Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Psicologia da Educação
versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520
Psicol. educ. n.27 São Paulo dez. 2008
Escola, ética e cultura contemporânea: reflexões sobre a constituição do sujeito que "não aprende"
School, ethics and contemporary culture: reflections on the constitution of the citizen that does not learn
Escuela, ética y cultura contemporánea: reflexiones en la constitución del sujecto que no aprende
Ieda BenedettiI; Sônia da Cunha UrtII
IPsicóloga, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS - Brasil
IIProfessora do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS - Brasil. E-mail: surt@terra.com.br
RESUMO
Trata-se de um ensaio sobre as questões que circundam as justificativas e compreensão da atual "febre" nas escolas: O TDAH (Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade). Este artigo busca, portanto, discutir o TDAH de modo crítico, fazendo uma leitura do contexto contemporâneo em que se insere a escola, analisando a constituição do sujeito nesse cenário e os fatores que influenciam e atuam na dinâmica da relação ensino versusaprendizagem. O modelo das relações contemporâneas com suas verdades e as exigências para seu cumprimento pode estar desencadeando a evidência do TDAH no contexto escolar atual, que passa a ser uma resposta, ou a melhor resposta, que o psiquismo pode oferecer diante de uma escola que não fala sua linguagem, que não percebe os alunos como sujeitos de seu tempo.
Palavras-chave: TDAH; aprendizagem; subjetividade.
ABSTRACT
The present essay seals the subjects that surround the justifications and understanding of the current "fever" in the schools: ADHD (Attention-Deficit Hyperactivity Disorder). That article looks for, therefore, to discuss ADHD in a critical way, making a reading of the contemporary context in which that school and the subject are inserted, analyzing the subject's constitution in that scenery and the factors that influence and act in the dynamics of teaching versus learning relationship. The model of the contemporary relationships with its truths and the demands for its execution can be unchaining the evidence of ADHD in the current school context that becomes an answer, or the best answer, that the psyche can offer before a school that doesn't speak its language, that doesn't notice the students as individuals of their time.
Keywords: Learning; School; Subject.
RESUMEN
És um ensayo acerca de las cuestiones que circundan las justificaciones y comprensión de la actual fiebre em las escuelas: el TDAH (Trastorno de déficit de atención y hiperatividad). Ese articulo intenta, sin embargo, hacer la discusión del TDAH de forma critica, haciendo uma lectura del contexto contemporâneo en que si insere la escuela, haciendo un analisis de la constitución del sujecto en este escenario y los factores que influencian y actuan em la dinâmica de la relación enseñanza versus aprendizage. El modelo de las relaciones contemporanes con sus verdades y las exigencias hacia su cumplimiento pueden estar desencadenando la evidencia del TDAH em el contexto de la escuela actual, que pasa a ser una contestación o una mejor contestación que las psiquis pueden ofrecer frente a una escuela que no habla su lenguage, que no percibe los alumnos cómo sujectos de su tiempo.
Palabras clave: TDAH; aprendizage; subjetividad.
Este trabalho discute as questões do aprender e do "não aprender", tomando como cenário o TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade)1 caracterizado como a "epidemia" do momento no cotidiano escolar. Será feita uma análise crítica por meio da leitura do contexto contemporâneo em que se insere a escola e o sujeito, analisando a constituição do sujeito nesse cenário e os fatores sociais, culturais e éticos que influenciam e atuam na dinâmica da relação ensino versus aprendizagem.
Assim, parece ser necessário situar algumas questões ligadas ao contexto contemporâneo. Ao longo do século XX, o célere desenvolvimento dos meios de comunicação de massa modificou o estilo de vida e a maneira como crianças, adolescentes e adultos aprendem e vivem, concorrendo inclusive com o papel da escola, como afirma Saviani (1991):
[...] vivemos uma situação paradoxal, do ponto de vista escolar. De um lado, a escola é secundarizada; afirma-se que não é só através dela que se educa; educa-se através de múltiplas formas, através de outras instituições como associações de bairros, relações informais, da convivência, dos meios de comunicação de massa - isto é, do cinema, rádio, televisão. Portanto, há múltiplas formas de educação, entre as quais se situa a escolar. Segundo essa tendência, a escola não é a única e nem mesmo a principal forma de educar. (p. 99)
A TV e o computador ganharam espaço diante da crescente onda de insegurança e da perda de ambientes públicos destinados ao lazer. Estudantes que outrora tinham muito de seu lazer ligado às atividades físicas como futebol e a bicicleta encontram-se muito mais envolvidos com o lazer da informática, vídeos e TV. Tais mudanças no comportamento podem ter influência no desenvolvimento neuropsicomotor de nossos educandos.
