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Psicologia da Educação
versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520
Psicol. educ. n.26 São Paulo jun. 2008
O papel da afetividade e do outro na constituição de leitores de classes menos favorecidas
The role of affection and the other in the constitution of readers of poor
El papel de la afectividad y del otro en la constitución de lectores de clases menos favorecidas
Mariana MatosI; Sandra FerreiraII
IGraduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE - Brasil
IIDoutora em Psicologia (Psicologia Cognitiva) pela Universidade Federal de Pernambuco e professora do Departamento de Psicologia e Orientação Educacionais da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE - Brasil E-mail: sandra.aferreira@ufpe.br
RESUMO
Objetivou-se verificar como se dá a constituição de leitor em classes menos favorecidas, quais as influências da afetividade, quem são os outros mediadores e a influência do meio social nesse processo. Foram selecionados seis adolescentes de uma escola pública da zona sul do Recife, por indicação das bibliotecárias e/ou através de observações informais na biblioteca escolar. Inicialmente, realizou-se uma entrevista para levantar aspectos das histórias de vida e de leitura, interesses, trajetória escolar e concepções de leitura e de leitor. Posteriormente, selecionaram-se duas garotas e um garoto, de 17 anos, com as histórias mais representativas, aos quais foi aplicada uma segunda entrevista para maiores esclarecimentos. Observou-se que nos três casos, há um outro, um mediador com o qual se há vínculos afetivos - de admiração, de dependência, de prazer, de interesse. Um outro que também pode ser a cultura, como é o caso do livro.
Palavras-chave: constituição de leitor; afetividade; leitura; classes menos favorecidas.
ABSTRACT
Our aim was to verify the constitution of the reader in poor classes, the influences of affection, who are the mediators and the influence of social environment in the process. We selected six teenagers from a public school in the southern area of Recife, for appointed by librarians and / or through informal observations in the school library. Initially, there was an interview to get aspects of life history and reading, interests, academic trajectory and conceptions of reading and reader. Subsequently, two girls and a boy, all 17 years old, were selected, those with the most representative histories, to whom a second interview was done for further clarification. It was observed that in the three cases, there is another one, a mediator with whom the reader must have affective ties - admiration, dependency, pleasure, and interest. Another one who also may be the culture, such as the book.
Keywords: formation of readers; affection; reading; poor classes.
RÉSUMEM
Se ha objetivado verificar como se constituye el lector en clases menos favorecidas, cuales las influencias de la afectividad, quienes son los otros mediadores y la influencia del medio social en ese proceso. Fueron seleccionados seis adolescentes de una escuela pública de la zona sur de Recife, por indicación de las bibliotecarias y/o a través de observaciones informales en la biblioteca escolar. Inicialmente se realizó una entrevista para investigar aspectos de las historias de vida y de lectura, intereses, trayectoria escolar y concepciones de lectura y de lector. Posteriormente se seleccionaron dos chicas y un chico de 17 años, con historias más representativas, a los cuales les fue aplicada una segunda entrevista para aclarar más ampliamente. Se observó que en los tres casos, hay otro, un mediado con el cual hay vínculos afectivos - de admiración, de dependencia, de placer, de interés. Otro que también puede ser representado por la cultura, como es el caso del libro.
Palabras Llave: constitución del lector; afectividad; lectura; clases menos favorecidas.
Constituição de leitor: o contexto, o outro e a afetividade
De acordo com Wallon (1941/2007), o outro que interage com o indivíduo e o contexto no qual estão inseridos são de extrema importância para a constituição e a evolução psicológica do sujeito. A partir dessa perspectiva, é possível dizer que não há constituição da pessoa se não houver um outro e um meio que o proporcionem. Sabe-se, também, que a evolução psicológica do indivíduo abrange dimensões como a cognitiva e a afetiva, e elas estão sempre se alternando, completando-se e, dessa forma, participando ativamente do processo de constituição do "eu".
No entanto, como afirma Mahoney (2004), o desenvolvimento não é um processo linear: há o ajuste das funções espontâneas da criança às exigências do meio. Assim, configura-se o desenvolvimento marcado por diferentes estágios - o que não implica continuidade, mas reorganizações qualitativas das características de um para outro. Ou seja, o desenvolvimento não é um processo mecânico, ele é descontínuo e marcado por conflitos que lhe conferem um ritmo marcado por retrocessos, avanços, novas significações do que foi aprendido antes, rupturas e transformações que vêm e vão ao longo do desenvolvimento.
Para melhor explicar tais relações de oposição e alternância fundamentais para a constituição do psiquismo, é necessário introduzir a noção dos quatro construtos nos quais a teoria walloniana está fincada: os domínios funcionais.
Os domínios funcionais do desenvolvimento que vêm a constituir o psiquismo são: afetividade, ato-motor, conhecimento e pessoa. Eles permitem a descrição e explicação do desenvolvimento do indivíduo e é por meio deles que se faz possível estudar as etapas percorridas ao longo do desenvolvimento. Em outras palavras, tais domínios admitem uma divisão que possibilita uma categorização de funções de acordo com as características preponderantes em determinado estágio (MAHONEY, 2004).
Segundo Wallon (1941/2007), embora os níveis funcionais devam ser concebidos como indissociáveis, eles são tratados separadamente, de modo artificial, para facilitar a compreensão do processo de constituição da pessoa. O autor afirma que, no decorrer do desenvolvimento, mesmo que haja preponderância de certas atividades em determinado momento, muitas se imbricam entre si de modo que um mesmo período possui todos os níveis funcionais simultaneamente. Assim, os diferentes conjuntos funcionais estão suscetíveis a trocas e adaptações recíprocas de maneira que o sujeito, em meio aos conflitos - mola propulsora de seu constituir-se -, necessita da integração de todos os níveis funcionais para a sua evolução psicológica.
