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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  n.24 São Paulo jun. 2007

 

Eles "passam de bolo" e ficam cada vez mais analfabetos: discutindo as representações sociais de ciclos de aprendizagem entre professores

 

Passed irresponsibly and growing more illiterate: discussing the social representations on the learning cycles among the teachers

 

Ellos "Passam de Bolo" (todos aprueban) y se quedan más analfabetos: discutiendo las representaciones sociales de ciclos de apredizaje entre profesores

 

 

Laêda Bezerra Machado

Professora do Programa de Pós Graduação em Educação (Núcleo de Formação de Professores e Prática Pedagógica) e do Departamento de Administração Escolar e Planejamento Educacional da Universidade Federal de Pernambuco, Brasil. E-mail: laeda@oi.com.br

 

 


RESUMO

Uma das políticas mais incisivas de enfrentamento do fracasso escolar tem sido a implantação de ciclos de aprendizagem. Este estudo faz um levantamento do conteúdo das representações sociais dessa nova forma de organização curricular. Trinta professores da rede municipal do Recife participaram da pesquisa respondendo a uma entrevista semi-estruturada. Os resultados apontam uma representação social de ciclos de aprendizagem centrada na promoção automática. Os alunos continuam analfabetos, a despeito da permanência na escola. Essa representação social é revelada na desmotivação geral dos professores com as possibilidades de aprendizagem e educação das futuras gerações. Os resultados vêm confirmar que, sem o comprometimento coletivo de gestores do sistema educacional, escolas, profissionais, famílias e alunos, as diferentes inovações educacionais poderão contribuir ainda mais para fragilizar a qualidade da educação.

Palavras-chave: ciclos de aprendizagem; representação social; professor.


ABSTRACT

One of the most incisive politics to combat school failure has been the introduction of learning cycles. This research intends to investigate the social representations on this new way of curricular organization.Thirty teachers from public schools of Recife participated answering a semi-structured interview. The results point to a social representation of the cycles centered in an automatic approval.Despite being at school, students remain illiterate. This representation is revealed in the general lack of motivation from the teachers with the possibilities of learning for the next generations.These results confirm that, without the compromise of the schools, managers in the educational system, family and the students all the different educational innovations will decline even more the quality of education.

Keywords: Learning Cycles; Social Representation; Teacher.


RESUMEN

Una de las políticas más incisivas de enfretamiento del fracaso escolar ha sido la implantación de ciclos de aprendizaje. Este estudio hace una levatamiento del contenido de las representaciones sociales de esa nueva forma de organización curricular. Treinta profesores de la red municipal de Recife participaron de la investigación contestando una encuesta semiestructurada. Los resultados apuntan una representación social de ciclos de aprendizaje centrada en la promoción automática. Los alumnos continuan analfabetos, a despecto de la permanencia en la escuela. Esa representación social es revelada en la desmotivación general de los profesores para con las posibilidades de aprendizaje y educación de las futuras generaciones. Los resultados vienen a confirmar que, sin comprometimiento colectivo de gestores del sitema educacional, escuelas, profesionales, familias y alumnos a las distintas inovaciones educacionales podrán contribuir más aún para fragilizar la calidad de la educación.

Palabras clave: Ciclos de aprendizaje; Representación Social; Profesor.


 

 

Introdução

Dados do MEC/Inep (2003) revelam que, no Brasil, 35,7 milhões de alunos estão matriculados no ensino fundamental e, desses, 8,46 milhões estão em defasagem idade/série. Essa discrepância foi fundamental para multiplicação de propostas de organização da escolaridade em ciclos.

Os programas de correção de fluxos escolares, entre eles o regime de ciclos, destinam-se a enfrentar a distorção idade/série e o fracasso escolar tão reincidente nas populações de baixa renda no país. Para Setúbal (2000), esses programas constituem-se como um dos fatores decisivos para uma efetiva educação pública inclusiva. A implantação dos ciclos de aprendizagem no ensino fundamental público no país tem sido freqüente e aponta a pertinência de se debaterem seus sentidos e significados entre os profissionais, que, de certa forma, são os principais atores na sua efetivação: os professores.

Como assinalam Barreto e Mitrulis (2004), ciclos são períodos de escolarização que ultrapassam as séries anuais, são organizados em blocos, cuja duração varia, podendo atingir até a totalidade de anos prevista para um determinado nível de ensino. Eles representam uma tentativa de superar a excessiva fragmentação do currículo, própria do regime seriado. A ordenação do tempo se faz em unidades maiores e mais flexíveis, não perdendo as exigências acadêmicas para aquele período, porém, levando em consideração o tempo de aprendizagem de cada aluno.