Tradicionalmente, a família, a religião e a escola exerciam a principal influência sobre o desenvolvimento intelectual, emocional e moral de uma criança. Isso não é mais assim. Em termos de tempo gasto, a maior influência agora é a do televisor, acompanhada de um crescente impacto de outros meios eletrônicos.
Nesse sentido, Kehl (2004), assim se expressa:
A onipresença do olho mágico da televisão no centro da vida doméstica dos brasileiros, com o poder (imaginário) de tudo mostrar e tudo ver que os espectadores lhe atribuem, vem provocando curiosas alterações nas relações entre o público e o privado. Durante pelo menos dois séculos, o bom gosto burguês nos ensinou que algumas coisas não se dizem, não se mostram e não se fazem em público. Essas mesmas coisas, até então reservadas ao espaço da privacidade, hoje ocupam o centro da cena televisiva. Não que o bom gosto burguês deva ser tomado como referência indiscutível da ética que regula a vida em qualquer sociedade. Mas a inversão de padrões que pareciam tão convenientemente estabelecidos nos países do Ocidente dá o que pensar. No mínimo, podemos concluir que a burguesia do terceiro milênio já não é a mesma que ditou o bom comportamento dos dois séculos passados. No máximo, supõe-se que os fundamentos do contrato que ordenava a vida social entre os séculos XIX e XX estão profundamente abalados, e já vivemos, sem nos dar conta, em uma sociedade pós-burguesa, num sentido semelhante ao do que chamamos uma sociedade pós-moderna. (p. 141)
O comportamento humano, portanto, é, em parte, influenciado por seus valores, crenças e atitudes, e é determinado em época precoce da vida. Os indivíduos não nascem com um conjunto preexistente de atitudes. Elas são adquiridas através da experiência e das interações diretas e indiretas, ou seja, é a partir do momento em que se inicia a interação com o mundo que os sistemas que fazem parte do comportamento começam a sua formação. Diz-se por isso que o homem será, pois, aquilo que aos poucos, se for fazendo.
O ambiente familiar, por exemplo, exerce considerável papel no contexto natural e cultural da pessoa. A família é o dado social mais inelutável. Igualmente, é o meio mais permanente de todos. Nada mais importante na história do aparecer e do desenvolver humano que essa confluência de relações intersubjetivas nucleares.
Assim, os novos conceitos, adquiridos gradativamente por um indivíduo, são assimilados e integrados aos conhecimentos já existentes, através do compartilhamento das informações. Esses novos conhecimentos são adquiridos através das experiências pessoais na escola, na família, na religião, no trabalho e nos meios de comunicação de massa.
A desconsideração das dimensões socioculturais e psicológicas da criança obstaculiza o conhecimento do aluno na totalidade de suas características, o que pode levar os professores a terem uma visão irreal daqueles com quem atuarão.
A esse respeito, Souza (2004) pronuncia:
A preponderância nos meios educacionais, de relações marcadas pela hierarquização; a atribuição do outro de um lugar de desqualificação; a demanda por "receitas" para responder às vicissitudes enfrentadas na escolarização (como as dificuldades no processo de ensino-aprendizagem, a presença da violência nas escolas, entre outras; a adesão incondicional às teorias e métodos que adotam concepções de sujeito e do ensino-aprendizagem baseadas em modelos definidos a priori, todos esses aspectos podem dizer respeito às subjetividades conformadas por uma representação identitária rígida, as quais não toleram o contato com a angústia gerada pelo não-saber e pelos limites do saber sobre si próprio, sobre o mundo social e o mundo natural. (p. 129)
Porque, na verdade, para além das estruturas ideológicas da educação, sejam elas quais forem, educar é a tentativa de aproximação do mistério subjetivo de cada indivíduo. Por isso, como esclarece Freire (2004, p. 87): "o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado também educa".