Sendo assim, cada etapa do desenvolvimento é marcada por um traço peculiar circunscrito num jogo de alternâncias. Por exemplo: em uma etapa há predominância da afetividade e em uma seguinte, do conhecimento. Ainda que pareça uma relação antagônica, os níveis funcionais constroem-se mutuamente, o que significa que cada estágio traz uma reformulação, uma ampliação do estágio anterior. Desta maneira, a constituição da pessoa só se dá a partir da integração desses quatro níveis funcionais. Cada um é fundamental para a expressão dos outros níveis e para que o indivíduo possa formar-se como tal.
A afetividade é o primeiro nível funcional que caracteriza a criança; é a sua primeira possibilidade de expressão. Der (2004) define afetividade como envolvendo os componentes orgânico, corporal, motor e plástico, sendo este último a emoção. É a emoção que se diferencia primordialmente, sendo a comandante do desenvolvimento nos primeiros momentos da vida. Em idéia complementar, Almeida (1999) coloca que é através da emoção que a criança exterioriza suas satisfações e desconfortos orgânicos, ainda em um momento bem primitivo - sendo um primeiro recurso de comunicação, sociabilidade.
Sendo plástica, a emoção necessita do ato motor para se expressar. Ele é seu único meio de expressão nesse momento e, dessa maneira, a emoção dá energia ao ato motor para que ele se realize. Nesse jogo recíproco, de dependência mútua, eles constituem o primeiro recurso de sociabilidade da criança, sendo o ato motor o apoio tônico para a expressão das emoções e dos sentimentos (MAHONEY, 2004). Além disso, o ato motor é essencial para atuação no meio ambiente, pois insere a pessoa na situação concreta do momento presente, atuando, também, no equilíbrio corporal.
Além de ser o meio de expressão para as emoções, o ato motor é indispensável para a constituição do próximo nível funcional: o conhecimento - pois a direção do desenvolvimento vai do motor para o mental. Se no início os gestos exprimem sensações orgânicas, depois eles vão adquirindo um viés mais social, moral, tendo uma representação, um sentido mais elaborado.
O conhecimento ou conjunto cognitivo, de acordo com Mahoney (2004), abrange as funções responsáveis pela aquisição, transformação e manutenção do conhecimento que vai surgindo nas relações sociais permeadas, em primeira instância, pelo ato motor e pela emoção. Também as representações surgem com o desenvolvimento do conjunto cognitivo - proporcionando recursos mentais para organizar a experiência concreta.
Explicando melhor: inicialmente, os atos da criança são puramente orgânicos e expressam suas emoções - dores, satisfação, sofrimento. Tal expressão se dá por meio de gestos, do ato motor. E o ato motor vem a possibilitar a expressão em forma de linguagem, fala - que se relaciona de forma direta com o conjunto cognitivo. Como diz Wallon (1941/2007, p.157), "O gesto precede a palavra, depois vem acompanhado dela, antes de acompanhá-la, para finalmente fundirse em maior ou menor medida a ela".
Com isso, percebe-se que os níveis funcionais têm participação decisiva no desenvolvimento humano, pois estão completamente imbricados nos processos aí envolvidos de transformação do puramente orgânico em social e psicológico. Assim, todos participam simultaneamente do desenvolvimento, sendo uns mais preponderantes que outros, dependendo do estágio. Porém, a integração dos três níveis funcionais - afetividade, ato motor e conhecimento - constituem a pessoa, que é o último nível funcional, a unidade do ser, que tem origem na emoção.
Mas quais as relações que podem ser estabelecidas entre estas duas dimensões que perpassam o sujeito ao longo de todo o seu desenvolvimento, mais especificamente, no caso deste trabalho, entre a leitura e a afetividade? Será que o outro tem alguma relevância na instituição desse elo?
Pensando no leitor que está estabelecendo os seus primeiros contatos com a leitura, é evidente a necessidade da presença de um outro que faça a mediação desse processo. No entanto, não parece ser apenas a presença do outro que tem importância no processo de constituição de um sujeito-leitor, não é somente a presença ali, ensinando a ler ou mostrando e lendo um livro que vai garantir a iniciação e o posterior se fazer leitor de um indivíduo. Leite (2006) diz que por meio de suas primeiras pesquisas englobando esse tema - afetividade e leitura - foi indicado claramente que as experiências de leitura dos sujeitos investigados eram notoriamente marcadas pela dimensão afetiva.
Disso infere-se que as duas instâncias - afetividade e cognição - encontramse perpassadas, uma atravessando a outra, interferindo-se reciprocamente. Então, nota-se que o importante é a qualidade da relação que o sujeito desenvolve com o material escrito a partir da mediação dos outros e os impactos que tal mediação traz para a formação do sujeito-leitor.
Assim, entende-se que a leitura implica em interação - seja com um outro que se ouve ler ou para o qual se lê; ou um outro que é lido: o livro (Galvão, 2003). Além disso, assume-se a leitura a partir de uma visão sócio-histórica, na qual o texto não é algo pronto em si mesmo, que traz sentidos fixos. Diferente disso, delineia-se uma noção polissêmica sobre a leitura, que ressalta a construção de sentidos a partir das relações entre interlocutores e contexto ideológico (Orlandi, 2006).
No que se refere à leitura, alguns estudos têm privilegiado os aspectos afetivos a ela relacionados. Dentre eles, Grotta (2006) desenvolveu um trabalho objetivando analisar aspectos relevantes na constituição do sujeito leitor a partir de uma investigação de quatro sujeitos, entre 40 e 60 anos, de classe média. Dentro desse mesmo âmbito, ainda merecem destaque as pesquisas de Souza (2006) e Silva (2006), que, respectivamente investigaram: o papel da família na constituição do leitor e a significação das práticas de leitura escolar para os alunos leitores.No caso de Souza (2006), participaram do estudo quatro jovens de classe média alta, com alto grau de instrução. Já no caso de Silva (2006), o estudo foi realizado com um grupo de sete adolescentes de aproximadamente 16 anos, estudantes de uma escola particular de Campinas - SP.