Para Mainardes (2001), a organização da escolarização em ciclos tem implicações positivas e negativas. Como positivas, destaca: a necessidade de se repensar a escola, suas práticas avaliativas, conteúdos curriculares e trabalho pedagógico; agiliza o fluxo escolar dos alunos; descongestiona o sistema, possibilitando o ingresso da população que está fora da escola; garante aos alunos maior tempo de permanência na escola, elevando a média de escolaridade; exige maiores recursos para a educação a fim de garantir as condições adequadas; sugere mudança na percepção das famílias, que passam a se preocupar não apenas com a aprovação, mas com o conhecimento que seus filhos adquirem na escola.

A organização das turmas em ciclos também tem suas implicações negativas, elas seriam: ser utilizada apenas como solução formal para diminuição dos índices de repetência, sem com isso elevar a qualidade do ensino; a descontinuidade das políticas educacionais e falta de sustentação podem acarretar danos maiores para a escola e os alunos, e a falta de um trabalho coletivo e projeto pedagógico bem definido podem inviabilizar a proposta.

 

Os ciclos de aprendizagem na história

As primeiras experiências concretas com regimes de ciclos escolares aparecem no Brasil na década de 1960, a intenção, já naquela época, era regularizar o fluxo de alunos ao longo do processo de escolarização, eliminando ou limitando a repetência. Nesse período o país apresentava os índices de retenção mais elevados da América Latina: 57,4% na passagem da 1ª para a 2ª série do ensino fundamental (Barreto e Mitrulis, 2004).

Durante a redemocratização do país, ao longo da década de 1980, diversos governos estaduais das regiões Sudeste e Sul, eleitos por partidos de oposição, estavam empenhados de resgatar a dívida pública com a população e essa motivação política enfatizava, entre outras coisas, o resgate da função social da escola. Desse modo, o regime de ciclos de aprendizagem despontava como alternativa promissora. Os estados do Paraná, São Paulo, Minas Gerais e Goiás adotaram o sistema de ciclos, eliminando a reprovação, que ocorria na passagem da 1ª série para a 2ª série, ampliando o período de alfabetização e assegurando a continuidade desse processo.

São Paulo, por exemplo, tomou a dianteira nesse sentido, implantando o ciclo básico. Conforme Duran e Alves (1992), o ciclo básico foi implantado pela Coordenação de Normas Pedagógicas (Cenp) a partir de 1984. Correspondia aos dois primeiros anos de escolaridade condensados em uma só unidade, devendo o aluno ser avaliado para fins de promoção somente ao final do segundo ano. Seu objetivo principal era romper com a tradição brasileira de reprovar os alunos de primeira série. Tratava-se de um projeto ousado, cuja experiência foi implantada definitivamente em todo o sistema de ensino público estadual. Conforme registram, em 1985, um milhão e quinhentos mil alunos, bem como cinco mil professores estavam envolvidos nesse projeto. Os fundamentos que deram suporte à proposta de implantação do ciclo básico, como afirmam as autoras, foram a psicogênese da língua escrita, a linguística e sociolingüística, aportes diametralmente opostos à orientação associacionista, que até aquele momento predominava como referencial para a alfabetização.

Mais tarde, Filho, Alves e Duran (2003) fazem uma análise do significado da reorganização do ensino na rede pública do estado de São Paulo focando a implantação do ciclo básico em um período de efervescência política no país, após um longo período de governos militares, prevalência do autoritarismo e seus diversos matizes, enfatizando o caráter positivo da experiência.

Duran (2003) destaca questões relacionadas ao complexo processo de implantação dessa nova organização, sobretudo as dúvidas, dificuldades, expectativas e até mesmo revoltas vividas por profissionais da educação, famílias e os próprios alunos naquele período.

Alves (2003) ressalta o impulso dado à formação de professores, período em que se inaugura toda uma política de formação em serviço. Com a implantação do ciclo básico, afirma a autora, buscava-se construir, com a rede de escolas, uma cultura pedagógica mais democrática e inclusiva, instaurando novos princípios e propostas para alfabetizar o conjunto dos alunos e não apenas uns poucos privilegiados.

Recuperar a proposta do ciclo básico é importante para discussão do objeto deste estudo, devido à grande repercussão dessa experiência no cenário educacional brasileiro.

