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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975

Psicol. educ.  no.31 São Paulo ago. 2010

 

Psicologia e educação - incompatibilidades x interdisciplinaridade. Uma interlocução com a professora Bernardete Gatti

 

Pschology and education: incompatibility x interdisciplinarity. An interlocution with professor Bernardete Gatti

 

Psicología y educación: incompatibilidad x interdisciplinariedad. Una interlocución con la profa. Bernardete Gatti

 

 

Sergio Vasconcelos de Luna

Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E-mail svluna@uol.com.br

 

 

Não é fácil ser debatedor de uma fala da professora. Bernardete. Minha tendência é a de pedir que ela use meu tempo, continuando a nos provocar com o tipo de análise que ela costuma fazer: quando começamos a pensar que estamos chegando a algum lugar, ela nos leva para outro. Penso que o melhor jeito de me safar disso e oferecer a ela mais oportunidade de continuar argumentando é colocando mais lenha na fogueira e me retirando para o lado da lareira para me aquecer.

Talvez o ponto mais consensual que se possa encontrar a propósito das relações entre a Psicologia Educacional e a Educação seja a falta de consenso. A análise da professora Bernardete aponta fatores importantes para se entender a questão e eu lembro que, na origem, há duas questões lembradas por ela:

• O que concebemos como "Educação" e - como campo de estudo e pesquisa, o que o diferencia de outros campos

• O que concebemos como Psicologia, seu campo e enfoque básico. O que a diferencia de outras ciências?

O primeiro aspecto que acentuo é o caráter crônico da dificuldade de responder a estas perguntas. No que se refere à Psicologia - e não apenas à Psicologia da Educação - a questão é secular. Nos últimos tempos, a cronicidade dos problemas tem levado psicólogos a sair pela tangente tomando o caminho mais fácil: a cisão total de certas abordagens em relação à disciplina original. O que era uma abordagem específica ao objeto de estudo de uma disciplina científica torna-se uma disciplina à parte, mudando-se o objeto de estudo. Parece mais fácil cindir do que integrar. Já tive oportunidade de dizer que psicólogos defendem a interdisciplinaridade, a transdisciplinaridade, a multidisciplinaridade; eles só não conseguem a intradisciplinariddade. Ou seja, não conseguem conversar entre si!

Do ponto de vista da academia, é perfeitamente possível deixar que o barco continue correndo na direção de uma completa cisão que acabe dificultando o entendimento do que seja a Psicologia, afinal. Skinner viu-se na posição de cunhar a expressão "ciência do comportamento" que, para os adeptos da "ciência da cognição", não se configura como Psicologia. Há tempos se defende que Psicanálise e Psicologia são disciplinas diferentes. No auge da Psicologia marxista, eu mal encontrava - nas categorias empregadas e na literatura analisada - traços do que imaginava ser Psicologia. Por fim, boa parte das tendências atuais em Psicologia são, de fato, teorias filosóficas1.

No âmbito da academia, esta situação será sempre vista como manifestação viva do pluralismo democrático e conducente ao refinamento da teoria do conhecimento. Em um nível menos virtuoso de discurso, isso significa dizer que continuaremos, cada grupo, a manter seu status quo: os congressos tornam-se cada vez mais especializados, publicamos para um público predeterminado (pelo menos em intenção) e empregamos os recursos disponíveis para formar/conquistar/seduzir/aliciar/convencer nossos alunos.

No que diz respeito à Educação - ou a uma Ciência da Educação - análises mais recentes têm indicado que as perspectivas de se definirem seu objeto, metodologia ou mesmo caracterizá-la como uma prática estão muito distantes. Uma dessas análises, relativamente recente - a tese de doutorado da professora Laélia Portela (2007) -, mostrou isso de forma exaustiva e contundente. Em outro trabalho, Portela2inicialmente indica que

(...) a reflexão brasileira sobre a identidade epistemológica da Educação revela um campo multifacetado e controvertido em que é possível encontrar, tanto a defesa da constituição de uma ciência autônoma da Educação, quanto a ênfase em seu caráter relacional e, até certo ponto, dependente das Ciências Sociais que elegem temas educacionais como objeto de estudo. (p. 2)