Em se tratando de três estudos com objetivos parecidos, apenas sendo modificados os sujeitos e os focos de atenção (constituição de adultos leitores, papel da família na constituição de leitores e experiências de leitura escolar significativas para a formação do aluno leitor), os resultados apontaram para fatores comuns. Dentre eles, alguns podem ser considerados mais relevantes, como: a admiração pela intelectualidade do outro ser fator para despertar o prazer pela leitura; a leitura como importante para a formação da subjetividade; a qualidade afetiva da mediação como crucial nesse processo; e as relações e experiências com o material de leitura como fundamentais para a formação do leitor.
Como se percebe, os papéis do outro e do meio se delineiam fortemente nos processos de constituição dos leitores das pesquisas acima. Todos os entrevistados tiveram acesso a um bom material de leitura ao longo de sua história e tiveram mediadores influentes, que se destacam como pessoas com os quais têm fortes vínculos emocionais. Entretanto, o que também se observa é que todas as três investigações privilegiaram as classes média e média alta como setores sócio-econômicos de investigação. E a constituição do leitor entre aqueles que fogem a essas classes mais favorecidas?
Nesse sentido, investigando um grande número de sujeitos, desde analfabetos até universitários, em uma ampla faixa etária abrangendo desde 18 até 60 anos; Galvão (2004), Oliveira e Vóvio (2004) chegaram a algumas conclusões interessantes.Segundo essas pesquisadoras, indicadores econômicos, sociais e culturais interferem efetivamente na constituição do leitor. Os graus de instrução, de alfabetismo e de letramento dos mediadores também se fazem importantes nesse processo, assim como, o lugar em que cresceram e se houve acesso a material escrito e à sua utilização pelos pais e parentes, entre outros.
Por outro lado, tais pesquisas mostram que os indicadores em questão não são tão determinantes visto que existe um número considerável de exceções - pessoas que não partilharam de um meio favorável para se tornarem leitores e assim se fizeram; mesmo sem ter pais ou parentes leitores que possam ter influenciado nesse sentido. Ou seja, o meio, entendido como condições físicas e econômicas, exerce influência, mas existem muitos outros fatores que podem interferir nesse processo, contradizendo os resultados esperados.
Assim, também foi observado nas pesquisas citadas que, muitas vezes, os pais, por serem analfabetos, estimulavam os filhos para atingirem uma condição diferente da deles; o que quer dizer que apoiavam e estimulavam os filhos a estudar e conseguir um bom grau de instrução, já que eles - os pais- não conseguiram. Com isso, conseqüentemente, permitiram aos filhos um contato mais direto com a leitura a partir da valorização - dimensão afetiva - da inserção deles na escola, que, culturalmente, é uma referência de letramento, de imersão no mundo intelectual no qual a leitura se faz essencial.
Como se pôde observar, as pesquisas realizadas por Galvão (2004) e Oliveira e Vóvio (2004) apenas apresentam dados, sem uma análise aprofundada. O que não nega sua relevância, pois ao apresentarem os casos que se contrapõem à maioria dos resultados obtidos, instigam à busca pelo saber mais detalhado sobre como esses indivíduos menos favorecidos sócio-culturalmente se constituiriam leitores e que fatores implicar-se-iam a isso.
Assim, este estudo tem como objetivos: investigar como se dá a constituição do leitor em classes menos favorecidas, no intuito de tentar vislumbrar aspectos que possam ser relevantes na compreensão da formação de leitor inseridos nestas classes; verificar quem são os "outros" mediadores desse processo e as influências da afetividade nessa formação; entender as relações da juventude mais desfavorecida com a leitura e a escola.
Isto com o intuito de se possibilitar a elaboração de propostas para ampliação do acesso à leitura entre aqueles que têm menos possibilidades e de oferecer mais dados teóricos para o tema em questão, que ainda é pouco explorado.
O material de leitura e os participantes da história
Uma escola pública na região metropolitana da cidade do Recife - foi este o cenário no qual foram encontrados os participantes dessa história. São eles seis adolescentes entre 15 e 18 anos, estudantes devidamente matriculados no ensino básico.
No primeiro contato com a direção do colégio, as bibliotecárias foram logo encarregadas de ajudar na seleção dos alunos, por terem um contato próximo com aqueles que freqüentam diariamente o contexto da biblioteca. Pediu-se que indicassem alunos que apresentavam boas relações com a leitura e se demonstravam bons leitores. Assim, os seis foram entrevistados de modo a relatar suas histórias de leitura até a atualidade. A entrevista - partindo de um roteiro semi-estruturado - teve o objetivo de investigar as origens sóciohistóricas dos participantes e de seus pais; suas histórias e memórias de leitura; suas concepções de leitura e de leitor; suas histórias escolares; os modelos de leitor; entre outros. (ver Apêndice A). Para o registro dessas informações, papel, lápis, caneta e gravador de áudio foram utilizados.
A partir daqui começa a segunda parte dessa história: realizadas as entrevistas, estas foram analisadas culminando na seleção dos três jovens com as histórias mais representativas no que concerne às suas formações enquanto sujeitos leitores. Então, realizaram-se novas entrevistas, mas desta vez, com um cunho mais informal, no intuito de aprofundar-se mais nas histórias dos entrevistados, bem como esclarecer pontos que ficaram obscuros.Aparecem, assim, os três principais protagonistas: Marisa, Wilson e Tatiana.
Então, a história de cada protagonista foi analisada qualitativamente, tendo como referência os elementos coletados a partir das entrevistas.Primeiramente, foram analisadas todas as seis entrevistas de modo a selecionar os três sujeitos com as histórias de leitura mais relevantes para os objetivos deste estudo.Depois, considerou-se tanto as histórias individualmente, como as comparações entre elas, de modo a extrair os principais significados contidos nas três diferentes histórias de leitura, transformando-os nos seguintes temas: (a) Três histórias e um mesmo cenário; (b) Nas trilhas da leitura: atando laços; (c) Cruzando linhas: entre o texto e o mundo; (d) O ser da/na leitura, que serão tramados em seguida.