As crenças e atitudes que a escola tem a respeito do aluno, provavelmente determinarão a adequação do seu trabalho. O desconhecimento é apontado como um dos principais fatores geradores de estereótipos e atitudes inadequadas ante um alvo. Portanto, conhecer as características da população a ser trabalhada constitui o principal requisito para que as intervenções sejam adequadas.
Temos hoje um sujeito em transformação, um sujeito de seu tempo, com características e influências de seu tempo. A hierarquia, por exemplo, tão presente na estrutura da escola, encontra-se em grande transformação valorativa. Temos um educando diferente e uma escola que se transforma mais lentamente. Assim, talvez pela inabilidade em se mover junto com as necessidades sociais, a escola encontra-se perplexa diante da necessidade de educar de modo igual sujeitos tão diferentes entre si e no tempo. Desta feita, a escola busca responsáveis e culpados. Por essa ótica, pode-se compreender a crescente onda classificatória de crianças e encaminhamentos para tratamento especial. São tantos códigos e classificações como hiperatividade, dislexia, distúrbios, etc., que se torna rara a criança adequada para o formato apresentado pela escola atual. Como afirma Patto (1990, p. 90): "A escola não aceita a criança como ela é, e a criança não aceita a escola tal como ela funciona". Hoje, parece que não foram mais feitos um para o outro...
Ainda sobre o contexto escolar, continua a autora:
No plano das idéias, a vida na escola encontra-se imersa na cotidianidade, contrariando a própria definição de seus objetivos, segundo a qual o espaço escolar seria um lugar privilegiado de atividades humano-genéricas. Juízos provisórios e ultrageneralizações cristalizados em preconceitos e estereótipos orientam as práticas e processos que nela se dão. (Patto, 1990, p. 347).
A escola contemporânea vem apresentando dificuldades em lidar com um aluno que, em conseqüência da estrutura atual da família e sociedade, passa boa parte de seu tempo na companhia de uma tela colorida da TV ou do microcomputador, onde grande parte de seu desenvolvimento é moldado. Jogos que podem ser controlados e repetidos várias vezes e filmes que se reprisam fazem parte do cotidiano dos nossos alunos. Assim, classificam-se as crianças como problemáticas quando podem apenas serem sujeitos de seu tempo, um tempo que requer novas habilidades de professores e escola.
Classificar alunos como portadores de distúrbios parece ser uma postura tranqüilizadora para a escola, que pode se ver como eficiente e situar a ineficiência longe de si, no aluno. Contudo, autores como José Carlos Libâneo vêm de longa data apontando a necessidade de a escola e a Pedagogia encontrarem respostas para as novas necessidades e especificidades dos sujeitos e das sociedade contemporâneos.
A discussão atual do papel da educação ante as novas realidades econômicas, políticas e culturais, definidoras do mundo contemporâneo, faz repor os temas da Pedagogia, da modernidade e das novas tarefas da escola. Há alguns anos, boa parte dos educadores críticos tinham mais convicções e certezas do que têm hoje. (1998, p. 150)
Em que medida a tendência a repetir, encontrada nos jogos digitais, influencia a capacidade de criar e até onde essa repetição impacta a atenção? Existe correlação entre o novo contexto - em que o desenvolvimento infantil está submerso - e o aumento do número de crianças com problemas ligados à atenção e hiperatividade? A hiperatividade seria uma resposta, ou a melhor resposta, que o psiquismo pode oferecer diante de uma escola que não encontrou mecanismos para tornar o processo educacional suficientemente prazeroso diante dos avanços tecnológicos tão sedutores? Cremos que essas são questões que perpassam a compreensão da questão do TDAH no contexto contemporâneo.
