um "problema a resolver", uma vez que "cada indivíduo aprende a ser um homem. O que a natureza lhe dá não basta para viver em sociedade. É-lhe ainda preciso adquirir o que foi alcançado no decurso do desenvolvimento histórico da sociedade humana" (ibid., p. 267). Nesse mesmo sentido, Markus (1974a), filósofo marxista integrante da Escola de Budapeste,4 postula que ao nascer, o bebê humano é inserido no mundo das objetivações das necessidades e capacidades de gerações que o precederam, de modo que esse novo ser poderá usufruir os resultados desse desenvolvimento por meio do processo de apropriação. É a apropriação da experiência humana acumulada nos objetos da cultura que possibilita a humanização do indivíduo.

Deste modo, o indivíduo não é indivíduo humano, mas somente na medida em que se apropria das capacidades, das formas de conduta, das idéias, etc. originadas e produzidas pelos indivíduos que têm precedido o que coexiste com ele, e as assimila (mais ou menos universalmente) à sua vida e à sua atividade. Assim, pois, o indivíduo humano concreto como tal é um produto em si mesmo histórico-social. (Markus, 1974a, p. 27)

Markus (ibid.) afirma que, ao contrário dos objetos naturais, os objetos criados pelo trabalho humano têm uma "aplicação normal" no interior da vida e essa aplicação está quase materializada na forma física dos objetos de trabalho. Para se apropriar dos objetos sociais, os indivíduos precisam, em alguma medida, desenvolver as qualidades humanas específicas que possibilitem o uso "adequado" desses objetos.

Todo objeto, tal como uma pedra ou um copo de vinho, podem ser utilizados de modos variados em situações concretas diferentes. Mas, diferentemente dos objetos naturais, os produtos do trabalho têm, ainda, uma aplicação normal dentro da matriz real da vida social (um copo de vinho serve para beber vinho, o sabão para lavar-se), e essa aplicação normal tem uma quase composição como norma já na própria forma física dos objetos de trabalho. (...) os indivíduos têm que desenvolver em si mesmos - em alguma medida - as qualidades humanas específicas que permitem o uso "adequado" dos objetos do trabalho, ou seja, têm que se apropriar desses produtos do trabalho. (Ibid., p. 13)

Leontiev (1978) corrobora a compreensão de Markus5 ao afirmar que para que a criança se aproprie dos objetos da cultura humana, não basta que ela seja colocada diante dos objetos, é preciso que desenvolva uma atividade efetiva, ou seja, a criança deve agir ativamente em relação a eles. Além disso, é preciso que a criança desenvolva uma "atividade adequada - se bem que não idêntica" em relação a tais objetos.

Devemos sublinhar que esse processo é sempre ativo do ponto de vista do homem. Para se apropriar dos objetos ou dos fenômenos que são o produto do desenvolvimento histórico, é necessário desenvolver em relação a eles uma atividade que reproduza, pela sua forma, os traços essenciais da atividade encarnada, acumulada no objeto. (Leontiev, 1978, p. 268 - grifos nossos)

Mesmo os instrumentos ou utensílios da vida cotidiana mais elementares têm de ser descobertos ativamente na sua qualidade específica pela criança quando esta os encontra pela primeira vez. Por outras palavras, a criança tem de efetuar a seu respeito uma atividade prática ou cognitiva que responda de maneira adequada (o que não quer dizer forçosamente idêntica) à atividade que eles encarnam. Em que medida a atividade da criança será adequada e, por conseqüência, em que grau a significação de um objeto ou fenômeno lhe aparecerá, isto é outro problema, mas esta atividade deve sempre reproduzir-se. (Ibid., p. 167 - grifos do autor)

Quando afirmamos que uma criança se apropria de um instrumento, isso significa que ela aprendeu a servir-se dele corretamente (ou seja, desenvolveu uma atividade adequada em relação ao instrumento) e que já se formaram nela as ações e operações motoras e mentais necessárias para esse efeito (ibid.). Tal proposição tem seu fundamento em Marx (1986, p. 105), que afirma que "a apropriação de uma totalidade de instrumentos de produção é, exatamente por isso, o desenvolvimento de uma totalidade de capacidades nos próprios indivíduos". Deste modo, para Leontiev (1978), a apropriação da experiência histórico-social provoca uma modificação da estrutura geral dos processos de comportamento e do reflexo, além de formar novos tipos de comportamento. Ele afirma ainda que a principal característica do processo de apropriação é criar no homem novas aptidões, funções psíquicas novas.