Três histórias e um mesmo cenário
Os participantes desse estudo são três adolescentes de dezessete anos: Marisa, Tatiana e Wilson*. Estudantes do terceiro ano do ensino médio de uma escola pública na zona sul da cidade do Recife. Cada uma das histórias tem sua peculiaridade, mas se entrelaçam quando se toma o cenário na qual se desenrolam.
Filhos de pais que possuem desde o ensino fundamental completo até no máximo ensino médio completo, todos são filhos do "meio" de famílias com no mínimo 5 componentes. As duas garotas destacam-se por apresentarem um contexto familiar aconchegante e marcado por boas relações afetivas ao longo do desenvolvimento; encontrando-se ainda na companhia dos pais e irmãs. Já Wilson apresenta uma história diferente, caracterizada relações familiares mais conturbadas e menos estáveis, o que fica claro em seu discurso, quando afirma que nunca teve incentivo ou apoio dos pais para as suas atividades - fossem elas escolares ou não. Assim, ele mora atualmente com a avó, e seus pais mudaram-se para o interior. Diz ele: "Eu tô morando com minha avó... é um vai e volta. Quando eu tiver condições de morar só... Quanto às garotas, Marisa diz que sempre teve apoio e incentivo dos pais no que concerne aos estudos: "Nota baixa era uma briga". Já Tatiana, diz que seu pai sempre foi muito rígido com as suas irmãs mais velhas, mas que relaxaram com ela. Diz que todo o incentivo veio por parte das irmãs e dela própria, que sempre admirou o fato de as irmãs serem estudiosas.
Todos afirmam possuir trajetórias escolares boas, sem reprovações. As garotas fizeram o primário em pequenas escolas particulares no bairro em que residem, enquanto Wilson estudou toda vida em colégio público. Ambas relatam terem saído do colégio particular por falta de condições financeiras, já que Marisa tem mais duas irmãs e Tatiana três. Dessa forma, os pais das duas não puderam mantê-las em tais colégios, pois não podiam arcar com as despesas
Nascidos e crescidos em bairros populares - Jordão, as garotas, e o terminal de Setúbal, o garoto -os jovens em questão não cresceram em comunidades que cultivavam atividades voltadas para o desenvolvimento intelectual ou atividades artísticas. Seus vizinhos não possuíam hábitos de leitura ou qualquer outro hábito nesta esfera. Além disso, os bairros em que residem não possuem bibliotecas, com exceção a da escola em que estudam.
Mesmo assim, todos são jovens com interesse por arte e cultura, freqüentando lugares voltados para isso. Wilson, por exemplo, estuda música desde os 13 anos, por iniciativa própria, tocando três instrumentos e sendo coordenador de uma banda no Conservatório Pernambucano de Música.
Por fim, ressalta-se que todos os três são leitores assíduos, críticos e interessados; como também costumam freqüentar bibliotecas e livrarias. Os três jovens apresentam histórias de leitura com experiências interessantes, sendo bastante importante trazê-las à tona.
Nas trilhas da leitura: atando laços
Pelos percursos de leitura dos três personagens que aqui se apresentam, foram encontrados pontos em comum: a marca da afetividade nas interações com os outros mediadores no processo de formação como leitores. Assim, os caminhos, embora diferentes, têm como característica o atar de laços com pessoas, bens culturais - relações imbuídas de afetividade construídas ao longo das trilhas da leitura. E é isso que será narrado nas linhas que se seguem...
Os primeiros contatos de Marisa com material escrito se deram na terceira série, quando a professora sugeriu um livrinho de contos para que lesse. Entretanto, outra experiência sobressai-se como aquela que despertou seu interesse pela leitura.
"Desde pequena que meu pai juntava todo mundo no domingo pra ler o jornal, dava um jornal pra cada filha [...] ele dizia: você só levanta quando me disser o que entendeu da página tal. Aí a gente ficava a manhã todinha juntos".
O caso da outra adolescente, Tatiana, também se delineia pelas trilhas da afetividade. Ao falar sobre seu interesse pela leitura, diz: "Minha irmã mais velha sempre gostou muito de ler, aí eu meio que peguei isso dela. Ela era rato de biblioteca... eu gostava disso, ela lia rápido e eu queria muito ser assim". Ela ainda reforça dizendo que foi a admiração pelo "jeito culto" das irmãs que a influenciou para com a leitura, quando ela tinha por volta dos 11 anos.
Fica perceptível que as marcas afetivas têm importante contribuição no desenvolvimento do sujeito leitor. Leite (2006) aponta em seus estudos que o prazer pela leitura muitas vezes desabrocha a partir da admiração pela intelectualidade de um outro. E mais, diz que como na adolescência se desenvolve o lado intelecto/cognitivo, este é permeado por relações afetivas que são anteriores. Em outras palavras, experiências afetivas na infância, relacionadas ao aspecto cognitivo/intelectual são fatores importantes para a sua evolução.
Assim, vê-se que os primeiros contatos com a leitura das duas adolescentes foram mediados por outros com os quais mantinham laços afetivos, e isso fica evidente ao longo de toda a história de leitura delas - o "outro afetivo" é o responsável por mediar o contato com o objeto de leitura.
A história de Wilson também se envereda pela mesma direção. Ou seja, sua história de leitura revela-se sustentada por laços afetivos, embora seu contexto familiar não tenha sido propício para tal e seu contato com a leitura tenha ocorrido mais tarde - por volta dos 15 anos.
Se no caso das meninas, elas tiveram o contato com a leitura praticamente todo mediado por pessoas; por outros humanos que lhes propiciaram uma interação com o objeto de leitura, Wilson não. É constante em seu discurso o fato de ser alguém que descobre as coisas sozinho. Assim foi com a música e com os livros - algo 'espontâneo', do próprio interesse. O garoto afirma não ter tido ninguém como modelo de leitor e que o interesse pela leitura começou a partir da leitura de um livro sugerido na escola, apenas como "mais uma atividade", sem nenhum incentivo significativo. Aqui pode caber a pergunta: mas onde estão os laços afetivos que circunscrevem a história de leitura desse garoto?