Qualquer tentativa de responder a essas questões impõe a necessidade de levar em conta três fenômenos básicos: o primeiro deles é o avanço vertical da própria tecnologia; o segundo é o despreparo crescente da escola, dos professores e da família para fazerem frente à eficiência dos processos eletrônicos de comunicação; e, por fim, o terceiro é a época, em que se vive uma fase do descartável, do transitório. Isto porque a onipresença e onipotência dos meios televisivos compelem o indivíduo a um universo descartável, onde inexiste, atualmente, em cada jovem, um quadro referencial ou uma identidade construída pari-passua essa evolução.
Durante a evolução dos meios de comunicação e do sistema educacional, parece ter existido uma ruptura. Ruptura que pode ser vista a partir de dois enfoques distintos, um afirmativo, de ganho e de conquista, e um negativo, de perda (ainda que relativa). O momento de conquista de novas tecnologias, de tendências que mobilizam novos comportamentos e valores pessoais, se dá graças ao momento de perda ou diminuição da eficiência da escola, na construção de uma identidade pessoal, o que coloca a subjetividade de cada indivíduo apenas como acessório e não mais como um código central.
Os meios de comunicação e as novas tecnologias deflagraram novos processos e inusitados conceitos éticos e morais, num mundo extremamente heterogêneo e complexo, acarretando de modo inevitável o desalinho de antigos esquemas de pensamento.
Não se pode atribuir à televisão, ao computador e aos demais meios eletrônicos de comunicação um papel único ou mesmo preponderante na geração de diferentes comportamentos. Há características individuais, além de sociais e ambientais, que concorrem para moldar a personalidade ou definir comportamentos, sobretudo a qualidade dos relacionamentos humanos.
Concomitantemente, a estrutura da família contemporânea encontra-se em grande transformação. Sua configuração não é mais tão predominantemente composta pelo padrão: pai + mãe + filhos. Temos pais, avós, companheiros e uma série de outros personagens impactando o cenário familiar, que também perdeu seu espaço de grande formador de valores éticos e modelos comportamentais, ocupado, também agora, pelos meios de comunicação (cinema, TV e Internet) que por vezes, oferecem ao sujeito, sem modelos sólidos identificatórios, a ilusão de pertencer a um grupo.
Nesse entendimento, tornam-se essenciais os aportes da ciência educacional para enfrentar os desafios de um novo tempo, muito mais complexo que os anteriores.
A esse respeito, salienta Souza (2004):
A concepção da prática educacional, na modernidade, propõe a formação do homem, o que implica mudanças. Espera-se que as representações mudem e se desloquem, e que o saber do sujeito sobre si mesmo e sobre o mundo se altere. Essa dinâmica demanda o reconhecimento do estranho em nós, possibilitando a mudança da relação estabelecida pelo sujeito consigo mesmo e com o outro. O contato com o novo necessita que o sujeito tenha condições subjetivas para questionar suas certezas, podendo reconhecer e sustentar o contato com o outro, interno e externo, sem se sentir demasiadamente ameaçado. Dessa forma, ele pode pensar sobre os estereótipos construídos acerca do outro que, por ser estranho e conhecido, desestabiliza suas representações a respeito de um saber apriorístico elaborado sobre si e sobre o mundo. (p. 124)
As forças motivadoras do exercício da educação têm sido, neste momento atual, apenas vento e não âncora. Pois o que segura o processo de formação é o grupo da escola discutindo e estudando, interna e diariamente, a sua prática. A escola do sujeito contemporâneo deve subsidiar, auxiliar na construção de uma identidade pessoal.
A função primordial atribuída à escola "pós-moderna" é a ênfase na formação de uma identidade pessoal e social que possibilite a convivência "harmônica" em sociedade, atribuindo-se a exclusividade na solução dos problemas, como tentativa de realização de um sistema de formação integral.
Parte-se do pressuposto de que o papel da escola ante suas necessidades atuais, resultantes das transformações sofridas pelo homem, especificamente no campo da ética, das relações humanas e comportamentais, exige um novo modo de pensar e agir.
Na verdade, é fato inconteste que, de anos para cá, está ocorrendo um modo de pensar, agir e viver fora dos princípios éticos até há pouco tempo respeitados e aceitos. É o que se chama de crise ética. Pior ainda é a crise da Ética, isto é, aceita-se como "natural" essa nova situação, como se não houvesse norma para reger os atos humanos, tanto particulares como públicos. Falta aceitação da necessidade da Ética, que compreende os valores capazes de garantir a realização pessoal e social do ser humano, conforme sua dignidade e o sentido de sua vida.