Em estudo sobre os ciclos e progressão continuada no Brasil, Mainardes (2001) afirma que esse regime prioriza o processo de desenvolvimento humano, sua evolução, características e peculiaridades. Corresponde à intenção de regularizar o fluxo escolar dos alunos ao longo da escolarização, eliminando ou limitando a repetência.

Em que pesem as experiências pontuais de implantação de ciclos nos anos 80 e início dos anos 90, é somente nos últimos dez anos que essa possibilidade de organizar a escolarização regular em ciclos se intensificou. Isso ocorreu porque a legislação incorporou o que já se manifestava em diversos sistemas de ensino no Brasil. A atual LDB sugere diferentes formas de se organizar as turmas na escola. É o que prevê, por exemplo, o seu artigo 23 quando afirma:

[...] a educação básica poderá organizar-se em ciclos, alternância regular de períodos de estudo, grupos não seriados, com base na idade, na competência e em outros critérios ou por forma diversa de organização, sempre que o interesse do ensino aprendizagem assim o recomendar.

Dados do Inep revelam que, até o ano 2000, 18% das escolas de ensino fundamental haviam adotado o regime de ciclos. Naquele período, os sistemas estaduais concentravam 45,5% dessa oferta e os municipais, 13,2%.

Gomes (2004), através de uma análise documental, apresenta um balanço das pesquisas sobre ciclos nos últimos quinze anos. Mesmo reconhecendo que as investigações são pontuais e concentradas em trabalhos acadêmicos elaborados nas regiões mais desenvolvidas, afirma que a sombra da seriação permanece no regime de ciclos. Apesar das distorções e incompreensões, o regime de ciclos não foi abandonado, mas teve sua experiência ampliada. Nesse sentido afirma:

Apesar das diferentes administrações públicas e partidos que ascenderam ao poder e de eventuais recuos, estabeleceu-se uma constância curiosa pela qual pelo menos um relatório, em que pese reconhecer os graves percalços da experiência, recomenda que ela seja alargada ainda mais. (Gomes, 2004, p. 40)

 

Os ciclos de aprendizagem: a proposta do município do Recife

A Secretaria de Educação do município de Recife, na gestão 2001-2004, amparada na atual LDB e em experiências exitosas desenvolvidas no país, optou por substituir a organização do ensino fundamental em série pelo regime de ciclos. O ensino fundamental está dividido em um primeiro ciclo com duração de três anos, admitindo a matrícula inicial de crianças de seis anos e três subseqüentes, com duração de dois anos.

Com a implantação da proposta (2002), a escola passa a ter condições de assegurar a construção da identidade cidadã. Compreende que, nessa perspectiva cidadã, o sujeito aprende a valorizar sua cultura enfrentando os desafios, construindo o seu caminho e aprendendo a se relacionar com os outros, a cidadania passa a sair do indivíduo e a integrar uma luta pelos direitos sociais básicos. Dentro desse contexto, a escola, para se atualizar, deve relacionar as aprendizagens com as práticas sociais e todos os educadores devem estar comprometidos com a transformação social, repensar a sua visão de mundo, planejar, agir e contribuir para a integração coletiva da escola nesses novos tempos.

Como prevê a proposta, os ciclos de aprendizagem têm como base a reorganização do espaço e do tempo escolar e da prática pedagógica, num processo contínuo, respeitando a diversidade e os diferentes tempos dos alunos para aprender. Considera o ritmo de aprendizagem de cada um e advoga que a avaliação deve ser realizada de forma dinâmica, contínua e processual.

Nessa nova configuração dos grupos nas escolas da rede municipal, cada ciclo deve funcionar como uma teia entrelaçada, na qual os conteúdos não se extinguirão em si mesmos, mas serão relacionados e articulados uns aos outros. Nos processos de ensinar e aprender, a mediação do professor será fundamental para investigação, produção do conhecimento e intervenção necessária ao seu desenvolvimento sociocognitivo. Preconiza, pois, que cabe aos professores organizarem a prática pedagógica possibilitando a interdisciplinaridade, planejando atividades e selecionando conteúdos.

Essa nova forma de organização dos grupos nas escolas municipais do Recife está em vigor desde 2001 e vem mexendo com a estrutura e o funcionamento das unidades escolares, professores e alunos.