Para responder à pergunta entram na história novos personagens. São eles outros mediadores que também podem interagir nesse contato com a leitura: as manifestações culturais. Parece que foi com a imersão no universo musical, artístico, que Wilson acentuou seu interesse pela leitura. A vontade de ser intelectual, de saber conversar sobre vários assuntos, saber se expressar no âmbito ligado às artes - meio em que convive -, se perpassa ao garoto como diretamente ligado às suas atividades de leitura.
"Você começa a ver tantas pessoas interessantes, falando de coisas interessantes e você vai olhar e dizer: eu tenho que falar alguma coisa. Aí começa a surgir o interesse por diversas coisas ligadas à forma intelectual... não sei se posso dizer, mas pode ser."(Wilson)
Como diz Galvão (2001), os "outros" mediadores podem ser bens culturais que representem alguém ausente. Assim, o envolvimento de Wilson com um meio que lhe agrada e desperta admiração, faz-lhe buscar formas de mergulhar nessa realidade que o transforma ao mesmo tempo em que é transformada por ele. São seus valores, seus interesses, refletidos na arte, manifestação cultural, mediando o seu se fazer leitor.
Essa mediação se desenrola no sentido de que o jovem admira pessoas envolvidas com arte: "As pessoas voltadas para a cultura são mais interessantes. O diálogo com elas vai ser mais interessante." Ele acredita que a leitura é um meio de se chegar mais perto dessas pessoas e se tornar uma delas, pois acredita que a leitura melhora o diálogo, considerando também que diz ter dificuldade em se expressar. Essa busca por melhor se expressar, dialogar se faz clara a partir do seguinte trecho:
"Eu gosto de linguagem difícil - Maquiavel, Voltaire, Dostoievski. Em relação a livros brasileiros, poesia, eu amo [...] Tem certos poemas de Cecília Meireles que falam da essência humana, eu acho que isso é uma coisa que sempre vai tá presente no dia-a-dia. Também tem as músicas de Chico Buarque que são lindas... Acho que tudo isso me influencia na vida..."
Dessa forma, a música, as artes são os outros mediadores da leitura na história de Wilson, que o influenciam na sua forma de ser e de ler, nas suas buscas e interesses. Mediação esta toda perpassada pela afetividade - prazer, admiração, desejos.
Nesse mesmo sentido, a relevância da afetividade, os laços afetivos atados; podem ser verificados em outros pontos das histórias de leitura dos participantes, como, por exemplo, a freqüência à biblioteca. Tanto Marisa como Tatiana começaram a freqüentar bibliotecas por conta de relações afetivas com pessoas que as encaminharam nessa direção.
Tatiana fala que ia à biblioteca do centro da cidade junto com as irmãs - os espelhos de Tatiana. Elas faziam pré-vestibular no centro e a levavam para ficar na biblioteca enquanto assistiam às aulas. Marisa diz que passou a freqüentar a biblioteca da escola pela a afinidade com a professora de artes que passava as tardes na biblioteca e esta começou a lhe indicar livros, surgindo novos temas de conversa. Também Wilson revela que mesmo freqüentando espontaneamente, desenvolve vínculos com as bibliotecárias que vão desde conversas sobre os livros, debates sobre os assuntos dos jornais do dia, até a ajudá-las na restauração dos livros e na arrumação das estantes.
Ainda nesse contexto da biblioteca, não pode passar despercebido o papel da biblioteca da escola em que os três estudam. Eles demonstraram tanto nos discursos quanto nas atividades do cotidiano (observações informais durante o período de investigação) familiaridade com o pessoal da biblioteca e com a própria biblioteca.
"Eu venho quase todo dia aqui (na biblioteca)... pode perguntar a ela (apontando para a bibliotecária)."(Wilson)
"Costumo vir aqui sempre, todo mundo me vê com livro" (Marisa).
"Todo dia eu entro aqui, sempre. Ela já até me conhece (referindo-se a bibliotecária)" (Tatiana)
Isso também se explicitou nos primeiros momentos da investigação, o momento de seleção dos sujeitos. Ao se chegar à biblioteca da escola, Wilson estava lá olhando alguns livros e a partir de conversas informais foi convidado a participar do estudo. Já Marisa e Tatiana foram indicadas pelas bibliotecárias como leitoras assíduas. A biblioteca parece ser um lugar especial dentro da escola para esses alunos; um lugar para estar diariamente.
"A gente faz um grupo, quando uma vem chama mais três , quatro pra ler junto. [...] A gente passava o intervalo todo aqui. Mas agora uma faz pré-vestibular, a outra não sei o quê..." (Marisa)
De outro ponto de vista, ainda merece destaque um aspecto bastante interessante que pôde ser observado nos relatos de Marisa. A garota conta que sua casa é cheia de livros, pois o pai, quando adolescente trabalhava em biblioteca e começou a comprar e ganhar livros os quais guardou já para quando viesse a ter filhos. Ele também costumava presentear a namorada - mãe de Marisa - com livros que hoje compõem a biblioteca da casa. Ou seja, há uma enorme carga afetiva sobre esse material. Todos os familiares têm acesso aos livros que transbordam os desejos do pai de que as filhas tivessem acesso a esse bem cultural; o interesse dos pais para que as filhas tivessem acesso à leitura; e a importância dos livros para a família desde o tempo do namoro dos pais. O lado afetivo aparece inscrito nos livros e nas vivências e experiências afetivas deste casal, sendo influentes na história de leitura da filha. Marisa diz já ter lido todos - todos clássicos - organizados na estante de seu quarto.
Wilson e Tatiana têm seus livros que também estão organizados em estantes nos seus quartos.
"Eu vivo emprestando livros aos meus amigos, eles sabem que eu gosto [...] Meus livros ficam no meu quarto, comigo" (Tatiana).
"Eu ou pego emprestado, ou compro ou ganho (livros) [...]Eu arrumo tudo numa estante. E como quem tem mais jeito com colégio, cultura, sou eu... e eu mudei agora, ficam comigo (os livros)" (Wilson).
Outro ponto curioso é que eles têm interesse em repassar o gosto pela leitura para seus familiares.