A esse respeito, Kehl (2002, p. 79) afirma que "ao empobrecimento do pensamento correspondem, de um lado, a violência; de outro lado, a depressão".
Essa preocupação inspira os recentes debates de professores e se manifesta nas reações espontâneas das diversas classes sociais.
Sobre isso, Costa, no prefácio ao livro Função Fraterna, afirma que:
É ingênuo pensar que podemos criar sintomas ex machinaou atravessar a neblina cultural para chegar ao Eldorado do "psiquismo sem cultura". Não nascemos "sendo"; somos o que nos tornamos, e, salvo exceção, nos tornamos o que a cultura permite que venhamos a nos tornar. Imaginar que no fundo, da alma, somos todos neuróticos, perversos ou psicóticos, faz tanto sentido quanto imaginar que temos um "núcleo" estóico, budista, aristotélico, cristão, judeu, kardecista, vândalo, nietzscheano, umbandista ou taoísta que permanece idêntico a si mesmo, não obstante à volubilidade dos ideais históricos de subjetivação. (Costa in Kehl, 2000, p. 10)
Nesse cenário, acima exposto, observa-se um profundo desconforto dentro da escola envolvendo educandos com sérios problemas para aprenderem, se manterem em sala de aula ou se enquadrarem nas propostas das escolas, e pais e educadores com sérias dificuldades para encontrar soluções para a problemática apresentada por tais educandos.
Na busca de respostas para indagações sobre as mudanças no comportamento e na aprendizagem do aluno na escola contemporânea, observou-se que há um fenômeno crescente no meio educacional e áreas interligadas, em torno do quadro denominado TDAH.
Tal discussão deve-se ao fato de que a escola encontra-se diante de uma onda crescente de dificuldades para lidar com questões ligadas à relação professor x aluno, em que professores se queixam de indisciplina e desatenção por parte dos alunos. Pais e professores encontram-se ainda perplexos diante da dificuldade crescente apresentada pelos alunos em conseguirem uma razoável interação com a escola e com a aprendizagem, em que podemos encontrar um número elevado e crescente de crianças que passam pela escola sem conseguir atingir resultados minimamente razoáveis.
Escola e família deparam-se com crianças que não conseguem, por exemplo, aprender a ler ou fazer contas ou estar adaptadas ao trabalho em sala de aula, estando constantemente inquietas e agitadas, causando transtornos ao desenvolvimento das atividades escolares.
Todas essas questões, tão amplas, vêm sendo condensadas dentro de um mesmo diagnóstico por profissionais das áreas de educação, Psicologia e Medicina: TDAH. Os especialistas na área admitem que há uma grande quantidade de correntes que apontam vários caminhos para a compreensão do assunto. Veja-se como as definições são amplas e dão margem para o enquadramento de uma enorme gama de comportamentos.
Apesar de o transtorno do déficit de atenção com hiperatividade contar com uma longa história de estudos empíricos e numerosas linhas de investigação sobre o tema, ainda não existe consenso entre os especialistas sobre o termos mais adequados para sua definição teórica. Por outro lado, parece existir um acordo generalizado para descobrir como é o comportamento dessas crianças. A maioria dos investigadores concorda em que este se caracteriza por um padrão persistente de falta de atenção e/ou hiperatividade e impulsividade, cuja a freqüência e severidade são maiores que o tipicamente observado em indivíduos com um nível comparável de desenvolvimento. (Condemarin, pp. 23-24)
Como conseqüência, temos consultórios abarrotados de crianças em "tratamento" para TDAH, pais investindo em um tratamento clínico dos problemas de aprendizagem dos filhos e a escola investindo em palestras com profissionais da área para pais e professores. A mesma escola vem encaminhando em grande escala seus alunos para esse tratamento clínico, atribuindo à questão um caráter individual centrado no sujeito (o aluno). Tal postura, que identifica as causas da problemática situada em um único fator (o sujeito), merece ser pesquisada. Há que se questionar até que ponto esse encaminhamento não é uma medida reducionista da questão, na qual tanto a escola quanto a família se encontram eximidas de maiores responsabilidades e assim menos comprometidas com o andamento para a solução da questão.