O desenvolvimento, a formação das funções e faculdades psíquicas próprias do homem enquanto ser social, produzem-se sob uma forma absolutamente específica - sob a forma de um processo de apropriação, de aquisição. (Ibid., p. 235)

[...] o principal mecanismo do desenvolvimento psíquico no homem é o mecanismo da apropriação das diferentes espécies e formas sociais de atividade, historicamente construídas. Uma vez que a atividade só pode efetuar-se na sua expressão externa, admitiu-se que os processos apropriados sob a sua forma exterior se transformam posteriormente em processos internos, intelectuais. (Ibid., p. 155)

Feitos esses importantes esclarecimentos acerta da importância da atividade de cada novo ser na apropriação da cultura humana, engendrando aptidões especificamente humanas, retornaremos à questão da atividade de estudo, objeto do presente artigo.

De acordo com Davidov (1988b), durante a atividade de estudo, os alunos reproduzem não apenas os conhecimentos e as habilidades estritamente relacionados às formas de consciência social (a ciência, a filosofia, a arte, a moral), mas também um conjunto de capacidades surgidas historicamente, que se encontram na base da consciência e do pensamento teórico, isto é, a reflexão, a análise e o pensamento mental. Nas palavras do autor, temos que

[...] o conteúdo da atividade de estudo são os conhecimentos teóricos (...) (com esse termo, designamos a unidade de abstração e a generalização substanciais e dos conhecimentos teóricos). Esta tese (...) põe a descoberto o conteúdo e o sentido da atividade de estudo. (p. 158)

Davidov (ibid.) acrescenta ainda que o ingresso na escola e a atividade de estudo permitem aos alunos dominarem capacidades que se encontram relacionados com o pensamento teórico de uma determinada época histórica, formando-se, assim, as bases da relação teórica com a realidade, possibilitandolhes sair dos limites da vida cotidiana observada diretamente.

[...] o homem que assimila esses conhecimentos já não se relaciona com a realidade imediatamente circundante, uma vez que o "objeto do conhecimento está mediatizado pela ciência como formação social, por sua história e por sua experiência... nesse objeto se encontram separados determinados aspectos, dados do indivíduo que ingressa na ciência, na forma de conteúdo generalizado, abstrato, de seu pensamento". (Manardashvilli apud Davidov, 1988b, pp. 172-173)

Ao se referir à atividade de estudo, Davidov (1988b) afirma que ela deve se estruturar em correspondência com o procedimento de exposição dos conhecimentos científicos, que retoma a máxima do método materialista históricodialético, no que se refere ao movimento de ascensão do abstrato ao concreto.

O pensamento dos alunos, no processo de atividade de estudo, tem algo em comum com o pensamento dos cientistas, que expõem os resultados de suas investigações por meio das abstrações e generalizações substanciais e dos conceitos teóricos que funcionam no processo de ascensão do abstrato ao concreto. (p. 173)

Davidov (ibid.) destaca o processo por meio da qual ocorre esse procedimento de ascensão do abstrato ao concreto realizado pelos alunos em sua atividade de estudo. Por meio da mediação do professor, os alunos analisam o conteúdo científico, destacando nele alguma relação geral inicial e descobrindo que tal relação se faz presente em outras relações particulares existentes no interior daquele conteúdo. Por meio da descoberta dessa relação inicial, com suas diferentes manifestações, atingem a generalização do objeto estudado. Em seguida, ainda com auxílio do professor, as crianças utilizam a abstração e a generalização para realizar a dedução sucessiva de outras abstrações mais particulares, bem como para efetuar a relação com o objeto integral, ou seja, concreto, de estudo. Nessa direção, Davidov (ibid.) afirma que