A experiência dos alunos do curso de Pedagogia nessas escolas vem provocando inquietações, especialmente no que diz respeito ao sentido de ciclos de aprendizagem para os professores. No geral, os alunos, estudantes de Pedagogia, que chegam às escolas para desenvolver suas atividades de estágio curricular, não têm conseguido entender o que diferencia ciclos de séries ou quais as razões que levam muitas vezes os professores a tratar as duas formas de organização das turmas como sinônimas. Alguns alunos do curso de graduação chegam a observar nas turmas das escolas públicas a denominação primeira série do primeiro ciclo.

As inquietações e dúvidas entre os alunos de graduação, aliadas às preocupações acerca de como os sujeitos se apropriam dos novos conhecimentos que lhes chegam, motivaram o estudo dos ciclos de aprendizagem entre professores da rede municipal do Recife.

Para isso, com base no balanço das pesquisas nesse campo realizada por Gomes (2004), optou-se por uma via pouco comum nesses estudos: as representações sociais. Constitui-se, pois como objeto desta investigação as representações sociais de professores de ciclos de aprendizagem, bem como suas implicações para as práticas.

Em síntese, esta investigação procura responder as seguintes questões: como os ciclos de aprendizagem estão sendo representados socialmente pelos professores? Como essas representações sociais têm contribuído para orientação de suas práticas?

 

Representação social como categoria de análise

O fenômeno da apropriação dos conhecimentos pelo senso comum foi estudado por Serge Moscovici em sua obra original (1961). O autor inaugura uma nova postura ante o conhecimento. Segundo ele, a absorção da ciência pelo senso comum não é, como tradicionalmente se defendia, uma vulgarização do saber científico, mas, ao contrário, trata-se de um outro tipo de conhecimento adaptado a outras necessidades, obedecendo a outros critérios e contextos específicos.

Representações sociais são verdadeiras teorias do senso comum que se elaboram coletivamente nas interações sociais, sujeito-sujeito e sujeito-instituição, num determinado tempo, em uma cultura e espaço próximo, na tentativa de tornar o estranho familiar e dar conta do real. No processo de interação social, o sujeito elabora o conhecimento, vai se socializando, reconstruindo valores e idéias que circulam na sociedade. Moscovici afirma: "toda representação é de alguém tanto quanto de alguma coisa. É uma forma de conhecimento por meio da qual aquele que conhece se substitui no que é conhecido" (Moscovici, 1969, p. 11).

Estando, pois, as representações sociais inseridas num contexto de mútuas influências elas contribuem definitivamente para a formação das identidades. Jodelet (2001), por exemplo, é partidária dessa idéia ao definir a representação social como uma forma de conhecimento socialmente elaborada e partilhada, tendo uma orientação prática e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social.

Enfim, as representações sociais funcionam como resultado da interpretação de significados que as pessoas utilizam para entender o mundo. Elas são uma construção mental do objeto, elaboradas através da atividade simbólica do sujeito, dentro do processo de comunicação da totalidade social e estão presentes em todas as áreas do sistema social, pois trata-se de uma atividade cognitiva ou simbólica do ser humano que parte do individual para o social, estando ligada a uma rede de conceitos que envolve diversos elementos do contexto sociocultural. São produtos de experiências acumuladas por um processo histórico dos fatos, os quais constituem os sistemas cognitivos das pessoas.

No momento atual, em que vem sendo dada grande ênfase às mudanças na área educacional, bem como proclamando-se sobremaneira a importância da educação para o indivíduo e para a sociedade, as representações sociais de ciclos de aprendizagem dos professores se tornam relevantes, uma vez que, como afirma Wagner (1998), a identidade social, a associação em grupos e as ações coletivas determinam e recriam umas às outras e, nesse processo social, objetos e eventos são conjugados de tal forma que correspondem às intenções, ações e fundamentos ideológicos dos indivíduos.

Estando, pois, as representações sociais inseridas num contexto de mútuas influências, elas contribuem definitivamente para a formação das identidades. Jodelet (2001), por exemplo, é partidária dessa idéia ao definir a representação social como uma forma de conhecimento socialmente elaborada e partilhada, tendo uma orientação prática e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social. Sendo assim, adotar o construto das representações sociais significa buscar compreender não somente o que e como as pessoas representam um objeto, cujo conteúdo possui um valor socialmente evidente e relevante, mas também por que e para que o fazem daquela forma.