"A minha irmã mais velha só veio ler o primeiro livro agora porque ela viu que eu lia vários livros" (Wilson).
"Já tô influenciando minha irmã mais nova e ela já ta se encaminhando" (Tatiana)
É válido notar que todos eles têm a leitura como uma marca forte que também permeiam seus vínculos afetivos. Tatiana diz que vive ganhando livros dos primos que sabem de seu gosto; Marisa diz conversar sobre os livros que lê com a irmã; e Wilson usa a leitura para evoluir intelectualmente e progredir no que gosta de fazer, como é o caso da música. Ele revela pesquisar sobre os autores das músicas que toca, para tentar entender como aquilo aconteceu e divide essas experiências com seus professores. Assim, estabelecem-se relações envolvendo leitura em que os adolescentes em questão são os mediadores no contato de outras pessoas com a leitura, da mesma forma que a leitura está sendo a mediadora nas relações com outras pessoas.
Assim, nota-se que o papel da afetividade é essencial e aparece como elemento crucial na constituição dos três adolescentes investigados enquanto leitores. Os laços afetivos não só permeiam tal constituição como também se formam, firmam-se e se fortalecem na interação com os outros que medeiam a leitura e são mediados por ela em suas relações.
Portanto, se o meio físico e social não parecem ser tão propulsores para o desenvolvimento de uma história de leitura significativa - como é o caso dos jovens aqui envolvidos; de bairros populares desprovidos de incentivos culturais e intelectuais -, destaca-se aqui a qualidade da mediação a partir dos laços afetivos que a perpassam como fator essencial na formação intelectual. Assim, se as pesquisas de Galvão (2004) e, Oliveira e Vóvio (2004) incitaram a busca pelos fatores que seriam responsáveis pelo "sucesso intelectual" daqueles nos meios menos favorecidos, já é possível dizer que a dimensão afetiva: incentivo, influência, prazer, admiração, desejo - refletido na interação com os outros mediadores são de fundamental importância para tal.
Cruzando linhas: entre o texto e o mundo.
A leitura, o livro e o texto relacionam-se com outros bens culturais - música, artes, dança - e podem ser mediados por eles assim como podem ser instrumento de mediação para eles. Podem ser a mola propulsora para o contato com a leitura; podem ser uma conseqüência desse contato. Desta forma, é importante explanar sobre as relações das histórias e vivências de leitura dos nossos protagonistas, seus interesses e gostos em um intercruzamento entre a leitura do texto e a leitura do mundo. Vínculos entre a leitura e os outros bens culturais que se enroscam com ela nas histórias dos participantes.
Já foi dito que uma das similaridades dos adolescentes aqui retratados é o interesse pela cultura, o gosto seleto, a busca pela qualidade, o ponto de vista crítico sobre o que escolhem para ler, ouvir, ver - livro, música, cinema, dança, arte. É bastante interessante perceber que há uma intersecção entre os interesses dos participantes.
"Gosto de teatro, cinema... Gosto mais de teatro artístico, que representa a cultura e tudo, tá entendendo?" (Marisa)
"Gosto muito de teatro, cinema. Tudo com minhas irmãs. Principalmente, quando é, assim... essas coisas da cultura de Pernambuco. Adoro a cultura daqui!" (Tatiana)
"Gosto de tudo que é voltado à arte e cultura, eu gosto. Acho que a forma de se expressar... acho interessante." (Wilson)
Essa demonstração de interesse comum também se explicita na postura crítica que os jovens parecem ter em relação ao que desfrutam como lazer. Tatiana diz que seu gosto musical foi se "peneirando" até chegar ao que é hoje - música popular brasileira e regional. Porém, um discurso bastante interessante sobre isso é o de Wilson, que diz:
"Gosto de filme francês, que mostra bem a realidade. Ou melhor, gosto de filme que mostra a realidade porque filme americano... tem sempre aquele começo ruim e no fim é sempre feliz. (...) (Sobre música) Eu gosto, menos o brega, Swingueira também não gosto. Foi música de qualidade, eu escuto"
Tomando como base ainda a história de Wilson, fica bem evidente a ligação entre a leitura e, no seu caso, a música. "A música influenciou em relação à leitura sim. Acho que em todo o tipo de arte, você tem que procurar vínculos com a cultura". Assim, nesse processo interativo, a música medeia a leitura e a leitura medeia a música.
Dessa forma, a leitura - o livro - como manifestação cultural que é - permite a interação com outros tipos de manifestações culturais e permite uma construção de sentidos que transcende as linhas do texto: "Todo tipo de leitura é informação. Então você vai relacionar com outras coisas e quando você relaciona é muito bom, é prazeroso"(Marisa)
Nessa perspectiva de leitura como ampla interação e construção multidirecional de sentidos, Orlandi (2006) aponta que a leitura é uma questão sóciohistórica. Os sentidos não estão no próprio texto, mas se constituem a partir das relações entre leitor, autor e leitor virtual - as historicidades, as vivências e experiências do leitor e o contexto do autor se influenciam mutuamente.
"Quando eu leio um livro eu tento ler é... de que escola literária faz parte aquela obra, que época. Eu tento estudar o contexto, sabe? Porque acho que a gente pega mais o livro, o conceito dele, o que o autor quis passar, de acordo com a época com que ele foi escrito" (Marisa)
Assim, é coerente ressaltar que essa construção de sentidos é baseada na relação que se desenvolve a partir da interação com infinitos mediadores - autor, leitor virtual, outros livros que falam sobre o livro lido... A partir das experiências e vivências do leitor tal relação é construída sendo importante salientar que a leitura, nesse sentido, está completamente vinculada ao afetivo. De acordo com aquilo que lateja em seu ser, que lhe faz buscar saciar sua sede - de informação sobre música, sobre o contexto do autor, etc. - o leitor entra em contato consigo mesmo para suprir o que lhe falta, o que lhe satisfaz: "Leitura é uma questão de necessidade. É você aprimorar o conhecimento de uma forma livre. E melhora o diálogo [...] Ser leitor é se aprofundar, ter mais conhecimentos. Tirar muitos proveitos na vida particular e sentimental"(Wilson)
Enfim, a leitura de texto e a leitura de mundo imbricam-se de forma tal que uma influencia a outra. Dessa forma, retomando Orlandi (2006), o leitor constrói seus sentidos no texto a partir de sua leitura de mundo, ao mesmo tempo em que a leitura de mundo sofre influência do que o texto e seu contexto passaram. A história de leitura, logicamente, ligada à história de vida, coloca-se a frente do leitor e da pessoa que esses sujeitos são atualmente; às suas visões de mundo, às suas significações e valores, inclusive no próprio âmbito da leitura.