Nota-se ainda que alguns livros que discorrem sobre o tema trabalham com um tom bastante acolhedor e em alguns níveis quase sedutor ou litúrgico, para se referir à questão. Segue citação de um best seller da área.
A maioria das pessoas que descobre ter DDA - crianças ou adultos - já sofreu bastante. A experiência emocional do DDA é cheia de constrangimento, humilhação e autopunição. No momento do diagnóstico, muitas pessoas haviam perdido a confiança em si mesmas. Muitas foram mal compreendidas diversas vezes; muitas consultam inúmeros especialistas e não encontram ajuda real. Como conseqüência disso, muitas perderam a esperança. (Hallowell, p. 257)
Nessa perspectiva, pais e escola delegam a solução da referida problemática a profissionais das áreas clínicas como médicos e psicólogos, dissociando a questão e isentando-se de rever relações familiares, propostas pedagógicas, opções didáticas e a evolução social inerente ao contexto atual.
Assim, o foco da questão fica direcionado ao sujeito (aluno) e a temática ligada à hiperatividade e ao distúrbio de atenção surge como se estivesse dissociada de todo o restante do contexto social mais amplo (familiar e escolar).
Tal definição diagnóstica parece ampla o suficiente para acolher uma gama enorme de problemas com os quais a escola vem se deparando e se sentindo impotente diante. Pode-se, a partir daí, levantar os seguintes pontos para discussão:
- Essa explosão diagnóstica centra o problema no sujeito (educando) e exime de responsabilidade direta a escola; - Trabalhado do modo descrito, o diagnóstico de TDAH é bastante conveniente e lucrativo para as clínicas e para a indústria farmacêutica.
- Diante da dificuldade dos filhos perante a escola, a idéia de que a criança tem um problema que pode ser tratado a partir do uso de medicamento, traz, para os pais, no primeiro momento, a isenção da necessidade de mudanças profundas nas relações interpessoais dentro da família.
- Assim, escola, pais e profissionais que trabalham no tratamento do TDAH se encontram em uma posição bastante favorável dentro dessa visão do problema. E o indivíduo diagnosticado como portador de TDAH vem recebendo o acompanhamento devido ou apenas ocupando o papel de depositário (bode expiatório) de uma questão muito mais ampla que envolve a releitura do papel da escola, da família, dos profissionais e da sociedade em geral, dentro do contexto contemporâneo?
Seguem dois relatos de casos discorrendo sobre o tema e modo como isso vem sendo abordado dentro da escola e na clínica:
Os pais de "LLL" (sigla apenas ilustrativa que visa nomear o sujeito) procuraram a clínica de psicologia por indicação psiquiátrica, após LLL apresentar um surto psicótico, com conteúdos alucinatórios e delírios ligados à escola, religiosidade e afetividade.
LLL tem 20 anos, vinha freqüentando curso superior com bom desempenho. Nunca namorou e teve uma única experiência sexual na vida adulta e uma série de brincadeiras de "troca-troca" na infância. Apesar de sua formação estar ligada à engenharia, interessa-se muito por livros de filosofia, teologia, musica e ética. Teve uma passagem bastante atribulada pelo ensino médio e fundamental. Tinha muita dificuldade com cálculos matemáticos, era considerado um aluno indisciplinado e agressivo com os professores. Era considerado um aluno desatento e hiperativo. Tinha vários apontamentos disciplinares quando, em uma crise de "desrespeito ao professor", aos gritos, disse que detestava matemática e cálculos e que achava o professor um "idiota". Chutou a canela do professor que tentou contê-lo. Os pais foram chamados à escola e orientados a procurar por ajuda especializada.
Procuraram então o médico indicado pela escola que o diagnosticou como "hiperativo" e desatento: TDAH - transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. Passou então a fazer uso do medicamento indicado como "primeira escolha" para o caso.