 

Metodologia

Conforme Jodelet (ibid.), através de suas experiências e interações, o sujeito vai construindo um saber através do qual conceitos materiais ou abstratos (acontecimentos, idéias, pessoas, noções ou sentimentos) adquirem sentido. Admite-se, pois, que os ciclos de aprendizagem possuem um conjunto de sentidos e significados para os professores.

Este estudo parte dessa investigação mais ampla, foi realizado com professores de escolas públicas da rede municipal de ensino de Recife, tendo como foco seus discursos captados através de entrevista.

Apresenta-se para discussão neste artigo um breve mapeamento da representação de ciclos de aprendizagem. Para isso, analisam-se os depoimentos colhidos a partir de um dos estímulos indutores utilizados na entrevista: os ciclos de aprendizagem são...

Mapear essa representação social de ciclos constitui-se como primeira etapa da pesquisa, por se considerar que a formação das representações sociais depende da quantidade e do tipo de informações que o indivíduo dispõe acerca do objeto.

Participantes

Participaram da pesquisa trinta (30) professoras de turmas de primeiro e segundo ciclo do ensino fundamental da rede municipal. São todas do sexo feminino e estão na faixa etária entre vinte e cinqüenta anos (Tabela 1).

 

 

O nível de formação acadêmica predominante entre as entrevistadas é o superior. Sendo que apenas 3,3% estão cursando graduação, 40% possuem graduação em Pedagogia, 43% cursaram graduações diversas, 10% possuem pós-graduação (lato sensu) e 3,3% já concluíram a pós-graduação (stricto sensu). Dessas professoras, dezesseis (16) ensinavam em turmas de primeiro ciclo e quatorze (14), no segundo ciclo. Neste artigo, as participantes, bem como os fragmentos de suas falas, são identificadas pela letra P seguida do número de ordem do protocolo de entrevista.

 

 

Procedimento de coleta

A entrevista, de caráter semi-estruturado, foi aplicada aos professores em espaço reservado na escola ou na própria sala de aula, muitas vezes na presença dos alunos, pois, em várias ocasiões, pela própria precariedade da escola e pela falta de pessoal, não havia condições de o professor conceder um tempo exclusivo para atender o pesquisador.

Selecionamos, inicialmente, sete escolas consideradas de grande porte, com grande número de turmas, tanto do primeiro como do segundo ciclo, e iniciamos os contatos. Uma aproximação com essas instituições foi revelando dificuldades, sentindo-se maior abertura e receptividade em escolas menores, o que provocou um redimensionamento do inicialmente planejado, ou seja, decidiu-se entrevistar os professores de nove escolas menores.

Nessas escolas, os professores, em sua maioria, apresentavam-se voluntariamente para conceder a entrevista, demonstrando interesse em se posicionarem sobre os ciclos, contudo, sempre revelando os limites impostos pela própria prática para se conversar. Como afirmou uma professora:

[...] eu tenho todo interesse de falar sobre os ciclos, sim, mas tem que ser assim com meus alunos aqui na sala fazendo a tarefa, pois outra hora não posso, aqui na escola não tem recreio, não tem o espaço. Eles merendam aqui na sala mesmo. (...) Na saída não dá porque saio correndo senão, chego atrasada na outra escola. (p. 22)

Para Jodelet (2001), representação social é uma forma de saber prático que liga um sujeito a um objeto. Segundo ela, três dimensões envolvem as investigações nesse campo: descrição do conteúdo das representações sociais; condições culturais que favorecem sua emergência; discussão da natureza epistêmica em confronto com o saber erudito. Dessas dimensões decorrem três questões: Quem sabe e de onde sabe? (o sujeito e seu contexto) O que sabe e como sabe? (a representação) Sobre o que sabe e com que efeitos? (o objeto/comportamento). Indicar o modo como captamos os discursos e incluir um depoimento a esse respeito são pistas no sentido de entender como as representações sociais estão sendo produzidas. Reafirma-se que o espaço de atuação do professor e suas condições materiais de trabalho constituem-se como decisivas na construção dessas representações sociais.

 

Análise e discussão dos resultados

Seguindo-se a orientação de Bardin (1997), para análise do conteúdo das entrevistas, se fez uma leitura flutuante desse material, a fim de se apreender as primeiras hipóteses ou intuições a respeito do que se lia, tentando identificar algumas regularidades. Assim, inicialmente, foi-se agrupando esse conjunto de depoimentos tendo como critério as unidades semelhantes.