Em seguida, afirma que esse não é um tema recente, já que vem sendo estudado no Brasil pelo menos nos últimos 60 anos. Segundo ela,

Constam da pauta de discussão, a partir desse último período, não apenas a especificidade da Pedagogia, suas vinculações com as Ciências da Educação, a identidade profissional do pedagogo, mas também a necessidade do estabelecimento de marcos teóricos e critérios metodológicos necessários para firmar a Pedagogia no campo científico. Contudo, não se identificam facilmente evidências de avanços, nem de consenso, entre os autores envolvidos na discussão, a respeito do campo de estudo da Pedagogia e sobre seu estatuto de cientificidade. (p. 2)

Da mesma forma, Charlot (2006) mostra a dificuldade - a inviabilidade, eu diria - de se determinar o status da Pedagogia ou de uma Ciência da Educação e, a um certo ponto, conclui quase dando por encerrada a questão.

As ciências da Educação possuem uma realidade institucional, administrativa, organizacional, mas não têm existência epistemológica específica. Faço pesquisa em sociologia da educação, meu colega a faz em Psicologia da Educação, um outro em Didática do ensino da Matemática, pertencemos a um departamento de Educação, à mesma pós-graduação, mas não existe pesquisa educacional, e sim uma pesquisa sociológica, psicológica, didática etc. sobre temas ligados à Educação. Por conseguinte, o problema da especificidade da disciplina Educação está resoluto, por não ser mais colocado. (Charlot, 2006, p. 8)

Mas, parece haver uma luz no fim do túnel! O próprio Charlot (2006) inclui-se entre as pessoas que acreditam ser possível - ou, pelo menos, acredita valer a pena investir nessa possibilidade - ir além de um espaço de circulação administrativa e se "(...) construir uma disciplina que tivesse uma especificidade mais forte, com seus próprios conceitos e, eventualmente, métodos específicos de pesquisa" (p. 10).

Pelo menos ao falar da Psicologia da Educação, a professora Bernardete compartilha desse otimismo e dessa expectativa. Segundo ela,

Já escrevi que penso que o campo de conhecimento que chamamos de Psicologia da Educação situa-se entre as formas de tratar fenômenos com características mais abrangentes, e só pode encontrar significado se construído com um "olhar complexo", com uma perspectiva nova, diferente da praticada em geral e observada nos estudos, cujas origens podem estar na Psicologia e na Educação como campos de conhecimento, mas que na integração mostra-se como uma nova síntese. Não se trata do olhar da Psicologia para os fenômenos educacionais, ou dos fenômenos educacionais vistos em sua base psicológica, mas da tentativa de construção de uma perspectiva característica cujo eixo vincula-se às subjetividades em desenvolvimento, em e para uma dada cultura, a partir das ações, intencionais ou ritualísticas, de outras subjetividades. (Gatti, 1997) [Gatti, conforme exposição realizada]

Eu mantenho uma posição de ambiguidade em relação a tal projeto, já que contemplo duas possibilidades, sem ser capaz de confiar em nossa história recente para me definir sobre elas. A primeira consiste em aceitar a situação como inevitável, mantendo-se as igrejas e suas paróquias, em cujo caso seria possível falar-se em cumulatividade intragrupos, mas não em relação à ciência psicológica/da Educação. A segunda implica resguardar a incompatibilidade entre princípios e pressupostos, mas buscar a interlocução. Esta questão é muito claramente proposta por Demo (1981). Após declarar a crítica interna como o caminho para se entender uma abordagem qualquer, ele afirma que

(...) Embora este seja o ideal, na prática sempre deturpamos as abordagens alheias quando as criticamos porque não saberíamos partir de um ponto de vista que não o nosso. Isto explica em parte a rigidez das posições: pelo próprio ponto de partida, é praticamente impossível imaginar que um funcionalista, estudando a dialética, possa convencer-se da superioridade da dialética, porque a própria construção funcionalista da dialética já a liquidou de antemão. Isto não elimina a possibilidade de fazermos ciência; antes, reforça sobremaneira a necessidade do diálogo crítico, único critério que consegue ser comum. (...) Dentro deste árduo tirocínio, longe da pretensão ideológica da neutralidade, é possível relativamente o estudo interno das abordagens contrárias, que perde, então, o sentido de derrubada incondicional e volta-se também para a possibilidade real de aprender dos adversários e até mesmo de a eles aderir. (p. 57)

É tão ingênuo imaginar que diferentes abordagens sobre, por exemplo, pensamento e linguagem estejam todas certas, quanto é inútil postular que estejam completamente enganadas. É preciso que se exerça a comparação crítica a fim de que se determinem processos suficientemente bem estabelecidos e que estes possam ser comunicados de forma a se integrar conhecimento.