Fez uso de medicação por dois anos, e nesse ínterim teve melhora em seu comportamento em sala de aula. Não mais atrapalhava as aulas e nem desrespeitava os professores, embora se sentisse "zoado" - termo usado por ele para definir a sensação de ser discriminado ou perseguido pelos demais colegas - e ainda fazer coisas pouco comuns como "fazer xixi nos carros das pessoas que ele não gostava" ou "atirar fezes de cima do prédio onde morava nas pessoas que passavam na rua". Contudo, essas questões passaram despercebidas e a melhora em seu comportamento em sala de aula foi considerada satisfatória pelos pais e pela escola. Suspendeu o uso da medicação antes do início dos vestibulares.
Ao final desses dois anos, LLL, mesmo tendo problemas com a matemática, optou por fazer o curso de engenharia. No decorrer do curso, por ser muito bem acolhido pela professora de cálculo - disciplina considerada bastante complexa -, dedicou-se e destacou-se positivamente, sendo considerado um dos melhores alunos da turma. Tinha poucos amigos e nunca namorou. Teve um breve relacionamento com uma mulher 10 anos mais velha que ele. Tinha como lazer ler livros sobre religiões orientais e como prática esportiva fazia "artes marciais". Durante todo o período em que esteve na faculdade, sentia-se "zoado" pelos colegas. No início do segundo ano, apresentou um surto psicótico.
Nesse caso, fica evidente que os comportamentos apresentados na escola já traziam indicativos de que LLL precisava de atenção psicoterapêutica e cuidados no campo das relações emocionais e familiares. O diagnóstico TDAH pode ter sido muito confortável para pais e escola, e a medicação, que por um período melhorou a adaptação de LLL à escola, também mascarou ou criou uma cortina de fumaça, encobrindo sintomas que estavam ligados a um quadro psicótico e não a um transtorno de aprendizagem. Se fosse dada atenção a esse quadro apresentado de modo mais amplo, e o foco não fosse apenas a adaptação da criança às necessidades da escola, o desfecho poderia ser mais feliz para LLL, que hoje faz uso de medicação para tratamento de psicose. Tal quadro poderia ter sido diagnosticado precocemente.
Outro caso ilustrativo será aqui identificado pela sigla "PPP". Tal relato foi colhido na escola em que o garoto citado estuda. Trata-se de uma escola particular que atende crianças e adolescentes de classe média.
Vários professores queixavam-se de um aluno da sétima série, afirmando ser um menino "hiperativo", "agressivo", "desatento" e que tinha por hábito dormir em sala de aula. Assim sendo, a coordenação encaminhou os avós do garoto, uma vez que ele não morava com os pais, para consulta médica especializada.
Diante da queixa de problemas de desempenho e comportamento na escola, o médico diagnosticou TDAH e indicou o uso de medicação "de primeira escolha".
Segundo os professores, o comportamento agressivo em sala de aula diminuiu, apesar de PPP continuar dormindo em sala de aula e seu rendimento não atingir a média da sala. Escola, professores e família não mais apresentaram queixas relacionadas a ele.
A entrevista com os avós trouxe as seguintes informações sobre PPP:
- Os avós estavam bastante satisfeitos, pois PPP estava tomando remédios e a escola não mais se queixou dele.
- Os pais de PPP eram separados. O pai vive nos EUA e a mãe trabalha em outro estado. PPP mora com os avós, pois não respeitava a mãe, não freqüentava a escola e então foi encaminhado para os cuidados do avô, que tinha mais tempo para cuidar dele.
- PPP dormia muito na escola e também à tarde em casa, e à noite ficava acordado jogando na internet.
- PPP, aos quinze anos, estava na sétima série e ia dirigindo o carro que o avô deu a ele, todos os dias até a escola.
- O avô de PPP atribui os problemas apresentados ao fato de os pais serem separados e atribui a culpa ao pai do garoto por não lhe dar atenção, e está satisfeito, pois o médico achou um remédio para ajudá-lo.
Diante disso, cabe questionar: Existe algum remédio capaz de educar esse menino?