O ser da/na leitura
Se as vivências e experiências na vida e de leitura são importantes ao se pensar na construção de sentidos e na interação com o texto, também cabe dizer que isto implica nas próprias visões sobre a leitura, sobre o ser leitor no mundo, na vida.
Os personagens dessa história que vem sendo aqui apresentada parecem atribuir à leitura grande importância.
"Na vida de qualquer pessoa eu acho leitura fundamental. Por que ela abre caminhos, ela abre a mente, entendeu? Faz da pessoa... transforma, a leitura transforma. Você começa a ter um ponto de vista crítico das coisas, você sabe discutir. Começa a ter conceitos próprios, torna a pessoa com uma visão mais ampla" (Marisa)
Tanto Marisa, assim como Tatiana e Wilson têm a leitura como constante na vida, algo que desperta prazer, que transforma, que gera novas possibilidades. "[Leitura] é uma forma de diversão, é uma janela para outras idéias" (Tatiana)
Nesse mesmo sentido, Wilson, como já foi dito, a partir da leitura, cria possibilidades para o seu ser no mundo, no universo em que vive. Ele encara a leitura como uma porta para aquilo que ele quer ser, como algo que irá ajudá-lo em seu caminho; considerando que isso também seria válido para outras pessoas.
"A escola devia pegar coisa do tipo, música, teatro, dança e envolver o aluno. Gerar o interesse... também pela leitura... As pessoas que estão voltadas para a cultura são mais interessantes, o diálogo que você vai ter com elas é mais interessante" (Wilson)
Parece que, ao ler, eles entram em contato com o mundo, com outros mundos, com seu próprio mundo; entram em contato consigo próprios, descobrem-se, constroem-se; transformam realidades. Partilhando com isso, Concha (2002) e Eco (2002) atribuem à leitura a possibilidade de viajar sem sair do lugar, de entrar em contato com outras pessoas, rompendo barreiras de tempo e espaço, e favorecendo mais tempo ao viver porque através dela se rouba recordações de outros, incorporando-as a si mesmo.
Assim, a leitura se faz como elemento de suma importância na vida desses adolescentes, algo que já faz parte de suas vidas. "Não consigo tá um grande período sem tá lendo um livro. Pra onde eu vou, eu levo... Tô na parada do ônibus, tô lendo... é como uma bíblia. Antes de dormir também" (Tatiana)
Ler é uma atividade que traz prazer; que envolve. "Quando eu leio, eu sinto prazer. Fico ansiosa pra saber como vai terminar o livro" (Marisa). "Eu sinto o que o personagem sente. Se ele fica triste, fico triste com ele. É muito engraçado, mas é muito bom" (Tatiana). "Eu viajo na história quando tô lendo" (Wilson).
Nessa conjectura de viagens e sentimentos, é possível dizer que nessa interação com o livro, com o autor, com o leitor virtual, consigo mesmo, o que se desenvolve é uma relação completamente marcada pela afetividade. São construídos vínculos entre o leitor e o livro; ocorre uma relação amorosa na qual o leitor deixa-se "contaminar" pelo o que o livro lhe desperta: "Ler é expressão de sentimentos. É tentar achar uma forma de mudar o mundo" (Marisa). O leitor é uma porta aberta para o que o livro tem a oferecer. O livro é uma janela para o que está além, o que ainda estar por ser explorado, descoberto e assim se faz no momento em que se lê. Dessa maneira, a leitura colabora na construção do próprio ser no mundo - construção essa fincada sobre os alicerces da partilha com os outros, sejam quais forem, e emanada a cada linha percorrida.
Finalizando a leitura...
Se aqui se buscou encontrar as relações entre afetividade e leitura, podese dizer que ambas estão intimamente ligadas. A partir do longo percurso dos protagonistas dessa história, foi visto que uma história de leitura significativa parte da qualidade da mediação no amplo processo interativo que é o ler.
As experiências e vivências de leitura das quais desfrutaram Marisa, Tatiana e Wilson se entrelaçam pelo caminho quando se olha para os aspectos concernentes à afetividade. Nos três casos, há um outro, um mediador com o qual se há vínculos afetivos - de admiração, de dependência, de prazer, de interesse. Um outro que também pode ser a cultura, como é o caso do livro. Isto corrobora com o que afirma Leite (2006) quando diz que entre histórias de leitura significantes sempre há a forte marca de laços afetivos com outros que circundam o sujeito.
Também se buscou ver a influência do meio sobre a formação do leitor e viu-se que este tem seu papel. Notou-se que por mais que pareça desfavorável, existe a possibilidade de ele ser transformado: quando há o outro revestido de significação afetiva. Dessa maneira, parece relevante que o contexto criado no meio em que se vive, a atmosfera construída a partir da mediação de outrem, pode vir a possibilitar uma nova realidade. E é essa realidade que, no caso dos adolescentes investigados, foi transformada a partir das experiências do outro mediador da leitura; pois este outro mediador tem a leitura dentro de si, arraigada, já presa, exalando pelos poros seu poder de transformação.