Num segundo momento, foi-se ordenando esses depoimentos em tópicos que sintetizavam certos argumentos a respeito dos ciclos. Esses tópicos foram denominados de categorias. Categorizar, segundo Bardin (1997), "é uma operação de classificação de elementos constitutivos de um conjunto, por diferenciação e, seguidamente, por reagrupamento segundo o gênero (analogia) com critérios previamente definidos".

As categorias são rubricas ou classes, as quais reúnem um grupo de elementos sob título genérico, agrupamento esse efetuado em razão dos caracteres comuns destes elementos (ibid., p. 117).

O tipo de categorização utilizado foi o temático. A categoria temática significa uma asserção breve ou simplificada sobre determinado assunto. Conforme Bardin, o tema é uma das mais úteis unidades de registro da análise de conteúdo.

Do primeiro estímulo apresentado às professoras durante a entrevista, no caso, os ciclos de aprendizagem são... emergiu um farto conjunto de depoimentos, os quais foram organizadas cinco categorias (Tabela 3), definidas conforme o índice de ocorrência nessas falas.

 

 

Privilegiou-se ainda o caráter qualitativo dos dados, ou seja, além das referências explícitas aos temas, procurou-se apreender das falas os sentidos ou atribuições que a elas estivessem vinculadas. Como distingue Bardin (ibid.), a análise de conteúdo não é uma técnica que visa apenas a condensação de elementos sem qualquer modificação das informações, mas pretende fazer uma interpretação do que foi enunciado.

Em primeiro lugar, o que está mais presente nas formulações dos professores como objeto de referência aos ciclos é o fim da reprovação ou retenção. Como pode ser exemplificado nas afirmações que se seguem:

No ciclo a gente não pode reter nenhum aluno "eles passam de bolo" e ficam cada vez mais analfabetos como, por exemplo, eu tenho um aluno do primeiro ano, um aluno não, eu tenho seis alunos que não sabem ler. Eu vejo o ciclo de aprendizagem como a não retenção do aluno. Esses alunos eles tão passando de bolo. (p. 6)
Ciclos é a não reprovação do aluno. Em ciclos o aluno passa automaticamente, em série o aluno pode ser reprovado.
(p. 15)
É o ensino em que o aluno... ele passa automaticamente de uma turma para a outra, [...] é porque, justamente, não existe reprovação. O aluno, automaticamente, ele vai passando de uma série pra outra e muitas vezes é levando certas dificuldades, mas que eles acreditam que na outra série vai ser superado. (p. 19)
É o que a gente coloca, a Prefeitura sugere que não se reprove, essa é a... Não é, de jeito nenhum pra se reprovar, agora em compensação a qualidade do ensino... (p. 20)

Embora já exista um farta literatura que deixam claras as diferenças entre o regime seriado e o de ciclos, de maneira bem menos contundente aparece nos discursos das professoras a referência aos ciclos como uma mudança apenas de nomenclatura. Contudo, são referências esparsas e contraditórias, pois, ao mesmo tempo em que afirmam ser a mesma coisa, sempre ressaltam que agora não é permitido reprovar o aluno. É o que atestam os depoimentos:

Ciclo de aprendizagem é... digamos assim... veio para substituir a questão do seriado das séries 1ª a 4ª série. (p. 24)
É tudo igual, ciclos é apenas outra nomenclatura... (...) Olha, mas é diferente né... Eles não têm um comprometimento pra aprender então é uma coisa assim... Muito diálogo, muita conversa e no fim todo mundo passa... (p. 14)

Essas formulações agrupadas na categoria o fim da reprovação e/ou retenção do aluno, que concentra maior número de enunciações, o objeto de referência principal que se cristaliza nos discursos é não aprendizagem. Adotar o regime de ciclos significa promover todos os alunos, independentemente do seu aprendizado. Isso significa uma solução formal para combater taxas de reprovação sem, contudo, elevar a qualidade do ensino e a socialização do conhecimento. As colocações das professoras estão em sintonia com o que tradicionalmente vem ocorrendo nos sistemas de adoção de novas políticas de combate ao fracasso escolar que, são muito mais de natureza formal, sem, contudo, estarem sintonizadas e comprometidas com a verdadeira inclusão social.

Na organização dessa representação social de ciclos de aprendizagem, o que se percebe é a focalização em apenas um dos aspectos fundamentais da proposta: a promoção. Como afirma Jodelet (2001), a focalização em isolados aspectos da informação se dá em decorrência dos interesses e das implicações dos sujeitos com os objetos. As condições materiais ou ideológicas, os recursos educativos, os interesses profissionais direcionam a focalização da representação social. Cada sujeito pode focalizar aspectos distintos do objeto social, de acordo com a sua experiência, seu grupo de pertença, bem como interesses diversificados sobre o mesmo.