Quando os escolares começam a utilizar a abstração e a generalização iniciais como meios para deduzir e unir outras abstrações, elas convertem as estruturas mentais iniciais em conceito, que fixa certa "célula" do objeto estudado. Esta "célula" serve posteriormente para os escolares como princípio geral para orientar-se em toda a diversidade do material fático, que devem assimilar em forma conceitual por via da ascensão do abstrato ao concreto. (p. 175)

Davidov (ibid.) aponta para o fato de que o processo da apropriação dos conhecimentos científicos pelos alunos tem duas características essenciais: uma delas consiste no fato de que seu pensamento se move na direção do geral para o particular, já que, em princípio, buscam e fixam a "célula" inicial do conteúdo a ser apropriado e, em seguida, apoiando-se nela, deduzem as diversas particularidades do objeto dado. A segunda característica desse processo é a de que os alunos descobrem qual a relação geral inicial em certa área e sobre ela atuam de modo a elaborar a generalização substancial. Como conseqüência, são capazes de determinar o conteúdo da "célula" do objeto estudado, de modo a convertê-la em meio para deduzir relações mais particulares, isto é, na forma de conceito.

É importante destacarmos que os alunos não criam os conceitos científicos, mas deles se apropriam no processo de atividade de estudo. Nesse processo, são desenvolvidas em cada indivíduo as ações mentais adequadas ao conteúdo a ser apropriado, por meio das quais são reproduzidos os produtos espirituais da cultura humana.

Na atualidade, em virtude da ampla influência de perspectivas neoliberais e pós-modernas na Educação, os conhecimentos ensinados na escola têm visado mais ao preparo dos indivíduos para se adaptarem às alienantes relações sociais de produção que presidem o capitalismo contemporâneo, restringindo-se à formação de um mínimo de aptidões e hábitos. Como conseqüência, há uma secundarização do ensino dos conhecimentos científicos (Duarte, 2001a). Esperamos ter conseguido demonstrar que a formação de novas operações e estruturas mentais não se dá espontaneamente, nem é produto do mero amadurecimento orgânico, mas depende do processo de apropriação, pelos alunos, da atividade material e intelectual condensada justamente nos conhecimentos científicos, filosóficos e artísticos em suas formas mais desenvolvidas.

 

Referências

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Recebido em novembro de 2006.
Aprovado em março de 2007.

 

 

1 Pelo fato de o idioma russo possuir um alfabeto diferente do ocidental, foram registradas diferentes formas de escrever o nome deste autor, tais como Vygotsky, Vygotski, Vigotski. Optamos por manter a grafia tal como aparece em cada obra citada.
2 Esse é um termo "guarda-chuva" elaborado por Duarte (2004), que reúne a pedagogia das competências, os estudos na linha do professor reflexivo, o construtivismo e a Escola Nova.
3 Cabe mencionar a afirmação de Leontiev (1978): "não é a idade da criança que determina, enquanto tal, o conteúdo do estágio de desenvolvimento, mas, pelo contrário, a idade da passagem de um estágio a outro que depende do seu conteúdo e que muda com as condições sócio-históricas" (p. 294). Isso significa que, numa sociedade dividida em classes, na qual boa parcela das crianças não dispõe das condições adequadas de vida, a seqüência de "atividades dominantes" pode ser muito diferente daquela constatada e estudada pelos soviéticos.
4 Fazem parte da mesma escola de pensamento outros autores, como George Lukács, Agnes Heller e Ferenc Féher. Duarte (2001b) tem evidenciado as relações existentes entre essa escola de pensamento marxista e a teoria da atividade, psicologia sócio-histórica ou histórico-cultural.
5 Analisando a obra de Markus (1974b), é possível perceber a influência dos pressupostos defendidos por Leontiev. Isso fica evidente em uma nota em o autor afirma que "Esse aspecto da apropriação foi recentemente esclarecido a fundo pelo célebre psicólogo soviético Leontiev; conforme seu estudo 'O aspecto histórico na análise do psiquismo humano'" (p. 54).

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