Nesse caso, fica evidente que tanto a escola quanto a família se incumbiram de colocar "toda a sujeira embaixo do tapete". Quando PPP parou de causar problemas à escola (e passou a causar problemas apenas a si mesmo), esta parou de chamar a família e denunciar as contradições existentes. A família ficou satisfeita em distanciar as causas do problema de suas relações interpessoais e em pensar que o problema está se resolvendo apenas com o ato de comprar o remédio e administrá-lo, sem precisar se rever em nada.
Fica evidente, no caso PPP, que essa família precisa de orientação, e o adolescente em questão, de limites.
Diante do exposto, evidencia-se que a discussão sobre o encaminhamento dado ao tema TDAH por escola, pais e alunos, apresenta grande impacto social. Temos números significativos de alunos assim diagnosticados que podem denunciar a necessidade de repensarmos a temática e desenvolvermos pesquisas que lancem luz sobre o assunto, oferecendo um aporte teórico que melhore a qualidade de vida das pessoas envolvidas, direta e indiretamente, com o tema.
O conjunto das relações contemporâneas e seu "regime de verdades" que se relacionam com poder, ou seja, os tipos de discursos que são aceitos e que fazem sentido como verdade, os mecanismos e instâncias que nos habilitam a discutir sobre falsos e verdadeiros, os meios pelos quais cada uma dessas afirmações são classificadas e as técnicas e os procedimentos que são mais ou menos valorizados na aquisição da verdade e o statusdaqueles que são encarregados de dizerem as coisas que contam como verdadeiras "conspira" para que o TDAH esteja em evidência no contexto escolar atual. Porém, há que tomar cuidado com essa "solução mágica" que compreende medicar crianças sem uma análise criteriosa de todos os fatores inseridos na questão da indisciplina, na desatenção e na crise da educação ou social como um todo.
Medicar é apenas uma solução reducionista e arriscada. Chamamos a atenção para a responsabilidade que é medicar ou ainda rotular uma criança e influenciar seu desenvolvimento e sua vida escolar. A medicação usada de modo não criterioso pode mascarar o sintoma e obscurecer elementos ricos para a análise de outros quadros que podem ser apresentados e representados na produção sintomática apresentada pela criança. Sintomas devem ser compreendidos antes de serem apenas medicados.
Igualmente importante é compreendermos que existem quadros que efetivamente necessitam de medicação. Devemos analisar, compreender e distinguir um quadro do outro. Na transitoriedade das relações modernas, vemos que as coisas se entrelaçam: o cuidado a ser tomado está em não turvar a percepção com soluções mágicas orquestradas pelo "regime de verdades" vigentes orquestrada pela ideologia do consumo fácil. Não confundir, por exemplo, depressão com desatenção ou liberdade com deseducação. Para isso, temos que ir às fontes, às origens. É preciso romper com comportamentos fossilizados e cristalizados para que se construam novos conceitos, valores e formas de agir e pensar na contemporaneidade. A ética como premissa básica de convivência e sobrevivência para a humanidade deve ser nosso "chão" de educadores.
Referências
Condemarin, M. (2006). Transtorno do Déficit de atenção. Tradução Magda Lopes. São Paulo, Editora Planeta do Brasil. [ Links ]
Freire, P. (2004). Pedagogia do oprimido. 39 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra. [ Links ]
Hallowell, E. (1999). Tendência à Distração. Rio de Janeiro, Rocco. [ Links ]
Kehl, M. R. (2004). "Televisão e violência do imaginário". In: Bucci, Eugênio e Kehl, Maria Rita. Videologias: ensaios sobre a televisão. São Paulo, Bomtempo (Estado de sítio). [ Links ]
Libâneo, J. C. (1998). Pedagogia e pedagogos, para quê? São Paulo, Cortez. [ Links ]
Patto, M. H. S. (1990). A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo, Queiroz. [ Links ]
Saviani, D. (1991). Pedagogia histórico-crítica: primeira aproximação. São Paulo, Cortez. [ Links ]
Souza, M. de (2004). A experiência da lei e a lei da experiência: ensaios sobre práticas sociais e subjetividades no Brasil. Rio de Janeiro, Revan. [ Links ]
1 TDA-H-Padrão persistente e freqüente de falta de atenção e impulsividade inadequadas para o estágio de desenvolvimento, com ou sem hiperatividade (DSM-IV).