Feitas estas considerações, submeto à consideração da professora Bernardete, algumas questões.

1. Parte dos textos que sua análise recupera foram escritos há 20/30 anos. No que se refere à Educação, Portela fala em uma tradição de 60 anos na discussão dessas questões, sem que se tenha chegado a um consenso. A análise desta pesquisadora indica que muita água já passou por debaixo dessa ponte: mudanças políticas, institucionais, paradigmáticas etc. Que lição pode/precisa ser tirada desse passado histórico para que se tenha crença em um futuro próximo?

2. A análise da professora Bernardete mostra que o problema em questão sofre interferência de fatores marginais, mas de magnitude nada desprezível, tais como as classificações de órgãos oficiais, disputas de espaço acadêmico, disputas de poder etc. Charlot reconhece a importância desses fatores ao dizer que "As ciências da educação possuem uma realidade institucional, administrativa, organizacional, mas não têm existência epistemológica específica". Da mesma forma, minha análise sugere que as disputas transitam pela academia de tal modo que grupos e subgrupos se consolidam a despeito da ausência de embates frontais e abertos entre eles. Tais considerações permitiriam supor que estamos diante de um falso problema?

3. Admitindo-se que o problema não seja falso, seria possível, pelo menos, que estejamos, todo esse tempo, lutando na arena errada? Em outras palavras, o embate mais salutar, mais produtivo, não deveria ocorrer em termos do impacto que nossas produções provocam na realidade social, educacional, psicológica etc.? Há décadas a Educação é bombardeada por diferentes teorias de aprendizagem (e, portanto, de ensino); dependendo do grupo que ganha status sobre o poder oficial, os cursos de formação de professores espalham pelo país as últimas verdades sobre o que deve e o que não deve ser feito, o que é o que não é ensino. O mesmo pode ser dito sobre as relações conjugais, sobre a educação de filhos e sobre saúde mental. Que avaliação temos do impacto de nossas teorias sobre cada uma destas áreas de atuação da psicologia? Quem pode avaliar a contribuição efetiva da Psicologia para o encaminhamento (se não solução) dos graves problemas que enfrenta a nossa população? Ou, mais uma vez, esta contribuição dependerá de leituras teórico-epistemológicas determinadas, apresentadas em eventos determinados, para uma audiência determinada?

Como diz Charlot,

É preciso também ter a coragem de dizer que a recusa do pesquisador ou do professor universitário de confrontar as teorias que ele ensina com as situações e práticas do professor ou do formador levanta suspeitas, sérias, sobre o valor de suas teorias, incluindo-se aí a questão do valor do ponto de vista da verdade. (2006, p. 11)

 

Referências

Charlot, B. (2006). A pesquisa educacional entre conhecimentos, políticas e práticas: especificidades e desafios de uma área de saber. Revista Brasileira de Educação, vol.11, n.31, jan./abr, pp.7-18.         [ Links ]

Demo, P. (1981) Metodologia científica em Ciências Sociais. São Paulo, Atlas.         [ Links ]

Gatti, B. A. (1997). O que é Psicologia da Educação? Ou o que ela pode vir a ser como área de conhecimento? Psicologia da Educação, São Paulo, n.5, pp.73-90.         [ Links ]

Moreira, L. C. P. (2007). Pedagogia e educação: a construção de um campo científico. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.         [ Links ]

 

 

1 De fato, recentemente um grupo de filósofos criou um centro de estudos e de formação para a prática terapêutica.
2 http://www.mazzotti.pro.br/tarso/Edicoes_digitais/Entradas/2007/12/8_Pedagogia_e_educacao__a_construcao_de_um_campo_cientifico_files/LaliaPortelaMoreira.pdf. Acesso em 20/02/2010

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