No caso das professoras, o modo como a proposta foi implantada, as lacunas da formação, a falta de acompanhamento são elementos fundamentais para a construção de uma representação social de ciclos como promoção formal dos alunos para os patamares superiores da escolarização.

Os demais sentidos atribuídos aos ciclos de aprendizagem agrupados nas demais categorias assinaladas na Tabela 3 são também importantes, porque permitem que se compreendam certas especificidades que circulam as representações e a lógica que as regulam, bem como a dinâmica de transformação do pensamento nesse domínio.

Assim a oportunidade de a escola dar mais tempo para o aluno aprender é que se pode depreender dos discursos das professoras mais jovens e, conseqüentemente, com menos tempo na profissão. Eis, por exemplo, o que relata uma dessas professoras:

Bem eu não peguei o regime de série (...)Porque no ensino seriado é muito (...) o produto tem que ser muito de imediato tudo conseguido em um ano, já o ciclo, não, subentende que eu tenho que entender a criança. Então, eu acho que o tempo do aluno ele é mais respeitado no ciclo. (p. 28)

Em relação a essa categoria, o que se percebe é uma certa focalização em trechos literais da proposta cujo princípio orientador é a reorganização do espaço e do tempo escolar e da prática pedagógica, respeitando a diversidade e os diferentes tempos dos alunos para aprender. Esse ponto vem sendo reforçado nos diferentes âmbitos, seja pelos técnicos educacionais da Secretaria, seja pelos próprios gestores do sistema. O professor tem acesso a esse tipo de comunicação, interage o tempo todo com esse discurso e esse processo de comunicação contribui de maneira decisiva para a construção de suas representações sociais.

Também essa categoria pode ser indício do que Jodelet (2001) define como pressão pela inferência, que significa a necessidade de agir, tomar posição ou obter reconhecimento e adesão dos outros sujeitos do grupo. O professor posiciona-se dessa forma, talvez, para mostrar que não desconhece o discurso proclamado pelo sistema acerca dos ciclos, afinal, ele tem tido acesso a esse discurso, seja, no mínimo, via capacitações de rede, seja através do próprio texto da proposta.

Aliada a essa categoria, pode-se indicar a categoria respeito à maturidade e aprendizagem do aluno. Para esse grupo de professoras, os ciclos aparecem como uma tentativa de favorecer e respeitar o ritmo de cada aluno para aprender. Trata-se de um grupo de três professoras que, ao longo dos seus depoimentos, demonstra ser favorável à proposta, sempre ressaltando que o seu grande objetivo é valorizar o processo de aprendizagem do aluno. É o que afirma, por exemplo, uma dessas professoras:

Ciclo de aprendizagem é um processo contínuo do progresso cognitivo do aluno é que ele tem no decorrer do processo de aprendizagem (...) a não valorização da questão das notas e sim do acompanhamento direto é... Do acompanhamento direto com as crianças no seu desenvolvimento e aprendizagem. (p. 18)

De modo geral, pode-se depreender dos discursos dessas professoras uma maior sensibilidade ao discurso pedagógico atual. A própria formação acadêmica (uma delas é mestre em educação), a posição que ocupam na escola, o fato de estarem mais presentes no meio acadêmico, a despeito de todas as dificuldades que revelam enfrentar, indicam que os próprios processos de comunicação a que estão expostas concorrem ou pressionam nesse sentido. Tomar posição exige que os indivíduos e os grupos disponham de recursos que lhes permitam produzir uma opinião não só rápida, mas de acordo com as suas estratégias. O intercâmbio socioeducacional mais variado, as relações certamente mais próximas dessas professoras com o ambiente acadêmico estariam concorrendo para a construção de uma representação social de ciclos de aprendizagem em que se preserva a importância da aprendizagem, mesmo que em alguns casos reconheçam seus limites:

Ciclos de aprendizagem é uma nova forma de organizar o ensino, não mais em torno de faixa etária, mas de acordo com o processo de aprendizagem (...) uma visão mais globalizada do aluno, do processo (...) confesso que é muito complicado Um desafio não só para mim como para todos. Lá na universidade, meu Deus do céu! É cada um que chega, mas parece que o discurso não é muito diferente não, todo mundo vive nessa angústia... Como respeitar o processo do aluno e fazer ele aprender... (p. 17)

Nessas primeiras aproximações das representações sociais de ciclos de aprendizagem das professoras da rede municipal do Recife, circulam outros elementos, que lhe dão sustentação ou fortalecem, como: a precariedade das condições de trabalho, falta de acompanhamento e orientação no desenvolvimento da proposta, o modo como a proposta foi imposta à rede, a falta de uma maior articulação e de desenvolvimento de processos de formação continuada ou em serviço.