Corroborando com isso, Galvão (2004) e Oliveira e Vóvio (2004) dizem que indicadores econômicos, sociais e culturais interferem efetivamente na constituição do leitor, bem como os graus de instrução, de alfabetismo e de letramento dos mediadores e o meio. Porém,tais indicadores não são tão determinantes visto o número considerável de exceções que aparece nos seus estudos. Nesse mesmo sentido, Grotta (2006), Souza (2006) e Silva (2006), apresentam que a admiração pela intelectualidade do outro é importante para despertar o prazer pela leitura, assim como a leitura é importante na formação da subjetividade da pessoa e que a qualidade afetiva da mediação é fundamental para a constituição do leitor; como fica claro no caso dos protagonistas em questão.
Como foi percebido, hoje, os personagens em cena têm uma relação afetiva com a própria leitura, numa interação que leva à construção de novos sentidos, de novas visões de mundo, transformando o sujeito e sua realidade - fazendo aflorar aquilo que está no íntimo do ser - a afetividade se coloca desde o início da história de vida desses personagens e da constituição deles como leitor. Também é importante frisar que tal interação com os outros mediadores se coloca fundamentalmente na evolução psicológica do sujeito, uma vez que integra as dimensões afetivas e cognitivas, demonstrando, assim, a importante ligação entre elas.
Assim, se a dimensão afetiva ao longo da história de leitura desses jovens foi determinante para o seu ser leitor de hoje; se a relação com os outros e a qualidade da mediação foi influente nesse processo; a leitura é uma atividade cognitiva e afetiva ao mesmo tempo, sendo relevante na constituição da pessoa, no ser no mundo - podendo transformar um cenário que, enganosamente, parece levar para um único caminho de "fracasso intelectual". A leitura é o nó que une esses três jovens em seus caminhos, mostrando que para o ser leitor parecem ser relevantes experiências significativas e afetivas ao longo de sua história de leitura - um contexto permeado por outros que facilitem a mediação, circunscrita pela afetividade.
Em resumo, verifica-se a importância de se incluir nas propostas de formação de leitores o contato permanente com diferentes leituras e textos, bem como com as mais variadas linguagens, como é o caso, do teatro, do cinema, da performance e da pintura, para assim garantir a dialogicidade com diferentes "outros", de diferentes épocas e lugares; favorecendo, por outro lado, a constituição da pessoa e de sua história de leitura. Além disso, chama-se atenção para o papel da escola enquanto uma das agências de letramento e de constituição de leitores, em especial de estudantes de classes menos favorecidas; uma vez que a qualidade afetiva da mediação estabelecida entre o professor e a leitura pode ser um elemento diferencial na trajetória de leitura de seus alunos, como pode se evidenciar na história de Wilson, que foi enredado pelo outro da leitura a partir da sugestão de leitura de sua professora...
Referências
Concha, V. G. (2002). "Leer para ser". In: Millán, J.A. (Org.) La lectura em España: Informe 2002. Madrid, Federacion de Gremions de editores de España. [ Links ]
Eco, U. (2002). "Algunas razones para leer". In: Millán, J. A. (Org.). La lectura em España: Informe 2002. Madrid, Federacion de Gremions de editores de Espana. [ Links ]
Galvão, A M. de O. (2004). "Leitura: algo que se transmite entre as gerações?" In: Ribeiro, V. M. (Org.). Letramento no Brasil. São Paulo, Global. [ Links ]
Galvão, Izabel. (2003). Expressividade e emoções segundo a perspectiva de Wallon. In: Arantes, Valéria A. (Org.). Afetividade na escola, alternativas teóricas e práticas. São Paulo, Summus. [ Links ]
Grotta, E. C. B.(2006). "Constituição do sujeito-leitor: análise de alguns aspectos relevantes". In: Leite, S. da S. (Org.) Afetividade e práticas pedagógicas.São Paulo, Casa do Psicólogo. [ Links ]
Leite, S. A. S. (Org.). Afetividade e práticas pedagógicas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006. [ Links ]
Oliveira, M. K.; Vóvio, C. L. "Homogeneidade e hetrogeineidade nas configurações do alfabetismo". In: Ribeiro, V. M. (Org.). Letramento no Brasil.2 ed. São Paulo, Global. [ Links ]
Orlandi, E. P. (2006). Discurso & leitura. 7 ed. São Paulo, Cortez. [ Links ]
SIlva, L. M. (2006). "Significação das práticas de leitura sob a ótica do aluno leitor". In: Leite, S.da S. (Org.) Afetividade e práticas pedagógicas. São Paulo, Casa do Psicólogo. [ Links ]
Souza, J. S. Z. "O papel da família na construção do leitor". In: Leite, S. da S. (Org.) Afetividade e práticas pedagógicas. São Paulo, Casa do Psicólogo. [ Links ]
Wallon, H. (1941/2007). A evolução psicológica da criança.São Paulo, Martins Fontes. [ Links ]
Apêndice A: Roteiro de entrevista
Nome:
Idade:
Naturalidade:
Escolaridade:
Escolaridade dos pais:
Profissão dos pais:
Processo de escolarização e interesses:
1) Como foi a sua trajetória escolar?
2) Que contribuição seus pais deram no seu processo de escolarização? Por quê?
3) Desenvolve alguma tarefa extra-escolar? Qual?
4) Você costuma ir ao teatro? Por quê?
5) Costuma assistir a que gêneros de filmes? Por quê?
6) Você tem hábito de escutar música?
7) Qual seu gênero preferido de música? Por quê?
História de leitura:
8) Você lembra dos primeiros contatos que teve com material escrito? Como aconteceu?
9) Que tipo de material você lia e quem disponibilizava?
10) Como surgiu seu interesse pela leitura?
11) Você teve alguém como modelo de leitor durante sua história de leitura? Quem?
12) Já ganhou algum livro de presente?Em que situação?
13) Que tipo de material você lê? Por quê?
14) Com que freqüência? Por quê?
15) Costuma freqüentar bibliotecas? Quais?
16) Freqüenta livrarias? Por quê?
17) Quais as suas relações com a leitura dentro da escola?
18) Qual o último livro que você leu?
19) O que você considera ser leitor?
20) Que imagem tem de si como leitor?
21) Qual a importância da leitura na sua vida?
22) O que é leitura na sua concepção?
23) O que sente ao ler?