Enfatizam, principalmente, o modelo de formação continuada da rede municipal como inadequado e distante da real situação das escolas, bem como as dificuldades para se colocar a proposta em prática tendo em vista as condições gerais de trabalho e formação em que estão imersas. Afirmam:

[...] na verdade, o que fica bem forte na minha cabeça... todas essas capacitações, é que as pessoas que estão lá estão muito distante da prática... a teoria é muito distante da prática, principalmente com essa implantação do sistema de ciclos. (p. 6)
[...] essa nova proposta que pra gente no começo caiu como uma bomba mesmo "boom". Mas como é que eu vou fazer agora né? (...) muitas vezes a proposta pode ser brilhante mas dê condições práticas pra fazer isso né? A proposta é essa, é muito boa, é muito boa, se você for ler mesmo ela é brilhante entendeu? É muito complicado pra colocar o ciclo de fato em pleno funcionamento como é a proposta dele. É complicado. (p. 24)

 

À guisa de conclusão

Nessas primeiras aproximações das representações sociais de ciclos de aprendizagem das professoras da rede municipal do Recife o que se percebe é que mesmo com programas e intenções inovadoras, o desafio da oferta de uma educação de qualidade persiste. Mesmo admitindo que os resultados desse primeiro estudo são ainda limitados e provisórios, têm-se já alguns indícios de uma representação social de ciclos de aprendizagem centrada na promoção automática conspirando contra a qualidade da educação.

A organização da escolaridade em ciclos, cujas experiências pioneiras surgiram na década de 1960, exige uma alteração radical da organização escolar tradicional. Os ciclos suscitam alterações radicais na concepção de ensino, aprendizagem e avaliação. Trata-se de uma medida complexa, que requer compromisso político dos gestores, ampliação significativa dos investimentos no campo educacional e cuidadoso acompanhamento por parte dos sistemas.

No âmbito da escola, há necessidade do acompanhamento do processo de aprendizagem para intervenções mais incisivas, garantindo a apropriação pelos alunos dos níveis desejados de aprendizagem. Sugere, ainda, a existência de uma proposta pedagógica que reflita a identidade e as aspirações do grupo, estratégias de acompanhamento, além de condições de trabalho adequadas, que se constituem como fundamentais para o êxito dessa nova forma de organização da escolaridade (Fernandes e Franco, 2001).

Respondendo, provisoriamente, às questões propostas para esta investigação, quais sejam: como os ciclos de aprendizagem estão sendo representados socialmente pelos professores? Como essas representações sociais têm contribuído para orientação de suas práticas? Pode-se afirmar que de modo geral a representação social de ciclos de aprendizagem das professoras da rede municipal do Recife-se centra-se na promoção automática do aluno? "Eles passam de bolo", mas continuam analfabetos, a despeito da passagem pela escola e do cumprimento da escolaridade básica. Essa representação social vem orientando as práticas dos professores e se revela em sua desmotivação com a possibilidade de aprendizagem dos alunos e a educação em geral. Isso se reflete na fala de uma professora: "Eu fico frustrada. Criança não pode ser reprovada, nem retida. Implantam uma coisa de cima pra baixo e você não tem base pra lidar com isso e acaba que todo mundo o passa, mas também num aprende. É de certa forma frustrante. Não sei aonde a gente vai parar" (p. 26).

O esforço no sentido de identificar essas representações sociais de ciclos de aprendizagem vem confirmar que, sem o comprometimento conjunto dos gestores do sistema educacional, das unidades escolares, seus profissionais, famílias e dos próprios alunos, mudanças tão radicais como a organização da escolaridade em ciclos poderão fragilizar ainda mais a estrutura e o funcionamento das escolas, trazendo prejuízos muito sérios aos processos de aprendizagem e à constituição dos sujeitos.

 

Referências

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Recebido em novembro de 2006.
Aprovado em março de 2007.

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